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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2017

 

CONFERÊNCIA

 

A transversalidade como estratégia de qualificação do trabalho acadêmico: observando o dispositivo Temas em Debate do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da UFRGS

 

Transversality as a valuation strategy for academic work: the dispositif of the Topics under Debate Symposium of the Graduate Program in Social Psychology of UFRGS under observation

La transversalidad como estrategia de calificación del trabajo académico: observando el dispositivo Temas en Debate del Programa de Postgrado en Psicología Social de la UFRGS

   

 

Eduardo PassosI

I Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil.

 

 


 

A praxe é sempre iniciarmos agradecendo, mas o convite que me foi feito pela organização do Temas em Debate é de tamanha excepcionalidade, que eu não sei se para um desafio dessa monta a resposta é agradecimento. Embora grato, não é bem um agradecimento o que faço agora. Fico instigado por essa tarefa que não pode se realizar senão na forma de um improviso, de uma jam session. Uma experiência que, para ser jam, é “jazz after midnight”, mas é também geleia, uma sessão que só pode ser efetiva se puder produzir alguma forma de mistura: o modo como eu me misturei com o que foi apresentado no debate realizado hoje, e o modo como vocês também poderão participar dessa experiência coletiva de um improviso analítico. Foi-me encomendada a tarefa de ser observador analista do encontro Temas em Debate. Temos um tema, como toda jam session, e a partir desse tema vamos produzir modulações, variações. Teremos que fazer um esforço de seguir o tema. Estendo, então, esse convite, que vocês certamente não precisam agradecer, para estarem comigo no exercício dessa jam.

Comecemos falando propriamente do que mais me chama a atenção, que é a natureza do dispositivo que foi aqui armado. Esse dispositivo, do qual eu participo pela primeira vez, tem uma complexidade e produz uma perturbação que me parece não poder passar em branco. Primeiro porque, trata-se de um dispositivo do programa de pós-graduação, com características específicas. O evento consiste na discussão de textos escritos em grupo reunindo alunos do segundo ano do doutorado a partir de temáticas transversais a seus respectivos projetos de tese. Esta atividade é parte da disciplina Teorias e Métodos em Psicologia Social III que tem por finalidade a elaboração de um dossiê para a Revista Polis e Psique, com artigos dos doutorandos e dos convidados a debater tais temáticas, os professores Luis Antônio Baptista e Marcia Moraes da UFF e a professora Roberta Romagnoli da PUC/MG. Os encontros da disciplina ocorreram mensalmente numa dinâmica em que cada grupo devia enviar com uma semana de antecedência o texto para que os colegas dos outros grupos pudessem fazer um comentário crítico por escrito do mesmo. Os textos foram reescritos a partir dos comentários dos colegas e da discussão realizada em aula e, no mês seguinte, foi feito um novo encontro com as mesmas características do anterior.

O Temas em Debate deste ano foi organizado em torno de três temáticas transversais ao campo da Psicologia Social contemporânea: 1. Imagem e Ficção; 2. Os Sentidos da Experiência; 3. Crise, Crítica e Clínica. Os doutorandos dividiram-se em duplas ou trios em torno destas temáticas e escreveram um texto em conjunto no primeiro semestre de 2016.  Estes textos foram enviados para os convidados debatedores a fim de que eles também escrevessem um texto para compor o dossiê da revista, tomando as temáticas acima como disparadoras de sua escrita. Fui convidado inicialmente para debater e escrever um artigo sobre a temática "Crise, Crítica e Clínica".

Senti-me logo instigado, naquele primeiro momento do convite, pela proposta do evento que me pareceu muito interessante. Na verdade, esse procedimento de construção coletiva de textos, foi experimentado por nós na elaboração dos dois volumes do Pistas do método da cartografia (Passos, Kastrup, Escóssia, 2009; Passos, Kastrup, Tedesco, 2014), trabalho que me deu muita alegria não só pelo seu resultado e repercussão, mas sobretudo pelo modo como foi construído. Quanto à escolha do tema a mim indicado para debater, ela confirmava a sintonia que sempre houve entre o que fazemos na UFF, universidade onde trabalho, e as pesquisas realizadas no programa de pós-graduação da UFRGS.
A organização do evento propôs que, para a apresentação de cada temática, os alunos teriam em torno de 20 minutos de exposição de seus textos; já os debatedores, 40 minutos para fazerem suas considerações sobre o texto dos alunos e apresentar o seu texto. Cada sessão teria, ao final, 30 minutos para o debate.

Dois meses depois do convite inicial, a organização do evento decidiu inovar neste ano, criando um novo personagem: o convidado que, ao longo do dia, acompanharia a discussão em torno dos três temas e, ao final do encontro, apresentaria suas observações a partir de suas próprias afecções frente ao que aconteceu nos debates transversais. Propuseram que eu fosse este observador analista que, ao invés de ficar com uma fala voltada a um dos temas do evento, ao final, procuraria traçar um plano de composição a partir do que foi debatido ao longo do dia. Comentaria o que aconteceu a partir do que sentisse: esse foi o convite.

Para o cartaz do evento, escolheram-se como imagem as maçãs de Cézanne. Essa escolha não me pareceu trivial e ajudou-me a entender a tarefa que deveria realizar. Escolher Cézanne é fazer uma aposta num regime expressivo e numa certa maneira de pensar a realidade, diríamos então, pensar de maneira sensível. Sabemos que esse pintor forneceu as bases da transição do fazer artístico do século XIX para o século XX. As maçãs de Cézanne formam a ponte entre o impressionismo e o cubismo. Nas suas naturezas-mortas, compostas por maçãs, realizou uma exploração formal exaustiva que subvertia a perspectiva para ressaltar o volume e peso dos objetos, através da exacerbação da cor com seus claros e escuros. A luz e a sombra compunham mais do que a linha formal.

O chiaroscuro foi uma das estratégias inovadoras da pintura renascentista do século XV, fazendo o contraste entre luz e sombra na representação de um objeto. Tal regime de visualidade define os objetos sem usar linhas de contorno, mas principalmente pelo contraste entre as tonalidades, refutando, de certo modo, a linearidade racionalista, característica da pintura do Renascimento. A problematização do jogo de luz e sombra como revelador da imagem é intensificada pelos artistas do Barroco e retomada na sua radicalidade por Cézanne que perseguia a “eloquência calada” das coisas, para usarmos a expressão de Gadamer (1998). Tal eloquência pressupõe o interesse do artista pelo que vem da coisa, mais do que o seu significado ou simbolismo. A imagem calada é aquela que não admite outra comunicação que não a da sua visualidade. A obra não se define a partir do que posso interpretar como um subtexto que traz o seu sentido discursivo. A maçã é uma maçã que expressa sua própria autopresentação. Por isso a arte barroca da natureza-morta antecipa as maçãs de Cézanne e as imagens serigrafadas da lata de sopa de Andy Warhol. A aposta estética é não interpretativa e não declamativa. É a coisa que diz de si, havendo, portanto, uma força de enunciação nela: sua eloquência. 

Como, seguindo essa indicação estética do cartaz do evento, entendermos a tarefa do comentário avaliativo sobre os textos? Como comentar textos que deveriam ser tomados em sua força enunciativa?


***

O evento foi o resultado de uma disciplina que convida os doutorandos a escreverem e publicarem. No convite está embutida a adesão às políticas indutoras da produção acadêmica, política a que nós só concedemos em alguma dose inevitável. Temos que produzir para garantir legitimidade à nossa habitação do território da cidade científica, mais especificamente do território da pós-graduação em psicologia. Habitá-lo para ali produzir alguma forma de perturbação e transformação. Mas certamente toda habitação cobra um preço. Esse preço é o de uma mínima interlocução com os pressupostos hegemônicos da cidade científica, como, por exemplo, o pressuposto de que a comunicação científica se faz a partir de textos “qualis”. O que significa isso? O pressuposto é o de que nos comunicamos através de textos qualificados pelo ritual acadêmico.

Alguns de nós já estamos há muitos anos na universidade. Eu estou há muitos anos e participei do processo de criação da pós-graduação na UFF que se inaugurou em 1999. Sou um daqueles que se surpreendeu com a velocidade de absorção da pós-graduação em psicologia à lógica produtivista própria do capitalismo também presente no mundo científico. Há um capitalismo cognitivo e um capitalismo universitário igualmente veloz. Ele foi, por exemplo, muito veloz ao absorver e cooptar o modo como, na década de 1990, criticávamos os parâmetros estritamente quantitativos de avaliação da pós-graduação. Inicialmente devíamos informar quantos textos havíamos produzido. Ouvia-se a indignação nos corredores da universidade: “mas é um absurdo sermos avaliados com parâmetros estritamente quantitativos!”. Reclamamos e após algum tempo, não muito tempo, veio a resposta: “ah, perfeitamente! Vamos construir então parâmetros qualitativos de avaliação acadêmica”. Criou-se um parâmetro de avaliação qualitativa da produção acadêmica. Nossa produção passou a ser avaliada por seus indicadores “qualis”.

O processo de aprimoramento e formalização dos parâmetros de avaliação da produção acadêmica não pode ser estancado. Trata-se de um processo que não tem volta, pois cresce o número de programas de pós-graduação em uma proporção desnivelada com o crescimento das verbas públicas para apoio a estes programas. É preciso critérios cada vez mais rigorosos para permitir apenas para poucos as parcas verbas. Colegas muito engajados na Psicologia se dedicam, num trabalho hercúleo, a organizar os dados da área e aplicar com objetividade e critério as regras de avaliação que vão consolidando políticas indutoras do crescimento da produção da Psicologia. O resultado é que precisamos sempre produzir mais. A luta pelo direito à cidadania acadêmica e pela manutenção de um espaço propício para o pensamento e, sobretudo, para a liberdade do pensamento, tem algo de infinitivo. Manteremos doravante uma conversa infinita sobre essas questões. Um ponto importante é que os interlocutores de nossa conversa infinita nem sempre podem ser escolhidos por nós. Por isso, a importância de um dispositivo como o Temas em Debate no qual a conversa infinita é realizada com convidados escolhidos.

Esse dispositivo tem uma dose inevitável de concessão ao produtivismo e sua política indutora. Em vários programas, por exemplo, os alunos de pós-graduação stricto sensu, sobretudo os doutorandos, não integralizam os créditos sem a publicação de pelo menos um artigo em periódico qualis. Esse dispositivo do programa da UFRGS induz a produtividade no grupo discente, mas de uma maneira especial. Quero destacar o modus operandi, a máquina operatória do Temas em Debate.

Esse dispositivo tomado na sua dimensão operatória, portanto como uma máquina, deve ser pensado no seu arranjo de produção. Rosane Neves, como organizadora do evento, começou a sessão hoje, apresentando essa máquina indutora de práticas de escrita compartilhada a partir de temas transversais.

Trata-se, de fato, de uma máquina não só de escrita, mas também de comentário. O comentário ganha o sentido estratégico de qualificar o texto, integrando o processo de escritura desde sua primeira versão: um comentário qualis. Temos a aposta na indução da produção acadêmica, com um modus operandi que cria uma prática de escrita que: 1) se coletiviza por uma sequência de comentários e 2) se quer transversalizante, na medida em que ela não é uma síntese do trabalho a ser defendido pelos doutorandos, mas os convoca a escrever sobre um tema transversal ao deles. Eis uma primeira inflexão que o dispositivo promove, se desviando da forma mais canônica das políticas indutoras da pós-graduação que enfatizam o conhecimento especialista. Faz-se um desvio ao se propor que a escrita do pós-graduando se realize coletivamente e inclua um tema que lhe seja transversal. A transversalização do tema gera uma escrita que se faz em uma zona de comunicação entre heterogêneos, abrindo a discussão da pesquisa do discente para o que está fora do que ele a princípio delimitou. Transversalizar, segundo Guattari (2004), é ampliar o grau de abertura comunicacional intra e intergrupos, permitindo a construção de um comum entre heterogêneos. Tal construção só se faz mediante nossa capacidade e possibilidade institucional de habitar a zona limiar entre mim e o outro.
Ouvindo os trabalhos e comentários apresentados hoje, concluo que estamos criando coletivamente um universo conceitual e um vocabulário. Há algumas ideias insistentes que apareceram ao longo desse debate, uma delas é a de “zona limiar”. A zona limiar é o regime sensível chiaroscuro em que os textos se expressam, onde experimentamos a indecidibilidade, inespecificidade e impessoalidade que obscurece as nossas expectativas de total esclarecimento do tema em debate. Esse regime sensível também incide aqui sobre o que se esperaria como atividade avaliativa qualificadora dos textos.

Essa máquina de escrita pede comentários, não propriamente avaliações, não propriamente pareceres. Essa é uma diferença importante do dispositivo da UFRGS, porque os textos acadêmicos passam habitualmente por um ritual em que o comentário aparece como avaliação raramente à viva voz. Os pareceres aos textos acadêmicos se assentam frequentemente no pressuposto da avaliação cega, ou seja, estou sendo avaliado sem saber quem me avaliou e eu avalio sem saber quem estou avaliando. O pressuposto é o da avaliação neutra, porque não localizada. Eu não localizo a avaliação, seja do ponto de vista de quem é avaliado, seja do ponto de vista de quem avalia. O comentário, então, paira, tal como um pensamento decolado da experiência concreta, sobre os textos avaliados. Aqui na UFGRS, diferentemente, a avaliação é à viva voz, colocando-se o avaliador diante do avaliado e estimulando-se a agonística intrínseca ao trabalho do pensamento e ao trabalho avaliativo na cidade científica, mas agora num jogo chiaroscuro, gerador da tensão avaliativa, habitualmente não explicitada nos processos de avaliação, só sofrida. Quem está habituado à vida acadêmica sofre essa tensão que se apresenta de maneira muito parecida à angústia, um mal-estar ilocalizável. Não sei de onde vem o mal-estar, sinto uma tensão, mas não sei quem a gera. Não consigo endereçar minha reclamação pelo mal-estar porque ele vem de um topus uranus, de um sistema avaliativo que é heroico nesse sentido homérico do termo, invisível e não localizável tal como foi o herói grego Ulisses para escapar das mãos gigantes do ciclope Polifemo. É Ninguém quem avalia.

Aqui na UFRGS o modus avaliativo se faz a partir de uma experiência à viva voz. E, consequentemente, sendo assim, esse dispositivo se apresenta como perigoso. Como observador analista, fiquei quieto no meu canto, ouvindo as apresentações e os comentários, e confesso que em alguns momentos me perguntava após a intervenção dos avaliadores: “e agora? O que vai acontecer?”.

A tensão presente no dispositivo era resultado do convite à transversalização. Como é que eu posso tornar minimamente compatíveis a diretriz metodológica da transversalidade e a prática avaliativa tal como ela se apresenta como exercício cotidiano na universidade. Juntar esses dois termos obriga ao rearranjo da prática avaliativa, à ressignificação do que entendemos por avaliar. Transversalidade pressupõe o que Guattari em 1964 designou como abertura comunicacional. A imagem que ele usa é a dos antolhos do burro que puxa a carroça. Transversalizar é abrir os antolhos permitindo que o animal olhe para além do que está estritamente à sua frente. Transversalizar é alterar a perspectiva por uma abertura da visão, o que não se faz sem um padecimento, na medida em que sou obrigado a deixar entrar no meu sistema de pensamento, no meu sistema avaliativo, muitas linhas de força.

Se a transversalidade é a diretriz da montagem desse dispositivo, necessariamente o que se tem como avaliação, como qualificação do texto, como política indutora para a produção vai ter que se haver com a tensão gerada pelo próprio dispositivo, com as forças que intervêm nele e perturbam o pensamento. Efetivamente serei obrigado a pensar porque forçado. Serei obrigado a pensar pelo que me perturba. O dispositivo performatiza, enquanto máquina intercessora, a dimensão agonística intrínseca ao exercício do pensamento.

O perigo, então, desse dispositivo é de gerar crise. E, se é assim, ele se faz efetivamente como um dispositivo crítico, na dupla acepção da palavra, porque obriga a arguição crítica do pensamento e gera crise. Nós assistimos hoje momentos de perturbação em que os envolvidos viveram certamente a experiência do abalo. A máquina intercessora gera abalo porque ela conjura qualquer abrandamento das tensões no território que estamos acostumados a habitar. Toda experiência territorial quando se torna habitual nos abranda, naturalmente. Quem é casado sabe do que eu estou falando.  Toda habitação de um território cria familiaridade. E a familiaridade é uma experiência de abrandamento de tensões, o que não deixa de ser prazeroso, embora o quantum energético, a intensidade da experiência se altera para uma versão mais branda. A habitação do território da pós-graduação em Psicologia Social da UFRGS produz, inevitavelmente, abrandamento. Daí, ser um mérito desse dispositivo perturbar esse abrandamento territorial. O exercício crítico intrínseco ao trabalho de qualificação, na acepção boa e forte do termo, gera crise e, nessa crise, o próprio dispositivo se afirma também como crítico e como clínico. A dimensão clínica do dispositivo dá um sentido positivo àquilo que faz padecer. A Psicologia Social da UFRGS, na sua existência abrandada pelo exercício costumeiro e familiar de habitação de seu território, nesse dispositivo, se perturba. Experimenta o padecimento da perturbação. Transversalizar é, em alguma medida, desestabilizar os nossos territórios. Não há como transversalizar sem o exercício de traição do que é familiar. E o exercício de traição aqui se faz como tradução. Ou seja, quando cada um dos professores convidados comenta o texto, ele o traduz, lendo o texto com um sistema de referência que é outro, forçando-o a se desfamiliarizar.

Um dispositivo com tal modus operandi da transversalidade é perigoso. Trata-se de um perigo que nos interessa, e creio que interessa em especial à Psicologia Social. Nos debates que se fizeram hoje esse era o fio condutor: no lugar da defesa de um território abrandado, propunha-se a defesa de um território em luta. Percebi certa obstinação em todos os trabalhos que se perguntavam: “Psicologia Social, o que é isso?”.  Será que esse ostinato é apenas a expressão sintomática de um aferrar-se ao território, ou é a definição de um território de luta, de disputa, que é preciso ser preservado e retomado como tal?

Transversalizar, como prática de traição de território, transversalizar, como exercício crítico do pensamento, como abertura do grau comunicacional dos grupos, como prática intercessora, perturbadora do pensamento, necessariamente gera crise. Há uma dimensão da crise que, fenomenicamente, é ruína, é derrubada, é desterritorialização. No entanto, toda experiência de desterritorialização guarda, pelo menos em gérmen potencial, abertura a processos de territorialização. Ou seja, não há como pensar processos de territorialização sem experiências de desterritorialização. Creio que pensar a Psicologia Social em um dispositivo como esse é apostar na criação de novos territórios para ela, a partir da afirmação da crise, isso que foi performatizado aqui hoje. Pôde ser performatizado porque essa ação crítica, que obviamente não se faz sem uma agressividade, sem uma dimensão agonística, vem acompanhada da atitude de cuidado, de acolhimento, do inclinar-se clínico.

O debate aparece nesse dispositivo como uma conversa infinita, tal como Tânia Galli nos fez lembrar, evocando a busca proustiana do tempo perdido, ou de algo que no tempo se perdeu. O que é que se perdeu no tempo, senão a sua própria potência inventiva? Essa dimensão poiética e criativa do tempo, sua dimensão ficcional, é intrínseca ao campo problemático que não se abranda na familiaridade, mas disputa sentido na aposta no processo de criação de um novo território para a Psicologia Social. É isso o que entendi do dispositivo.

Precisamos agora falar dos debates específicos.


***

“Imagem e ficção na produção de conhecimento em Psicologia Social” foi o texto de Alana Albuquerque, Felix Rebolledo e Tiago Trevizani. Nele se verificam os fios condutores do Temas em Debate: 1) a aposta metodológica ou o modo operatório da produção de conhecimento na Psicologia Social; 2) a agonística intrínseca ao processo de territorialização da Psicologia Social, que não pode se fazer sem uma experiência de desterritorialização; 3) o vocabulário da Filosofia da Diferença para pensar a produção de conhecimento na Psicologia Social. Há uma concentração conceitual que é correlata a certa contração do coletivo. O coletivo que se apresenta aqui se contrai por uma concentração do pensamento em torno dos conceitos da Filosofia da Diferença (Deleuze, 1988).

Tal concentração, por exigência desse próprio ideário, não pode se estabilizar de modo definitivo, virar um estado, o que, obviamente, coloca um desafio enorme para o pensamento que é obrigado a constantemente conjurar o que, na repetição de um território conceitual, tende a se estabilizar nos limites estritos da sua familiaridade. A Filosofia da Diferença é o nome fantasia dessa experiência do pensamento que tem que guardar uma indefinição. Não é à toa que esse texto teve como comentário o elogio da morte proposto pelo professor Luis Antônio Baptista. Luis faz um elogio da morte ao dizer: tudo bem, vamos pensar a imagem, vamos pensar a imagem com esses intercessores conceituais, com esses personagens teóricos, mas não podemos esquecer que é preciso deixar esse plano do pensamento com bordas indefinidas. É preciso não fechar o plano do pensamento, que tem que guardar certa incompletude, certa infinitude. É preciso poder morrer. Lembramos que essa é a consigna central no texto de 1964 de Félix Guattari “O que é transversalidade”: não há grupo sujeito que ascende à posição de fala, ou seja, que aumente o grau de abertura comunicacional se não suportar a sua própria morte. Guattari escreve numa sintonia blanchotiana, o que confirma a concentração do ideário da Psicologia Social da UFRGS. O trabalho dos três doutorandos discute imagens que não se querem como representações. São imagens poéticas, que se afirmam como criação, artesania, fazimento, fazedouro. Pressupõe-se, então, que a imagem faz, o que pode parecer muito estranho se acreditamos que a imagem representa, repete dada realidade, quando muito, indica, simboliza: ela não faz. É contra esse cânone do pensamento da representação que o texto toma a imagem como experiência poética.

Se a imagem é uma experiência poética, o que para os autores significa experiência ficcional, a relação dessa imagem com a sua origem tem que ser revista. Essa origem da imagem não é mais um referente, não é mais uma coisa dada. A origem não é uma coisa. E o que é a origem? Na verdade, seguindo a inspiração do precursor teórico da Filosofia da Diferença que é Nietzsche, não se deve buscar a origem (Foucault, 1979). No lugar da origem da imagem, buscar a emergência do sentido na imagem, isto é, o seu ato ficcional. Onde buscávamos a fonte pura, a origem de uma imagem, tem-se o inverificável da emergência do seu sentido. Daí, a exigência de suportarmos o que não se verifica, o indecidível, o que não se alcança definitivamente, em uma busca infinita.

Como se sustenta uma busca infinita, uma conversa infinita, uma origem inverificável? Como eu durmo com um barulho desses? Se dormimos, é porque sonhamos. E sonhamos porque o exercício ficcional é intrínseco. Intrínseco a quem? Falso problema, porque todo “quem” é efeito dessa ficção. Esse é o ciclo paradoxal ou ciclo criativo que a Teoria da Autopoiese designou como próprio da vida (Varela, 1991, 1983). Nesse sentido, quando tomamos a imagem emergindo da operação ficcional, descrever os processos de tecelagem da ficção, descrever suas tramas é descrever o objeto da Psicologia Social.

O objeto da Psicologia Social não é mais, propriamente, um estado de coisas. É, doravante, um processo de produção, uma trama ficcional. Produção não da excepcionalidade do sonho, mas produção da realidade onírica, da dimensão real do que é por nós sonhado. Dizer que o real é o real do sonho, o real da ficção, desestabiliza um ideal de inteligibilidade da cidade científica que tinha como real aquilo que eu descrevo na regularidade da lei: “a água ferve a 100 graus centígrados nas condições normais de temperatura e pressão”. O real é o que se apresenta sob a regularidade da lei. Quando se defende que o real é a tecedura ficcional, desterritorializa-se o ideal de inteligibilidade da ciência, provoca-se um processo de territorialização da ciência.

A Psicologia Social afirma o que a princípio seria o caráter negativo da sua condição minoritária frente às ciências naturais. Marcada pela indeterminação e pela contingência, inverte-se o negativo em positivo.  Donna Haraway (2009), pensando os movimentos de revolta de esquerda no contemporâneo, em especial, a revolta feminista, designa essa operação de inversão de “apropriação consciente do negativo”. É o que, por exemplo, acontece na “marcha das vadias” onde as mulheres invertem a atitude estigmatizante, constituindo-se como território identitário minoritário na afirmação da negação. A Psicologia Social, na perspectiva do texto de Alana, Felix e Tiago, parece exercer a mesma operação, se sintonizando com as revoltas do contemporâneo: faz uma apropriação consciente do negativo ao afirmar que é a indeterminação e a contingência o mérito da sua forma de conhecimento. Essa Psicologia Social não esconde o que poderia, aos olhos do majoritário, ser tomado, como sua vergonha.

No lugar da vergonha, o constrangimento crítico, por exemplo, quando é afirmada por Luis Antônio a absoluta inutilidade da literatura e, porque não, da própria Psicologia Social. Numa intensificação dessa experiência de desterritorialização, de não abrandamento da agonística do pensamento, afirma-se a inutilidade da literatura e da vida. A vida é vivida não por ser útil. E se há uma inutilidade da vida, há uma alegação da morte. Só há possibilidade de afirmar a inutilidade da vida se é possível defender a finitude.

A experiência da finitude se deu hoje por um interesse pelo que treme, pelo que vacila, pelo que claudica. Esses momentos de tremor me pareceram os mais fortes do nosso encontro. O elogio pelo trêmulo, pela finitude, pela morte tem certo encantamento angelical. É o Angelus novus na pintura do Paul Klee que descreve o anjo que não alça voo. Ele é alado, ele pode alçar voo, ele pode ir embora, mas sustenta sua presença diante dos escombros da História. Um anjo encantado pela potência que advém da fragmentação, do tremor. O mundo treme diante dos abalos sísmicos da história. Vivemos abalos sísmicos pela força da experiência de desterritorialização promovida pela história, experiência só pensada na condição de ser experimentada. Não é algo de que possa falar sobre, pois falar sobre é ainda se manter nos limites excessivamente protegidos e, portanto, territoriais, no sentido familiar do termo, o que me afasta e me impede a justeza para falar da desterritorialização. É preciso falar com a desterritorialização, não sobre ela.

Para essa experiência desterritorializante, é preciso uma narrativa. O tema da narrativa insistiu nos trabalhos debatidos hoje. Valorizar a narrativa na tradição benjaminiana,  blanchotiana e foucaltiana é exercitar o pensamento que não se contenta em falar de um mundo. Ele se sabe comprometido, intrincado com a criação desse mundo. Toda narrativa é experiência de construção de mundo. Toda narrativa ficciona um mundo real para a experiência imediata de quem o vive. Nos limites ficcionais ninguém duvida dos mundos de Manuel de Barros, ninguém pode duvidar do mundo de Borges, ninguém pode duvidar do mundo proustiano.  A questão é se eu coloco esse mundo real da ficção em outro lugar. Será que ele está em outro lugar? Ou será que o nosso lugar é também nesse mundo? Dizer que o nosso lugar é nesse mundo ficcional, como propõem os três doutorandos da UFRGS, obriga a uma forte transformação da Psicologia Social. Daí, a questão que se segue ao Temas em Debate: e se somos sujeitos da ficção?

***

O texto do Bruno Walter e do Gerson Pinho "Crítica e clínica: (re)repensando os conceitos",  não à toa parte de Nietzsche e dessa afirmação que o conhecimento é produzido no mundo mas, sobretudo, é produtor do mundo. Não é só acerca do mundo que pensamos, mas, pensamos mundos, ou seja, o mundo é um aforismo do pensamento. Defender tal tese, só a marteladas, munido do martelo genealógico que quebra o estado de coisas, para fazer aparecer a trama narrativa, ficcional. Consequentemente, para os autores, essa aventura do pensamento não pode ser senão uma aventura em crise.  Definem a crise como instauração da diferença, o que confere uma enorme pertinência a essa tese, sobretudo, quando estamos sob o jugo do que Guattari (1981) designou de Capitalismo Mundial Integrado (CMI) que apresenta uma estranhíssima afeição à crise, se nutrindo dela, produzindo formas de anexação a partir dos processos de desterritorialização.

Para ilustrar essa afeição do CMI à crise, evoco uma cena trivial da TV. No programa apresentado por Adriane Galisteu, assisti, certa vez, a uma dupla de cantores, não propriamente uma dupla caipira, talvez uma dupla country que não se sabe se composta por dois amigos, irmãos ou namorados. Havia certa indefinição naquelas figuras que, enquanto cantavam, debatia-se o “padrão da masculinidade nas metrópoles”, a “metrossexualidade”. Perguntava-se se a masculinidade comportaria agora certos cuidados estéticos como a depilação. A apresentadora convidou alguém da plateia, um homem, para ter a experiência de depilação. O rapaz, diante das câmeras, tira a sua blusa, mostra o seu peito cabeludo e, enquanto a dupla canta - caipiras, cowboys, amigos, namorados, irmãos - o corpo dele é depilado. Assistimos em canal aberto e ao vivo a desterritorialização do padrão masculino para a efetiva e imediata anexação daquele homem em um regime de ininterrupta produção da subjetividade masculina.

O capitalismo nos quer convencer da sua dinâmica pretensamente infinita, gerando a sensação de que “tudo que é sólido dissolve no ar” ou que "está tudo dominado". E cabe a nós refutarmos tal pretensão. É próprio ao capitalismo manter-se no mais infinitivo desse modo de produção, reproduzindo o capital como equivalente universal: uma vontade de universalização, na medida em que nunca se fecha num estado de coisas, sempre produzindo anexação no desterritorializado. Ele desterritorializa para anexar. Se é assim, a crise é intrínseca ao capitalismo e o nutre, daí a pertinência desse debate. Qual é o sentido da crise? Como vamos pensar a crise e articulá-la com a crítica sabendo que estamos num solo perigoso e movediço?

A crise tem que ser pensada como crítica e como decisão. É preciso, segundo os autores, decidir, experimentar a de-cisão, o limite. É preciso estar no limite. É o último Foucault (2000) que é evocado, no seu texto testamental, “O que são as luzes?”, quando defende que o ethos crítico da modernidade é o nosso exercício limite e experimental. Ser moderno é estar no limite de si, para experimentar pensar, sentir e fazer diferentemente. Escapamos às formas de anexação se podemos experimentar nossos limites através de práticas de si que nos conduzem por heterotopias existenciais. A crítica moderna é uma experiência de crise do homem que nós somos. A crise diz respeito a essa atitude crítica de estar na zona limiar, ali onde necessariamente sou forçado a diferir por uma decisão e não por um arrastão que nos assujeita. A depender de como habitamos a zona limiar, experimentamos práticas de assujeitamento ou de subjetivação.

A crítica modifica o exercício do pensamento, aí entendido o pensamento da Psicologia Social, com a condição de que tal exercício crítico, sob o risco de se tornar destrutivo, aniquilador, não pode senão ser clínico. Porque a agressividade da agonística não se confunde com a aniquilação do outro. Agressividade é diferente de violência. A violência aniquila, a agressividade instaura a crítica, instaura a crise e promove o processo de diferenciação. A agressividade é intrínseca a esse exercício de pensamento que, em Foucault, não pode ser, senão ético e clínico. O tema foucaultiano naquele momento é o do cuidado. E Bruno e Gerson mostram como o exercício crítico de instauração da crise na Psicologia Social a obriga a fazer uma aventura transdisciplinar com a clínica. A Psicologia Social, de alguma maneira, se aventura em uma experiência clínica na medida em que ela se inclina ou se desvia dela mesma. O sentido crítico-clínico do pensamento se faz por um exercício de desvio clinâmico. Eis, novamente, a busca infinita, pois como dizem os autores, tal exercício crítico da Psicologia Social só é possível na sustentação do desvio.

É nesse momento que intervém clinicamente a professora Roberta Romagnoli provocando o desvio. Não há como sustentar tal aposta senão na aventura de fazê-la. Assistimos à perfomatização do desvio clinâmico através da instigação desestabilizadora que se repete como um leitmotiv que atravessa a fala dos debatedores: a mesma atitude, que eu não diria implicante, mas implicada. Roberta não foi implicante, ela estava implicada com o dispositivo quando sugeriu que o texto de Bruno e Gerson poderia ter sido “um pouco menos inteligente”.

Desestabilizar um ideal de inteligibilidade que molecularmente nos contamina exige rigor e firmeza na intervenção. Reverter o platonismo requer sustentar o pensamento sem a decolagem e sobrevoo na direção do topus uranos. É preciso mergulhar e não voar. O Angelus novus faz esforço para ficar. Ele não quer voar, ele não quer decolar. Diante dos escombros, ele usa seu esforço alado para ficar, para ter a experiência desse desmoronamento intrínseco à História.

É preciso então ficar. É preciso então resistir à diretriz da transcendência que propõe o conceito como revelador da essência. O Angelus Novus se sustenta na imanência, ali onde o exercício de pensamento se embaralha, não podendo ser puramente intelectual; não podendo ser só inteligente. Não se está propondo abdicar da inteligência, mas entender que é preciso uma micropolítica espinoziana universitária: o trabalho intelectual não se faz sem o afeto. No pensamento da imanência, ideia e afecção estão lado a lado.

Embaralhar é desestabilizar em nós o que vigora como clichê e senso comum. O mergulho na imanência é suportar esse plano de engendramento de si, onde nos vemos ficcionados, sonhados a partir da composição de materiais heteróclitos, muito distintos e nem todos dignos, puros, defensáveis. Coisas sujas, coisas feias também habitam esse plano.

Como então poder pensar diferentemente? Pensar diferentemente, fazer o elogio da diferença não é fazer o elogio do diferentão. Não temos nenhum apreço especial e a priori pelos diferentões. Alguns diferentões são especiais, mas não necessariamente todo diferentão é especial. Temos um apreço pelos processos de diferenciação que podem ser inclusive, e muito frequentemente o são, imperceptíveis. Como então tomar a teoria e a inteligência a serviço da vida? Como tomar a Psicologia Social a serviço da vida? Segundo Roberta, a Psicologia Social deve ser tomada como um modo de pensar animado pela experiência da ampliação da potência de existir. A alegria, isso que nos faz rir, não pode ser tomada como incompatível à experiência de crise e ao pensamento crítico. Nós podemos e devemos rir da experiência de crise. É o que Nietzsche chamou de amor fati, amor ao destino, ao que deriva do lance de dados. Eu jogo os dados e vou me regozijar com o que acontecer. Certamente, há na experiência de crise o perigo da amargura, do ressentimento, do baixo astral. E não é à toa que estamos fazendo tal problematização em um momento tão perigoso da história do Brasil, que nos ameaça com o grande baixo astral.

O perigo é o de nos equivocarmos, considerando a experiência de crise que vivemos como puramente negativa. Sim, é verdade que há uma obscenidade no conservadorismo contemporâneo. Sim, há uma pornografia da direita, mas é um equívoco supor que haja uma nova direita ou um novo conservadorismo, duas ideias que guardam a contradição dos termos. A direita é sempre velha, embora estejamos perplexos diante dessa sua versão obscenamente explicitada.

Faço outra confidência. Na copa de 1970, eu era um garoto, filho de uma família conservadora, dita não-politizada. E quando ouvia aquele hino "pra frente Brasil", sentia uma grande angústia e eu não entendia o porquê. Não era explícito que havia uma coisa terrível acontecendo, que havia um conservadorismo tenebroso. Hoje, diferentemente, as posições estão bem claras, explícitas. É muito ruim se angustiar por uma situação política implícita. Então, que seja explícita! E essa explicitação do conservadorismo, que se faz hoje na forma de uma crise da política institucional, entendo como reação às formas de insurgência revoltosa no contemporâneo: o movimento negro, os movimentos minoritários de gênero, as ocupações dos secundartistas, etc. As novas formas de revolta produziram na direita conservadora uma necessidade de se explicitar, de sair do armário. A direita saiu do armário.

A direita sempre esteve aí, com a diferença que agora está explicitada. Muita coisa saiu do armário e a quebra desse silenciamento só pode ser motivo de alegria. Creio que podemos encontrar alegria nessa experiência de crise a que só podemos acessar com saberes menores.


***

O texto de Carolina Chassot, Livia Zanchet e Mateus Cunda concluiu o Temas em Debate. Mateus o apresentou, começando pela epígrafe do Manuel Bandeira, que é na verdade o seu epitáfio: “Menor, menor, menor, menor, enorme, um poeta enorme!”. Fazer essa reversão do menor em enorme, do negativo em positivo expressa o modus operandi das novas revoltas no contemporâneo. Fazer a apropriação consciente do negativo é defender o caráter positivo do menor não mais entendido como menoridade, mas como minoritário; não mais entendido como inferior, subalterno, mas como à margem, limítrofe, fronteiriço, limiar, aquele que habita a zona anômala, onde as experiências de passagem acontecem. Em tal zona, se está diante do que não permite identificação narcísica, onde não me reconheço, onde não há experiência recognitiva. Ali eu tenho a experiência da alteridade cujo limite radical é para nós o impessoal, esse neutro, indefinido, inespecífico, essa coisa.

Tomar então a perspectiva da coisa: não perspectivar a coisa, mas tomar a coisa como uma perspectiva, tal como fez Cézanne ao dignificar as maçãs como formas de expressão. O pintor faz o elogio desse impessoal, dessa perspectiva coisa, dessa estranha fisicalidade. A fisicalidade da maçã coloca o artista na posição de olhar tomado pela visualidade da maçã, perplexo diante da perspectiva da maçã. A maçã se apresenta como ponto de vista, como perspectiva. O perspectivismo da maçã nos força a acessar a dimensão microfísica da realidade, que Tânia Galli chamou de longínquo, as imagens longínquas. Fazer um elogio e um acolhimento desse longínquo.

Entendemos, então, que a Psicologia Social se renova num processo de territorialização, quando ela faz esse acolhimento da dimensão microfísica de seu objeto. A Psicologia Social pensa a microfisicalidade de seu objeto quando se atenta aos processos de emergência de mundo, lá onde não há propriamente pessoas, não há propriamente grupo de pessoas, mas processos de produção microfísicos. A Psicologia Social aqui na UFRGS quer-se como um saber menor que apreende a dimensão menor da realidade. A maçã é simplesmente uma maçã: não uma maçã justa, mas justo uma maçã. Não um pensamento justo, mas justo um pensamento, apenas um pensamento. É o elogio do apenas, do mero, do menor, um elogio disso que se faz com outra política cognitiva. E ao construir saberes menores, habitar esse território instável da zona limiar onde temos apenas não coisas justas, mas justo coisas. Assim, a experiência de pensar com a realidade das coisas, como insistiu a professora Marcia Moraes, na aventura do pensamento localizado, que se interessa pelos detalhes até então tomados como infames e que doravante ganham uma dignidade e uma magnitude que queremos defender e lutar por.



Referências

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Data de submissão: 21/10/2016
Data de aceite: 27/04/2017

 



I Eduardo Passos: Psicólogo e Professor do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal Fluminense. E-mail: e.passos@superig.com.br

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