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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2017

 

SEÇÃO ESPECIAL - TEMAS EM DEBATE 2016

 

Profanações Urbanas: ficção e imagem no subjetivismo Psi

 

Urban Profanations: fiction and the image in Psy subjectivism

Profanaciones urbanas: ficción y imagen en el subjetivismo Psi

   

 

Luis Antonio dos Santos BaptistaI

I Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

 

 


RESUMO

A arte como representação e expressão do Sujeito, ou do Humano, é uma concepção marcante nos discursos Psi. O cinema e a literatura são utilizados como campo expressivo do reconhecimento do funcionamento psíquico. Deseja-se neste artigo problematizar este recurso metodológico. À luz das análises de Walter Benjamin sobre a prosa poética de Charles Baudelaire e sua relação com a cidade, pretende-se indagar sobre os efeitos ético-políticos desta metodologia da representação. A categoria de aura proposta por Walter Benjamin, assim como a da imagem como truque, utilizada por pesquisadores da história do cinema, são ferramentas fundamentais para a argumentação do artigo. No uso destas categorias, objetiva-se por em análise o caráter pedagógico, pastoral, da aura da arte e do artista utilizado por profissionais Psi. O artigo aposta, à luz de Walter Benjamin, entre outros autores, na dessacralização da experiência artística, na afirmação laica do artista e da arte. Ficção e Imagem são utilizados como instrumentos interpeladores de categorias alheias aos paradoxos, conflitos e invenções que habitam as cidades.

Palavras-chave: Ficção; Imagem; Cidade; Poder.


ABSTRACT

As representation and expression of the Subject, or of the Human, Art is a striking concept within Psy discourses. Cinema and literature are used as an expressive field for the recognition of psychic functioning. This article problematises this methodological resource. In light of Walter Benjamin's analysis of Charles Baudelaire's poetic prose and his relationship with the city, we seek to inquire upon the ethical-political effects of this methodology of representation. The category of aura proposed by Walter Benjamin, as well as that of the image as deception, as used by researchers in the history of cinema, are fundamental tools for the argumentation of this article. By using these categories, we look to analyse the pedagogical and pastoral character of the aura of Art and the artist as used by Psy professionals. The article relies on Walter Benjamin as well as other authors to profane artistic experience and the secular affirmation of the artist and Art. Fiction and the Image are used as instruments which call forth other categories so as to question the paradoxes, conflicts and inventions which inhabit cities.

Keywords: Fiction; Image; City; Power.


RESUMEN

El arte como representación y expresión del Sujeto, o del ser Humano, es una concepción llamativa en los discursos Psi. El cine y la literatura se usan como materia expresiva de reconocimiento del funcionamiento psíquico. En este artículo se busca a problematizar este recurso metodológico. A la luz de los análisis de Walter Benjamin sobre la prosa poética de Charles Baudelaire y su relación con la ciudad, se tiene la intención de questionar los efectos ético-políticos de la metodología de representación. La categoría de aura propuesta por Walter Benjamin, así como la de imagen como truco, utilizado por los investigadores en la historia del cine, son herramientas fundamentales para la discusión del artículo. En el uso de estas categorías, se busca en el análisis del caracter de la pedagógia y de la pastoral, el aura del arte y del artista como la utilizan los profesionales Psi. Nuestro artículo apuesta, a la luz de Walter Benjamin, entre otros, la profanación de la experiencia artística, la afirmación secular del artista y el arte. La ficción y la imagen se utilizan como instrumentos que interpelan otras categorías a las paradojas, los conflictos y las invenciones que habitan en las ciudades.

Palabras-clave: ficción; imagen; ciudad; poder.


 

 


A queda do sagrado

O que os poetas dizem sobre o amor é tão enganador como quando num antiquário se lê num letreiro: “Passa-se a ferro”. Não leve sua camisa para ser passada ali, o letreiro está à venda. Carlito Azevedo. Livro das Postagens.

O poeta alegrou-se após a queda do objeto na lama. No salto, a auréola caiu no lamaçal da cidade em obras. Paris era remodelada drasticamente; demolições, entulhos, buracos, interferiam na mobilidade da urbe que iria se transformar na Cidade Luz dos oitocentos. Becos escuros do passado medieval ganhavam claridade; ruas ampliadas, a cidade moderna em construção promovia peculiares transtornos. Iluminação acentuada, movimentos velozes, circulação de veículos, interrupção de trajetos, incitariam os passantes às singulares experiências sensoriais. Os novos bulevares possuíam uma pavimentação particular. O solo revestido pelo macadame encharcado provocou o salto do poeta no intuito de evitar o atropelamento por um veículo; após o movimento brusco a auréola caiu, mas ele não se transtornou, o episódio lhe causou contentamento. Paris em obras oferecia risco aos corpos do tempo e do espaço de outrora, apaziguados pela estabilidade. A cidade freneticamente se transformava1. Gestos, corpos, percepções fragmentavam-se. Na Cidade Luz do ritmo acelerado, a auréola do artista tornava-se anacrônica. O tempo das festas religiosas, dos ritmos da natureza, ruía. Nas fábricas e nas ruas a harmonia dos calendários despedaçava-se. A urbe das demolições impedia o vagar contemplativo pelas ruas. O homem das artes, desatento aos choques da multidão nas ruas, ao trânsito veloz, à peculiar vida social da urbe, perdia o objeto sagrado. Para ele seria um alivio a falta da insígnia que o definia como um ente de outro mundo. O incidente urbano o mortalizava, arrancava-o da quietude celestial onde nada acontece. Desprovido do ornamento sobre a cabeça, tornava-se passível de ser surpreendido pelas surpresas cotidianas, como todos que circulavam anonimamente nas avenidas. Agora ele seria um anônimo. A queda profanava a imutabilidade da sua forma celestial, alheia aos estorvos, aos acasos e aos prazeres do dia a dia. De carne osso, o recém citadino libertava-se da missão sagrada da arte de revelar, aprimorar sensibilidades, expressar os segredos da alma2. O arauto da beleza, o promotor da fruição sublime, o ser especial a indicar a verdade universal do Sujeito, ruía. Inútil, tornava-se a sua tarefa missionária. O artista, após ganhar mortalidade, desvencilhava-se da tarefa de anunciar mensagens redentoras. Na Paris moderna, nenhuma perenidade se sustentava3.  O poeta sorria aliviado ao constatar a perda do poder de educar o caráter das almas sedentas de arte. Inútil, era sua nova condição4.  No chão a auréola misturava-se aos detritos das ruas, aos restos do cotidiano, e ele alegrava-se ao descobrir a finitude de um corpo. Contentava-se também em ser vulnerável às agruras e aos prazeres da cidade. O ser celestial dos anúncios, das revelações, do cuidar, era privado da harmonia do sagrado. Na lama a auréola permanecia suja, misturada aos resíduos do dia a dia onde o fulgor das palavras e imagens divinas são indiferentes, inoperantes; porém, ele sorria, liberto do destino dos entes imunes à caducidade do tempo e do espaço da nova era. A cidade dessacralizava a sua arte5. O artista das letras desinteressou-se do intento de recuperá-la. Torcia para que o objeto fosse localizado por um possível poeta aprendiz das virtudes da arte, indiferente ao acaso e aos paradoxos das cidades. Mortal, desprovido do peso da missão sagrada, regozijava-se em usufruir o que a vida mundana lhe ofereceria. Poderia admitir o desconhecimento de verdades, estranhar o que supunha familiar, assombrar-se, correr riscos, dizer “não sei”.  Precário, possuidor de uma arte inútil, contentava-se em privar-se do poderoso ornamento que o tornava anestesiado aos acontecimentos desconcertantes do mundo. Despedia-se da quietude do céu, onde o assombro é inexistente; no firmamento, os assombros permitidos seriam somente aqueles onde a glória de um Ser é louvada, ou uma provação é violada. A arte dos anúncios e das revelações estaria agora na lama, à espera de um provável poeta, um aprendiz de anjo, um pastor em busca da harmonia perdida. A cidade a fragmentar tempos, espaços, percepções, dessacralizava o artista, e ele ria.  Paris o seduzia para os prazeres da carne.

No prostíbulo o poeta encontra um admirador: “Mas o quê? Você por aqui, meu caro? Você em tão mau lugar! Você, o bebedor de quintessências! Você, o comedor de ambrosia! Francamente, é de surpreender” (Baudelaire, 1995, p.333). Irônico, o artista responde:

“Estou bem assim. Só você me reconheceu. Aliás, a dignidade me entedia. Depois, alegra-me pensar que talvez algum mau poeta encontre a auréola e com ela impudentemente se adorne. Fazer alguém feliz, que prazer! e, sobretudo um feliz que me fará rir” (p. 333).

No bordel, o risonho cidadão torcia com desdém para que alguém, ao encontrar a auréola, denotasse a poesia ser o espelho da alma. Torcida irônica, pois sabia da inutilidade daquele ornamento. Presumia que o interessado, ao utilizá-la, definiria o poético como subjetivo; a arte como bálsamo; o artista como Deus, anjo ou Demônio. O risonho cidadão, agora, abominava estas virtudes. Desvelou as amarras do sagrado. Após o salto na avenida enlameada, ele dizia não sei, arriscava-se, dizia basta, descobria a morte, espantava-se, ria. O anonimato multiplicava suas forças, fazia-o atento aos apelos do mundo a arruinar incessantemente uma aprovável origem da arte, uma missão, uma forma eterna. A cidade não lhe dava sossego. Denunciava a morbidez da paz. O espelho da alma, missão da poesia, estilhaçava-se em inúmeros cacos, e ele os pegava, ria, montando e desmontando pedaços. O risco de ferir-se não o intimidava, a alegria era maior.

O personagem da prosa poética de Charles Baudelaire interpela a aura de certa concepção da criação artística. Apresenta o poeta que escapa do destino de ser à imagem e à semelhança de Deus, de ocupar a sua falta, reproduzir seu fulgor desvencilhando-se das entranhas de um mito não posto em cheque. Do salto na rua perde a potência redentora das Belas Artes. No bordel, torna-se um qualquer, como os passantes vulneráveis aos choques urbanos. A urbe das fragmentações dos gestos, dos ritmos, maculava a pureza da arte inspirada por ideias onde a morte, a desacomodação cortante da história, inexistem. O poeta anônimo contenta-se com a inutilidade da sua poesia, com o fim da missão pastoral na qual a dignidade o entediava. Anônimo, tudo poderá lhe suceder, algo por vir sucederá. A Paris de Baudelaire profana a aura dos missionários da educação do espírito, da fruição do sublime onde nada transfiguraria as bordas do Sujeito. Usurpa o caráter sagrado do artista. No bordel, a arte também está à venda, ou não. No solo, o ornamento é impedido de fornecer, ou reproduzir, a sombra e a luz do Sujeito ávido em conhecer-se, mergulhar na sua pretensa interioridade. A pureza da verdade da insígnia é ultrajada, misturada à poeira, aos vermes, aos restos cotidianos. A cidade, na sua cruel dissipação da harmonia do eterno, apresenta seus apelos descentrados, exteriores aos corações e mentes. Walter Benjamin, na análise da obra do poeta francês, afirma:

A dessacralização e a perda da aura são fenômenos idênticos. Baudelaire coloca a seu serviço o artifício da alegoria [...] A alegoria de Baudelaire – ao contrário da barroca – ostenta os rastros da concentrada ira que era necessária para entrar à força nesse mundo e deixar em pedaços as harmônicas imagens (Benjamin, 1985, p.135).

A ira do poeta, fruto da passagem da cidade, impede à poesia ser a representação da alma, a expressão subjetiva do Humano. Ira cortante, ao obscurecer o traçado nítido de um Sujeito, ou de uma paisagem. Paris atravessa a obra do poeta francês, perpassa com seus sonhos e fracassos da utopia da modernidade exigindo outra lírica, outra forma de experiência, outra forma de ficcionar6. Inútil, seria o espírito universal expresso na arte indiferente aos escombros do passado e aos monumentos de louvação ao futuro A caducidade da arquitetura, dos gestos, das coisas, abria espaço para a criação laica da literatura, para quem os apelos do mundo são a matéria prima. Ao fazedor de ficções, não caberia heroicamente responder a estes apelos, efetuar a arrogância do divino. A criação laica lhe exigiria estar atento ao vazio propiciado por destruições intermináveis do dia a dia, ou da história, e montar os escombros de ideias vitoriosas do passado, fragmentos de revoltas sufocadas, pedaços de gestos, cacos de dores e alegrias fraturados. Usá-los, sensível aos perigos das palavras de ordem, das quais o encerramento de uma história é afirmado. O que pode a inutilidade da arte?  O que o gargalhar do personagem de Charles Baudelaire tem a dizer sobre o uso da arte nos discursos Psi?

O antes da Queda

Os românticos admiravam imagens refletidas no espelho, demoravam-se ao vislumbrá-las, afirma Walter Benjamin (2012, p. 75). No espelho o olhar reconheceria a beleza e as mazelas de uma presumível realidade ou do Sujeito a admirá-lo. Os espelhos dirão a verdade, acolherão os indícios para que uma afirmação, um afeto, um corpo sejam ratificados. Porém, uma máquina peculiar abalará a admiração ou a confiança da imagem refletida. A invenção do final dos oitocentos colocará em prova a grandeza do espelho: o cinema. Os olhos e a consciências serão destituídos de serem os únicos artífices. A câmera criará o impasse entre o olho e o que é visto na tela. Segundo o filósofo berlinense, “na apresentação do homem por meio do aparato, a sua autoalienação experimentou uma utilização altamente produtiva” (Benjamin, 2012, p. 75). Ao contrário do espelho, o cinema forjará um corpo estranho ao reconhecível, um gesto desarmônico à função habitual, um rosto irreconhecível à familiaridade especular, um tempo inclassificável. Realidade implodida com sua verdade inabalável. Autoalienação propiciadora do estranhamento de si mesmo do espectador, assim como do protagonismo do olhar como autor do sentido daquilo que vislumbra. Autoalienação, ou autoestranhamento, a induzir o encontro com cárceres nunca imaginados: cárceres miúdos, cotidianos, que “pareciam nos encerrar sem esperança” (Benjamin, 2012, p.97). Encarceramentos encontrados na fantasia de um eu solitário de onde a imaginação emana, na naturalidade do gesto banal do dia a dia, no destino traçado pelo tempo contínuo que segue em direção ao futuro. Cárceres que, segundo Benjamin, poderão ser explodidos pela dinamite do cinema: “Então, veio o cinema e explodiu esse mundo encarcerado com a dinamite dos décimos de segundo, de tal modo que nós, agora, entre suas ruínas amplamente espalhadas, empreendemos serenamente viagens de aventuras” (Benjamin, 2012, p. 97). Ruínas à espera de composições, de prováveis montagens onde o ato de ficcionar põe à prova certezas inabaláveis. A montagem-ficção deflagradora de hesitação ao familiar, ao já visto, à verdade eterna. Ação perigosa para ideias das quais os encarceramentos, citados por Benjamin, escapam aos jogos de poder, às intervenções da criação humana.

O cinema como máquina produtora de imagens irreconhecíveis aos limites do real propiciou ameaça aos limites entre sonho e realidade. Engendrou poder ao sonhar e ao real, deslocando-os de uma origem, de uma oposição pacificadora. Criou modos de sonhar, estilhaçou a compacidade do real, multiplicando-o em inacabados sentidos. Retirou a prioridade do sonho da filiação da consciência, ou do inconsciente, legando-o à materialidade dos artifícios. O cinema destruiu a inocência do sonhar. Máquina dos truques a exigir a apresentação e a decomposição de uma história, desdobrando-a, impedindo-a de ser encerrada por uma verdade inabalável. Segundo Fernando Furtado,

Em sua forma aportuguesada, “truque” é o conjunto de dois eixos de rodas sobre as quais se apóiam as extremidades do chassi dos vagões e locomotivas, para facilitar a entrada nas curvas. Dispositivo semelhante foi empregado na construção do primeiro estúdio cinematográfico (Furtado, 1998, 28).

 Os românticos apaixonados por espelhos desprezavam os truques quando se diferenciavam do entretenimento. A arte não teria lugar à semelhança de um meio de transporte; o truque como dispositivo ferroviário a deslocar, facilitar entradas, interromper percursos, promover passagens e atravessamentos, inspirou o cinema. Artefato que ultrapassa o limite da oposição verdadeiro e falso; dispositivo que negaria à estética romântica a fidelidade da imagem em representá-los com suas grandezas ou mistérios. Os truques destruíam a aura do olhar do Sujeito de onde emana o significado do mundo que vislumbra. Utensílio profanador.

Amantes da arte como virtude recusavam a imagem quando esta omitisse a representação e a clareza de uma ideia, de um valor universal.  Inútil, seria a arte estranha aos rastros do Sujeito ou da grandeza da Natureza. A invenção do cinema engendraria o risco de dissipar a aura de um rosto, de uma paisagem, de um gesto banal, do transcorrer contínuo do tempo. Os românticos, citados por Benjamin, discordariam de uma das características do cinema definida por Kiju Yoshida: “é por essa razão ser o cinema uma expressão fundada em incerteza, liberdade e ambiguidade ilimitadas” (Yoshida, 1998, p.146). Incerteza e ambiguidade incômodas a realidades e fantasias quando recusam a origem de uma máquina, ou de um truque na confecção da sua trama, no desmanche de um Deus, no desmonte de uma verdade.  Quais os efeitos desta definição para a Psicologia? O que faz o psicólogo com o cinema?

Nos cinemas do passado, era difícil entender o que sucedia na tela.

“Luis Buñuel ainda conheceu esse costume em sua infância na Espanha, em torno de 1908 ou 1910. De pé, com um longo bastão, o homem apontava os personagens na tela e explicava o que eles estavam fazendo. Era chamado explicador. Desapareceu – pelo menos na Espanha – por volta de 1920” (Carrière, 2006, p. 15).

A plateia dos primeiros cinemas encantava-se e simultaneamente desejava entender o que passava na tela. Deformações da realidade, temporalidades estranhas, dificultavam o entendimento. Segundo Carriére, “as pessoas tinham curiosidade de saber de que era feita aquela imagem em movimento; vendo nela uma espécie de nova realidade, buscavam a ilusão, o truque” (Carrière, 2006, p. 16). Os primeiros filmes foram exibidos em locais particulares, onde os truques eram saudados com alegria:

Os primeiros filmes apareceram em 1895. Começaram a ser exibidos em feiras, circos, teatros de ilusionismo, parques de diversões, cafés e em todos os lugares onde houvesse espetáculos de variedades. Mas o principal local     de exibição dos filmes eram os vaudeviles. Os vaudeviles tinham surgido a partir de teatros de variedades - com conotações exclusivamente eróticas - que, em geral, funcionavam anexos aos chamados salões de curiosidades [...] que exibiam mulheres barbadas, anões, bichos de duas cabeças (Costa, 2005, p. 40).

Cenas desconectadas, tomadas únicas, narrativas sem continuidade enchiam a tela de imagens desprovidas de aura. O primeiro cinema “manteve o caráter anárquico do espetáculo de variedades” (Costa, 2005, p.45). Multidões nas ruas, assassinatos, paisagens da natureza, cenas cotidianas, acontecimentos marcantes da época, incêndios, guerras, tomavam conta da tela nos locais esfumaçados. O público, segundo Flavia Costa, talvez não “duvidasse de que se tratava realmente de uma série de truques. A invenção realista no cinema só viria muito depois, acompanhando de certa forma a narrativização” (Costa, 2005, p.46). Gradativamente o cinema muda de local de exibição. Os espaços esfumaçados, barulhentos, são preteridos. Para a cultura de massa, a ambiguidade dos personagens, a descontinuidade das cenas, a fragmentação da narrativa são características inadmissíveis. O início meio e fim da história, a clareza de um rosto impregnado de um reconhecimento moral, o encerramento feliz de uma trama, invadirão as telas substituindo a magia dos truques. A aura das imagens apaziguará a imprecisão das cenas dos bordeis do passado.

A domesticação que vai se instalando no primeiro cinema parece ter a chancela do senso comum. Ela se estabelece como um processo de homogeneização na representação do espaço e do tempo [...] de fabricação de personagens sem ambigüidade, de finais felizes necessários. Ela faz uma moralização das trajetórias, realiza um certo encarceramento dos movimentos histéricos e incontroláveis, presentes nos objetos repentinamente animados e nos personagens possuídos que povoam os filmes de transformações. (Costa, 2005, p.69).

Quais os efeitos desta “domesticação” para a Psicologia?  O que faz o profissional Psi com o cinema? Em sintonia com as questões formuladas, Maicon Barbosa acrescenta: “Como aproximar dos filmes tentando não domesticar as imagens e sons para rebatê-los às consagradas teorias Psi?” (Barbosa, 2016, p. 48). A esta questão, responde o autor:

De diversas maneiras a Psicanálise se aproxima do cinema, mas, no campo dos estudos cinematográficos, é, talvez, Christian Metz o teórico mais enfático na transposição sistemática de conceitos psicanalíticos de Freud e Lacan para explicar as imagens em movimento e as formas de relação com elas. Articulando semiótica e Psicanálise, Metz empreende a construção de uma teoria do espectador cinematográfico baseada nas noções de identificação inconsciente. Metz descreve alguns tipos de Psicanálise do cinema: a primeira seria uma psicanálise nosográfica, que toma os filmes como sintomas das neuroses do cineasta ou do roteirista, e a segunda seria uma variante da primeira, que ao invés de encontrar a psicopatologia de quem fez o filme, concentra-se nas tipologias metapsicologias (Barbosa, 2016, p.45).

O cinema como ilustração dos segredos da alma ganha mais um explicador. Difere-se do apresentado por Carrière do início do século XX, através das lembranças de Luis Buñuel; este é contemporâneo:

Um teórico psicanalista bem mais conhecido fora dos estudos cinematográficos que também faz uma leitura freudiana e lacaniana dos filmes é Slavoj Zizek. Em um filme chamado O guia pervertido do cinema, Zizek passeia pela história do cinema e discursa para a câmera, explicando conceitos freudianos, e usa os filmes como exemplo desses conceitos (Barbosa, 2016, p.46).

Saber olhar as imagens na tela para encontrar os mistérios do Sujeito, as causas das suas dores; reconhecer na ficção, na imagem, os rastros de uma agonística do Sujeito, do Homem, ou da Natureza são atos inúteis para os frequentadores dos bordeis esfumaçados, dos teatros de variedades, dos circos onde o riso afirmava-se como a ira da poesia de Baudelaire. A ira, segundo Benjamin, “era necessária para entrar à força nesse mundo e deixar em pedaços as harmônicas imagens”. Qual o poder do truque para profanar a luminosidade de uma aura?

Profanações

A literatura policial, fotos familiares, os romances de formação para os espíritos sensíveis, as imagens retratadas nas fotografias para o controle e investigação de crimes procuravam representar com fidedignidade a essência do caráter do retratado; representavam causas e efeitos de um fato, a cidade como ela pretensamente é.  Ficção e imagem no final dos oitocentos, estudados por Walter Benjamin, terão como desafio as ressonâncias da aura na cristalização dos cárceres cotidianos, assim como nas ações do terror do Estado. Na fotografia de Eugène Atget, ele encontra uma aposta ética, um truque que profana o sagrado reproduzido nas artes da época. Das imagens de Atget, nenhuma atmosfera conduzirá, ou fará reconhecer indícios de algo consumado. São imagens que subtraem significados, subtraem a pretensão de reproduzir o real. São imagens que destroem a auréola de um caráter, de uma paisagem.  Fotografias que “desinfetam atmosferas sufocantes”, na oferta do vazio, do espaço leve como o corpo do poeta após a perda do ornamento na lama. Das fotos de Atget, segundo Benjamin, algo está para acontecer, seduz, convida, exige atenção:

Vazia a Porte d’Arcueil nas fortificações, vazias as escadas faustosas, vazios os pátios, vazios os terraços dos cafés, vazia, como convém, a Place du Tertre. Esses lugares não são solitários, e sim privados de toda atmosfera; nessas imagens, a cidade foi esvaziada, como uma casa que ainda não encontrou moradores. Nessas obras, a fotografia surrealista prepara uma saudável alienação do homem com relação a seu mundo ambiente. Ela liberta para o olhar politicamente educado o espaço em que toda intimidade cede lugar à iluminação dos pormenores (Benjamin, 1996, p. 102).

Do vazio ofertado por Atget, o fazedor de ficção e de imagem, assim como sua obra, seria radicalmente dessacralizado, profanado, como o poema de Wislawa Szymborska:

Sopros e pilhas de céu.
O céu é onipresente
Mesmo na escuridão sob a pele
Devoro o céu, excreto o céu.
Sou uma armadilha numa armadilha,
um habitante habitado,
um abraço abraçado,
uma pergunta na resposta a uma pergunta.
A divisão entre o céu e a terra
não é um modo apropriado
de pensar essa totalidade.
Permite só sobreviver
num endereço mais preciso,
mais fácil de encontrar,
caso eu fosse procurada.
Meus sinais particulares
São o encantamento e o desespero
(Szymborska, 20016, p.191).




Referências

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Barbosa, M. (2016). Espectros da Imagem, Remontagens da História: Uma escrita do Cinema como interlocução ao presente. Tese de doutorado não publicada, Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense, Niterói.         [ Links ]

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Szymborska, W. (2016). Um Amor Feliz. São Paulo: Companhia das Letras.         [ Links ]



Data de submissão: 21/10/2016
Data de aceite: 27/04/2017


1 Sobre a interferência das transformações de Paris na obra de Baudelaire ver Benjamin, 2000.

2 Segundo Maurice Blanchot, “criador é o nome que o artista reivindica, porque acredita ocupar assim o lugar deixado vazio pela ausência dos deuses, Ambição estranhamente enganadora. Ilusão que o leva a crer que se tornará divino [...] Ilusão, que, ademais, encobre o vazio sobre o qual a arte deve fechar-se” (Blanchot, 1987, p. 219).

3 Sobre a  destruição da perenidade na cidade da modernidade, ver Berman, 1986, p. 85.

4 Sobre a “inutilidade da arte”, ver Blanchot, 1987, capítulo VII . “Poliana Cordeiro, no intuito de afirmar a potência da “inutilidade da arte” afirma: “a arte não é um absoluto desinteressado. Ela não cura, não sublima, não acalma absolutamente nada. Porém, a arte conduz uma potência afirmativa do falso e, ao mesmo tempo, efetua uma potência vital” (Cordeiro, 2016, p. 44).

5 A dessacralização da arte, a complexidade da categoria de aura na obra de Benjamin inspira-se no ensaio Pequena História da Fotografia (Benjamin, 1996, p. 91), especificamente as análises de Benjamin sobre a fotografia de Atget, e no ensaio A obra de arte na época de sua reprodutibilidade técnica (Benjamin, 2012). Jeanne Marie Gagnebin, à luz da contribuição de Benjamin sobre este tema argumenta: “contra uma arte –ilusão, uma arte-refúgio, uma arte que “fabrica” aura para reencantar o mundo, ele advoga a destruição dos velhos clichês da estética do belo em prol de espaços sóbrios, vazios e esvaziados, talvez em ruínas” (Gagnebin, 2014, p.163).

6 Sobre a cidade e as mudanças na poesia de Baudelaire, afirma Benjamin: “ O poeta em Baudelaire resguardava o incógnito. Por mais provocador que pudesse parecer no trato, tanto mais cuidadoso ele era em sua obra. O incógnito é a lei da sua poesia. A sua construção dos versos é comparável ao plano de uma grande cidade, na qual se pode movimentar-se sem ser percebido, encoberto por blocos de casas, portões ou pátios. Neste mapa, as palavras têm, como conspiradores antes de estourar uma rebelião, os seus lugares indicados com toda precisão” (Benjamin, 1985, p.120).

I Luis Antonio dos Santos Baptista: Professor Titular do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. Pesquisador CNPq (Bolsista de Produtividade Nível 2). Psicólogo graduado pela Universidade Gama Filho (UGF), Mestre em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio), Doutor em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: baptista509@gmail.com

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