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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2017

 

ARTIGOS

 

Intermitências infames: loucura e alteridade na cidade aberta

 

Infamous intermittences: madness and otherness in the open city

Intermitencias infames: locura y alteridad en la ciudad abierta

   

 

Mario Cesar Carvalho de Moura CandidoI, e Maria Cristina Campello LavradorII

I Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.

II Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.

 

 


RESUMO

Este artigo é produto de uma parceria cotidiana junto a moradores de residências terapêuticas, ex-internos de um hospital psiquiátrico, na região metropolitana de Vitória-ES. O estudo se concentra nas relações que os antigos internos são capazes de construir junto à urbe, trabalhando conceitualmente algumas noções com o objetivo de ativar as interferências que este processo podegerar no cotidiano dos espaços da cidade, contribuindo também para os fazeres do campo da atenção psicossocial. Como estratégia metodológica foram utilizados registros em cadernos de campo, que inspiraram a produção de breves histórias distribuídas ao longo do texto. Os resultados se abrem para uma reflexão que visa situar alguns dos atuais desafios da luta antimanicomial, bem como incitar um processo que renove e amplie a vida em suas dimensões políticas de criação compartilhada.

Palavras-chave: saúde mental; cidade; política.


ABSTRACT

This paper is based on a partnership built in Vitória-ES with residents of a therapeutical residence, former patients of a Psychiatric hospital.The study focuses on the way how the residents experience and build their relations with the city, treating those experiences as material for a conceptual search that activates the interferences that this process can bring to daily life as a whole, as well as to the perspectives towards care in mental health. Registers in field notebooks were used as a methodological tool. The results show a discussion that tries to identificate the current challenges involved in the care on mental health, as well as activatinglife in it`s creative political dimensions.

Keywords: mental health; city; politics.


RESUMEN

El artículo se desarolla a partir de experiencias vividas junto a habitantes de una residenciaterapéuticaenlaciudad de Vitória-ES. Después de años de hospitalizaciónen unainstitución psiquiátrica, elestudio se pone a investigar las relaciones cotidianas que los residentesproducenenlaciudad, utilizándolas como punto de partida para untrabajo conceptual que intenta activarlasinterferencias que este processo puedetraer a la vida de todos losdías. Comometodologíafueron utilizadoscuadernos de campo cuyos escritos inspiraronlaproducción de pequeñas historias que se distribuyen a lo largo del texto. Los resultados enseñanlaimportancia de una reflexiónsobre los desafios actuales de lasalud mental, buscando alargarla vida en sus dimensiones políticas de creación compartida.

Palabras-clave: salud mental; ciudad; política.


 

 

Notas Introdutórias: abrindo o portão

Na casa de portões sempre trancados, quase todo estímulo de fora era ocasião de inesperada curiosidade. Presenças intrusas substituíam a lassidão, no sofá ou na cama, por bordejos rápidos e hesitantes entre espremidos cômodos.
Então, os corpos intrusos, meio que misturados aos de casa, se encontravam entre apertos de mão, olhares tímidos ou indiferentes distâncias. Navegavam por cozinha, copa, sala, quintal, para então se deterem na varanda, no pequeno banco em frente ao portão que dava para a rua.
Quem quer que resolvesse sentar no banco punha-se cara a cara com o cadeado que arrematava pesadamente a visão quadriculada. É aí que uma pequena chave penetra a massiva tranca. Isso faz barulho: “trec”.
“Trec” que faz do portão fechado passagem entreaberta, pelo menos por algum tempo. Sua abertura faz ranger secas dobradiças e movimenta sem aviso uma poeira negra e quente que suja os dedos. Entre espremidos cômodos, então, mais uma figura: portão entreaberto que faz “trec” e sujar1.

Portões que se fecham também se abrem. Podem encarcerar e isolar, encarnando estratégias manicomiais, mas tambémservem de via de acesso, possibilidade de entrada ou saída, passagem ou “meio”; portões existem “entre” um dentro e um fora, um fora e um dentro.

Entre aberturas e fechamentos, fluxos e represamentos, entre o portão que constrange e liberta há certa constante: um cotidiano encarnado em usos, falas, relações. Cotidiano feito de mundo e de vidas que se fazem tanto em sujeições quanto em liberdade(s).

Tratamos aqui de experiências com portões que se abrem ou se fecham para vidas que pedem passagem em um serviço de residências terapêuticas2.Episódios do cotidiano vão se misturando às reflexões sobre os rumos provisórios, experimentais, das perspectivas de cuidado construídas e cotidianamente reafirmadas pela luta antimanicomial e pela reforma psiquiátrica, com o objetivo de abrir caminho, dentro de uma cidade, para as interferências que o contato com a “loucura” pode produzir nos afetos do presente.
As histórias que trazemos aqui foram elaboradas a partir de cadernos de campo confeccionados ao longo de uma pesquisa de mestrado. Estes registros falam de experiências junto aos moradores das residências no contexto de seus percursos pela cidade, constituindo o material sobre o qual se constroem as análises que ora se apresentam.

Esta estratégia metodológica se alia a algumas considerações a respeito da “escrita de si” (FOUCAULT, 2012, p. 141), que faz referência a certas formas de diários presentes nos primeiros séculos da era cristã- os hypômnemata-, nos quais se registravam dados e acontecimentos cotidianos os mais diversos. Estes escritos estavam diretamente conectados a uma dimensão de exercício que envolvia areleitura, meditação, compartilhamento etc.

Esta escrita cumpria uma “função etopoiética” (FOUCAULT, 2012, p. 144). Tal função consistiria na operação, feita por meio da escrita, que transforma certos conjuntos de preceitos e regras abstratas em princípios racionais de ação. O que se opera nesta atividade seria a transformação de uma “verdade” (aqui concebida como conjunto de prescrições de ordem geral) em “ethos” (uma forma singular e aberta de relação com os dados preceitos).

Fala-se, portanto, de um discurso que se encontra em íntimo liame com a vida; de uma arte da escrita que desemboca na arte da constituição de si. Processo que gera formas singulares de apropriação de elementos múltiplos materializados em discursos que povoam corpos e modos de vida.

Tais considerações produziram nesta pesquisa ressonâncias importantes, uma vez que ela seria inconcebível sem o movimento cotidiano de registros das experiências vividas no campo de pesquisa. Este movimento se dá por meio da elaboração de escritos que, um pouco inspirados na forma dos hypomnêmata, buscam reunir elementos de uma experiência, fragmentos que unem em uma mesma página diferentes pessoas, lugares, atribuições, discursos...

As breves cenas que descrevemos aqui foram construídas a partir destes registros. Elas reúnem pedaços de cotidiano capazes de, quem sabe, contribuir para o enfrentamento dos desafios atuais no terreno da saúde mental, abrindo o portão para afetações inusitadas e intermitências necessárias no campo de nossa experiência comum.

Intermitências Infames

Na velha estrada de chão um homem anda há dias. Esgotado, ele olha para trás e nada vê além da poeira pesada que brilhasob um sol inclemente. Ao chegar em casa depois de anos de ausência, nada reconhece exceto um rosto familiar que dele se aproxima. Os olhos claros, parecidos com os seus, reclamam explicações não de uma ausência prolongada, mas da infâmia que o leva até ali; uma infâmia que percorreu cidades, estradas e colinas sem se importar com o cansaço das pernas que a carregavam. Todo esse percurso, corrida em busca de um passado ou uma identidade perdida, termina nos dizeres simples e diretos daqueles olhos claros e cheios de luz: “aqui não é o seu lugar”.

Após anos de internação, um homem caminha dias a fio com destino a sua antiga casa. Lá chegando, não encontra nada além de uma negativa que se expressa nas palavras retas de um convencimento: o de que a loucura não pertence àquele lugar, àquela casa ou cidade, mas aos muros altos e maciços do isolamento manicomial.

Ainda perplexo e descrente, este andarilho retorna ao seu ponto de partida, mas sabe que as coisas mudaram. Ele não será trancafiado de volta no manicômio, mas levado para viver em uma casa alugada em algum bairro da cidade. A transição do hospital psiquiátrico para uma residência terapêutica na cidade marca, portanto, uma inflexão de força e abrangência importantes nas vidas dos antigos internos.

Esta mudança de caminhos é coroada na história das lutas em prol da desconstrução e do rearranjo das formas de cuidado e gestão no campo da saúde mental. Sua importância estratégica é fundamental, mas a implementação “exitosa” destes novos caminhos não deve ser vista como solução tranquila diante dos desafios que ainda se expressam neste campo e muito além dele.

É importante dizer que a reestruturação das formas de atenção em saúde mental preconiza a superação do modelo de cuidado centrado no hospital psiquiátrico (BRASIL, 2004). Com isso, o antigo manicômio e sua lógica de isolamento social cedem lugar ao encontro com a cidade e um outro mundo de matérias e formas, quiçá capazes de ativartrocas e novos sentidos para os envolvidos neste processo.

Nesta cidade, contudo, vive-se uma metáfora encarnada em “olhos claros e cheios de luz” que insistem em manter a loucura- ou qualquer “aberração”- afastada de suas paisagens domesticadas. Paisagens assentadassob holofotesgrandiosos,de um “paraíso”a ser alcançado, excomungando injuriosas infâmias ou então integrando-as até o ponto de domesticá-las.

Reunidas intuitivamente por Foucault (2003), estas infâmias são atributos de existências sem nome: na terminologia rebuscada de registros remotos, tratam-se de agiotas, sodomitas, pobres vagabundos que divagam sem rumo pelas estradas, mulheres “desajustadas” etc, todos reunidos em autos administrativos da monarquia francesa entre os séculos XVII e XVIII.

Histórias que servem menos à meditação tranquila dos eruditos do que à produção de efeitos cujas forças abalam e desaparecem logo no instante seguinte- como raios na noite. Estes raios, mesmo que fugidios, deixam alguns traços, resquícios.

Detemo-nos nas considerações iniciais de Foucault (2003), que nos conta com suas histórias-fragmento de infâmias como deixar-se levar por um certo assombro, emoção ou qualquer outro sentimento difícil de discernir diante de existências anônimas, infames. O encontro com os poderes que visam calá-las ou domesticá-las produz os fragmentos trágicos, às vezes cômicos, de vidas iluminadas sob holofotes que visam qualificá-las, tomar nota de suas desviâncias, puni-las exemplarmente ou simplesmente inventariá-las, acumulando-as como “bens” passíveis de uma administração.

Contudo, no segundo intersticial entre o silêncio de sombras e falantes luzes de holofotes, esta infâmia produz no atento leitor um breve efeito disruptivo, algo como a sensação de uma vizinhança aberta com um desconhecido que não se deixa re-conhecer. Esta sensação impele uma busca a olhos nus por efeitos de raios na escuridão. Raios da infâmia, da “loucura” ou, melhor ainda, raios de um“nós” que se fazem para muito além dos hábitos conhecidos.

Raios ou existências-relâmpagos (FOUCAULT, 2003), estas vidas que piscam deixando em seu rastro partículas de energia, brilhos, sensações curiosas, “restos” de uma luz fulgurante, intermitências infames.

Intermitências que caem como chuva no intervalo dos grandes holofotes que tudo desejam alcançar. Infâmias traduzidas na irrupção de imprevisíveisrelampejos de resistências, vaga-lumes. Didi-Huberman(2014) nos faz crer em sobrevivências pequenas que escorrem para fora da luz retilínea e ofuscantedos canhões luminosos da vida codificada em imensos letreiros de outdoor.Luzes retilíneas de uma subjetividade capitalística (GUATTARI, 1990) exercitada na captura que se faz a partir das estratégias de controle da diferença e da submissão dos modos de vida ao crivo de aparelhos e quadros de referência especializados. Assim vão se apagando as potências criativas de experiências locais, singulares, sempre em movimento.

Ela anda com passos firmes na calçada gasta. Sem olhar para baixo, levita sobre buracos e rachaduras do asfalto velho. Seu olhar intransigente abocanha o horizonte em linha reta.
Mais atrás, um grupo de jovens a alerta: “cuidado!”.
Num golpe repentino o voo certeiro é interrompido por um grandioso tropeço. Via-se a mulher pisar em falso, sendo então engolida aos gritos por cacos de rua, terra, coisas.
Esbaforidos, os jovens correm para acudi-la. Caída, a mulher permanece imóvel, quase morta. O olhar antes reto no horizonte se faz hesitar, com pálpebras semiabertas, entre o clarão do céu e a poeira do chão.
Então levanta, confusa, recusando qualquer ajuda. Detém-se por alguns instantes sobre a grama sapecada.
Segue viagem, sorrindo, sacudindo a poeira, olhando para o chão.

Didi-Huberman (2014) nosalerta sobre a possível morte dos vaga-lumes. Insetos que encarnam a metáfora de seres luminescentes, dançantes, resistentes. Sua morte não é decerto fruto de um perder-se na noite escura, na mais plena ausência de luz. Esta morte ou desaparecimento é consumada muito mais na ofuscante luz de “ferozes” projetores.

Projetores de shows cujos protagonistas são os signos de consumo, fabricando as identidades prontas e acabadas destinadas a desempenhar suas funções no jogo capitalístico. Signosque com sua luz artificial aniquilam, alfinetam e dissecamvaga-lumes expondo-os ao olho panóptico das câmeras 24 horas, ao frenesi histérico de propagandas de televisão...

Neste estado de coisas seria preciso afirmar a luminescência de seres pequenos que resistem apesar de tudo. Os vaga-lumes sobrevivem, poderíamos dizer, em sensações perturbadoras, nos encontros furtivos, na pequeneza cotidiana de cheiros, formas, sons, imagens, ou ainda no passo em falso na calçada esburacada que nos obriga a trocar o limpo horizonte pela poeira do chão.

Não se percebem absolutamente as mesmas coisas se ampliamos nossa visão ao horizonte que se estende, imenso e imóvel, além de nós; ou na proporção que se aguça nosso olhar sobre a imagem que passa, minúscula e movente, bem próxima de nós. A imagem é lucciola [pirilampo, pequena luz] das intermitências passageiras; o horizonte banha na luce [luz]dos estados definitivos, tempos paralisados do totalitarismo ou tempos acabados do Juízo Final. Ver o horizonte, o além é não ver as imagens que vêm nos tocar. Os pequenos vaga-lumes dão forma e lampejo a nossa frágil imanência, os “ferozes projetores” da grande luz devoram toda forma e todo lampejo – toda diferença – na transcendência dos fins derradeiros. Dar exclusiva atenção ao horizonte é tornar-se incapaz de olhar a menor imagem. (DIDI-HUBERMAN, 2014, p. 115).

Mais uma vez, os vaga-lumes não morreram todos. Sua sobrevivência é resistência encarnada na névoa espessa da madrugada que antecede a passagem de poderosos faróis de automóveis no horizonte da cidade apressada. Sobrevivências que se alimentam das pequenas partículas de energia secretadas pela experiência que transtorna e rearranja os jogos de poder, transpondo, ultrapassando ou desviando-se das formações totalitárias, da transcendência dos fins derradeiros. 

Sobrevivências de vaga-lumes, de experiências, de histórias que trazem imagens-fragmento passageiras, fazendo piscar curiosas intermitênciasde afetos e encontros.

Voltando de um passeio, a mulher se detém em frente a sua casa, mas se recusa a entrar.Decide subir a rua mais um pouco, enfrentando com lentidão e delicadeza a ladeira um tanto íngreme.Algumas pessoas a acompanham.
Vai andando entre muros altos, pessoas e carros estacionados. Pelo caminho recolhe papéis e um arame. Detém-se numa certa esquina e chora. Um choro pequeno, suspirado. E então diz: “que casa bonita a da esquina. Será que tem uma roseira?”. “Não sei, podemos procurar”, alguém responde.
Constatam que não há roseira alguma. Um pouco mais à frente, contudo, há uma outra casa com grande jardim, mas ainda nenhuma roseira. A busca se estende por mais de um quarteirão. Uma busca lenta, engraçada, que sobe em muros e enfia caras por entre grades sujas de portões velhos.
Até que aparece a roseira. Flores grandes e vermelhas, emolduradas por grades amarelas, encaram a mulher que, concentrada e em silêncio, estende as mãos em reverência. Dizem que quase todos os dias ela passa em frente ao mesmo jardim cumprindo seu ritual.

Ritual pagão suscitado pela pequeneza da imagem-rosa emoldurada em grades amarelas de um portão da vizinhança. Solenidade cômica de bárbaros caçadores de rosas, caçadores de imagens.

Neste cenário cumpreseguir com a caça às rosas, organizando o que ainda nos resta, fazendo vibrar no corpo os espaços de inadvertida escuridão ou vazio por onde um ou outro vaga-lume possaainda vagar, piscando ativamente sua iluminação profana e passageira.

Didi-Huberman (2014), ao narrar a sina dos vaga-lumes, procura liberar um espaço de imagens que possam vir nos tocar, abrindo frestasem nossa atualidade. Estas imagens não se encarceram na mera “função” contemplativa de uma erudição esvaziada de lutas; tampouco “representam” isto ou aquilo, encarnando apenas uma via instrumental e intermediária de um sentido já consolidado dentro de uma organização previamente dada.

Fala-se aqui de imagens que não se justificam em sentidos prévios, que passam na frente das tiranias significativas e cortam o fino tecido que margeia as formas conhecidas, abrindo espaço, devagar, para uma fuidez e um outro rearranjo situado muito além das certezas banais.

Este movimento não tem garantias de “redenção” ou “sucesso”, muito pelo contrário. A atualidade de que falamos é um campo de forças, mundo de lutas, do agora, alianças sempre em movimento e que exigem de seus atores, corpóreos e incorpóreos, esforços muitas vezes extenuantes. Faz-se necessário espreitar neste mesmo mundo, no qual nos sujamos ao nele afundarmos os pés, as imagens sobreviventes e os movimentos que colocam em xeque a organização dos poderes que tentam embargarvozes menores, “loucas”, imobilizando pernas que desejam o mundo.

A velha bermuda rasgada nas pontas exibia, em decote, o tom de pele dourada de sol e largas cicatrizes de outros tempos. Sobre estas marcas os pelos grossos dominavam a paisagem. Floresta negra sobre terreno acidentado.
Fraco, durante as caminhadas o homem quase sempre parava para respirar apoiado em algum muro ou grade de portão. Nestes momentos de cansaço ele meio a contragosto decidia se sentar.Quase sempre o fazia na calçada, fitando o movimento de carros e gente.
Um dia, contudo, observando a rua deserta do feriado quase chuvoso, decide se levantar. Aquelas pernas fracas seguem em resolutas passadas até o meio da rua. Lá, seguro de si, o homem senta e fica.
Sem carros ou muita gente em volta, permanece. O amigo que o acompanha decide sentar ali também. O vento que precede uma chuva varre sobre eles folhas e lixo. Indiferentes, permanecem por não sei quanto tempo.
Ali, bem no meio de uma rua deserta, era possível sentir o calor do asfalto que subia pela bunda até o pescoço. Desprotegidos, os dois homens aproveitavam cada segundo daquela sensação estranha, silenciosa.
Até que chega um carro que, consciente da cena, reduz a velocidade e para. Aguarda silencioso os dois homens se levantarem e liberarem o caminho. Passa, então, muito devagar. De lá de dentro via-se uma moça que, acenando, sorria.

A rua vazia, abandonada às folhas e ao lixo que voam com o vento, encarna em imagem e sensação uma vontade de aventura. Sentando no meio da rua, o asfalto que esquenta até o pescoço é o aviso em carne e osso de que uma conexão surreal acabava de se fazer. Sobre a cabeça dos dois homens sentados no chão quente erguia-se uma cidade estranha, que fora de seu ângulo de visão comum entortava os pescoços na tentativa vã de decifrá-la. Ela, como a esfinge, os devorava.

Devorados e mergulhados nela, aos dois homens nada resta senão vivê-la, experimentá-la.A cidade como espaço social que nos engole e que nele mergulhamos pode aqui ser caracterizada como disparadora de sentidos existenciais, subjetividades,incluindo-se aí as resistências, mas também o totalitarismo das categorizações do “aceitável” ou não.Neste cenário, tal espaço encarna um dispositivo político (BAPTISTA, 1999) a partir do qual é possível acionar práticas de interferências capazes de traçar outros rumos de nossa caminhada comum.

No terreno da cidade-esfinge devoradora, cumpre tomar parte em uma luta. Esta luta se faz com imagens pequenas capazes de colocar em xeque a vida capturada sob a modalidade de um tipo de controle. O filósofo Giorgio Agamben (2014) nos faladesta vida capturada, dividida, repartida e distribuída segundo as categorias dos poderes que se encarregam de geri-la. A “vida nua”, dirá ele, é paradoxalmente incluída na vida política na forma de uma exclusão.

Exclusão que se opera, segundo o autor, no enevoamento de uma potência política. A vida considerada como categoria desvinculada de qualquer finalidade originária, que se faz como exercício ético desafiador, é capturada e desnuda em sua forma puramente biológica. A “vida nua” é aquela que tem a sua dimensão política excluída da cena, para que então possa ser incluída nesta mesma cena na forma de um controle, de uma administração. No contexto das lutas do presente, poderíamos dizer que esta vida se torna um“objeto” a serviço dos imperativos de consumo e de otimização estratégica de uma lógica capitalística. Trata-se de uma vida triste, separada da capacidade de tecer em conjunto as próprias condições de sua existência.

Agamben (2016) afirmará que a operação do paradoxo que exclui para incluir é observadadesde o princípio da cultura filosófica ocidental. Seu fundamento de continuidade habita a metáfora de um permanente estado de exceção:

“Exceção” significa etimologicamente capturar e qualificar algo que é estrangeiro, que está fora. Quer dizer, excluir esta coisa e incluí-la pela via de sua exclusão mesma. Parece-me que a operação originária no campo de uma certa política no ocidente é desta ordem. A vida, neste caso, seria algo de não-político, apolítico, que deverá ser excluída da cidade e da política para que, por meio desta exclusão, ela seja incluída e politizada. (AGAMBEN, 2016, tradução nossa).

Um “estado de exceção”, ou, se também quisermos, uma “cidade sitiada”. Ambos “produzem” e reforçam a vida, mas uma vida refém e enfraquecida em sua potência política, em sua força criativa aberta às afetações de corpos. Afetações que escapam das armadilhas da teleologia de uma história contada pelos vencedores, que reafirmam a sua potência em atos destituídos de compromisso com qualquer finalidade a priori.

Em face desta “exceção” não opomos nenhuma “regra”. Repudia-se aqui qualquer tipo de valor universal. Isto porque no terreno da cidade sitiada cabe um tensionamento até sua dobra, torção, constrangimento extremo. Tensionamentos produzidos por imagens “insignificantes” e, quem sabe, fortes o suficiente para “abrir” outros universos.

No aperto da kombi uns cantavam, alguns silenciavam. Outros, ansiosos, fitavam da janela o movimento de carros e gente em pleno pico do dia quente. Alguns minutos mais tarde chegávamos todos ao bonito museu à beira-mar.
Sem roteiro prévio, cada um escolhia por onde queria seguir. Uma mulher decide se sentar no banco em frente ao jardim, um velho rabugento sobe alguns degraus da escadaria e senta por lá também. Um outro rapaz curioso insiste em dar voltas admiradas no bonito prédio de linhas simples e elegantes. O calor intenso não era suficiente para desanimar os exploradores.
A certa altura um de nós decide subir até o segundo andar do branco edifício. As pernas um pouco bambas insistiram em escadas difíceis até um mundo de arejada claridade com vista para o mar. Um pouco cansadas, elas buscam descanso no banco próximo, mas, rápidas, desfalecem no chão, provocando ruídos que cortam sem clemência o silêncio sacro da catedral profana. Caído, o homem logo se levanta e continua sua saga.
Os efeitos de sua queda, contudo, se faziam sentir nos olhos preocupados de funcionários do palácio, que desde a nossa chegada viam com olhos desconfiados a bagunça daquela galera meio “estranha”.
Algum tempo depois uma elegante senhora se aproxima.
Preocupada com os movimentos erráticos do grupo um tanto indócil, ela nos convida então a partir. “Seria melhor se voltassem a outra hora”, disse. “Podemos agendar uma visita guiada. Sabe como é, não estamos acostumados a receber este tipo de grupo”, acrescenta. Percebendo a cena um de nós logo grita: “Vamos embora!” e os outros batem em retirada.
No caminho até o estacionamento um funcionário da limpeza nos intercepta: “Vocês já viram morcego dormindo?”, pergunta. E então, quase sem perceber, nos reunimos todos embaixo de uma árvore onde pequenos morcegos dormiam tranquilos na protetora escuridão de galhos e folhas. O mesmo homem seguiu falando:
“me pedem pra espantar e eu toda vezespanto, mas eles sempre voltam.”

Preocupado com os desafios políticos da presença dos ex-internos do hospital psiquiátrico na cidade, Baptista (2012) nos alerta para as práticas de poder que atuam sobre uma certa diferença para aniquilá-la ou subsumi-la aos seus padrões e normas. É possível, segundo o autor, que a cidade acolha os ex-internos, mas aniquilando “o vigor político da alteridade na construção de um mundo por vir” (BAPTISTA, 2012, p. 19). A cidade sitiada é a cidade de uma diferença “guiada” pelos corredores limpos e bem vigiados de grandes palácios, hospitais, escolas ou largas avenidas...

Assim, adequa-se o vigor político desta alteridade aos esquemas que visam calá-la, fazendo proliferar as formas hierarquizadas de “técnicas”, intervenções que não levam em consideração uma dimensão ética do cuidado que, conforme entendemos, precisa estar baseado em uma negociação sempre coletiva entre múltiplos atores- dentro do campo da saúde e fora dele-e, principalmente, nas experiências singulares de formas de vida. Formas estas que se fazem em nósa todo momento.

Após a rápida permanência no jardim dos morcegos, todos se dirigem ao estacionamento onde a velha kombi e o simpático motorista nos aguardavam.Todo mundo embarca, exceto uma mulher que, indiferente ao movimento geral, decide vagar por aquele deserto de asfalto liso e uniforme.
Seus lentos passos circundam a kombi cheia. De dentro do veículo ressoavamgritos de “vamos embora!”, “ela está louca!”.
Ignorando os apelos exaltados, ela vai se aproximando cada vez mais de uma viatura policial estacionada logo ao lado.
Hipnotizada por luzes vermelhas de carro de polícia, a mulher prolonga sua estadia no elegante museu. Anda com estranheza ao redor da viatura.Seu olhar deslocava o lugar-comum daquele objeto, explorando cada detalhe como se fosse alguma “obra de arte”tipo as que acabara de ver há pouco.
E depois de muito vagar, resolve:
“Vamos embora, mas eu vou na frente.”

Na cidade sitiada é preciso retomar um olhar de estranheza diante daquilo que consideramos “normal”,fazendo como a mulher que frente a luzes de sirene se detém por um minuto, permitindo ser arrebatada por um incômodo que reconhece no “mesmo” a centelha de um outro mundo. Centelha que pisca efêmera na cidade dos grandes holofotes, refletida mesmo que por um instante no mármore de grandes edifícios e, sobretudo, nas pequenas imagens que convocam a um mundo porvir.

A cidade de Sofrônia é composta de duas meias cidades. Na primeira, encontra-se a grande montanha-russa de ladeiras vertiginosas, o carrossel de raios formados por correntes, a roda- gigante com cabinas giratórias, o globo da morte com motociclistas de cabeça para baixo, a cúpula do circo com os trapézios amarrados no meio. A segunda meia cidade é de pedra e mármore e cimento, com o banco, as fábricas, os palácios, o matadouro, a escola e todo o resto. Uma das meias cidades é fixa, a outra é provisória e, quando termina a sua temporada, é desparafusada, desmontada e levada embora, transferida para os terrenos baldios de outra meia cidade. Assim, todos os anos chega o dia em que os pedreiros destacam os frontões de mármore, desmoronam muros de pedra, os pilares de cimento, desmontam o ministério, o monumento, as docas, a refinaria de petróleo, o hospital, carregam os guinchos para seguir de praça em praça o itinerário de todos os anos. Permanece a meia Sofrônia dos tiros ao alvo e dos carrosséis, com o grito suspenso do trenzinho da montanha-russa de ponta-cabeça, e começa-sea contar quantos meses, quantos dias se deverão esperar até que a caravana retorne e a vida inteira recomece. (CALVINO, 2011, p. 61).

Nas bonitas palavras de Calvino (2011), Sofrônia faz efêmeros o peso de seu cimento e a dureza de seu mármore. Subverte a lógica a que estamos acostumados ao erigir à condição de eterna a precariedade de seus brinquedos desmontáveis. Esta cidade substitui um eterno por outro, num movimento que surpreende e choca o olhar acostumadoàs formas habituais da urbe.

Muito longe de pleitear a eternidade de quaisquer elementos em causa, buscamos em Sofrônia o movimento que quebra as colunas sólidas das grandes construções, transformando-as em meros joguetes sazonais. Nesta quebra, destruição, é possível vislumbrar sob as pedras as fundações de prédios, resquícios de um passado capaz de ser reinventado pelo presente, traçosarqueológicos que poderiam traçar outros planos de composição para a vida.

Sofrôniaé duas cidades em uma- ela é o paradoxo do duro e do macio, do sólido e do desfeito. Qualquer semelhança com a nossa cidade contemporânea não seria uma mera casualidade- a cidade sitiada de uma vida entristecida (e endurecida)é também a cidade aberta, móvel, das alianças imprevistas e de uma vida aberta aos encontros.
Na linguagem militar, “cidade aberta” é a denominação dada, geralmente em tempos de guerra, a uma cidade que apresenta a declaração pública de que abandona seus esforços de defesa, permitindo o avanço das tropas inimigas sobre seu território3.

Em que pese o horror da guerra, este termo carreia também a potência de um uso diferente. Numa cidade aberta, declarada sem governo e pronta a se deixar penetrar por forças-outras, haveria talvez um aumento do coeficiente de criação, permitindo conexões improvisadas entre seus habitantes, alianças ritmadas no intuito da produção de uma comunidade que resiste e escapa das totalizações que visam calar o vigorpolítico do contato com o outro.

Assim, a metáfora militarizada de um “estado de exceção” vai cedendo lugar, em seu interior mesmo, à abertura que só o exercício de formas de vida tecidas no agora pode lhe conceder.Formas de vida que embaralham códigos petrificados, questionando as habituais funcionalidades, fórmulas e finalidadesmuitas vezes tão bem guardadas em paredes manicomiais.

Paredes manicomiais que ainda insistem em permanecer de pé. Pelbart (1990) enfatiza que não é suficiente destruir os manicômios físicos se ainda nos mantemos no exercício de uma racionalidade carcerária, presa aos velhos esquemas que colocam a loucura como o completo negativo de uma razão plena, insípida, livrando de nosso campo comum a estranheza e a transgressão do contato com as “infâmias” que ainda resistem no transitório pisca-pisca de vaga-lumes.

Em nosso caso, uma infâmia que se expressa nas imagens em movimento de uma “loucura”. Pelbart (1990) alerta que o processo de desconstrução da razão manicomial pode colocar em risco essa relação de avizinhamento com uma certa infâmia, contribuindo muita vezes para um processo de homogeneização social expresso da seguinte forma: ao “incluir” o louco à sociedade, fazendo-o integrar a nossa paisagem social mais cotidiana, atribuindo-lhe uma identidade e um lugar específicos, não estaríamos concorrendo para um esvaziamento de seu potencial de subverter e deslocar os limites de nossa própria existência, abortando, segundo Baptista (2012), o vigor político de uma alteridade? Não estaríamos incorrendo no perigo da produção de um cuidado em “via de mão única”, pouco comprometido com o exercício de sentidos comuns não apenas no campo da saúde mental, mas na vida?

É certoque não se advoga em favor do confinamento manicomial, mas se eleva o tom do debate até o ponto de uma provocação capaz de nos movimentar em direção a uma radicalização dos pressupostos envolvidos em uma sociedade sem manicômios. Esta radicalização se expressa na recusa aos “manicômios mentais” (PELBART, 1990, p. 137) que encarceram nos altos muros de uma racionalidade médica e científica que tudo deseja controlar, engolfando o estranhamento e a relação com a alteridade, transformando em tédio e apatia a potência do encontro com aquilo que escapa e nos desloca.

Sendo assim, como fazer frente aos rumos carcerários das práticas que evocam dominação sobre a vida, cerceando suas dimensões de criação estética e coletiva? “Como fazer funcionar uma potência de criação- dimensão estética- afetar as práticas psi, afetar o contato com a loucura? A essa questão não cabe uma resposta, mas experimentações provisórias.” (MACHADO e LAVRADOR, 2002, p. 48).

Ao ver o carro se aproximando da varanda, o homem pula sobre as grades do portão e o sacode com toda força, gritando pela sua abertura. De dentro do carro saio eu, que em poucos segundos já me ponho a andar atrás do homem que, tendo se lançado à calçada com vigor e disposição, já caminhava tranquilamente a alguns passos adiante.
Suas passadas fortes e decididas tomam o rumo de uma das pequenas lojas da vizinhança. Ao entrar, damos de cara com expressões de estranheza e incômodo. Uma das atendentes vem até nós e diz já conhecer meu companheiro: “ele é louco, perigoso, fala alto”, dizia ela. Pergunto, então, se meu amigo já havia feito algum mal a ela. “Não, mas mesmo assim é perigoso”, responde.
Em meio a lamentações um tanto injuriosas, eis que a vendedora nos oferece um café e nos convida a entrar em sua casa. Lá dentro, eu e meu amigo nos sentamos confortavelmente com mais café, água e alguma conversa. Quando decidimos ir embora, ela retruca: “ah, mas já?”.

A ironia e comicidade do relato acima revelam algumas pistas para a produção de relações abertas, leves, capazes de ampliarum espaço de afetações mútuas, encontros.Machado e Lavrador (2002) falam da necessidade de nos libertarmos dos desejos de manicômios que se expressam todas as vezes em que nos colocamos a serviço da dominação, da hierarquização, opressão e controle sobre o outro. É esta racionalidade que constrói os estereótipos carregados pela loucura e que por um momento levaram a dona da pequena loja a desconfiar de nossa presença ali.

A desconfiança e o medo daquela mulher, contudo, foram cedendo lugar a uma abertura capaz de produzir inflexões nos modos que até então orientavam sua relação com os vizinhos “loucos”. E ainda, a pergunta “mas já?” fala das possibilidades e das interferências possíveis de serem produzidas...

Diantedos pesados estigmas observados no trato com a loucura, vemos delinear-se a possibilidade de um outro mundo que se faz por meio de encontros pequenos e imprevisíveis, que disparam os movimentos de contágio que nos desprendem das formas conhecidas, arrebatando a estabilidade dos grandes monumentos identitários dedicados à permanência do mesmo.

Vemos aí a oportunidade para a constituição de relações fecundas, abrindo espaço para uma crença no mundo tal como destacada por Deleuze (2010), o que implica a produçãode acontecimentos pequenos, muitas vezes imprevisíveis, que fujam ao controle e possam “engendrar novos espaços-tempos, mesmo de superfície ou volume reduzidos” (DELEUZE, 2010, p. 222).

O improvável café no sofá da vizinha pode encarnar, quem sabe, um pequeno acontecimento capaz de “transtornar” os lugares instituídos da loucura e do “sadio”, abrindo caminhos comuns e tecendo as tramas de um outro presente. Acreditar no mundo é acreditar neste mundo, no agora.

O agora de uma cidade aberta. Cidade que em meio ao horror de um estado de exceção deixa vicejar sobre escombros as conexões improvisadas entre seus elementos, alianças descentralizadas que se fazem feito raízes vicejantes. Uma cidade como na metáfora militar:declarada sem governo, que no minuto anterior ao avanço das tropas que a pretendem tomar,se permite viver e sentir algo como o que Blanchot (2007) chamou de uma reserva de anarquia.

Uma reserva que se faz cotidianamente, de forma transitória tal como o piscar do vaga-lume, que como qualquer outro ato de guerra envolve risco de vida ou morte, mas que seria capaz de embaralhar por um momento as fronteiras entre “razão” e “loucura”, fazendo deste instante a arma que enfrentaos poderes que marcham do luminoso horizonte em nossa direção.


Conclusão: um olhar compartilhado

“Todas as manhãs o homem levantava bem cedo e tomava o café na varanda. Da mureta da casa já observava o movimento da rua e cumprimentava os passantes sem cerimônia. Sob o sol brilhante da manhã enxergava, lá no alto, os pássaros que pousavam nos fios de alta tensão e os urubus grandes e negros que rondavam a vizinhança.
Após o café, abria o portão e iniciava uma caminhada lenta em direção à esquina de sua rua. Chegando lá, acomodava-se na calçada e dali assistia a tudo com olhar curioso. Repetia a mesma rotina todos os dias sem descanso.
Por vezes ocorria que, um tanto receoso, deixava-se aventurar um pouco além da segura esquina. Até que um dia, rompendo as fronteiras do hábito, decide andar para mais além.
Para lá da esquina via-se então um homem de andar lento e contemplativo. Com as costas curvadas, ele seguia em sua caminhada comvigor.
Passava quase sempre por trechos desertos de ruas, por silêncios de terrenos baldios dominados por lixo e ratos. Era nestes espaços que ele gostava de parar e olhar.
E olhava. Sentado em algum meio-fio, sob o sol luminoso e a fumaça de carros e motos.
Tinha o dom de mergulhar em paisagens monótonas, espaços “vazios”. De vez em quando soltava um “olha”, apontando para alguma direção.
Quem quer que compartilhassedeste olhar também passava a enxergar, na aridez e monotonia de um terreno baldio, as pequenas vibrações de vento nas folhas, lagartixas na terra e insetos no ar.”

Um olhar compartilhado é o que este trabalho procura incitar. Um olhar de afetações e pensamentosem o qual talvez não pudéssemos enfrentar os já citados desafios e continuar a caminhada na direção de uma reforma psiquiátrica sempre em movimento.

Junto a isto há ainda a metáfora militarizada de uma cidade contemporânea.Mergulhados em um cenário de lutas cotidianas, urge buscaros brilhos intermitentes de pirilampos, faíscas de um outro “nós” que também pedem passagem no terreno libertário de uma abertura. Arrisca-se dizer que este terreno pode se fazer hoje no cotidiano de um serviço residencial terapêutico e muito além dele, numa vida de todo dia, cavando trincheiras embebidas de corpos e afetos dispostos a uma construção feita de encontros, estranhamentos, intermitências infames.


Referências

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Baptista, L. A. (2012). O veludo, o vidro e o plástico. Niterói, RJ: Editora da UFF.         [ Links ]

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Foucault, M. A escrita de si. (2012). Em M. B. MOTTA (Org.). Michel Foucault: ética, sexualidade, política. Ditos e escritos III (pp. 141-157). Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

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Pelbart, P. P. (1990). Manicômio mental: a outra face da clausura. Em A. LANCETTI (Org.). Saúdeloucura: número 2. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]


 

Data de submissão: 05/12/2016
Data de aceite: 23/03/2017



1 Este texto será intercalado por pequenos textos em itálico feitos a partir de registros em cadernos de campo. Tais escritos foram elaborados no decorrer de uma pesquisa de mestrado realizada no âmbito de um projeto de extensão universitária em saúde mental da Universidade Federal do Espírito Santo entre os anos de 2013 e 2014. As experiências aqui relatadas são frutos de uma parceria entre a extensão universitária e a gestão local de um programa de residências terapêuticas. O trabalho compreendia o acompanhamento terapêutico cotidiano dos moradores das casas de Vitória e Serra- ES, antigos egressos de um hospital psiquiátrico localizado nas cercanias destes dois municípios.

2 Os Serviços Residenciais Terapêuticos, também conhecidos como Residências Terapêuticas, são locais de moradia destinados, dentre outros casos, a pessoas que vivenciaram longas internações psiquiátricas (anos ou décadas) e que por isso mesmo encontram-se em dificuldade de restaurar os laços sociais que mantinham antes do período de internação (BRASIL, 2004). As residências, junto aos outros equipamentos de saúde e cuidado instituídos pela rede de atenção psicossocial, constituem ferramentas importantes no contexto da luta antimanicomial.

3 Fonte: http://pt.wikipedia.org/wiki/Cidade_aberta. Acesso em 17/08/2014.

I Mario Cesar Carvalho de Moura Candido: Psicólogo, mestre pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: mariocesar.candido@gmail.com

II Maria Cristina Campello Lavrador: Doutora em Psicologia Social, professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional da Universidade Federal do Espírito Santo. E-mail: cris.campello02@gmail.com

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