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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2017

 

ARTIGOS

 

O que seria uma tese barthesiana?1

 

What would be a barthesian thesis?

¿Qué sería una tesis barthesiana?

   

 

Charles CoustilleI

I École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), Paris, França.

 

 


RESUMO

A partir de textos inéditos de Roland Barthes (principalmente a dissertação sobre Ésquilo, os numerosos trabalhos doutorais inacabados e as anotações para o seminário sobre “Os problemas da tese e da pesquisa”), definimos as características de uma tese barthesiana: 1) ela não tem necessariamente um tema, seu objetivo é fabricar um objeto; 2) ela abandona seu método durante o percurso; 3) ela é desgraciosa, mas procura mesmo assim seduzir; 4) é uma maneira específica de orientar o desejo.

Palavras-chave: Tese; Barthes; Escrita.


ABSTRACT

From several unpublished texts (mainly the dissertation about Ésquilo, the numerous unfinished doctorals works and the notes for the seminary on "The problems of the thesis and research"), we defined the characteristics of a barthesian thesis: 1) it doesn't necessarily have a theme, it's objective is to fabricate an object; 2) it abandons it's method during the course; 3) it is ungraceful, but even so seeks to seduce; 4) it is a specific way to orient the desire.

Keywords: Thesis; Barthes; Writing.


RESUMEN

A partir de diversos textos inéditos (principalmente la disertación sobre Esquilo, los numerosos trabajos doctorales inacabados y las anotaciones para el seminario sobre “Los problemas de la tesis y de la investigación”), definimos las características de una tesis barthesiana: 1) no tiene necesariamente un tema, su objetivo es fabricar un objeto; 2) abandona su método durante el recorrido; 3) es desgarbada, pero todavía busca seducir; 4) es una manera específica de orientar el deseo.

Palabras-clave: Tesis; Barthes; Escrita.


 

 

“Eu, você sabe, cada vez que escrevo um livro, escrevo uma tese”. Mesmo que se trate de algo dito e não de uma frase retirada de seus escritos, esta declaração de Roland Barthes cria uma dúvida sobre a precisão e o valor que atribui ao termo “tese” – gênero universitário que ele, porém, conhece bem, haja vista ter começado diversos trabalhos doutorais, todos inacabados; e ter orientado mais de cinquenta teses2.

Além dos artigos sobre pesquisa e ensino superior da década de 19703, leremos um número específico de textos não publicados, a fim de descrever com a maior precisão possível a maneira com a qual Barthes apreendia o exercício da tese. Inicialmente, a monografia de 1941 para o diploma de estudos superiores, que trata essencialmente dos encantamentos de Ésquilo. Sequencialmente, os projetos do CNRS, onde Barthes foi stagiaire de recherche de 1952 a 1954 e bolsista de produtividade em pesquisa de 1956 a 1959. De diferentes relatórios, podemos extrair quatro projetos bastante distintos: uma tese de lexicologia intitulada “Vocabulário de política econômica e social de 1825 a c. 1835”; outra mais generalista, “Sobre os Signos e os Símbolos Sociais nas Relações Humanas”; depois a “Mitologia das Roupas”; e uma quarta, bastante inacabada, “Variações da estrutura da imagem em função dos enquadramentos sociais na sociedade contemporânea”4. Finalmente, o seminário não publicado de 1972-1973, “Os problemas da tese e da pesquisa”, contém diversas considerações pedagógicas e técnicas importantes.

Para que emirja os traços de uma tese barthesiana, não basta descrever os diferentes trabalhos doutorais; é preciso indagar se as considerações teóricas que estão de acordo com a prática; se os seminários e os artigos respondem às teses começadas por Barthes; se o orientador inspira-se na própria experiência ou se, pelo contrário, suas análises do meio de ensino constroem-se como reação às dificuldades universitárias que ele mesmo conheceu.

Empreendemos uma análise semelhante por três motivos. Inicialmente, para conhecer a obra de Barthes e para corrigir algumas aproximações de leitura: assim, podemos logo dizer que sua concepção do gênero tese é muito mais estreita do que os dizeres na abertura podiam fazer crer. Veremos que há, em Barthes, contrariamente ao que ele pôde declarar naquela ocasião, uma distinção radical entre tese e livro, uma distinção de natureza e não de grau. Podemos igualmente nos perguntar sobre o que seria uma tese barthesiana em uma perspectiva autorreflexiva, a fim de pensar em nossas próprias teses de “jovens pesquisadores”. Enfim, refletir sobre a noção de “tese” com Barthes pode ser também uma forma de encarar a política universitária contemporânea de um ponto de vista pouco usual, graças a noções periféricas de “ciência”, de “instituição” e de “pesquisa”, todas mobilizadas por Barthes e trabalhadas em direções imprevistas, que nos forçam a interrogar nossas estruturas.

Uma tese barthesiana poderia ser reconhecida a partir de quatro características: 1) ela não tem necessariamente um tema, seu objetivo é fabricar um objeto; 2) ela abandona seu método durante o percurso; 3) ela é desgraciosa, mas procura mesmo assim seduzir; 4) É uma maneira específica de orientar o desejo.

Fabricar um objeto 

Hoje em dia, temos a tendência de associar o “objeto” ao “corpus” e o “tema” ao “problema”. Barthes faz um uso muito mais original dessas noções; e formula-as de uma maneira particularmente interessante em suas notas redigidas para o seminário ministrado na École Pratique de Hautes Études (EPHE) em 1972-19735. A ficha 23 sintetiza o funcionamento habitual de um começo de pesquisa:

Resumo, Percurso Usual Haveria:
-    Corpus;
-    Objeto/superego, cultura maia, recorte-tema de tese;
-    Pane: despejo do sujeito da enunciação;
-    Projeto-tema.

A primeira etapa é convencional: o “corpus”. Tomamos conhecimento, em uma outra ficha, que ele é concebido como um corpo desejado, cujo papel não é metodológico, mas sim erótico: “o corpus figura aquilo de que gostamos, figura o desejo”, escreve Barthes6. Este todo não é limitado pelo tempo, pelo espaço, pelo gênero ou por uma ancoragem disciplinar qualquer, ele se escolhe em função do gosto e deve permitir a investidura do desejo. Na segunda fase, esse objeto é trabalhado. O superego institucional deve canalizar o desejo e orientá-lo. “Cultura maia” é um exemplo de objeto desejado, mas é preciso obrigar-se a recortá-lo de uma forma aceitável pelas instâncias acadêmicas. Obtemos, então, um “tema de tese”. A terceira linha da ficha relata uma deriva comum: o estudante sente-se esmagado pela lei universitária. O recorte do corpo evacua o desejo. Significa dizer que o superego esmaga o ego a ponto de rejeitá-lo fora da tese. Disso decorre uma “pane”. Tão logicamente, o “projeto-tema” corresponde à reinvestidura do desejo, não mais no objeto, mas no tema da tese. O doutorando apropria-se progressivamente daquilo que parecia, inicialmente, um recorte artificial7.

Em outra ficha lemos: “Um bom filme é um filme sem um ‘tema’”8. Paralelamente, a boa tese deve evitar ser “sobre” um tema; ela deve tirá-lo de um projeto – e este elã é o desejo do “ego” que fornece. Com efeito, subsiste um último elemento que Barthes não menciona na ficha 23 e que, porém, deve orientar inteiramente o trabalho: o objeto enquanto objetivo e não como ponto de partida. É a visão de uma forma final, quimérica, um livro mais ou menos realizável9. Este “objectum”10 não figura nas “etapas usuais”, pois ele se encontra latente do início ao fim da pesquisa. E, quando o perdemos de vista, a pane ocorre. Assim, segundo esta concepção de exercício, não há um objeto e um tema, mas dois temas e dois objetos: o “tema da tese” (que vale quase nada, pois o desejo encontra-se ausente) e o “tema-projeto” (no qual o desejo foi investido); depois, o “objeto- corpus” (o corpo erótico) e aquilo que Barthes chama de “objectum” (o objetivo). Esse último termo é fundamental, porque a finalidade de uma tese é fabricar um objeto intelectual novo.

De acordo com estes preceitos, leiamos o projeto de pesquisa de 1959 para o Doutorado, “Variações de estrutura da imagem em função dos enquadramentos sociais na sociedade contemporânea”. Começa assim: “O objeto central da pesquisa [é] a imagem gráfica inanimada, estudada no livro ilustrado, na imprensa ilustrada e na publicidade.”11 O pesquisador apresenta seu corpus, isto é, um domínio largo, não recortado, cujo estudo o agradaria. Continuemos a leitura: “O objetivo geral da pesquisa é um confrontamento da estrutura da imagem e do real que inspira, em função dos dados técnicos que regulamentam sua elaboração; e em função dos enquadramentos sociais em que é difundida.”12 Em outras palavras, tratar-se-ia de, inicialmente, descrever a relação do ilustrador ou do fotógrafo com seu objeto (ou seja, uma análise da intenção do autor); e, depois, a influência da técnica de representação ou de captura (que Régis Debray chamaria de um estudo “mediológico”), antes de optar por um olhar sociológico sobre a difusão e a recepção da imagem. Este recorte provém, é claro, do “tema da tese” e não do “tema- projeto”, porque parece que nenhum partido pessoal foi tomado nesse estágio. Depois, após ter sumariamente descrito seu modo operatório, Barthes anuncia sua ambição: “De uma maneira geral, a pesquisa deverá contribuir com o esclarecimento da questão das relações entre Natureza e Cultura na Sociedade contemporânea.”13 O tema parece ter se esvaziado de todo desejo individual e reveste-se de uma generalização extrema. É a “pane”. Desconhecemos, aliás, alguma continuação imediata desse estudo. A precipitação aparente com a qual o projeto foi escrito não permite conceber um objetivo em direção do qual o desejo teria podido orientar-se – este trabalho não ultrapassará, portanto, o estágio embrionário. A primeira condição de existência da tese barthesiana, o desejo de construir um objeto, não foi respeitada.

O método é abandonado durante o processo

O projeto de lexicologia “Vocabulário de política econômica e social de 1825 a c. 1835” foi empreendido mais seriamente do que aquele sobre a imagem. Segundo um relatório de Barthes de 1952: 

O trabalho empreendido tem por objetivo estabelecer um inventário e descrever a organização do vocabulário da vida econômica e social por volta de 1830. O método segue o da lexicologia: as apurações trataram, até o momento: 1) da Imprensa da época; 2) dos textos legislativos e administrativos; 3) de obras de autores.14

A palavra “apurações” [dépouillement] reaparece muitas vezes e parece ser a pedra angular do método adotado pelo “padrinho” de Barthes no CNRS, Georges Matoré: “Os estudos do Sr. Barthes, utilizando textos cuja data é conhecida, baseiam-se no concreto das palavras, segundo um método objetivo que a maioria dos lexicólogos franceses aplicam hoje em dia”15. Na prática, o discípulo lê atentamente textos de naturezas muito diferentes, a fim de datar a origem de certos termos. Assim, as primeiras apurações permitem a ele dizer que, contrariamente ao que indicavam os dicionários etimológicos, a palavra “chômeur” [desempregado] não aparece em 1876, mas em 1822; “décentralisation” [descentralização] em 1815, e não em 1829, etc.

Esses resultados positivos não satisfazem completamente Barthes, que, face à aridez de seus registros, muda um pouco sua abordagem no ano seguinte:

Pensei ter de ampliar o método de apuração, completando os registros lexicológicos propriamente ditos, por meio de um registro de expressões e de ‘clichés’ nos quais são empregadas palavras do vocabulário econômico e social da época estudada (...). Esperamos, assim, obter esclarecimentos preciosos sobre a difusão de uma palavra (e não mais apenas sobre sua significação).16

É preciso ver nessa passagem do sentido ao estereótipo o começo do projeto mitológico? Ou, pelo contrário, devemos pensar que a escrita paralela das primeiras Mitologias contamina o trabalho universitário? Na verdade, há uma influência recíproca, mas, por enquanto, o essencial é observar que Barthes sente-se enclausurado pela rigidez do método qualificado de “objetivo” por Matoré. Ele pretende “ampliar”, mas, na realidade, essa mudança de orientação é uma maneira indireta de descontinuar os esgotantes e infrutíferos registros lexicológicos. Imposto por um terceiro, o método transforma progressivamente o corpus erótico em um corpo inerte; e neutraliza o desejo, condição de qualquer pesquisa. Disso decorre uma outra “pane”, um outro abandono.

Em contraposição, o bom método é aquele que consegue se fazer esquecer. Não se trata de apoderar-se de um modo operatório pré-estabelecido, que permitiria ir de um ponto inicial a um ponto final; nem de um método cartesiano, que procuraria estabelecer fundamentos inabaláveis a partir dos quais o raciocínio poderia ser construído – não, pelo contrário, o método de uma tese barthesiana serve apenas para impulsioná- la. Ao longo do tempo, a intenção metodológica dissolve-se na pesquisa até desaparecer de todo. Disso decorre uma preferência de Barthes por métodos tão abertos quanto possível, tramas mais soltas, injunções difusas. O método utilizado no trabalho “Sobre os Signos e os Símbolos Sociais nas Relações Humanas” é tão impreciso quanto o do projeto lexicológico era normativo: observação direta e indireta, entrevistas, amostra estatística, trabalho de intepretação psicanalítica aplicada aos símbolos vestimentais, colaboração com investigações de outros pesquisadores e mesmo – categoria livre por excelência – “experimentações”17. Compreendamos, não se trata de um enquadramento rigoroso do trabalho, mas da multiplicação de procedimentos preliminares cuja perenidade depende da evolução da pesquisa.

Entre as fichas ligadas ao seminário “Os problemas da tese e da pesquisa”, uma delas impressiona pelo surpreendente atalho que executa. “Método: Inventio”18. O método associa-se à primeira das etapas da retórica latina: ele serve para encontrar o que dizer, não como organizá-lo (dispositio), e muito menos como dizê-lo (elocutio). Ele é um instrumento que permite percorrer o corpus em busca de um primeiro “tema”, pronto a ser esquecido logo que uma direção foi tomada. Para retomar uma expressão de Barthes, ele se assemelha à “ação de pesquisa” e não ao “trabalho de pesquisa” (essa segunda categoria está associada a um “gesto que retoma, utiliza, mastiga”, enquanto “a ação de pesquisa” adapta-se a cada curva do processo, permanece à espreita de uma hipotética nova orientação)19. O método barthesiano é uma força de renovação: ele serve para evitar as panes e para alimentar a vitalidade do desejo de pesquisa.

A tese é desgraciosa, mas procura seduzir

Em “Écrivains, intellectuels, professeurs” de 1971, Barthes não hesita ao afirmar que a tese é uma “prática tímida de escrita, concomitantemente desfigurada e protegida por sua finalidade institucional”20. No seminário do ano seguinte, a redação de um documento semelhante ainda é apresentada como desprovida de interesse. Mas o ensinamento de Barthes não é sem nuances: por certo, os alunos devem aceitar que a tese é um gênero “onde se acumulam elementos desgraciosos”21, mas eles não devem desistir de torná-la um objeto atraente, com a ajuda de “um aparelho de sedução”22. Para traduzir essa mensagem, digamos que seria necessário estabelecer com nossa tese a mesma relação que Sartre estabeleceu com a feiura dele. Resignando-se mais do que se lamentando ou se desculpando dessa miséria: “A minha feiura nunca me afligiu”, ele declara em uma entrevista filmada com Simone de Beauvoir23. Seria necessário, de maneira semelhante, nunca se afligir com a feiura da tese e assumir a fragilidade ligada ao gênero. Isso não significa de modo algum uma negação da beleza enquanto valor. Do mesmo modo que Sartre gostava de se rodear de obras ou mesmo de pessoas belas, a tese pode conversar com textos belos. E se o corpo é desagradável, qualquer esperança de sedução não deve ser abandonada.

É crucial não se enganar sobre a natureza do texto que escrevemos; a consciência do gênero não deve, em nenhum caso, ser abstraída. A esse respeito, a monografia de Barthes é exemplar. Poderíamos ter esperado encontrar nesse texto, entregue em outubro de 194124, os elementos que levaram à redação de sua primeira publicação conhecida “Culture et Tragédie”, uma vez que ambos tratam do contexto cultural da tragédia e foram redigidos, de maneira verossimilhante, ao mesmo tempo ou com poucos meses de intervalo. Porém, a diferença é radical: o fundo e a forma do artigo tem nada a ver com os da monografia. Significa dizer que, desde sua mais tenra idade, o autor dissociava a escrita de um exercício universitário daquela, mais livre, que convém a um artigo de periódico. O campo do artigo é tão vasto quanto o título sugere: trata-se de depreender as condições de possibilidade da escrita trágica sob o olhar de contextos que possibilitaram as tragédias gregas do século quinto, da época elisabetana e do século XVII francês. As cerca de 142 folhas datilografadas da monografia concentram-se em um tema muito mais pontual: o papel das encantações religiosas na obra de Ésquilo. Ademais, o tom predominantemente peremptório do artigo contrasta com a modéstia inteiramente acadêmica da monografia. Se Barthes cita Nietzsche nesse último, ele o faz muito raramente e mantendo uma certa distância, enquanto que “Culture et Tragédie” toma emprestado diversos grandes temas de O Nascimento da Tragédia. Isso, certamente, com o objetivo de tratar com deferência o helenista que orientava suas pesquisas, Paul Mazon, que citava de bom grado Ulrich von Wilamowitz-Moellendorff, filólogo alemão conhecido principalmente como o crítico mais ferrenho do primeiro livro de Nietzsche25.

A monografia de Barthes, tão neutra e sóbria quanto possível, satisfaz as exigências da instituição, enquanto que o artigo revela as aspirações literárias do jovem Barthes. Essa separação pragmática de gêneros, ligada à necessidade de dobrar a escrita de acordo com as normas acadêmicas, é teorizada no seminário de 1972:

Há necessariamente algo como uma pulsão entre as liberdades do discurso (confinadas aos problemas da escrita, que é sempre contra institucional) e as normas institucionais. Essa pulsão (esse compromisso): em alguma medida o tema específico deste ano: uma pragmática da relação escrita/instituição. Seus ouvintes funcionais seriam: os anômicos absolutos e os conformistas radicais: quero dizer: não que estejam entre nós em estado puro: mas o duplo limite, a dupla asserção de nosso trabalho.26

Dito de outra forma, Barthes desconfia do excesso de conformismo, da monografia demasiadamente reverente (e talvez a sua o tenha sido), mas também da inclinação inversa: o excesso de literatura. O gênero universitário tese constrói-se por meio de um compromisso entre desejo de escrever e inscrição institucional. Todavia, tão “tímida” quanto possa ser a prática da escrita, é dela que depende, em grande medida, a qualidade de uma tese. Barthes propõe, aliás, exercícios de escrita a seus alunos, a fim de tornar a tese envolvente: pede a eles que aceitem colocar em circulação seus textos, ainda que se exponham ao “ferimento da correção”27

Em seu seminário, ele deseja trabalhar uma “poética da tese”28, que dependerá principalmente do receptor do texto – isto é, da banca. A escrita é elaborada, então, de acordo com um compromisso entre aspirações individuais e expectativas antecipadas da banca, ainda que lance mão de um número específico de auxiliares e de “receitas”.

Uma maneira específica de orientar o desejo

Para o quarto e derradeiro traço, contentar-nos-emos com a interpretação de dizeres de Barthes de 1975, cujo sentido é menos evidente do que parece: “As teses de terceiro ciclo, para nove décimos dos casos, são álibis de fantasias.”29 O que ele quer dizer? Em primeiro lugar, que, aritmeticamente, fica um décimo das teses que não são álibis de fantasia – que se dividem, logicamente, em duas categorias. Haveria, inicialmente, teses não fantasiosas, baseadas unicamente no princípio da realidade. Elas responderiam perfeitamente às demandas institucionais: seu tema seria imposto pelo orientador e permitiria ocupar um “nicho” não ocupado por outros pesquisadores. Mas essa não investidura absoluta do ego exclui desde já os textos da categoria “tese barthesiana”, pois, como vimos, a investidura do desejo individual é indispensável. Neste um décimo restante, haveria também teses que, mais do que “álibis de fantasia”, seriam verdadeiramente fantasmagóricas. No seu seminário, Barthes forneceu, aliás, um exemplo disso a partir da experiência de um personagem de La Conspiration, de Nizan, que preparava um trabalho de terceiro ciclo: “Laforgue imaginava uma espécie de generalização das análises de Marx sobre o fetichismo da mercadoria, uma característica universal do logro.”30 Mas é óbvio que uma unidade de medida semelhante do logro existe apenas na imaginação e não na tese. Barthes previne seus alunos: Laforge ruma em direção à “pane”.

Então, com o que se fantasia, exatamente, nos nove décimos das teses? E porque a fantasia teria necessidade de um álibi? Sintetizando diversos elementos esparsos no texto de Barthes, podemos recuperar três objetos fantasiosos (eles correspondem aos “objetivos” ou “objecti”, mencionados na primeira parte): 1) A aplicação de um “método onipotente”; se Barthes toma o exemplo de matemáticos31, poderíamos igualmente pensar nas diversas metodologias estruturalistas: semiologia, narratologia, etc. 2) O “objeto-livro”; a tese recalca a fantasia do livro, termo aqui tomado com uma forte conotação mallarmeniana, da obra total e perfeita. Ela é, então, um álibi que permite adiar a escrita do livro. 3) A “invenção de uma linguagem”; isso seria a de Laforgue de Nizan – escrever de uma maneira nova de tal forma que o autor e o leitor da tese não sejam o logro de nada nem de ninguém.

Na verdade, Laforgue tem uma ambição excessivamente genérica (imaginando estender à exaustão as análises de Marx sobre o fetichismo da mercadoria), mas isso não quer dizer que seja preciso renunciar definitivamente à invenção de uma linguagem, talvez um pouco mais modesta. Barthes define, aliás, o pesquisador como o oposto do professor, uma vez que ele procede à “execução pessoal de sua própria linguagem”32. Dito de outra forma, as fantasias anteriormente mencionadas não devem ser completamente abandonadas durante a elaboração da tese. O álibi não deve recalcar a totalidade do desejo. Na verdade, “a tese de terceiro ciclo é um discurso recalcado”33, mas isso significa, antes de mais nada, para o autor de “Jovens Pesquisadores”, que é preciso encontrar mais espaços para deixar o caminho livre ao desejo: artigos, comunicações ou outros. A tese barthesiana, por mais que seja um álibi de fantasia, não se encontra completamente isenta do desejo. O bom orientador saberá revelar essa fantasia, ao mesmo tempo em que mostrará a impossibilidade de sua realização e em que canalizará o desejo rumo a um objeto institucional aceitável – esperando o melhor. Pois não é o caso de esquecer o texto redigido paralelamente à tese ou aquele que a continuará.

Conclusão

A partir destes quatro traços, poderíamos arriscar dizer que nenhum projeto doutoral de Barthes pode ingressar na categoria “tese barthesiana”. Sua inconclusão é, talvez, devida a sua austeridade, a sua falta de chamariz, em comparação aos projetos mais literários de que são contemporâneos. Mas, por outro lado, é necessário entender bem que, para Barthes, não há uma utopia da tese, assim como não há uma utopia do seminário. Quando um enquadramento coletivo necessita da invenção de novas maneiras de pensar, para a tese, a instituição não pode “tratar de modo utópico”, uma vez que isso seria correr o risco de teses fantasiosas, logo irrealizáveis. O desejo da escrita deve ser reprimido para ser inscrever em um enquadramento institucional. Se o aluno se deixa invadir por seu desejo de literatura, a sanção acadêmica é imediata.

Como testemunho, um último biografema. Em 1954, Barthes viu negada a renovação de sua bolsa do CNRS. No ano anterior, ele dedicara todas suas forças à escrita e negligenciara visivelmente suas apurações lexicológicas. Ele não tomou conhecimento da verdadeira justificativa de não renovação; e apenas recebeu uma carta que indicava problemas orçamentários impedindo uma prolongação. Mas a leitura do relatório de seu “padrinho”, G. Matoré, fornece outra justificativa e confirma o destino cruel reservado àqueles que pensam poder ignorar as estruturas institucionais e que se deixam seduzir pelas sereias da literatura.

Não desconheço de modo algum o interesse dos trabalhos do Sr. Barthes que explora um domínio muito pouco conhecido (...), mas me surpreendo que ele tenha interrompido completamente suas apurações, ou, melhor dizendo, eu me surpreenderia se não soubesse que o Sr. Roland Barthes publicou há um ano dois volumes que são, o primeiro, O Grau Zero da Escrita, obra em que são expressas ideias originais, mas que foi escrita em uma língua imagética e obscura, muito apreciada em meios específicos, mas em relação à qual tenho pessoalmente as mais expressas reservas; o outro volume é intitulado Michelet par lui-même. A pesquisa de documentos e a redação desses volumes exigiram certamente um ano de trabalho. Somos levados a crer que o Sr. Barthes não se dedicou a sua tese desde a primavera de 1953. A Comissão julgará se ele deve, nessas condições, renovar sua bolsa. 34


Data de submissão: 20/08/2016
Data de aceite: 22/09/2016


1 Tradução realizada por Rafael Souza Barbosa do artigo “Que serait une thèse barthésienne?”, sob autoria e autorização de Charles Coustille. Para esta tradução resolvemos manter a estrutura e as referências na língua francesa.

2 Esta estimativa provém de uma pesquisa feita no catálogo Sudoc; muitas teses que Barthes supervisionou foram também registradas com a orientação de Julia Kristeva. Recuperado em 17 janeiro, 2014, de http://www.sudoc.abes.fr.

3 Começando pela apresentação de Barthes a “Jeunes Chercheurs”, número da revista Communications publicada em 1972. V. Œuvres Complètes IV, Paris, Seuil, 2002, p. 126-132.

4 Este projeto já foi analisado por Jacqueline Guittard em sua tese “Roland Barthes : la photographie à l'épreuve de l'écriture”, defendida em 2004.

5 Há cerca de trinta fichas, bastante sucintas, às vezes quatro ou cinco palavras, anotações feitas para os seminários e durante as apresentações dos doutorandos. 

6 Barthes, Notas para o seminário da EPHE de 1972-1973, “Les problèmes de la thèse et de la recherche”, Fonds Barthes, BnF, Ficha 6.

7 Os termos “desejo” [désir], “fantasia” [fantasme] ou “ego/super-ego” [moi/sur- moi] não devem ser entendidos em sentido estritamente freudiano ou lacaniano. Trata- se somente, segundo as palavras de Barthes, de “uma leve apelação à psicanálise”. Ver as notas para o seminário da École Pratique de Hautes Études de 1972-1973, “Les problèmes de la thèse et de la recherche”, pasta 1: “Un anniversaire, une mutation”, Fonds Barthes, BnF, p. 4.

8 Ibid., Ficha 8.

9 Precisaremos o sentido desta fantasia na quarta parte.

10 Op. cit. Fichas 4, 5, 7.

11 Barthes, “ Les Variations de la structure de l’Image en fonction des cadres sociaux dans la société contemporaine”, Arquivos do CNRS, 1959.

12 Ibid

13 Ibid

14 Barthes, “Le Vocabulaire de la politique économique et sociale de 1825 à 1835 environ”, Arquivos do CNRS, 1952, p. 1.

15 G. Matoré, “Rapport sur les recherches de Mr. R. Barthes”, Arquivos doCNRS, Março 1953. Seria muito injusto reduzir a abordagem do lexicólogo à simples amostragem que ambiciona datar palavras às quais Barthes circunscreveu-se. La Méthode en lexicologie (Paris, Didier, 1953) contém importantes reflexões filosóficas, psicológicas e antropológicas sobre o conceito de “palavra”. A tese de Greimas (La Mode en 1830 : Essai de description du vocabulaire vestimentaire d’après les journaux de mode de l’époque), que muito influenciou Barthes, é resumida e tomada como exemplo no final da obra (p. 118-122).

16 Barthes, Rapport d’activité du 25/02/1953, Archivos do CNRS.

17 Barthes, “Sur les Signes et les Symboles Sociaux dans les Relations Humaines”, Arquivos do CNRS, 26/02/1955, p. 3.

18 Op. cit., Fiche 32.

19 Ibid., Ficha 29

20 Barthes, “Ecrivains, intellectuels, professeurs” (1971), Œuvres complètes III, Seuil, 2002, p.892

21 Op. Cit., Dossier 2 : “La these”, f. 4.

22 Ibid.

23 A. Astruc, M. Contat, “Sartre par lui- même”, 1980. Podemos também remeter a A. Buisine, Laideurs de Sartre, Lille, Presses Universitaires du Septentrion, 1986.

24 Barthes, “ Evocations et incantations dans la tragédie grecque”, Mémoire pour le diplôme d’études supérieures, 1941, Fonds Barthes, BnF.

25 Encontramos muitas referências aos trabalhos de Ulrich von Wilamowitz- Moellendorff nas introduções às traduções de Ésquilo. Ver principalmente: Eschyle, Tome 1 : Les Suppliantes. Les Perses. Les Sept contre Thèbes. Prométhée enchaîné, texte établi et traduit par Paul Mazon, Paris, Les Belles Lettres, 1920

26 Op. cit. , Dossier 2 « La thèse », f. 6.

27 Ibid., f. 3.

28 Ibid., “Seconde partie du séminaire”, Dossier 3, f.1.

29 Barthes, Questionnaire : “Littérature /Enseignement “ (1975), Œuvres Complètes IV, Paris, Seuil, 2002, p. 879.

30 Op. cit., Ficha 13.

31 Ibid., Ficha 11.

32 Relatório de Barthes “Rencontres de Royaumont”, reunindo pesquisadores da VIe section de l’EPHE, em 19 e 20 de maio de 1973. Recuperado em 11 abril, de http://www.ehess.fr/archives/document.ph p?id=4826.

33 “Jeunes chercheurs”, op. cit., p. 128.

34 G. Matoré, “Rapport sur les recherches de Mr. R. Barthes”, Arquivos do CNRS, 12 de abril de 1954.

I Charles Coustille: Doutor em letras pela École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em cotutela com a Northwestern University, e professor da Université de Paris-Est Créteil. E-mail: charles.coustille@gmail.com

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