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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2017

 

SEÇÃO ESPECIAL - TEMAS EM DEBATE 2016

 

Os saberes menores e a profanação acadêmica: os sentidos da experiência

 

Minor knowledge and academic profanation: the senses of experience

Los saberes menores y la profanación académica: los sentidos de la experiência

   

 

Mateus Freitas CundaI, Lívia ZanchetII e Carolina Seibel ChassotIII

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

III Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

 

 


RESUMO

Este artigo se propõe a discutir a relação entre o saber acadêmico-científico e os saberes cotidianos, experienciais, locais. Esta relação geralmente encontra-se organizada por uma hierarquia estática, na qual os saberes acadêmicos são valorizados e os saberes locais são questionados ou invisibilizados. Problematizamos esta organização através da investigação dos efeitos que se produzem quando estes diferentes saberes se propõem ao encontro e à afetação mútua. Para isso, trazemos duas experiências de pesquisas realizadas com “usuários de saúde mental”, onde estes também foram pesquisadores, ocupando lugares normalmente reservados aos acadêmicos. A partir do que estas estratégias metodológicas produziram, foi possível evidenciar os tensionamentos de poder que atravessam a produção de conhecimento. Verificamos também a potência de desterritorialização destes “saberes menores” que operam agenciamentos inesperados, desestabilizam as fronteiras instituídas, e que em seus devires-pesquisadores podem profanar a academia e dessacralizar a produção de conhecimento.

Palavras-chave: usuários de saúde mental; experiência; pesquisa-intervenção.


ABSTRACT

This article proposes to discuss the relationship between academic-scientific knowledge and everyday, experiential, local knowledge. This relationship is usually organized by a static hierarchy, in which academic knowledge is valued and local knowledge is questioned or made invisible. We propose here to problematize this division through the investigation of the effects that occur when these different knowledges meet in an encounter and are open to mutual affectation. We discuss two researches carried out with "mental health users", in which they were also researchers, occupying places usually reserved for academics. From what these methodological strategies produced, it was possible to evidence the power tensions that go through the production of knowledge. We also see the power of deterritorialization of these "minor knowledges", which operate unexpected assemblages, destabilize established boundaries, and which, in their becoming-researchers, may profanate the academy and desacralize the production of knowledge.

Keywords: mental health service users, experience; research intervention.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo discutir la relación entre el conocimiento académico / científico y el conocimiento cotidiano, experiencial, local. Esta relación es generalmente organizada por una jerarquía estática, en la que se valoran los conocimientos académicos al paso que los conocimientos locales son cuestionados o invisibilizados. Proponemos aquí problematizar esta división a través de la investigación de los efectos que se producen cuando estos conocimientos diferentes se proponen al encuentro y a la afectación mutua. Para ello, traemos dos investigaciones realizadas por “usuarios de salud mental", donde actuaban como investigadores, ocupando lugares normalmente reservados para los académicos. A partir de lo que se produce por estas estrategias metodológicas, fue posible poner de relieve las tensiones de poder que atraviesan  la producción de conocimiento. También podemos comprobar el poder de desterritorialización de estos "saberes menores" que operan ensamblajes inesperados, desestabilizan a los límites establecidos, y en sus devenires-investigadores pueden profanar la academia y desacralizar la producción de conocimiento.

Palabras-clave: usuários de salud mental, experiencia; pesquisa-intervención.


 

 

Com uma maçã, eu quero impressionar Paris.
PAUL CÉZANNE
 
Estou farto do lirismo comedido
Do lirismo bem comportado (...)
Estou farto do lirismo que para e vai averiguar no dicionário (...)
MANUEL BANDEIRA – Libertinagem

Neste artigo, propomo-nos a discutir os encontros entre o saber da experiência cotidiana e o saber acadêmico-científico. Inseridos em um campo da Psicologia Social que atua nas políticas públicas, voltamos nosso olhar para o saber daqueles que são comumente chamados de "usuários" destas diversas políticas - sejam de saúde, educação, assistência social, habitação, etc. De que maneira o saber que se produz na vida de quem está em contínua relação com as políticas públicas interessa para a produção de conhecimento acadêmico, o qual, muitas vezes, ampara a elaboração dessas políticas?  O que se passa nas fronteiras entre os saberes tradicionalmente instituídos e estes saberes locais? Como permitir que estes saberes adentrem as portas onde apenas os doutos costumam habitar? Que tensionamentos modificam essas fronteiras, produzindo outras formas de relação?

Para realizar esta discussão, apoiamo-nos em autores como Michel Foucault, Gilles Deleuze, Félix Guattari e Giorgio Agamben naquilo que propõem sobre os saberes menores, o devir pesquisador e a profanação, respectivamente. Estes e outros conceitos são convocados ao texto na interlocução com duas pesquisas recentes no campo da Saúde Mental, em que saberes da experiência cotidiana e saberes acadêmicos se associam. Não pretendemos trazer estas experiências como modelos de "boas práticas", pois entendemos que não é possível nem desejável a proposição de caminhos seguros para estes encontros. Buscamos apresentar ao leitor/à leitora um campo problemático em movimento, com ideias acerca de uma comunidade de pesquisa que se amplia e sobre a qual já é possível visualizar alguns efeitos.

Saberes menores, saberes vastos

Referindo-se ao sonho do pai em lhe ver arquiteto, Manuel Bandeira no poema Testamento, diz: “Não pude. Sou poeta menor, perdoai!”- em desculpa pela informalidade das palavras, denotando que aquele fio de vida que escapou de ser vivido era justamente seu ponto de desejo e enriquecimento. No epitáfio escrito por José Paulo Paes, brincando com a autodenominação de Bandeira, escreve poeta menormenormenormenormenormenormenorme!

Dessa brincadeira, que afirma o caminho da libertinagem de Bandeira, buscamos colocar em discussão a distância entre os saberes formais, científicos, acadêmicos, e os saberes advindos da experiência de uma vida.

Deleuze e Guattari (1977) introduzem o conceito de “menor” a partir da obra de Kafka, proposta enquanto uma literatura menor. A literatura menor se caracteriza por ser revolucionária em seu efeito desterritorializante, em sua inseparabilidade da política e da enunciação coletiva. Uma obra menor não fala por si mesma, mas fala por milhares. Transforma a língua para fazer passar um povo, um bando, uma matilha, um coletivo. Em Mil Platôs, os autores (1997) desenvolveram aquilo que é “menor” a partir da fuga a um padrão majoritário, molar, identitário: padrão homem-branco, adulto-macho. Afirmam que todo devir é devir-minoritário, devir-menor. Mulheres, crianças, animais, vegetais, moléculas, podem ser devires minoritários, na medida em que produzem desterritorializações nos padrões majoritários. No entanto, é preciso não confundir "minoritário" enquanto devir ou processo, e "minoria" como conjunto ou estado. Afirmam: os judeus, os ciganos, etc., podem formar minorias nessas ou naquelas condições; ainda não é o suficiente para fazer delas devires. Para o negro se tornar um devir-negro, para a mulher se tornar um devir-mulher, é preciso que deixem de se definir a partir do metro-padrão que constitui a maioria. Nesse sentido, a minoria não é essencialmente minoritária; é através de um processo, de um devir, que ela se torna menor, e aí reside sua potência.

Em Genealogia e Poder, Foucault (1976/2007) reconhece um certo movimento de insurreição dos saberes dominados, ocorrido a partir dos anos 60. São aqueles saberes ordinários, desqualificados como não competentes, ingênuos, hierarquicamente inferiores, que estariam abaixo do nível exigido de conhecimento ou de cientificidade para serem considerados válidos ou respeitados. Foucault ressalta que o saber dominado não se confunde com o senso comum ou o bom senso, mas pelo contrário, é um saber particular, local, um saber diferencial. Não é o saber da unanimidade, mas um saber de resistência.

Estes saberes estariam então experimentando um reaparecimento, que a pesquisa genealógica de Foucault evidenciou justamente pelo acoplamento entre saberes locais e os conteúdos históricos esquecidos, mascarados pelos discursos totalizantes dos grandes sistemas formais históricos. “A reativação dos saberes locais - menores, diria talvez Deleuze - contra a hierarquização científica do conhecimento e seus efeitos intrínsecos de poder, eis o projeto dessas genealogias desordenadas e fragmentárias” (Foucault, 1976/2007, p. 172).

Foi este estranho e paradoxal encontro entre um conhecimento histórico “meticuloso, erudito e exato” e os saberes locais, singulares e desqualificados que deu potência à genealogia e às formas de conhecimento crítico, na insurreição frente à pretensão de “depurá-los, hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida por alguns” (p.171). Ou seja, um processo em que diferentes saberes se acoplam em um devir minoritário.

Enquanto isso, no campo contemporâneo das publicações científicas ainda se reproduz uma gradação de valor diferenciada para as pesquisas “propriamente ditas” e os relatos de experiência. Seja em termos do peso atribuído na valorização de currículos, ou através da forma como são apresentados nas normas de publicação de periódicos, persiste a indicação de que os relatos de experiência são relegados a uma posição de valor inferior. A tradição hegemônica da pesquisa científica com origens positivistas segue buscando a aproximação com a objetividade dos dados, com dificuldades para assimilar o trabalho de pesquisa encarnado, corpóreo, vivencial e crítico-reflexivo. Relatar uma experiência nessa moldura científica beira uma atividade leiga, próxima às falácias e aos mitos. Nesse campo - tido como caótico - o fluxo narrativo do vivido abre janelas para outras cenas, deixa sempre lacunas sob o ponto de vista de uma linha validada de conhecimento. O Saber, assim instituído, limita-se ao re-conhecimento. O que escapa pode até ser validado, mas com a atribuição de um valor sempre inferior.

Quando se coloca a questão “é tal conhecimento verdadeiramente científico?”, Foucault (2007) propõe que não se está apenas perguntando sobre sua estrutura formal ou lógica, ou sobre em que medida obedece aos preceitos do método científico. Esta pergunta, na verdade, deve ser precedida de outra, mais reveladora: que tipo de pretensão de poder está envolvido no projeto científico, ou seja, na própria pretensão de ser uma ciência? Que tipo de saber se procura desqualificar quando interrogamos sua cientificidade? Que sujeito falante, que sujeito de experiência ou de saber se quer menorizar?

A dispersão para o conhecimento periférico, relatada por Foucault nos anos 60, deu visibilidade às instâncias centralizadoras da organização política da vida, que governam por uma estilização do modo de viver. Não se trata simplesmente de uma roupagem simbólica para dar vazão aos mecanismos de controle e repressão dos governos. Foucault (2006) afirma que, por vezes, se associa diretamente os saberes ao poder, em um equívoco que nubla o exercício diário de regimes de verdade. A produção de opressão não está retida estritamente numa relação de Estado: o poder se exerce nas microrrelações, carregando sentidos dispersos de outros poderes, podendo originar estratégias de ação também diversas.

Está certo que esse jogo pode apresentar formas de dominação bastante opressoras. Para Agamben (2002), a propósito do “poder soberano”, a biopolítica é uma forma de gestão da vida que coloca o indivíduo no centro dos cálculos do estado moderno, opondo uma “vida politicamente qualificada” a uma “vida nua”. Para o autor, “a dupla categorial fundamental da política ocidental não é aquela amigo-inimigo, mas vida nua-existência política, zoé-bios, exclusão-inclusão” (p.15). Antes, portanto, de uma objetalização, a localização de vidas nuas seria uma sujeição política, uma servidão que se estabelece de maneira silenciosa, uma dominação que ensurdece a voz, que a reveste como inacessível, desprezível e, numa medida extrema, eliminável.

O saber nu, pela sua não inscrição nos regimes de poder, sempre desafiou os regimes de verdade – sejam eles os poderes de Estado, os saberes científicos ou as normas jurídicas – causando incômodo por não ser codificável. Ao se evidenciar os saberes desnudos, despojados das roupagens técnicas, adentramos, mais do que em uma revelação do saber menor, numa ética de como é possível estabelecer um governo de si.

Nesse cenário, a verdade não é algo passível de indiferença, pois exerce uma força de atração para os corpos como se fosse uma gravidade moral, com a qual o corpo receptor precisa lidar para exercer tais ou quais maneiras de compor um equilíbrio no mundo. O balanço se forja com a construção de um estilo, no modo de assimilar os sistemas de verdade, de narrar o mundo, de se relacionar consigo e com os outros. Cabe aqui entender o campo de forças dessas verdades, buscando exemplos de desaforo ao sentido dado universalmente; o que, afinal, para Foucault (2012) seria a possibilidade de emergência de uma ética em meio aos jogos morais estabelecidos.
 

Pesquisa e Profanação

O encontro desencontrado de uma narrativa pungente, expressão brutalizada da realidade, e os modos de se afirmar tal experiência no plano das verdades instituídas, compõe o dilema da modernidade no exercício de planificar o vivido (Tarde, 2007; Latour, 2013). Por isso, retornamos às citações apontadas no início desse texto de Manuel Bandeira e Paul Cézanne. Este como precursor do Impressionismo, deturpando as escolas que preenchiam os museus da época; aquele como poeta menor, defensor da libertinagem poética, crítico do lirismo vigente em sua geração.

A busca pela liberdade da forma é um tema moderno que se afirma, por vezes, pela assunção de formas intransigentes que desafiam o status quo. Diferente de uma idealização do disforme, ou ainda, das formas menores ou marginalizadas, busca-se afirmar as infinitas possibilidades de coletivizar uma experiência, os vastos campos de possibilidade que permitem a produção de um conhecimento.

Na companhia de Giorgio Agamben (2007), propomos uma profanação do saber acadêmico, ressituando-o a partir do uso de saberes não-sacralizados. O autor, ao escrever o Elogio da Profanação, remete-se aos juristas romanos que, à sua época, bem sabiam o que significava profanar: devolver ao livre uso - dos homens comuns -, tudo aquilo considerado sagrado e que pertenceria apenas aos deuses. Quem violasse essa indisponibilidade seria um sacrílego, um profanador. Neste sentido, situa experiências como os jogos, que derivam de antigas cerimônias sacras e rituais divinatórios outrora pertencentes à esfera religiosa. As próprias crianças, que brincam com qualquer bugiganga, estão a todo o momento a profanar objetos, elas transformam facilmente em brinquedo qualquer objeto destinado a um uso específico. A profanação, portanto, está relacionada ao poder sobre o uso. Por meio dela, o que antes estava interditado a alguns e atribuía poder a outros é neutralizado e restituído ao uso comum, em uma operação política.

O saber dos pesquisadores diplomados tornou-se sacralizado, tomado como verdade absolutamente relevante, por vezes até inquestionável. A voz dos doutos da Academia pode subjugar os saberes menores. Entendemos que profanar este lugar é a operação política capaz de produzir uma polifonia potente e libertadora.

Em oposição a isso, temos a insurreição dos saberes menores, que vêm cavando espaços no terreno da produção de conhecimento, especialmente àqueles que dão apoio às políticas públicas. Muitas vezes organizados em movimentos sociais, cada vez mais os ditos “usuários” têm questionado e pressionado a Academia quanto aos efeitos sociais da produção de conhecimento. Estas práticas reivindicatórias vão além da fiscalização e os usuários efetivamente passam para o lado de dentro da Academia, sustentando a legitimidade de sua experiência pessoal como um saber que dá origem a novas formas de conhecimento. Além disso, também se borram as fronteiras entre aqueles que prestam e aqueles que recebem cuidados, pois a afirmação do saber da experiência passa pela invenção de práticas de cuidado entre “pares”, aqueles que enfrentam problemas de saúde semelhantes e se apoiam mutuamente. Pessoas com deficiência física, AIDS, câncer, asma, transtornos mentais, adentram as tarefas de pesquisar e cuidar, sempre inseridos em um ferrenho campo de embates (ver, por exemplo, Hess, 2004; Brown e cols, 2004; Davidson, Bellamy,  Guy, Miller, 2012; Sweeney, Beresford, Faulkner, Nettle, Rose,2009; Wallcraft, Schrank, Amering, 2009; Walker&Bryant, 2013).

Como em qualquer prática, é preciso acompanhar as especificidades e as processualidades locais para se entender as redes de saber-poder que se estabelecem a partir deste aparente deslocamento histórico. Afirmar que o saber dos “usuários” é considerado na realização de pesquisas ou na provisão de cuidado pode, por vezes, mascarar a persistência dos mesmos esquemas de hierarquização que submetem os saberes menores. As pesquisas conduzidas por “usuários” podem, por exemplo, ser mantidas em um lugar marginal através do domínio cada vez maior do conhecimento “baseado em evidências”.  O envolvimento de “usuários” em pesquisas por vezes se sustenta em uma proposta crítica, politizada e transformadora, mas também pode ser capturado por práticas que mantêm a rigidez acadêmica e a dominância dos profissionais e gestores dos serviços, reproduzindo um modelo consultivo neoliberal, como aponta Beresford (2002).

Nesse sentido, o ingresso do saber menor na Academia pode ser incluído, visando meramente complementar o saber científico, produzir novos dados, dar uma aparência progressista às pesquisas, permanecendo, no entanto, inserido em um diagrama de poder estabelecido pela própria Academia. Com a ideia de profanação, queremos resgatar a possibilidade de uma subversão no diagrama. A brincadeira de criança não pode ser formatada, sob o risco de deixar de ser brincadeira. Sua operação não depende da validação ou do reconhecimento adulto. Quando Agamben propõe a profanação, ele não está se referindo a um retorno ao uso que antes se podia fazer de determinado objeto, mas propõe um novo uso, diferente do anterior que já deixou de ser possível. Nas palavras do autor:

Profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas. A sociedade sem classes não é uma sociedade que aboliu e perdeu toda memória das diferenças de classe, mas uma sociedade que soube desativar seus dispositivos, a fim de tornar possível um novo uso, para transformá-las em meios puros. (Agamben, 2007, p. 67)

Considerar, portanto, a entrada dos saberes menores na Academia não é simplesmente propor a abertura das portas institucionais para que sujeitos outros possam encarnar o mesmo lugar de saber-poder dos pesquisadores stricto sensu; não é apenas que os não-doutos busquem se enquadrar e se adaptar às já colocadas demandas acadêmicas. Trata-se, sim, de que, neste encontro do saber acadêmico com os saberes menores, algo novo possa se produzir; outras formas de pesquisar e produzir conhecimento possam se engendrar.


O devir-pesquisador

O conceito de devir (Deleuze & Guatarri, 1997) propõe e opera para desmanchar formas e as relançar em um plano de forças. Trata-se de uma produção constante, incessante e sempre outra. Falar sobre um devir-pesquisador é distanciar-se de um produto final, de um ser finalizado; mas é aproximar-se de um ser em processo, de um ser que sendo, é e torna-se outro. O devir-pesquisador é processo e produção. A experiência o funda e por ele é fundada.  Afirmar o lugar dos saberes menores nessa produção é também afirmar uma ética na pesquisa, em que a Academia se depara com uma alteridade, algo de estrangeiro que pode vir a lhe perturbar. Nessa perspectiva, a partir do encontro com os saberes menores, promove-se um contato intensivo que é, por consequência, produtor de subjetividade e, quiçá, transformador de práticas e da produção de conhecimento.

Nas discussões metodológicas, o lugar da experiência vem, aos poucos, assumindo outro lugar possível: de afirmação e potência. A pesquisa cartográfica, por exemplo, baseia-se na ideia de que o pesquisador-cartógrafo está no campo, imerso. Não se trata de ser um mero relator de sua experiência, mas de compreender que esta dimensão está colocada e é fundamental para a efetivação da pesquisa. Ao definir a cartografia como um método de pesquisa-intervenção, Benevides e Passos (2009) citam Guattari e sua proposição de que o trabalho da análise, nessa perspectiva, "é a um só tempo o de descrever, intervir e criar efeitos-subjetividade" (p. 27). Os autores afirmam que a pesquisa é uma intervenção que exige um mergulho na experiência, e o abandono de preceitos positivistas de neutralidade ou de separação entre sujeito e objeto na investigação.

Outra perspectiva que coloca em pauta o lugar da experiência dos sujeitos pesquisados na própria pesquisa é o PesquisarCom (Moraes, 2010). Ao narrar uma experiência de pesquisa envolvendo pessoas com deficiência visual e videntes, a autora aponta a importância do uso da conjunção aditiva "e". Marca sua diferença em relação ao "ou" que opera nas pesquisas, excluindo a perspectiva de uns em detrimento da de outros. Ela toma como exemplo o ensaio de uma menina com deficiência visual que deveria representar uma bailarina, mas que ali está a ser orientada por videntes e sem conseguir mostrar com seus gestos aquilo que eles lhe propõem.

O fato de que a menina “não entendesse o que era fazer direito a bailarina” não é, pois, sem importância. Tratava-se de um acontecimento relevante na medida em que abria a possibilidade para que a menina fosse interpelada não como um sujeito dócil, passivo às intervenções. Como Despret (2009) sinaliza, pesquisar com o outro implica tomá-lo não como “alvo” de nossas intervenções. Não se trata de tomar o outro como um ser respondente, um sujeito qualquer que responde às intervenções do pesquisador (Moraes, 2010, p. 31).

Despret (2009, citada por Moraes, 2010) propõe o conceito de mal-entendido promissor para tratar dos novos agenciamentos possíveis a partir do encontro, das novas versões daquilo que o outro pode fazer. Ele vai abrir espaço para a variação, a instabilidade e, podemos acrescentar, a crise. Neste texto e nas produções científicas de seu grupo de pesquisa, Moraes propõe a metodologia do PesquisarCom, onde os sujeitos da pesquisa têm uma presença ativa nas produções do pesquisar.

Sentidos da experiência

Os dilemas e as vicissitudes do trabalho de pesquisar juntos na composição de saberes distintos nos levam a pensar na noção de experiência conforme trazida por Foucault (Foucault, 1978; Pelbart, 2014). O autor traz um contraponto entre o entendimento da experiência a partir da fenomenologia e aquele apresentado por autores como Nietzsche, Blanchot e Bataille. Para os fenomenólogos, há uma busca de reconstituir a experiência cotidiana como forma de resgatar o sujeito, entendido como transcendental. Trata-se de extrair as significações da experiência a partir desta dimensão subjetiva. De maneira radicalmente diferente, a experiência em Nietzsche, Blanchot e Bataille tem como função arrancar o sujeito de si mesmo, em um processo que requer o máximo de intensidade, e que beira o “invivível”, ou aquilo impossível de viver, a experiência do limite. A experiência aí é um empreendimento de des-subjetivação, de impessoalidade.

Estas duas formas de entender a experiência têm influências distintas sobre as tendências contemporâneas que buscam reafirmar o lugar da experiência na construção do saber, e na valorização dos saberes menores. Pode-se, por um lado, entender a experiência como remetendo a um sujeito transcendental e, nesse sentido, valorizar a experiência significa reafirmá-la como verdade última, aquela que diz do sujeito, e que deve ser reintroduzida no conhecimento científico como forma de reconectá-lo com uma verdade da qual se afastou. Neste sentido vão as propostas de valorização da “voz” dos usuários das políticas públicas, voz última, final, que se assemelha àquela do “cliente”, aquele que sempre tem razão. Reivindicações de cunho identitário também se sustentam em afinidade com esta linha, pois reclamam uma experiência específica que deve ser a única a autorizar determinados discursos de resistência.

Por outra via, no entanto, vão as propostas de valorização da experiência no sentido cartográfico, da profanação dos saberes, do devir-pesquisador, dos litorais. Estas visam produzir experiências singulares de encontro, de afetação mútua, de alteridade, em que não se busca extrair essências da experiência, afirmar identidades, mas sair de si em direção a outra coisa, tornar-se outro. Não deixamos de reconhecer que são processos difíceis, tensos, porque buscam justamente operar cortes nas relações de saber e poder que nos constituem a todos, em relação às quais nunca estamos em exterioridade. Mas apostar nessa dimensão da experiência é não desistir de sempre produzir deslocamentos em uns e outros, nós e eles, e assim produzir novos saberes a partir do encontro.

 

Produção de conhecimento a partir da experiência do encontro

No terreno da produção de conhecimento científico temos diferentes paradigmas a sustentar diferentes práticas e teorizações. Estamos aqui a pensar em um determinado campo - o da Psicologia Social - e trazer para cena situações que o problematizam em suas verdades e certezas. O cientificismo mais usual, calcado nos preceitos positivistas de pesquisa, não nos interessa de antemão, pois nossa intenção é aprofundar, numa inspiração genealógica, um debate a respeito das condições de possibilidade para que os já nomeados saberes menores possam incorporar-se à produção acadêmica.

Trazemos ao texto duas experiências recentes de pesquisa desenvolvidas no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), onde nos encontramos atualmente. Pensamos que, com elas, podemos dar contornos mais concretos a alguns dos conceitos aqui desenvolvidos, e assim problematizar os dilemas e efeitos que se produzem a partir do encontro entre saberes acadêmicos e saberes locais ou menores.

A primeira diz respeito a uma pesquisa elaborada em parceria entre a universidade e uma associação de defesa dos direitos dos usuários de serviços de saúde mental, no ano de 2015. A proposta foi fazer uma pesquisa para saber o que os usuários da região metropolitana de Porto Alegre esperavam de uma associação, pois a associação estava ainda se estabelecendo e planejando suas ações. Dessa forma, a pesquisa foi realizada pelos usuários com o apoio de alguns estudantes de graduação e pós-graduação da UFRGS (entre os quais, uma das autoras deste texto, Carolina S. Chassot). A segunda experiência ocorre no mesmo ano, quando a dissertação intitulada “Autonomias errantes: entre modos de ser auto-impostos e possibilidades de invenção de si” (Zambillo, 2015) teve, pela primeira vez no referido programa, uma pessoa sem formação acadêmica compondo a banca avaliadora. Lado a lado com os professores-doutores, esta pessoa foi convidada a ali estar devido ao seu lugar ocupado junto ao grupo de pesquisa, de usuária-pesquisadora. Tal composição da banca foi efeito do próprio desenrolar do percurso da pesquisa, envolvendo uma constelação de projetos de pesquisa-intervenção referidos à Gestão Autônoma da Medicação - GAM (Onocko-Campos et al, 2013), sobre o qual traremos mais alguns elementos a seguir.

 

Uma associação pesquisante

A proposta foi, desde o início, pesquisar juntos. Para o grupo de associados, se fazia importante saber para que a associação deveria servir, na opinião dos usuários.

Muitos de nós tivemos experiências difíceis de vida: internações, discriminação, sensação de ser preso, de não poder decidir sobre a própria saúde, sobre a própria vida. Criamos a associação para ajudar a nós mesmos e uns aos outros, e tínhamos uma curiosidade para saber o que os outros usuários ou ex-usuários, de fora da associação, pensavam e viviam, e ver se era parecido com as nossas experiências. (Toríbio et al, 2015, p. 2)

Para os universitários, comprometidos com a metodologia cartográfica de pesquisa-intervenção, a pesquisa foi pensada como um dispositivo capaz de mobilizar as relações de saber-poder instituídas entre usuários, profissionais e acadêmicos, e que eram reproduzidas dentro da associação da mesma forma que nos espaços de cuidado. Assim, a instauração de um processo de pesquisa ampliado ocorreu desde as primeiras decisões a respeito do que pesquisar e para quê pesquisar. Nos momentos iniciais, o grupo se confrontou com dúvidas sobre as capacidades de cada um e sobre a pertinência de um coletivo híbrido como o nosso se envolver com uma atividade normalmente restrita aos “doutores”. Será que poderíamos realmente fazer uma pesquisa? Um dos participantes questionou: “se até o Ibope faz, porque nós não podemos fazer?”. Aquele “por que não?” possibilitou que se construísse um sentido novo para aquela atividade.

Inicialmente, os associados entenderam que os acadêmicos estavam ali para entrevistá-los, e não para pesquisarem juntos. Este mal-entendido promissor não apenas evidenciou o peso histórico dos lugares de cada um dos envolvidos na pesquisa (acadêmicos e usuários), mas foi também operador de deslocamentos. A partir desta confusão inicial, o grupo pôde falar de seu desejo de responder a determinadas perguntas que nunca eram feitas nas pesquisas - perguntas que, no entanto, eles mesmos se faziam o tempo todo. A pesquisa passou a ser direcionada pelas perguntas que inquietavam, perguntas interessantes como, por exemplo, sobre o lugar do dinheiro na vida, sobre as experiências de preconceito, sobre a vontade de ser psicólogo ou sobre as atividades que ajudam a relaxar a mente. As perguntas produziam, assim, verdades diferentes daquelas que sempre se produzem nas pesquisas, modificando os lugares de saber estabelecidos.

O processo de pesquisar instaurou neste grupo uma espécie de “máquina de fazer perguntas” quando circunscreveu um novo espaço, dedicado à produção de conhecimento a partir de lógicas diversas da lógica científica hegemônica. Essa proliferação discursiva foi o início de um processo de desterritorialização coletiva, onde os “usuários” se aventuraram por caminhos para eles inesperados, e os “ acadêmicos” viram suas próprias questões e problematizações serem totalmente transformadas. Neste sentido, o processo de pesquisar juntos não foi um instrumento para revelar um saber pré-existente constituído na experiência do “usuário”, ou para transmitir o conhecimento acadêmico a um público “leigo”. Ao invés disso, operou como dispositivo que construiu ativamente um outro saber, e que neste processo operou deslocamentos em todos. Um dispositivo que produziu outras realidades, dispositivo performativo na produção de subjetividade através do encontro e da afetação mútua.

As relações de saber-poder entre “acadêmicos” e “usuários” foram assim sofrendo perturbações importantes. Foi possível, por exemplo, conversar sobre a vontade daqueles que se encontravam no lugar de “usuários” de poder estudar sobre saúde mental como os “psicólogos”, tanto para compreender a si mesmos quanto para cuidar daqueles que se encontravam em situações semelhantes. Da mesma, forma, aqueles que se encontravam no lugar de “psicólogos” reconheciam que desejos muito parecidos de se auto-compreender e cuidar havia impulsionado a escolha pela profissão, e que também eles ocupavam o lugar de “pacientes” em muitos momentos. Ao mesmo tempo em que nos desterritorializávamos, este processo nunca era puro ou completo. Havia momentos em que a máquina cessava: os “usuários” se calavam, os “acadêmicos” direcionavam o trabalho e tomavam as decisões, e todos retornavam aos seus lugares usuais. A dinâmica instituinte-instituído, molar-molecular operava o tempo todo.

A proposta de se fazer conjuntamente uma “pesquisa” operou às vezes como um dispositivo potente, às vezes como um enquadre limitador. A partir das conversas e discussões no grupo, optou-se por seguir certos princípios formais, de maneira que a pesquisa fosse reconhecida como válida perante a comunidade científica e a sociedade de maneira geral. Por este motivo, a pesquisa tomou forma de uma enquete, a qual foi realizada a partir de entrevistas estruturadas. Não deixou de operar, portanto, uma certa subordinação ao método científico, com todos os procedimentos que aí estão envolvidos. No tempo-espaço do grupo de pesquisa, era preciso por vezes optar entre seguir as derivações que se produziam incessantemente, ou ater-se a um determinado roteiro de atividades previstas pelo método escolhido. Uma relação sempre tensionada, que não deixa de sinalizar uma cisão entre formas tradicionais e inventivas de pesquisa, se fez presente ao longo do processo.

Esta tensão também ocorreu durante a apresentação do trabalho de pesquisa, em junho de 2016, no Instituto de Psicologia da UFRGS. Um momento importante, que marcou o encerramento de um longo trabalho e a publicização dos resultados da pesquisa frente a um público de pesquisadores, estudantes, usuários e trabalhadores da saúde. Foram escolhidos como apresentadores dois pesquisadores “usuários”, e como mediadora uma pesquisadora “acadêmica”, que deveria dar o apoio necessário aos apresentadores (apreensivos em sua primeira fala pública direcionada ao público universitário). A abertura do evento, que seria feita pela mediadora, foi “tomada” por um dos apresentadores, que antes de ser apresentado levantou-se e tomou a fala para si. Este acontecimento denunciou a redundância daquele lugar de mediação acadêmica, que se tornou subitamente desnecessário em sua função explicativa. Ao mesmo tempo em que cai, o lugar de mediação também retorna, quando, em determinado ponto da discussão com o público, uma pesquisadora acadêmica sente a necessidade de “explicar” a fala de um “usuário” que lhe parecia ininteligível. Estes pequenos movimentos demonstram um processo de luta micropolítica que não deixa de se fazer presente em todo ato de produzir conhecimento, mas que se torna mais explícito quando nos arriscamos a fazê-lo em contato com a alteridade. Há que se saber habitar este paradoxo e estar disposto a deixar-se arrastar pelo inusitado do encontro para que um saber menor se produza, em toda sua minúscula enormidade.

Pesquisar e mudar lugares

A Gestão Autônoma da Medicação foi um projeto multicêntrico iniciado em 2009 em parceria com o Canadá, através da Alliance de Recherches Universités - Communautés Internationale – Santé Mentale et Citoyenneté/Aliança Internacional de Pesquisas Universidades-Comunidades – Saúde Mental e Cidadania (ARUCI-SMC), sob coordenação geral da Unicamp, envolvendo também a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), a Universidade Federal Fluminense (UFF) e a UFRGS. Esta aliança entre instituições de nível superior e organizações enraizadas nas comunidades tem visado à produção de conhecimentos e pesquisas inovadoras, com intuito de qualificar as práticas, os serviços e as políticas de saúde mental. Sua metodologia é centrada na participação ativa dos atores envolvidos, independente do segmento a que pertençam (se pesquisador, profissional, gestor, usuário ou mesmo familiar). Assim, prevê a participação de pessoas diagnosticadas com transtornos mentais graves, em todas as suas instâncias de decisão – desde o planejamento e a execução, até a avaliação de seus processos. Dois produtos das pesquisas GAM vêm sendo amplamente utilizados, não apenas nos estados envolvidos na etapa inicial do projeto, mas em várias outras regiões do país. São eles a versão brasileira do Guia GAM1 e o Guia do moderador2, ferramenta esta que auxilia e dá direções aos condutores de grupos de intervenção nos serviços de saúde mental e na atenção básica.

Entre outros, a experiência vem colhendo efeitos interessantes no que diz respeito ao envolvimento de usuários dos serviços de saúde mental em situações ainda inusitadas, se considerado o paradigma hegemônico da pesquisa científica.  Uma delas, bastante emblemática, foi a já citada participação de uma “usuária” na banca de avaliação de uma dissertação, a qual estava sustentada em sua experiência com o uso de medicamentos psiquiátricos e em serviços de saúde mental. Todos os participantes da pesquisa - usuários, familiares de usuários, docentes, discentes ou gestores -, eram considerados pesquisadores, a partir de diferentes lugares de expertise. O lugar dos “usuários”, no caso, seria o do saber encarnado, de vivências que lhes eram particulares, de um lugar que só eles haviam até então ocupado entre os diferentes pesquisadores.
No caso da composição da banca de Mestrado, foi preciso reinventar e reconfigurar o seu formato habitual: ao invés dos já esperados três membros, a usuária ocupou o lugar de um quarto, membro comunitário. Desta forma, estavam resguardadas as exigências formais, mas incluía-se também um novo elemento, algo que diferiria criando uma nova zona de possíveis.

Marciana Zambillo (2015), autora da referida dissertação, descreve a GAM como uma metodologia participativa de se fazer pesquisa em saúde mental que termina por, muitas vezes, borrar o lugar dos sujeitos de pesquisa. Esta transformação das relações tradicionalmente instituídas foi efeito de um trabalho anterior, envolvendo os diversos atores desde o início do projeto multicêntrico.  Zambillo (2015) apresenta o relato coletivo escrito a seis mãos sobre a experiência de uma viagem ao Quebec/Canadá realizada em 2013 para estudos e trocas com os parceiros estrangeiros. A viagem concretizou-se a partir da demanda dos próprios usuários que, nas reuniões multicêntricas do grande grupo, manifestaram fortemente seu interesse por conhecer a terra daqueles que inspiraram a pesquisa GAM no Brasil. Estas reuniões aconteceram durante todas as etapas da pesquisa desenvolvida entre 2009 e 2014 e contaram com a participação dos diferentes segmentos já citados, representantes dos locais nos quais as experiências eram desenvolvidas.

Portanto, ainda que não estivesse prevista no início da empreitada, a intervenção dos usuários reposicionou o grupo e seu entendimento acerca da importância que este deslocamento geográfico poderia produzir. Ao narrar os preâmbulos da viagem, são descritos inúmeros momentos onde a tensão de buscar compor entre as diferentes vozes e desejos se fez presente ao mesmo tempo em que se fez potência. Os rumos do trabalho foram sendo delineados à medida que ele ia se dando, não sem medo, não sem ansiedade ou dúvida. O exercício de gestão compartilhada entre os saberes se faz ali evidente, numa reflexão conjunta e contínua, apontando os momentos onde a condução se produzia no próprio processo:

Para a referida viagem, a coordenação do projeto ARUCI-SMC no Brasil disponibilizou ao Comitê Cidadão Brasileiro (formado unicamente por usuários de saúde mental e familiares, sendo secretariado por trabalhadores e discentes) verba para custear passagens e diárias de cinco dos seus usuários. Pudemos debater a questão numa reunião presencial multicêntrica, realizada em Campinas, e deliberamos pela contenção de gastos com diárias, se pudéssemos, então, contar com a ida de mais pessoas, todas as que quisessem. Lembro-me, nesse dia, da Beth3 falando: “Onde comem cinco, comem oito”. (Zambillo, 2015, p.12)

São vários os momentos registrados em teses e dissertações referidas à GAM onde as diferentes instâncias de saberes compõem um campo de forças e, com isso, produzem tensionamentos. Um deles se deu quando um dos usuários solicitou receber um salário fixo por sua participação na pesquisa, uma vez que os demais - docentes e discentes - estavam ali sendo remunerados: “de que adianta me levarem para viajar, dormir em hotel, se eu volto pra casa e não tenho dinheiro pra pagar a conta de luz, comprar comida” (Silveira, 2013, p. 69). Neste momento, buscou-se a possibilidade de remunerá-lo por uma tarefa de escrita, mas esta tornou-se impossível pela dificuldade do usuário em utilizar o computador e pela dificuldade do grupo de pesquisa em dispor do tempo necessário para auxiliá-lo. Nas palavras de Marília Silveira: "Isso levou a um impasse: não havia outra tarefa de pesquisa que, naquele momento, pudesse ser entregue a ele, como houve antes, no grupo de intervenção. De alguma forma, chegava-se a um limite nessa interação entre usuários e acadêmicos" (p. 69). A autora conclui:

O que nós podíamos oferecer era que ele seguisse acompanhando as reuniões multicêntricas, as viagens, pelas quais poderia receber, posto que eram viagens de trabalho, mas isso não resolveria o problema de não ter um salário constante. Ali a diferença se chocava com a impossibilidade. Esbarrava na condição social, educativa, aquilo a que ele podia ter acesso e ao que não podia. (p. 70)

Um artigo publicado pelo grupo GAM em 2013 (Palombini e cols, 2013), discute as  relações entre pesquisa e clínica no contexto do trabalho de investigação quando os usuários do sistema de saúde mental e seus familiares são situados também no lugar de pesquisadores. O artigo traz narrativas acerca de situações vividas na pesquisa que colocam em jogo modos distintos de articulação entre pesquisa e clínica de forma a problematizar suas fronteiras. Sugere que se pense então em litorais, uma zona em que os limites se tornam indiscerníveis, requerendo um trabalho comum, o compartilhamento e o acompanhamento mútuo das ações da pesquisa.  Situações onde a pesquisa pode mobilizar e intensificar a clínica e vice-versa.  Apontam os autores que, diferentemente do que numa concepção tradicional de pesquisa qualitativa se afirma - que a relação clínica prévia entre pesquisador e sujeitos da pesquisa constitui grave limitação ao estudo - na pesquisa-intervenção com pessoas com transtornos graves em saúde mental, cabem outras considerações. Finalizam dizendo que “mudar de lugar muda o lugar”, pois as trocas de saberes entre os diferentes atores que compuseram a cena da pesquisa permitiram a cada um experimentar uma mudança de lugar no que diz respeito à subjetividade, bem como experimentar uma construção coletiva antes desconhecida.

Desfechos

Cumpre dizer que buscamos afirmar a potência da produção de conhecimento a partir da experiência do encontro, entendendo que tal experiência será sempre singular, com uma historicidade que se localiza num campo de saberes, que explica algo da vida. Além de encontrar sentidos que explicam, a própria experiência é também produtora de novos sentidos. Os saberes produzidos são inconclusos, abertos aos desvios dos caminhos que a própria experiência leva a percorrer. Desta forma, contrapõem-se à perspectiva recorrente dos sentidos normativos, expressos em dualismos como o saudável e o doente, o produtivo e o improdutivo, o inteligente e o ignorante, o nobre e o vulgar, o funcional e o louco, o científico e o leigo.

A hierarquia estática, na qual os saberes acadêmicos são valorizados e os saberes locais são questionados ou invisibilizados foi problematizada por meio das experiências apresentadas, mas, de modo algum, nosso intuito foi a resolução de tais assimetrias. Mais que isso, buscamos evidenciar a tensão presente no campo da saúde mental que, historicamente, manteve uma assimetria em relação aos saberes sobre a loucura. O efeito pretendido é o da promoção de ruídos no campo de produção de saberes nas políticas públicas, afirmando um método de pesquisas acadêmicas em psicologia social que possa provocar descompassos nas máquinas de produção de verdades sobre as vidas “menores”.
Havendo interesse na produção de deslocamentos, o devir-pesquisador pode habitar o corpo dos que tradicionalmente ocupam o lugar de sujeitos-pesquisados. Ao pesquisar no encontro com os saberes “menores”, ao deixar-se afetar por este devir-minoritário, ao produzir-se também como saber menor, nos deparamos com o efeito da experiência e, consequentemente, com a possibilidade do próprio pensamento, que só se efetiva raramente, através do choque que esse encontro produz (Deleuze, 1988).

Gabriel Tarde afirma que o pensamento de majoração de um determinado estrato de conhecimento deriva de um preconceito antropocêntrico, composto por estratégias de bom senso. O autor afirma que “julgamos os seres tanto menos inteligentes quanto menos os conhecemos, e o erro de acreditar o desconhecido ininteligente pode ir de par com o erro de acreditar o desconhecido indistinto, indiferenciado, homogêneo” (Tarde, 2007, p. 76). O encontro entre as partículas menores de saber e as demais acontece, assim, de modo assimétrico no que tange à organização da vida social. A maquinaria que coloca as estatísticas, os diagnósticos e os conceitos num plano estável de sentidos, em oposição aos saberes inverossímeis, desestabilizadores e inverificáveis busca, enfim, configurar um estado de pureza da verdade. Nas experiências de pesquisas apresentadas, a tensão entre a posição dominadora da Academia e os saberes dos usuários dos serviços de saúde mental esteve sempre presente. Por vezes, o desencontro surge como o reconhecimento dos saberes menores enquanto a revelação do desconhecido, como se a Academia estivesse adentrando em um terreno ininteligível. De outra parte, também há momentos de adequação dos saberes menores aos formatos científicos, buscando validar-se nas formas clássicas de saber.

Em todo o caso, os saberes menores não estão diretamente opostos aos saberes maiores. Os saberes se apresentam com possibilidades infinitesimais, tanto mais diversos quanto forem os arranjos cotidianos, alheios aos mecanismos de majoração de tal ou qual verdade. Assim como no trocadilho endereçado a Manuel Bandeira, o “menor” carrega dentro de si toda a enormidade do mundo.

Enfim, a própria escrita deste artigo, na forma como se apresenta - adequado aos moldes acadêmicos, com autores universitários que empregam uma linguagem tradicional, com partes dedicadas à teoria e outras à experiência - é um indício de que estamos em processo. Talvez estejamos ainda distantes da radicalidade necessária a novos modos de produzir conhecimento. Denunciamos em nossa linguagem a formação tradicional, a maioridade que compõe o nosso pensar. Mas também somos provocados a habitar o que entendemos como um constrangimento promissor, o qual questiona e aponta novos caminhos e, ao mesmo tempo, resguarda-se nos traçados disponíveis.



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Data de submissão: 21/10/2016
Data de aceite: 27/04/2017


1 O guia opera em grupos de intervenção como um dispositivo que busca o compartilhamento e a apropriação da experiência de adoecimento psíquico e de uso de psicofármacos, assim como de informações acerca dos medicamentos e direitos dos usuários de saúde mental. Buscava-se, com os grupos, o aumento da capacidade de negociação dos usuários com os médicos e demais trabalhadores dos serviços quanto às decisões sobre seu tratamento. Disponível em http://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/paganex/guia_gam_para_dowload_com_correcoes.pdf

2 Disponível em http://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/paganex/guia_gam_moderador_-_versao_para_download_julho_2014.pdf

3 Pesquisadora-usuária.


I Mateus Freitas Cunda: Psicólogo graduado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva pela Escola de Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul (ESP), Mestre e doutorando em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: mateuscunda@yahoo.com

II Lívia Zanchet: Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Residência Integrada em Saúde Mental Coletiva pela Escola de Saúde Pública do Estado do Rio Grande do Sul (ESP), Mestre e doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: liviazanchet@gmail.com

III Carolina Seibel Chassot: Psicóloga graduada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Especialista em Residência Integrada em Saúde pelo Grupo Hospitalar Conceição (GHC), Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: carolchassot@gmail.com

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