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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2017

 

ARTIGOS

 

A lei em conflito com os jovens: problematizando políticas públicas

 

The law in conflict with the young: problematising public policies

La ley em conflicto com los jóvenes: problematizando políticas públicas

   

 

Ana Lígia VittaI, Maria Eduarda Parizan ChecaII, Bruna Soares BrunoIII, Giovana Barbieri GaleanoIV, Suyanne dos SantosV e Andrea Cristina Coelho ScisleskiVI

I Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS, Brasil.

II Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS, Brasil.

III Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS, Brasil.

IV Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS, Brasil.

V Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS, Brasil.

VI Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS, Brasil.

 

 


RESUMO

Este artigo tem como objetivo principal analisar as diferentes lógicas de atendimento à população juvenil em conflito com a lei a partir da elaboração das políticas públicas nos diferentes momentos históricos do cenário brasileiro. Para isso, se analisaram as legislações anteriores que atendiam a esses jovens – com ênfase nas continuidades e descontinuidades dos códigos de menores de 1927 e 1979 - e o atual Estatuto da Criança e do Adolescente. Compreende-se que, apesar das diferenças de racionalidades entre os códigos, estão presentes, nas antigas legislações, dispositivos de continuidade de lógicas discriminantes atualmente ilegítimas, mas que, de certa forma, ainda vigoram. Conclui-se que, mesmo com a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente, é possível perceber, especialmente no que tange às medidas socioeducativas, a presença de lógicas que constam nos antigos códigos de menores.

Palavras-chave: Código de Menores; Estatuto da Criança e do Adolescente; jovens em conflito com a lei; políticas públicas.


ABSTRACT

The main objective of this article is to analyze the different logics of care for the youth population who are in conflict with the law, based on the evolution of public policies through different historical moments in the Brazilian context. To achieve this, we analyzed the previous legislation regarding these young people - with emphasis on the continuities and discontinuities of the juvenile codes of 1927 and 1979 - and the present Statute of Children and Adolescents. Despite the differences in rationalities between the codes, there are mechanisms in the old laws which maintain discriminatory logics that are currently illegitimate but still in force. In the end, despite the existing Statute of Children and Adolescents, the presence of logics contained in the old juvenile codes can be noted, especially with regard to socio-educational measures.

Keywords: Juvenile Code; Statute of Children and Adolescents; youth in conflict with the law; public policies.


RESUMEN

El objetivo principal de este artículo es analizar las diferentes lógicas de atención a la población juvenil en conflicto con la ley a partir de la elaboración de las políticas públicas en diferentes momentos históricos del escenario brasileño. Para lograrlo, se analizaron las legislaciones anteriores que contemplaban a esos jóvenes -con énfasis en las continuidades y discontinuidades de los códigos de menores de 1927 y 1979- y el actual Estatuto del Niño y del Adolescente. A pesar de las diferencias de racionalidades entre los códigos, se puede comprender que están presentes, en las antiguas legislaciones, dispositivos de continuidad de lógicas discriminantes actualmente ilegítimas, pero que, de alguna manera, todavía están en vigor. Se concluye que, aunque el Estatuto del Niño y del Adolescente esté vigente, es posible percibir la presencia de lógicas que constan en los antiguos códigos de menores, sobre todo en lo que se refiere a medidas socioeducativas.

Palabras-clave: Código de Menores; Estatuto del Niño y del Adolescente; jóvenes en conflicto con la ley; políticas públicas.


 

 

Introdução

O presente artigo procura estabelecer uma linha de rupturas e continuidades nas lógicas de operacionalização, a partir dos discursos psi, dos antigos Códigos de Menores de 1927 e 1979 (Brasil, 1927; 1979) e do atual Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), no tocante às medidas propostas, respectivamente, aos menores delinquentes e aos jovens em conflito com a lei nos contextos brasileiro e sul-mato-grossense. Para tanto, foi realizada uma pesquisa documental acerca das antigas legislações e das atuais e, então, foi feita uma análise entre as lógicas de atendimento que regiam cada uma, suas semelhanças e descontinuidades e, principalmente, como elas afetam a prática nas Políticas Públicas atuais.


Delineando Discursos: a Lógica Menorista

A primeira lei voltada para a infância e juventude no Brasil foi o Código de Menores, conhecido também como Código Mello Matos, sancionado em 1927. Antes, até então, não havia intervenção do Estado na área social, apenas ações caritativas de algumas instituições, como a igreja, por exemplo. Em 1920, entretanto, ocorre o primeiro Congresso Brasileiro de Proteção à Infância, que leva à sanção do primeiro Código de Menores, em 1927. Essa mudança é decorrente de uma nova visão da infância, da criança como símbolo do futuro da nação (Marcílio, 1998).

Inicialmente, o Código de 1927 referia-se ao jovem infrator como “menor delinquente”, termo que intitulava seu capítulo IV e se referia à medida que eram aplicadas a essa parcela da população (Brasil, 1927). De acordo com o primeiro capítulo do artigo 68, se o menor sofresse de epilepsia, deficiência mental, alguma alienação, cegueira ou surdez, a autoridade ordenar-lhe-ia tratamento adequado (Brasil, 1927). O que demonstra que, nessa época, a lei preocupava-se de imediato com a higienização por meio da exclusão dessas pessoas, já que não havia especificação sobre qual seria o tratamento adequado para eles, de modo que fosse legalmente permitido ser feito o que melhor conviesse às autoridades. O tipo de intervenção direcionada, portanto, se pauta em uma lógica higienista que não apenas se restringe a uma política sanitária, mas um higienismo social cujo foco será a limpeza das ruas através de práticas direcionadas aos pobres, vadios, criminosos e degenerados (Masanera & Silva, 2000).

De acordo com o capítulo segundo desse mesmo artigo 68 (Brasil, 1927), se o menor fosse “pervertido ou estivesse em perigo de o ser”, a autoridade competente teria o papel de ordenar-lhe “colocação em asilo” (p.7). O uso do termo pervertido indica parte do discurso moralizante dessa lei, na qual qualquer fuga apresentada pela criança ou pelo adolescente à moral presente naquele dado contexto era utilizada como subterfúgio para remoção desses indivíduos em asilos ou escolas de preservação, patologizando e salientando, com isso, o desvio de conduta por eles apresentado. Outra observação que podemos destacar é em relação, não apenas aos pervertidos, mas também àqueles que estivessem em perigo de o ser. Nessa assertiva, ressalta-se a virtualidade; ou seja, indica que a possibilidade, considerada pelas autoridades, de o indivíduo encontrar-se em tal situação já acarretaria condições de permitir a intervenção por parte dessas autoridades em sua vida.

É importante destacar também o contexto nacional. Em 1930, com a posse do presidente Getúlio Vargas, iniciava-se uma nova era no país, a era do progresso industrial e tornou-se necessário que houvesse mão-de-obra para dar suporte à construção do país e, devido a isso, em 1932 ocorreu uma mudança na lei que permitiu que os menores de 14 anos pudessem trabalhar. Dessa forma, a criança e o jovem passaram a ser inseridos ao progresso por meio do trabalho e aqueles que não atendiam a tal demanda foram integrados nela por meio da repressão: surgiam, assim, os menores delinquentes (Marcílio, 1998).

Nesse cenário nacional, as práticas higiênicas e a inserção no campo do trabalho dão visibilidade a um conjunto de estratégias de intervenções que vão operar tanto em nível individual, quanto coletivo com o objetivo de maximizar a possibilidade de uso desses indivíduos em relação à produção, necessidades econômicas – como é o caso da inserção através do trabalho – e buscando como efeito da intervenção que esses sujeitos sejam passíveis de serem administrados no nível das condutas. Nesse sentido, Foucault (1976), vai problematizar todo um modo de inserir a vida na dinâmica política, afirmando que será desenvolvida uma tecnologia a qual denomina de biopolítica e que se caracterizará por um poder que investirá na vida da população, por meio da estratégia de “fazer viver e deixar morrer” (p.287). Segundo o autor, a norma se aplica tanto ao corpo individual, quanto a toda a população que se quer regulamentar (Foucault, 1976). Em nível individual, essa administração de vidas é feita por meio das tecnologias disciplinares, através de instituições de sequestro, que capturam o indivíduo e intervêm diretamente nos corpos individuais, no cotidiano e com o objetivo de promover uma adaptação do sujeito às normas sociais. No caso citado acima, as autoridades não interviam apenas sobre aqueles considerados pervertidos, mas também sobre aqueles que apresentavam, de alguma forma, um perigo à sociedade.

Conforme Rizzini e Piloti (2014), também sobre análise do Código de Menores de 1927, no que se refere às medidas: “O vadio pode ser repreendido ou internado, caso a vadiagem seja habitual” (p.47). Dessa forma, embora o jovem não tivesse cometido infração alguma, sua desocupação já era um motivo legal para a sua apreensão em uma instituição de sequestro, como era o caso das antigas escolas de reforma ou asilos. É importante esclarecer que as instituições de sequestro são aquelas que, a partir da tecnologia disciplinar, operam um conjunto de estratégias disciplinares, agindo diretamente sobre a vida, a conduta e o tempo dos sujeitos.

Pode-se perceber que nesse período há a eminência de práticas que atualmente são institucionalizadas enquanto práticas provenientes de saberes-poderes que podemos denominar como Psi, constituídos pela conjunção da psiquiatria e de certas correntes da psicologia, práticas direcionadas à vida a partir de um modelo de vida considerado normal e saudável. Nesse contexto, o movimento higienista dominava o cenário social no país – inclusive, a partir do que foi produzido e fomentado pelo I Congresso Brasileiro de Higiene, em 1923 – fato que possibilitou que tais práticas fossem inseridas nas políticas públicas com o objetivo de limpar as ruas e o cenário público a partir do enclausuramento dos indivíduos que eram considerados desviantes à norma de conduta social, em nome de uma suposta ordem (Mansanera & Silva, 2000).

No que tange às medidas tomadas pelas autoridades, a única certificação feita é ainda no artigo 68 quando este afirma que o menor de 14 anos em situação infracional não seria submetido a processo penal de qualquer espécie (Brasil, 1927). Já de acordo com o artigo 69, os indivíduos que tivessem idade acima de 14 anos e abaixo de 18 e que houvessem cometido ato infracional seriam submetidos ao que a lei chamava de “processo especial” (p.8), indeterminando que tipo de procedimento seria lícito e que, portanto, não invalida o uso de medidas pautadas no Código Penal para esse grupo. Tal ideia não anuncia nenhuma novidade ao que vem sendo proposto pelas Propostas de Emenda à Constituição (PECs) atualmente em prol da redução da maioridade penal, como discutiremos adiante.

Ainda, no capítulo segundo do artigo 69 da mesma lei (Brasil, 1927), é dito que se o menor não fosse compatível ao perfil de delinquente, caberia à autoridade lhe recolher a uma escola de reforma pelo prazo mínimo de um ano e máximo de cinco anos. Ou, de acordo com o capítulo terceiro do mesmo artigo, é posto que caso o menor fosse considerado delinquente, a autoridade competente o encaminharia à mesma escola de reforma, mas pelo prazo mínimo de três e máximo de sete anos. Tais sanções denotam que a tomada de informações que era feita pelos agentes sobre os jovens não objetivava saber quem realmente precisava de atendimento em uma instituição, ou quem precisava de recolhimento, visto que os que não eram abandonados, nem pervertidos e não fizessem parte do perfil indicador de patologia ou desvio de conduta eram internados da mesma forma, por um prazo menor que os outros, porém, nas mesmas instituições, as chamadas escolas de reforma. Esses procedimentos de recolhimento e tratamento da população juvenil expressavam o caráter puramente moralizante das determinações dessa lei, além do uso da “colocação em asilo” como ferramenta de exclusão e isolamento daqueles que causavam desordem à integridade social. É importante que se destaque a falta de especificação e a caracterização, na própria legislação, para os locais acima referidos como escolas de reforma, asilos ou escolas de preservação (Brasil, 1927). Ao mesmo tempo, a mistura de jovens com histórico de delinquência com outros sem esse perfil produziu a criação de uma escola do crime, já que delinquentes e não delinquentes passam a ocupar o mesmo espaço e a receber o mesmo tratamento institucional.

Quanto às escolas de reforma, para a justiça brasileira e a emergente questão do aumento da criminalidade entre menores na época é que se articulou, na década de 1920, a junção entre assistência e justiça para os menores ditos vadios, delinquentes, viciosos. Esses menores tornaram-se alvo da vigilância do Juízo de Menores e da polícia, que normalmente os levava às casas de correção ou asilos, onde, em tese, devia permanecer separadamente dos adultos, o que nem sempre acontecia. Como tal fato começou a causar revolta dos defensores da reeducação para menores, começaram a serem criadas as “escolas de reforma” – instituições que visavam à reeducação por meio da formação profissional, determinada pelo Código de Menores de 1927 (Rizzini &Piloti, 2014). Aqui, de alguma forma, começa a incipiente ideia de inserção desses menores na sociedade e no progresso.

No tocante aos processos e provas, de acordo com o artigo 71 (Brasil, 1927), se um jovem entre dezesseis e dezoito anos cometesse um crime considerado grave pelas autoridades e ficasse “provado” que se tratava de um indivíduo perigoso por conta de sua “perversão moral” (p.8), o juiz aplicar-lhe-ia medidas previstas pelo Código Penal e o recolheria a um estabelecimento para menores condenados, ou, em falta deste, para uma prisão comum, separado dos presos adultos, até que fosse observada a sua regeneração, de acordo com a lei.

Podemos notar a presença do decisionismo arbitrário do juiz, ocupando o lugar de soberano, como se fosse a própria lei (Agamben, 2004), primeiramente no que se referia à gravidade da infração, o que a lei também não especificava. O mesmo se pode dizer em relação ao estado mental do infrator, já que também não definia de forma alguma o que denotaria a “perversão moral do indivíduo” – a definição disso tudo caberia à decisão do juiz. E, ainda, em relação à “regeneração” do menor, já que a lei não cita o uso de nenhuma outra fonte de observação do estado de regeneração que esse indivíduo estaria, a não ser a das autoridades competentes, cuja definição também não consta explicitada.

É importante tomarmos o pensamento de Foucault (2011) no que se refere aos vários aparecimentos dos termos perversão ou pervertido na lei. Para o autor, “é para o indivíduo perigoso, isto é, nem exatamente doente nem propriamente criminoso que esse conjunto institucional está voltado” (Foucault, 2011, p.30). Dessa forma, o sujeito pervertido é aquele que, mesmo não sendo propriamente doente ou criminoso, apresenta perigo para a sociedade.  E mesmo que essa perversão não possa ser constatada por um médico ou por um membro do judiciário, essas esferas se unem e, exatamente em seu ponto de fronteira, é que surge o que, de acordo com Foucault (2011), seria o exame médico-legal, que classifica os indivíduos patologizando-os como pervertidos.

É um tribunal da perversidade e do perigo, não é um tribunal do crime aquele a que o menor comparece. É também a implantação, na administração penitenciária, dos serviços médico-psicológicos encarregados de dizer como, durante o desenrolar da pena, se dá a evolução do indivíduo; isto é, o nível de perversidade e o nível de perigo que o indivíduo ainda representa em determinado momento da pena, estando entendido que, se ele atingiu um nível suficientemente baixo de perigo e de perversidade, poderá ser libertado, pelo menos condicionalmente (Foucault, 2011, p.35).

Ou seja, as determinações das autoridades quanto aos ditos menores, no geral, eram desprovidas de qualquer caráter educativo ou de preocupação com o indivíduo autor de delitos em qualquer esfera de sua vida, uma vez que o objetivo maior era o recolhimento, a colocação nos lugares que a eles eram destinados ou, em outras palavras, a prisão. No seguinte artigo, de número 72 (Brasil, 1927), ainda referente às infrações graves cometidas por menores entre dezesseis e dezoito anos, se o indivíduo não revelasse vício ou má índole – termos sem definição por lei –, o juiz poderia entregar-lhe aos pais ou dar-lhe outro destino que não fosse a condenação. Isso mostra, primeiramente, a visão de que vício e má índole eram coisas análogas, ou que havia uma relação causal entre elas e em seguida que eram fatores determinantes da condenação, de qualquer forma: eram o dispositivo que faria o menor ser encaminhado à condenação. Tal questão demonstra, mais uma vez, que o que estava em jogo não era a infração em si, mas a índole e a moral de quem a cometia.

Migliari, em seus estudos, revela documentos que tornam patente a forma como a política social é determinada pelos interesses das classes dominantes, embora sempre carregada de chavões universalistas como proteção, cuidado, prevenção, etc., através dos quais os governos projetam uma imagem humanitária, porém carregada de conteúdos positivistas que definem o humano de forma naturalizada (Nascimento, 2002, p. 97).

Sendo assim, além do já comentado caráter higienista do Código de Menores Mello Matos, é possível observar também os frequentes espaços na lei, lacunas sem informação, ou com informação incompleta tanto sobre o caráter de determinada conduta ou sobre como deveria ser aplicada determinada medida. Lacunas que, por si só, configuravam e indeterminavam as ações das autoridades competentes de seguir tal lei, já que seu preenchimento era feito pelas decisões dos juízes e/ou outras autoridades competentes. Ou seja, as decisões tomadas pelas autoridades em suas ações expressavam-se como parte da própria lei. Dessa forma, é possível entender que o Código de Menores de 1927 dava apenas respaldo para as medidas aplicadas, ou apenas, as orientava na prática.


Variações Sobre o Mesmo Tema: Situação Irregular e Famílias Desestruturadas

O Código de Menores de 1979 apresentou algumas mudanças em relação ao anterior, embora, de maneira geral, tenha se mantido fiel a uma continuidade de preceitos em relação à lógica apresentada pelo Código de Menores Mello Matos. De acordo com o segundo Código de Menores (Brasil, 1979) é exposto, logo em seu artigo 13, a seguinte assertiva: “Toda medida aplicável ao menor, visará, fundamentalmente, à sua reintegração sócio-familiar” (p.2). Sendo assim, é possível identificar uma mudança comparando-se ao código anterior, que não demonstrava dar, por meio das medidas por ele previstas, prioridade à (re)integração do indivíduo na sociedade. Porém, o que se observa no que tange às medidas de internação, que foram regulamentadas pela Seção IV dessa lei, é que ainda se estava muito distante do que foi colocado no artigo 13 (Brasil, 1979), principalmente por seu caráter de vigilância, pela “Doutrina da situação irregular”, isto é, pela pobreza familiar ser vista como desestruturação familiar e pelas medidas do código anterior às quais ele dava continuidade.

Desse modo, é possível notar, nas disposições do Código de Menores de 1979, a chamada doutrina da situação irregular, definida pela lei como:

“privação de condições essenciais à subsistência, saúde e instrução, por omissão, ação ou irresponsabilidade dos pais ou responsáveis; por ser vítima de maus-tratos; por perigo moral, em razão de exploração ou encontrar-se em atividades contrárias aos bons costumes, por privação de representação legal, por desvio de conduta ou autoria de infração penal” (Rizzini& Piloti, 2014, p. 70).

De acordo Rizzini e Piloti (2014), essa lei apenas cedia direitos aos menores que estavam em estado de “patologia social, definida legalmente” (p.70). Ou seja, ao mesmo tempo em que a lei falava sobre reintegração sócio familiar, apresentando uma mudança em relação ao Código Mello Matos, ela ainda estava agindo dentro da lógica moralizadora do antigo código, uma vez que situações como perigo moral e atividades contrárias aos bons costumes serviam como subsídio para a apreensão desses menores.

Assim, embora tenham ocorrido algumas mudanças, a situação dos menores em seu aspecto geral pouco mudou, visto que algumas disposições do antigo código foram reaproveitadas no Código de Menores de 1979.

No capítulo segundo do artigo 41 (Brasil, 1979), por exemplo, é dito que na falta de estabelecimento adequado, o jovem poderia ser internado em seção de estabelecimento dedicada a maiores, o que indica que a lógica de atendimento a essa população não mudou de 1927 para 1979 no Brasil. Ainda nos capítulos terceiro e quarto do mesmo artigo, é dito que se o menor completasse 21 anos sem que houvesse tido a cessação da sua medida, passaria ao juízo incumbido das Execuções Penais, sendo assim removido e colocado em outro estabelecimento considerado adequado – nesse caso, uma penitenciária – até que o tempo de cumprimento de sua medida terminasse, e continuaria se fosse o caso, na forma da lei estabelecida pelo Código Penal.

Já o artigo 48 prevê a inspeção do estabelecimento por parte da autoridade judiciária. E ainda é reforçado, no artigo 49, capítulo primeiro (Brasil, 1979), o dever dessa inspeção, dessa vigilância, pelo juiz. Ou seja, a visão que era tida sobre o jovem em cumprimento de medida era a de menor abandonado, delinquente, objeto de medidas judiciais e de constante vigilância das autoridades. Foi perpetuada, nessa lei, a mesma visão menorista da que estava anteriormente em vigor, pois atribuía aos jovens os mesmos conceitos, medidas e tratamento que eram dados aos adultos presos, apesar da intenção mostrada no início da lei de se realizar medidas que promovessem a reintegração desses indivíduos na sociedade e na família.

Depois, nas disposições finais da lei, logo após o artigo 18 (Brasil, 1979), que determinava que em nenhum caso houvesse incomunicabilidade do menor, o qual sempre teria direito à visita de pais ou responsáveis e de procurador, é posto no parágrafo único que a autoridade judiciária poderia suspender por tempo determinado esse tipo de visita, caso fosse considerada prejudicial ao cumprimento da medida pelo jovem. Aí se encontra uma grave disparidade dentro das determinações da própria lei (Brasil, 1979).

Visto que não é especificado o que seria considerado prejudicial numa visita familiar, o juiz teria o papel de indicar inúmeras razões para isso, mostrando a nítida relação de soberania entre o juiz, o jovem em internação e a sua família. Isto é, a partir do momento em que, por lei, é determinado que a visita seja não só permitida, como fundamental e, logo após, a própria lei possibilita que haja a anulação daquela, deixando a decisão livremente nas mãos do juiz, constata-se um paradoxo, uma vez que há a previsão por lei da visita enquanto algo de importância e, simultaneamente, em outra disposição na mesma lei, sua realização ou não é tida como algo que cabe ao juiz permitir ou não. E tal paradoxo abre a possibilidade do juiz fazer, então, o que lhe melhor aprouver na sua decisão, o que abre a possibilidade de suspensão da primeira determinação pela segunda, uma vez que a visita tinha importância, mas poderia ser vetada pelo juiz.

Essa situação se insere no que Walter Benjamin (1986) denomina de antinomia da lei, que é a valorização dos fins – direito natural – e dos meios – direito positivo – na mesma lei. Embora o direito natural e o positivo atuem juntos, os mesmos aparecem separados quando práticas que ferem o direito natural são legitimadas pelo direito positivo e vice-versa. Como, por exemplo, a pena de morte que fere o direito à vida. Nesse exemplo, direito a vida é um elemento do direito natural e a pena de morte um elemento do direito positivo. 
Assim, na situação da visita enquanto elemento fundamental do cumprimento da medida, mas que pode ser suspensa pela determinação judicial e por tempo ilimitado, é visível essa antinomia (Benjamin, 1986), já que é evidenciada a disparidade entre a valorização dos meios e a valorização dos fins na mesma lei; isto é, valorização da visita como um importante elemento/meio para o cumprimento da medida e, ao mesmo tempo, o fato de essa visita poder ser suspensa pelo juiz, caso ele a considerasse como prejudicial para o sujeito nessa situação em seu fim; ou seja, prejudicial para a própria questão a qual ela seria considerada fundamental. É como se a lei tivesse duas intenções completamente contraditórias – a importância da visita e a possibilidade de ela ser proibida pelo juiz – o que dá visibilidade, então, não apenas à antinomia, mas ao que serve a inserção da antinomia jurídica:  pela possibilidade de manejo da população  a partir de um decisionismo que incide diretamente sobre o perfil da mesma. Com isso, entendemos que a antinomia é um dispositivo de flexibilidade da lei para elementos que estão além dela; no caso em questão, ela varia de acordo com aquilo que é estipulado pelo juiz a partir do sujeito julgado, como sendo ou não merecedor da visita, retirando-se, nesse decisionismo, a visita enquanto um direito.

Portanto, de acordo com os estudos sobre o Código de Menores de 1979, é possível afirmar que ele pouco difere do anterior, já que a maior parte da racionalidade do Código Mello Matos foi reaproveitada e amplamente desenvolvida nesse, como é o exemplo da doutrina da situação irregular e da vigilância. Dessa forma, notam-se as diversas continuidades que aquele reproduz deste, principalmente em sua lógica higienista, de descaso em relação aos sujeitos e, também, do poder de decisionismo por parte das autoridades.


O Estatuto da Criança e do Adolescente – Rupturas e Continuidades

Diante desse cenário de delinquência, de menores, de medidas mais ligadas ao Código Penal do que às propostas de reintegração social, é importante destacar as seguintes Promulgações: em 1988 da nova Constituição Federal (Brasil, 1988), dita a “Constituição cidadã” e em 1990 do Estatuto da Criança e do Adolescente e sua doutrina de “Proteção Integral”. A partir disso, é nítido que essa mudança de paradigmas tenha provocado altas expectativas no tocante à garantia dos direitos e da dignidade da criança e do adolescente como pessoas, sujeitos de direito, fazendo dessas rupturas teóricas uma promessa de mudança das ações direcionadas a essas populações.

Nessa modificação inclui-se, principalmente, a proteção integral, como já foi dito, a visão do adolescente como um sujeito de direitos e o paradigma educativo que as medidas passam a ter. Começando pela separação entre Medidas Protetivas e Medidas Socioeducativas. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), ficam sob medida protetiva crianças e adolescentes em situação de abandono ou violação de direitos, ou crianças (de até 12 anos) que tenham cometido ato infracional, já que a lei entende que uma criança que comete ato infracional encontra-se em grave situação de risco ou violação de direitos. Já as medidas socioeducativas são direcionadas apenas para adolescentes (com idade de 12 a 17 anos e 11 meses) autores de ato infracional.

Outra ruptura, além da modificação de nomenclatura, que passa a ser a de “jovens em conflito com a lei” é em relação às medidas direcionadas a eles. As medidas socioeducativas são divididas em dois subgrupos, as com restrição de liberdade e as sem restrição de liberdade. É importante destacar isso, pois como foi visto anteriormente nos Códigos de Menores, a única medida que era proposta aos jovens era a de restrição de liberdade e colocação em lugar específico para cumprimento da medida. De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 1990), a medida de internação passa a ter duração máxima de 3 anos e passa a ser restrita para casos excepcionais em que haja grave ameaça e/ou violência. De forma que as infrações consideradas mais leves tenham medidas mais adequadas, sem restrição de liberdade e com um direcionamento voltado à socioeducação.

Quanto às medidas com restrição de liberdade, em especial a internação, essa passa a ser operadas por uma lógica distinta da antiga Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor - FEBEM. Cabe acrescentar que a FEBEM foi instituída em 1964, mesmo ano em que ocorreu no Brasil o golpe militar que instaurou a Ditadura Militar. Segundo artigo da revista Psicologia: ciência e profissão (1998), as FEBEMs foram criadas a partir da Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor – FUNABEM nesta mesma época, seu objetivo era reclusão e tutela de menores cujas famílias eram consideradas incapazes economicamente e/ou moralmente dessa função, para além dos casos de menores infratores, o que faz jus à política de situação irregular presente no Código de Menores de 1979. 

A mudança, começando pela nomenclatura, desse local destinado aos jovens e de toda a política de socioeducação em substituição à reclusão desses sujeitos se deu, principalmente, porque a proposta da FUNABEM se apresentou, na prática, como desumana e economicamente impossível, uma vez que o país contava com um alto número de jovens em situação de pobreza (Psicologia: ciência e profissão, 1998).

Assim, atualmente, as medidas socioeducativas orientadas pelo ECA e pelo SINASE não devem ser entendidas e aplicadas como castigos ou sanções, mas como dotadas de natureza pedagógica. Essa substituição de paradigma operada pelo ECA, em detrimento do restrito ensino coercitivo e punitivo aplicado nas FEBEMS, representou uma opção pela inclusão social do adolescente em conflito com a lei (Conanda, 2006, citado por Monte, Sampaio, Rosa& Barbosa, 2011, p. 128).

Além da mudança de ambiente proposta pelo ECA, da Fundação Estadual para o Bem Estar do Menor – FEBEM para a Unidade Educacional de Internação - UNEI , no caso de Mato Grosso do Sul (há variações de nomenclaturas regionais no país quanto aos nomes dos estabelecimentos de medida com restrição de liberdade), houve também mudanças nos princípios para a aplicação da medida de internação, que teve sua aplicação determinada, de acordo com o artigo 122 do Estatuto, pelas seguintes condições:

Quando tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa; por reiteração no cometimento de outras infrações graves; por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta (Brasil, 1990).

E, ainda, de acordo com o capítulo segundo do mesmo artigo, a medida de internação não está possibilitada de ser aplicada caso haja outra medida adequada, outro fato que difere o Estatuto dos antigos Códigos de Menores, nos quais todas as intervenções visavam à internação. Essa mudança deveria, em tese, diminuir o número de jovens nas Unidades e promover outras formas de reintegração social. Então qual seria a explicação para o estado de lotação das UNEIS de boa parte dos estados brasileiros na atualidade?

Outra questão paradoxal entre legislação e prática nesse caso é referente ao artigo 123 dessa mesma lei que especifica que o cumprimento da medida de internação deve ser realizado em estabelecimento exclusivo para adolescentes, em local distinto daquele destinado ao abrigo, e com critérios rigorosos de separação dos jovens por idade, compleição física e gravidade da infração (Brasil, 1990). Sendo assim, por que muitas das unidades se assemelham aos prédios do modelo carcerário, além de apresentarem péssimas condições de ventilação, iluminação, higiene, etc. (Mato Grosso do Sul, 2014).  Mais do que isso, a lógica do encaminhamento e da divisão entre os jovens em seus “alojamentos”, a escolha dos “companheiros de quartos”, seguem os moldes do sistema prisional adulto: isolamento para estupradores, porque se misturados com outros adolescentes esses serão “castigados” pelos demais; separação por “facção”, já que não podem estar juntos adolescentes vinculados a grupos de tráfico de lideranças distintas, pois ocorrem “represálias” ao membro diferente, etc. Esses elementos compõem o universo do sistema “socioeducativo” que, de fato, atua tal como na lógica do sistema prisional adulto.

Durante a realização da pesquisa encontramos essa violação de direitos citada acima ao fazer a análise do Relatório da OAB sobre a visita por eles realizada à Unidade Educacional de Internação (UNEI) Dom Bosco no dia 26 de março de 2014. De acordo com a Comissão de Direitos Humanos OAB/MS Ricardo Brandão (Mato Grosso do Sul, 2014), a unidade possui três alas (A, B e C) com 70 adolescentes e atualmente interditada por decisão judicial requerida pela Defensoria Pública.

Observa-se que o estabelecimento “educacional” na realidade é muito semelhante às Unidades Prisionais do Estado de Mato Grosso do Sul, exceto pela proibição da entrada de cigarros e dinheiro, bem como pelas diferenciações teóricas introduzidas pelo ECA, eis que as “celas” são chamadas de “alojamentos”, os “pavilhões” de “alas”, cela “forte” disciplinar de Centro de Reflexão, e os “agentes” de “educadores”, o que não resulta, porém, em diferença alguma na prática (Mato Grosso do Sul, 2014, p. 3).

Essas continuidades, que lembram muito os antigos Códigos de Menores e são frequentemente encontradas na prática das medidas socioeducativas, configuram-se na lógica da força-de-lei (Agamben, 2004), visto que surgem de lacunas existentes nas determinações feitas pela lei, que indeterminam, na medida em que determinam. São nessas indeterminações que um espaço é aberto para que, por exemplo, na jurisprudência medidas teoricamente ilegais sejam aplicadas como se fossem legais, substituindo assim a lei, em tese, válida por outra medida, que passa a ter a força que aquela deveria ter e não tem (Agamben, 2004). Isto é, nesse caso a lei tem vigência, mas não vigor, porque sua força é colocada em outras práticas que passam a atuar como a regra que impera.

Outro retrocesso em relação à prática das medidas socioeducativas propostas pelo ECA e, principalmente, em relação à incompreensão, ainda pertinente, de tal lei é a crescente formulação de PECs (Propostas de emenda constitucional) que tentam reduzir a maioridade penal e contradizer tudo que as leis que vigoram atualmente – Estatuto da Criança e do Adolescente e Constituição Federal – dizem a respeito sobre infância e juventude, proteção, assistência e socioeducação. A mais recente é a PEC 21/2013, que pretendia estabelecer a maioridade penal a partir dos 15 anos de idade. Percebe-se assim que, embora o Estatuto esteja em vigor há 24 anos, a sua proposta geral ainda não foi compreendida ou aceita, já que projetos desse tipo, coerentes com a lógica do Código de Menores de 1927, ainda são formuladas por nossos parlamentares e expressam uma continuidade com a racionalidade higienista.

Em termos ainda da continuidade da lógica menorista, podemos citar também o recorrente e persistente uso do termo “família desestruturada” atualmente para justificar, individualizar e explicar a questão da criminalidade na juventude pobre brasileira, nos moldes da lógica do Código de Menores de 1979:

O perfil dos adolescentes aqui descortinado revelou uma série de questões que perpassam o problema do adolescente em conflito com a lei: famílias desestruturadas, defasagem escolar e relação estreita com substâncias psicoativas. A partir do melhor conhecimento do perfil dos adolescentes em cumprimento de medidas socioeduca¬tivas torna-se especialmente oportuna a definição de estratégias compatíveis com as necessidades dos jovens em situação de risco no Brasil (Brasil, 2012, p.20).

Isso demonstra que o entendimento que se tinha, nas décadas de 70 e 80, de que uma família que não seguia o modelo tradicional era considerada desestruturada, mantém-se ainda hoje e essa ideia que servia como pretexto para justificar e individualizar o comportamento dos “menores infratores” continua hoje exercendo a mesma função sobre os jovens em conflito com a lei. Assim, o pensamento que dava base ao antigo Código de Menores ainda é atual e combate os preceitos do ECA, apesar de ser esse último a lei que está vigorando, teoricamente, no momento.

Ainda sobre as continuidades, de acordo com o capítulo quinto do artigo 126 do ECA, chamado “Da remissão”:

Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração do ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional (Brasil, 1990).

Ao utilizar a “personalidade” em seu artigo 126 como possível determinante numa circunstância de remissão, o ECA (Brasil, 1990) compromete-se com um termo que abrange inúmeros sentidos e que, em diferentes abordagens, pode possuir significados totalmente diferentes, quando não antagônicos. É importante ressaltar que, juridicamente, personalidade quer dizer a aptidão de possuir direitos e contrair deveres. Dessa forma, exclui-se a possibilidade de tal passagem referir-se a esse conceito juridicamente.

Portanto, em última instância, o termo é deslocado para uma significação de senso comum quando empregado em um contexto jurídico, já que cabe ao juiz determinar ou não a remissão e, para tanto, determinar qual tipo de personalidade o sujeito envolvido em ato infracional possui. Assim sendo, a expressão acaba caindo em jargões e sendo usada para definir sujeitos sem personalidade ou com personalidade forte, além de outras nomenclaturas mais específicas como personalidade criminosa ou perversa, por exemplo. Dessa forma, torna-se totalmente incoerente conceder ou não a exclusão de um processo tomando-se como causa a personalidade. No entanto, entendemos que o emprego dessa expressão se constitui um importante dispositivo que permite a participação de outros saberes, além do jurídico, para individualizar e patologizar os sujeitos, quando for o caso.

A respeito desse último aspecto, salientamos a ocorrência de uma psicologização ou psiquiatrização da medida quando uma autoridade pede a avaliação da personalidade de um indivíduo para os profissionais psi, posto que a confabulação desses saberes nesse contexto já se volta, em princípio, na busca de um desvio de conduta associado a isso que é tido como personalidade. Dessa forma, quando se configura uma patologização nesse cenário, produzindo um diagnóstico, o foco não será um tratamento, mas a culpabilização e individualização das causas do delito, isentando o contexto social e a própria sociedade da responsabilidade na situação do sujeito. Assim, por meio disso, é que se decide conceder ou não liberdade ao sujeito, mostrando, mais uma vez, que o que está em questão não é o ato infracional em si, mas quem o cometeu e, portanto, individualizando a situação de diversos jovens e transformando um problema social em um problema individual. Palavras como essa, que carregam em si várias possibilidades de significação e que, ao mesmo tempo, são enunciadas em lei, abrem uma lacuna, que acaba por ser preenchida pela decisão das autoridades, perpetuando, por essa via, desde os antigos Códigos de Menores até aqui, a lógica do decisionismo.

O dispositivo de continuidade da lógica dos antigos Códigos de Menores, que foi observado no Código de Mello Matos, depois no Código de Menores de 1979 e agora no Estatuto da Criança e do Adolescente, permite práticas perpetuadoras de exclusão social e moralização das populações mais pobres. Nesse aspecto, não é de causar espanto as constantes proliferações das PECs para a redução da maioridade penal, pois essas são consoantes com uma racionalidade que ainda se faz presente. Na atualidade, isso configura um estado de exceção (Agamben, 2004), já que nesse espaço que a lei abre é criada a possibilidade de se contradizer o que ela postulou anteriormente:

“O estado de exceção é, nesse sentido, a abertura de um espaço em que aplicação e norma mostram sua separação e em uma pura força-de-lei realiza (isto é, aplica desaplicando) uma norma cuja aplicação foi suspensa” (Agamben, 2004, p. 63).

Essas questões colocam em evidência a distinção e, às vezes, a disparidade existente entre o que está posto na teoria da norma e o que acontece na prática a partir da jurisprudência no que concerne à continuidade dos antigos Códigos de Menores, mesmo com a vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente e das políticas públicas voltadas a essa população. Nesse sentido, cabe explicar que Giorgio Agamben expõe uma situação de indistinção entre o que está em vigor e o que está em operação, caracterizando assim essa situação dentro de um estado de exceção (Agamben, 2004).

Segundo Agamben (2004), essa condição de suspensão ou enfraquecimento da eficácia da norma é o que faz com que medidas com força-de-lei sejam aplicadas no lugar daquelas que teoricamente estão em vigor, tornando legal aquilo que não é legal e, em alguns casos, excluindo pessoas ou grupos da proteção da lei, mesmo quando essa proteção está prevista. “Parece, então, que estamos diante de duas leis – a visível (códigos) e a invisível (procedimentos “extra-oficiais”) que podem, mesmo que inadequados, ser usados, pois exercem uma “força-de-lei” (Scisleski, 2010, p.30).

Sendo assim, é gerado um sistema em que a própria lei é usada como condição para sua anulação, acobertando o poder autônomo da decisão enquanto elemento jurídico e evidenciando não apenas a diferença, mas a disparidade entre decisão e norma. De acordo com Agamben (2004), essa decisão, em todas as suas formas manifestas, é o que mantém o funcionamento do estado de exceção e ela é sempre realizada por um soberano, que está fora da lei teoricamente válida e dentro dela, por ser ele quem decide e ele que tem o poder da possibilidade de suspendê-la. Na jurisprudência, dependendo de quem for o seu autor, o ordenamento pode ser totalmente desconsiderado em relação ao fato, momento em que a oposição entre a norma e a sua realização atingem a maior intensidade, tomando-se assim a decisão do juiz com força-de-lei e anulando a própria lei (Agamben, 2004).

Se retomarmos a criação do Estatuto da Criança de do Adolescente, em 1990, e suas tantas reelaborações em vista de frequentes atualizações, ainda assim, há a decorrente violação de direitos que a lei citada objetiva que sejam assegurados. Um dado que indica isso é a falta de estrutura da Unidade de Internação de Campo Grande, pois “possui cerca de 10 (dez) agentes por turno, sendo necessário, no mínimo, 17 (dezessete), 03 (três) assistentes sociais e 03 (três) psicólogos que trabalham em duplas” (Mato Grosso do Sul, 2014, p. 3). Em suma, de acordo com Monte e cols. (2010), a proposta do ECA foi de modificar os ideais referentes às medidas socioeducativas, que eram vistas como mandados de prisão pelo antigo Código de menores, pois o Estatuto condena as atitudes despersonalizantes e padronizadas, que por muito tempo foram instituídas nas FEBEMs com o fim único de eliminar o indivíduo da sociedade, afastar o perigo da visão das pessoas.

Retomando os antigos Códigos de Menores, esses viam os sujeitos adolescentes que cometiam infração todos da mesma forma, como “menores delinquentes” ou “menores infratores”, não levando em consideração questões ligadas ao desenvolvimento e ao contexto no qual essa pessoa estava inserida, concomitantemente ao fato de que não havia preocupação com o futuro desses jovens, com a relação que eles estabeleceriam com a sociedade; levava-se em conta apenas o ato e a situação emergencial e utilizava-se de métodos paliativos para tentar resolver esse tipo de situação. No que tange à decisão judicial, não era exigido nenhum relatório ou documento dessa espécie feito por profissionais especializados, ou seja, a decisão do juiz não tinha necessidade de embasamento, o que fazia com que o descaso e a indiferença frente à situação de cada jovem em particular fossem ainda maior.

Além disso, o poder de decisionismo das autoridades se fazia mais evidentemente, já que o juiz era o único apto a conhecer a infração cometida pelo sujeito e até a defesa desse indivíduo era feita pelo Estado, por meio de um curador. Dessa forma, as decisões caminhavam pela via da determinação do judiciário de que não havia ninguém apto, com o poder/saber de propor algo diferente para o futuro daqueles jovens. Porém, se atualmente o discurso psiquiátrico e psicológico passam a coabitar o espaço jurídico, por que esses não tem oferecido uma mudança na efetivação da implementação para a socioeducação dos adolescentes, já que, nesse sentido, o que vemos é a perpetuação da lógica menorista desde 1927?

De acordo com Scisleski e cols. (2013), as estratégias de governo direcionadas à população que é tida como causadora de perigo à população produtiva são mais polícias de saúde do que políticas de saúde. Polícias no sentido de que se opera toda uma série de práticas cujo objetivo é a vigilância – dos pobres – cujo efeito é a produção de saber sobre o crime situando-o não como um elemento produzido no e pelo social, mas enquanto uma questão individual. Embora tenhamos, atualmente, o Sistema Único de Assistência Social, a questão da pobreza associada à criminalidade ainda não é trabalhada substancialmente no Brasil.

Tal geopolítica contemporânea das ações estatais de repressão e seus aparatos intermediários, entre eles a mídia, sugerem uma tripla função, qual seja: a legitimação de práticas de violência e extermínio direcionadas à população pobre a produção de uma subjetividade potencialmente perigosa atrelada à pobreza e a regulamentação e legitimação da descartabilidade destas vidas em prol de uma guerra justa pela segurança e pela paz (Vianna & Neves, 2001, p. 31).


Considerações Finais

É visível, dessa forma, as dicotomias presentes na leitura do jovem em conflito com a lei feita anteriormente pelo Código de menores e a abordagem empreendida, teoricamente, pelo ECA na atualidade. No entanto, não é produto do acaso observar a existência de resquícios do antigo Código de menores na prática das Políticas Públicas voltadas para esses jovens hoje, mesmo com o suporte teórico do Estatuto e a assistência técnica do SINASE, as autoridades ainda se comportam frente ao adolescente como outro “menor infrator” e dão continuidade às práticas padronizadas de antigamente. A diferença é que agora as instituições que atendem a população jovem operam práticas – anteriormente legais – de modo ilegal, ao violarem o que se estabelece na atual legislação específica. Contudo, como discutimos, atuam com força-de-lei, suspendendo a doutrina da proteção integral estabelecida com o Estatuto e conservando, dessa forma, a condição do estado de exceção como paradigma do governo democrático atual, de acordo com Agamben (2004).

Quando falamos numa lei que está em conflito com o jovem, desconstruindo e reformulando a expressão “jovem em conflito com a lei” tão utilizada pelo ECA, estamos problematizando a reprodução da lógica individualista e panóptica (Foucault, 2002), que exerce um poder individualista de vigilância, objetivando a correção do indivíduo e classificando, assim, seus comportamentos que fogem a isso como conflituosos em relação à lei. Dessa forma, mexer na estrutura do termo e colocar a lei em conflito com o jovem é tirar a culpabilização e individualização, muito recorrente nos discursos Psi, possibilitando assim a subversão da situação, colocando a lei nesse lugar que se pretende problematizar, já que ela supostamente é (re)feita para dar conta de um certo social.

Portanto, é plausível considerar o avanço das legislações ao longo do século XX para cá, porém falta muito para que as práticas no âmbito da execução das políticas e das próprias leis sejam levadas realmente a sério por aqueles que dispõem da decisão da “palavra final” no que tange a essa execução. Como debatido ao longo deste texto, a força-de-lei como mecanismo da exceção se apresenta como paradigma de governo e fundamenta-se, no espaço entre a lei e sua inaplicabilidade, como regra determinante daquilo que a norma, em tese, não determina.

Referências

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Data de submissão: 05/01/2017
Data de aceite: 17/04/2017



I Andrea Cristina Coelho Scisleski: Graduação em Psicologia pelo Instituto de Psicologia (2004) e mestrado em Psicologia Social e Institucional, ambos pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2006). Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2010). É docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco (Campo Grande - MS). É líder do grupo de pesquisa Psicologia, Políticas Públicas e Subjetivação. E-mail: ascisleski@yahoo.com.br

II Maria Eduarda Parizan Checa: Graduanda em Psicologia/UCDB, bolsista IC CNPq. E-mail: duda.checa@gmail.com

III Bruna Soares Bruno: Graduada em Psicologia/UCDB (2015). E-mail: brunasoares_bruno@hotmail.com

IV Giovana Barbieri Galeano: Mestranda em Psicologia/UCDB, graduada em Psicologia/UCDB (2015). E-mail: giovanagaleano@hotmail.com

V Suyanne dos Santos: Mestranda em Psicologia/UCDB, graduada em Psicologia/UCDB (2015). E-mail: suy_11_@hotmail.com

VI Ana Lígia Vitta: Graduanda em Psicologia/UCDB. E-mail: anasvitta@outlook.com

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