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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.3 Porto Alegre set./dez. 2017

 

ARTIGOS

 

Clínica, Música e Tempo: Agenciamentos Possíveis para uma Experiência Afetiva

 

Clinic, Music and Time: Possible Assemblages for an Affective Experience

Clínica, Música y Tiempo: Agenciaciones Posibles para una Experiencia Afectiva

   

 

Gessica Carneiro da RosaI e Vilene MoehleckeII

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

II Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Porto Alegre, RS, Brasil.

 

 


RESUMO

Esse artigo apresenta um fragmento teórico-conceitual do trabalho de conclusão de curso elaborado a partir de uma experiência de estágio profissional em Psicologia. A forte presença da arte em meio às práticas clínicas suscitou uma série de conexões, produzindo desterritorializações e problematizações de velhas dicotomias, indicando aspectos afetivos, dinâmicos, temporais, de intensidade, nem sempre passíveis de verbalização. Com as contribuições de autores como Regina Benevides, Daniel Stern, Gilles Deleuze e Félix Guattari, as linhas que seguem cartografam os processos de produção subjetiva, evidenciando as ressonâncias entre clínica e música, o modo como a dimensão coletiva se manifesta nos atendimentos ditos individualizados e a possibilidade das experiências afetivas surgirem com a sintonia afetiva entre paciente e estagiária-terapeuta. Ao pesquisarmos com o método cartografia, assumimos a indissociabilidade do fazer e conhecer. Portanto, ainda que seja um recorte conceitual, serão destacadas as vicissitudes da prática do estágio.

Palavras-chave: Clínica, Música, Tempo, Subjetividade.


ABSTRACT

This article presents a theoretico-conceptual fragment from an undergraduate dissertation arising from a professional internship in Psychology. The strong presence of art in the midst of clinical practices has occasioned a series of connections, inducing the deterritorialization and problematisation of old dichotomies, and singling out aspects of intensity as affective, dynamic and temporal, but which are not always expressible. Through the contributions of authors such as Regina Benevides, Daniel Stern, Gilles Deleuze and Felix Guattari, our text maps processes of subjective production, bears witness to the resonances between music and the clinical, charts how the collective dimension manifests itself in so-called individualised care, and delineates the possibility of affective experiences arising in the affective harmony between patient and trainee-therapist. Basing our research on the cartographical method, we assume the inseparability of doing and knowing. Thus, in spite of our conceptual outlook, the vicissitudes of internship practice is highlighted.

Keywords: Clinic, Music, Time, Subjectivity.


RESUMEN

Este artículo presenta un fragmento teórico-conceptual del trabajo de conclusión de curso elaborado a partir de una experiencia de práctica profesional en Psicología. La fuerte presencia del arte en medio de las prácticas clínicas suscitó una serie de conexiones, produciendo desterritorializaciones y problematizaciones de viejas dicotomías, indicando aspectos afectivos, dinámicos, temporales, de intensidad, no siempre pasibles de verbalización. Con las contribuciones de autores como Regina Benevides, Daniel Stern, Gilles Deleuze y Félix Guattari, las líneas que siguen cartografian los procesos de producción subjetiva, evidenciando las resonancias entre clínica y música, el modo como la dimensión colectiva se manifiesta en las atenciones denominadas individualizadas y la posibilidad de las experiencias afectivas surgir con la sintonía afectiva entre paciente y pasante-terapeuta. Al investigar con el método cartográfico, asumimos la indisociación del hacer y conocer. Por lo tanto, aunque sea un recorte conceptual, serán destacadas las vicisitudes de la práctica de la práctica profesional.

Palabras-clave: Clínica, Música, Tiempo, Subjetividad.


 

 

Nós somos movidos pelas artes de momento a momento, bem como por longos períodos de tempo. As tensões, as forças e a emoção aumentam e diminuem. Nosso nível de excitação está constantemente em jogo durante uma performance. As artes baseadas no tempo são em grande parte sobre a dinâmica das experiências. As formas de vitalidade são as unidades experienciais de trabalho. (Stern, 2010, p. 75).¹

No percurso da graduação em Psicologia, nos deparamos com possibilidades de encontro entre a clínica e a arte e suas implicações nos processos de produção da subjetividade. A escrita que segue visibiliza as relações entre esses campos, vislumbradas a partir de práticas concomitantes, porém realizadas em meios distintos: entre o fazer psi, presente na trajetória do estágio curricular profissionalizante, e o estudo da história, teoria e técnicas musicais, no período entre janeiro de 2015 e julho de 2016.

Nesse espaço-tempo, surgiram algumas questões que nos acompanharam no processo de cartografia das linhas que compuseram o trabalho realizado, constituindo territórios por nós habitados (Alvarez & Passos, 2012). Como a dimensão social pode ser considerada na prática clínica? Quais os agenciamentos possíveis entre os modos de fazer clínica e alguns conceitos musicais? Quais as relações entre música e subjetividade?

Numa perspectiva transdisciplinar, buscamos lançar questões que possam contribuir para uma práxis clínica que se ocupa dos processos de produção de subjetividade e não anseia somente a resolução de conflitos, mas também seja capaz de suportar dissonâncias, paradoxos e desterritorializações em seu cotidiano. Portanto, abordamos neste trabalho uma parte do que se produziu e veio a ser a monografia de conclusão do curso. Em função do volume de material escrito produzido com o auxílio de registros das experiências clínicas em diários de campo, optamos aqui pelo recorte teórico-conceitual que sustentou o trabalho de conclusão.

 
Dos Contornos Territoriais da Experiência 

De início, gostaríamos de contextualizar as(os) leitoras(es) face à relação com a arte, traçando contornos breves e maleáveis no terreno musical, uma vez que é necessário “um mínimo de território, que possibilite a proliferação de vetores existenciais de marcação territorial; de um mínimo de identidade, [...] de um mínimo de formas com as quais criar” (Rodrigues, 2011, p. 124). A escolha pelo estudo do instrumento baixo elétrico (também chamado de contrabaixo) deu-se ao longo da segunda metade da graduação, impulsionada pelo desejo de uma prática efetiva voltada ao campo da arte. Parte desse ímpeto, além de emergir da atração pelas sonoridades graves, pode ser atribuída aos encontros entre arte e clínica enunciados e vivenciados em atividades acadêmicas relacionadas ao Movimento Institucionalista, à Luta Antimanicomial, às práticas interdisciplinares em Saúde Mental. Essas atividades possibilitaram o conhecimento de pesquisas realizadas sob o paradigma ético-estético-político, em que se considera a arte como prática de resistência, e o contato com conceitos da Filosofia da Diferença, como acontecimento, devir, tempo, subjetividade, agenciamento, dentre outros. Com esses estudos, surge um intenso desejo de envolvimento numa atividade que tivesse como propósito a produção sonora. Daí a matrícula no curso Técnico em Música na ESEP (Escola Sinodal de Educação Profissional)², com ênfase no instrumento contrabaixo elétrico.

Quanto ao som grave, Wisnik (2014, p. 21) afirma que este “tende a ser associado ao peso da matéria, com os objetos mais presos à terra pela lei da gravidade, e que emitem vibrações mais lentas, em oposição à ligeireza leve e lépida do agudo”. Nesse sentido, podemos entender que o som grave produzido pelo baixo elétrico tem um caráter de sustentação, o estabelecimento de um território sobre o qual os sons agudos irão circular. Podemos estabelecer relações entre esse aspecto de sustentação e circunscrição territorial e a clínica, principalmente com o modo como ela foi vivenciada na experiência de estágio profissional, realizado no Projeto de Atenção Ampliada à Saúde (PAAS), serviço-escola da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS).

O serviço, localizado no Centro de Cidadania e Ação Social (CCIAS) da universidade, no município de São Leopoldo/RS, oferece atendimento interdisciplinar em saúde nas áreas da Psicologia, Enfermagem e Nutrição, contando com estagiárias(os), técnicas(os) e professores/supervisores destes três cursos de graduação. Neste local, foi possível a atuação numa série de atividades de atendimento clínico individual a crianças, jovens, adultos e idosos, além do atendimento grupal a crianças entre 4 e 11 anos, no contexto de uma Oficina de Contos Infantis. Importante destacarmos que o espaço do CCIAS também é composto por outros projetos voltados à educação, inclusão digital, suporte a egressos do sistema prisional, convivência comunitária para o público idoso e atividades de ensino da música, artes cênicas e visuais para o público infanto-juvenil.

Assim, os atendimentos clínicos não se realizavam de modo isolado ou silencioso em relação a essas outras práticas. Havia uma vida artística pulsante que atravessava as paredes dos consultórios, seja com as melodias de um piano, um violino, ou com os sons das encenações dos participantes dos projetos mencionados, que, por vezes, eram nossos próprios pacientes. Não havia como ficarmos indiferentes ao efeito dessas invasões sonoras ao setting e isso tornou-se elemento integrante dos processos terapêuticos acompanhados ao longo do estágio. Com isso, emergiram questões acerca das possíveis relações entre arte, especificamente a música, e subjetividade. Para nos debruçarmos sobre elas, foi necessário antes nos perguntarmos: que clínica é essa? E ainda: qual a relação entre a clínica e o social?

Ressonâncias entre a Clínica e o Social: o Coletivo

Ao pensarmos tais relações, operamos um deslocamento e problematização do conceito de clínica e sua relação com o social. Evocamos aqui uma questão levantada por Regina Benevides (2002, p. 132): “voltar a clínica, definida essencialmente como atividade individual, para as classes populares, é fazê-la social?”. A dicotomia clínica-social e sua inquietante presença nos conteúdos discutidos ao longo da graduação nem sempre contempla a dimensão social ou coletiva no contexto clínico ou, ainda, a dimensão clínica num contexto social e coletivo. Desejávamos estabelecer outra relação com o fazer clínico, diferente da concepção oriunda dos primórdios das práticas psicológicas no Século XIX, consideradas desde então como práticas científicas e profissionais de controle ou extermínio dos “desvios”, das “anormalidades”, das “patologias” (Rose, 2011, p. 146-147).

Nosso intuito consiste, também, em enunciar como o campo da psicologia foi historicamente marcado pela tentativa de resolver o conflito entre os desejos humanos individuais e as limitações impostas pelas relações sociais, conflito este gerador de angústia (Benevides, 2002). Na tentativa de resolver tal dilema entre indivíduo e sociedade, o saber psicológico afirma e mantém essa dicotomia. Por vezes, os próprios sujeitos chegavam ao acolhimento no serviço-escola reivindicando uma atenção individualizada por parte das(os) estagiárias(os) de psicologia, com o propósito de resolver seus conflitos. Diante dessa problemática em torno de uma concepção de clínica individualizada, como operarmos deslocamentos que colocassem essa noção em questão, tanto para nós, aprendizes e supervisores, como para os sujeitos atendidos?

A resolução dessa tensão subjetiva, almejada pelo saber psicológico ao se colocar como ciência positivista desde a Modernidade, é criticada pelos pensadores Gilles Deleuze e Félix Guattari. Eles teceram considerações ao tomar empréstimo de conceitos-ferramentas de outras áreas para compor suas obras, especialmente da arte. Inspirada nesses filósofos e no pensamento de Michel Foucault, Regina Benevides (2005, p. 23) define o sujeito como “produto resultante de um funcionamento que é de produção inconclusa, é heterogenético, nunca havendo esgotamento total da energia potencial de criação das formas”. Acerca da subjetividade, autora ainda completa: “É por isso que dizemos que a subjetividade é plural, polifônica sem nenhuma instância dominante de determinação” (Benevides, 2005, p. 23). Desse modo, podemos dizer que há uma espécie de ressonância entre os processos clínicos de cada sujeito atendido em um consultório e as questões históricas, sociais, políticas, econômicas, tecnológicas, culturais, éticas e estéticas que compõem o socius. A voz do paciente que escutamos é uma polifonia de outras vozes, como numa mixagem (a mescla de sons, vozes, músicas numa única faixa sonora).

Durante o período de estágio, notamos a presença de paradoxos e relações contraditórias, tanto em um nível individual de cada paciente, como num nível institucional (coletivo) que perpassavam as relações destes com o serviço, com suas famílias e demais instituições às quais se mantinham conectados. Percebemos a necessidade de lidar com esses elementos e admitir sua coexistência, sem anulá-los e resolvê-los definitivamente. Os movimentos experienciados nos atendimentos possibilitaram a emergência de aspectos relacionais singulares e afetivos entre estagiária/terapeuta e pacientes, entre estagiária e supervisores, e entre estagiária e demais colegas, que diziam respeito aos processos subjetivos. A produção de subjetividades implica a existência de linhas de forças às quais todos estamos sujeitos e que nos movimentam para várias direções, em diferentes intensidades e velocidades. Como afirmam Escóssia e Kastrup (2005, p. 303), subjetividade “não é sinônimo de indivíduo, sujeito ou pessoa, pois inclui sistemas pré-individuais/pré-pessoais (perceptivos, de sensibilidade, etc) e extrapessoais ou sociais (maquínicos, econômicos, tecnológicos, ecológicos, etc)”. As autoras entendem que os processos de subjetivação são sempre coletivos. E esses processos também são afetivos.

A fim de ultrapassarmos as dicotomias clínica e social, indivíduo e sociedade, se faz necessário resgatarmos o conceito de coletivo. Ele foi ressignificado por Escóssia e Kastrup (2005), que o consideram como plano de co-engendramento e criação, superando a dicotomia indivíduo-sociedade, difundida na Modernidade. As autoras trabalham a partir das obras de Bruno Latour, Michel Callon & John Law e Gilles Deleuze & Félix Guattari, de modo a nos apresentar a seguinte noção de rede coletiva: “o coletivo pode ser entendido como rede social, desde que se garanta o princípio da heterogeneidade do social, assim como de toda e qualquer entidade, seja ela um indivíduo, uma comunidade, um texto ou um objeto técnico.” (Escóssia & Kastrup, 2005, p. 301).

Segundo as autoras, “definir as entidades que compõem os coletivos como redes significa defini-las como efeito de processos de composições e associações que lhes conferem formas sempre provisórias” (Escóssia & Kastrup, 2005, p. 302). Assim, o coletivo não se reduz ao social, tampouco à dinâmica de relações entre indivíduos. E aqui, o conceito de agenciamento nos coloca a pensar sobre o que ocorre no entre, pois

agenciar é estar no meio, sobre a linha de encontro de dois mundos. Agenciar-se com alguém, com um animal, com uma coisa – uma máquina, por exemplo – não é substituí-lo, imitá-lo ou identificar-se com ele: é criar algo que não está nem em você nem no outro, mas entre os dois, neste espaço-tempo comum, impessoal e partilhável que todo agenciamento coletivo revela (Escóssia & Kastrup, 2005, p. 303).

Como profissionais da psicologia, ainda que tenhamos conhecimento racional sobre as técnicas de intervenção, estabelecimento do vínculo, anamnese, ou mesmo enquanto musicistas, saibamos reconhecer notas musicais, escalas, acordes, etc., se nos fixarmos apenas a estas coordenadas, há o risco de ficarmos reclusos em circuitos de repetição do mesmo, sem a possibilidade de experimentação e criação de novos modos de existir e soar. Nesses processos que, mesmo acompanhados de modo individual nos consultórios, são engendrados no coletivo, também somos máquinas de desejo, máquinas técnicas, celibatárias, de guerra, no encontro com alteridades, grupos, instituições, objetos, produzindo conexões e agenciamentos (Deleuze & Guattari, 2003). Com o propósito de produzir novas reflexões sobre o fazer clínico como prática social, tomamos como conceitos-ferramenta alguns conceitos musicais.

Ressonâncias entre a Clínica e a Música: o Tempo

Um dos conceitos que surgiu ao longo da prática do estágio, e também dos estudos musicais, foi o tempo. Pudemos perceber a dimensão temporal de distintos modos: ora em seu aspecto quantitativo (tempo estimado de duração dos atendimentos e o estabelecimento dos limites dessa duração diante de alguns pacientes), ora qualitativo (sensações de rapidez e lentidão, o instante e a eternidade). Ao considerarmos a música como arte do tempo e que “compor é tornar o tempo sonoro” (Ferraz, 2010, p. 68), como afirmava o compositor Olivier Messiaen no final da década de 1940, propomos as seguintes questões: poderíamos dizer que a prática clínica consistiria, nesse sentido, o inverso, ao tornar a subjetividade polifônica intempestiva (fora do tempo)? Qual seria o tempo sonoro e o da clínica?

Há pelo menos duas concepções distintas de tempo, derivadas do estoicismo (Pelbart, 1993). O tempo mensurado, pulsado, dividido é, em sua dimensão quantitativa, designada pelos gregos como Cronos. Surge como elemento considerável tanto na prática clínica, como na música, ao delimitarmos o tempo de atendimento dos sujeitos e grupos, e ao acompanharmos os batimentos do metrônomo enquanto executamos uma música. A outra concepção de tempo é o Aion, o tempo do Acontecimento (Deleuze, 2011; Pelbart, 1998). Aion é o tempo não pulsado, o tempo que indica que algo está para acontecer ou acabou de acontecer. Ele é apreendido pela intuição e caracteriza a dimensão qualitativa da duração não mensurável.

Cronos é compatível com a dimensão da experiência temporal apreensível pela inteligência, enquanto Aion se aproxima da dimensão apreensível pela intuição e pela emoção profunda. David Lapoujade lembra que, para o filósofo Henri Bergson, há dois lados da experiência temporal:

[...] o lado da inteligência, vasto plano superficial onde tudo se desdobra horizontalmente no espaço, segundo a lógica da representação, e o lado da intuição ou da emoção profunda, um mundo vertical onde tudo se organiza em profundidade, de acordo com uma pluralidade de níveis ora inferiores, ora superiores ao nível da inteligência, mas sempre paralelos a ele, operando segundo um tempo e uma lógica de outra natureza (Lapoujade, 2013, p. 12).

Auterives Maciel (2007, p. 56) afirma que Bergson foi “quem melhor pensou a subjetividade como intervalo de tempo”, de modo que o intervalo entre percepção e ação constitui um momento de indeterminação. Podemos considerar esse intervalo como o elo entre indivíduo e o social? Seria este intervalo a condição de possibilidade de agenciamentos em suas duas dimensões, coletivo de enunciação e maquínico de desejo (Deleuze & Guattari, 2003, p. 137)? Esse intervalo de indeterminação temporal poderia abrir possibilidade à vivências do tempo Aion?

As concepções estoicistas do tempo foram expostas por Gilles Deleuze (2011) na sua obra Lógica do Sentido. Peter Pál Pelbart (1998, p. 69) afirma que “Deleuze dá a Aion uma estranha autonomia, o faz repousar sobre o paradoxo, imbrica-o com o sentido, faz dele o cerne do Acontecimento”. Basta recordarmos de situações clínicas onde enunciam-se contradições e paradoxos, que provocam intensos efeitos emocionais, produzindo sentidos e sensações nunca antes experimentados na relação entre paciente/grupo e terapeuta. Tal acontecimento torna-se possível devido ao intervalo de tempo da indeterminação entre percepção e ação e, com isso, vem à tona todo um enredo de linhas de força e polifonia de vozes que não podem ser circunscritas apenas aos aspectos singulares do grupo ou sujeito atendido, mas fazem ressoar os processos que compõem o campo social, produto e produtor das subjetividades nele implicadas.

Ambas as dimensões temporais coexistem e relacionam-se. Uma não existe sem a outra. Um exemplo disso seria a situação onde um paciente nos apresenta um discurso racionalizado e repetitivo (o que, na experiência do estágio, denominamos de “discurso em ostinato”), como se medisse palavras, e provocasse uma sensação de circularidade inacabável em quem o escuta, permanecendo o que parecesse ser uma “eternidade” em torno de um mesmo tema. A percepção de que seu discurso dura uma eternidade (dimensão temporal qualitativa) ocorre enquanto o sujeito passa os 45 minutos da sessão (dimensão temporal quantitativa) versando sobre a mesma questão.

Para pensar os processos de produção subjetiva, resgatamos alguns aspectos da história da música. Nas sociedades pré-capitalistas (ocidentais e orientais), a arte musical era vivida como uma experiência do sagrado e, estruturalmente, possuía uma característica circular, repetitiva, por conta de uma tônica fixa (nota principal), típica da chamada música modal, que afirmava o tom. Os sons se organizavam em melodias combinadas através da relação de intervalos entre as notas musicais de certa escala, que variava conforme o contexto cultural e territorial (nordestino, eslavo, japonês, napolitano, etc.) (Wisnik, 2014). Assim, as escalas musicais e os modos gregos expressam um território e uma paisagem sonora. Nesse sentido, será que poderíamos considerar a escala como conceito-ferramenta para pensar os modos subjetivos expressos pela matéria sonora produzida nas infinitas combinações entre as suas notas e acordes, em seus diversos modos (maior, menor, jônico, dórico, mixolídio, etc.)?

A partir do século XVI, com o advento do capitalismo, surge a música tonal fortemente influenciada pela ideia de progresso propagada pelo pensamento iluminista. O tonalismo afirma e nega o tom (a nota fundamental), buscando resolver o dilema da tensão e do repouso através do movimento cadencial, da modulação, encadeando acordes de acordo com suas funções harmônicas (tônica, subdominante, dominante, sensível, etc.). Nesse novo sistema, as movimentações melódicas, rítmicas e harmônicas vêm com o objetivo de resolver a dissonância, finalizando com a consonância. O conceito de harmonia funcional, base da música tonal, é sustentado pelas relações intervalares entre as notas musicais (as distâncias entre elas). O compositor e teórico musical Arnold Schöenberg (2001, p. 59) define “consonância como as relações mais próximas e simples com o som fundamental e a dissonância como as relações mais afastadas e complexas”. Assim, nessa dualidade, a dissonância corresponde à tensão e a consonância, ao repouso.

O problema da dissonância, a ser resolvido com o uso de acordes de função dominante, remete à questão do trítono. O trítono é um intervalo dissonante de três tons que, durante o período da música modal, foi considerado como uma falha dentro da escala diatônica. Era frequentemente referido como o diabolus in musica. Com o uso do novo sistema tonal de composição musical, esse problema se resolve. E se relacionarmos a resolução do trítono na música tonal ao propósito da clínica psicológica no Século XIX que, enquanto ciência positivista, pretendia (e ainda pretende, em suas formas hegemônicas) resolver as dissonâncias, as patologias.

Ao pensarmos sobre o ideal de resolução dos conflitos, não podemos ignorar os aspectos éticos-políticos de nossa atuação profissional na clínica. Nosso entendimento passa pela concepção de que o compromisso assumido em nossa prática não diz respeito estritamente à resolução, pois não se pode garantir uma ausência definitiva de angústia e que este seja o objetivo das intervenções clínicas.

Como na música, até podemos suprimir o desconforto gerado pelo trítono e outras dissonâncias, mas na clínica não se trata de anular a angústia e sim ocupar-se dela. Pressupor a ausência ou anulação da angústia significa tomá-la como um problema moral (a angústia como o mal), assim como o trítono foi considerado uma manifestação diabólica na música modal. Como afirma Kayser (2014, p. 109), “a tarefa terapêutica seria proporcionar a abertura da visão a uma perspectiva livre dos ideais científico-morais, possibilitando o enfrentamento da doença: não compreendendo que a cura seria a restauração de algo, mas, sim, um processo doloroso de superação”.


Experiência Afetiva e Intersubjetividade

Ao nos aventurarmos pela experiência clínica, nos deparando com o mundo dos afetos, percebemos que alguns aspectos da produção subjetiva escapam à linguagem. Daí o agenciamento clínica-música mostrar-se tão potente para pensarmos tal encontro, pois na música há um universo de dinâmicas, intensidades, movimentos, sensações e afetos nem sempre passíveis de nomeação, assim como na clínica. De modo a nos auxiliar na costura desses dois campos, evocamos os conceitos de afeto de vitalidade e sintonia afetiva, criados por Daniel Stern a partir de suas pesquisas acerca da relação entre mães e bebês. De acordo com Brazão (2013, p. 275),

O alcance de suas ideias ultrapassa as questões envolvidas na relação mãe-bebê, [...] pois os processos que ele evidencia, desenvolvidos em períodos muito precoces da vida infantil, permanecem funcionais na vida adulta, mediando as relações entre o indivíduo e a sociedade.

Em suas teorizações, Stern traz as formações subjetivas pré-verbais da criança (os sensos de si), não num sentido clássico de “fases” a serem superadas, mas como níveis de subjetivação que se mantêm ao longo da vida (Peixoto Jr. & Arán, 2011).

Os afetos de vitalidade surgem logo no primeiro dos quatro sensos de si, o senso de si emergente, que se organiza a partir da oitava semana de vida. Nesse período, a criança recebe grande quantidade de estímulos através dos órgãos sensoriais, expressões do comportamento humano que produzem sensações muito claras e intensas, que são experimentadas pelo bebê como contornos, intensidades e padrões temporais (Brazão, 2013). Conforme Brazão e Rauter (2014, p. 10),

os afetos de vitalidade são entendidos como formas particulares de afetos, com qualidades muito diferentes dos afetos categorizados (medo, raiva, alegria, tristeza e seus derivados, descritos por Darwin em seu livro de 1863), sendo uma das vias mais eficazes pela qual o bebê distingue o que é animado do que é inanimado.

Assim sendo, os afetos de vitalidade são uma qualidade da experiência que surge dos encontros com as pessoas e são bem melhor expressas por termos dinâmicos, cinéticos, como “surgindo”, “desaparecendo”, “passando rapidamente”, “crescendo”, “decrescendo”, “explodindo”, “prolongado”, etc. (Peixoto Jr. & Arán, 2011, p. 731).

Entre dois e seis meses de idade, surge o senso de si nuclear, responsável pelas experiências de autorregulação dos níveis de excitação corporal e dos estados afetivos do bebê, através do toque sobre sua pele ou do tom de fala dos cuidadores. Já entre o sétimo e nono mese, o senso de si subjetivo traz novas mudanças, de modo que a criança inicia um processo de compartilhamento de suas experiências afetivas, que culminará na aquisição da linguagem (Brazão e Rauter, 2014). É com a organização do senso de si subjetivo que surge a sintonia afetiva.

A sintonia afetiva é a expressão de um sentimento contido no comportamento afetivo do outro, num contexto de comunicação intersubjetiva. É mais do que uma mera imitação das ações do outro, é a expressão da dinâmica temporal da intensidade, da forma ou do ritmo do comportamento alheio, numa escala ou modalidade diferente (Peixoto Jr. & Arán, 2011). Ela proporciona uma experiência de comunhão intersubjetiva (Brazão, 2013). Pelo décimo oitavo mês de vida do bebê, constitui-se o senso de si verbal, surgindo a linguagem. A relação com o outro ganha novas dimensões, mas a presença da linguagem verbal leva a alguns impasses, diante do privilégio da fala nas relações, que relega ao segundo plano as capacidades desenvolvidas nos sensos de si anteriores (Brazão e Rauter, 2014).

Ao considerarmos as contribuições de Daniel Stern quanto à constituição dos sensos de si, aos afetos de vitalidade e a função da sintonia afetiva, podemos dizer que as sensações e os afetos vivenciados pelos sujeitos nesses períodos, bem como permanência na sua vida adulta, ainda que negligenciadas em favor da linguagem, da palavra, estiveram presentes nas relações clínicas e institucionais vividas durante a experiência do estágio profissional. Mesmo a palavra sendo o principal modo de expressão nos atendimentos, pudemos perceber outras dimensões dos processos subjetivos, sobretudo no que diz respeito às sensações de movimento tão bem expressas pelos afetos com distintas durações temporais, seja em suas manifestações cronológica (Cronos) ou do acontecimento (Aion). Isso nos leva a pensar que a sintonia afetiva que caracteriza a experiência intersubjetiva que vivenciamos na clínica, faz emergir aspectos no entre (e que dizem respeito aos aspectos coletivos dos processos de subjetivação) que muitas vezes parecem negligenciados nas concepções hegemônicas, porque se manifestam de modo não-verbal, mas gestual e afetivo, sendo apreendidos quase sempre pelo seu caráter estético.

Coda: Agenciamentos Por Um Devir Menor Na Clínica

Com este trabalho, tornamos conhecidas as concepções teórico-conceituais que guiaram as linhas cartografadas na experiência de estágio profissional no âmbito da clínica. Ao finalizamos essa escrita, nos surge uma questão: com os engendramentos conceituais e as problematizações aqui manifestadas, seria possível devir menor na clínica? Como dizem Deleuze e Guattari (2003, p. 38) na sua obra Kafka para uma literatura menor: “Uma literatura menor não pertence a uma língua menor, mas, antes, à língua que uma minoria constrói numa língua maior. E a primeira característica é que a língua, de qualquer modo, é afectada por um forte coeficiente de desterritorialização”. Gallo (2004) afirma que a literatura menor abarca três características: (1) desterritorialização; (2) ramificação política; e (3) valor coletivo. Nesse sentido, ao operarmos com os agenciamentos clínica-música, subjetividade-tempo, estaríamos produzindo uma clínica menor? De acordo com o autor, “mesmo um agenciamento singular, fruto de um escritor, não pode ser visto como individual, pois o um que aí se expressa faz parte do muitos, e só pode ser visto como um se for identificado também como parte do todo coletivo” (Gallo, 2004, p. 77).

Nosso intuito não é fazer com que o exposto aqui torne-se regra para as experiências clínicas de outros profissionais. O objetivo consistiu em tornar conhecida a singularidade da experiência através do trabalho conceitual que ela suscitou, considerando que o propósito das práticas clínicas realizadas durante o estágio foi o de proporcionar aos sujeitos e grupos atendidos um espaço-tempo circunscrito para sustentar a livre emergência de suas experiências subjetivas e afetivas, tal como na música uma linha de baixo mantém a sustentação melódica e rítmica para as improvisações em outros instrumentos musicais.

Com este trabalho, criamos condições para efetuar conexões diversas sem nos restringirmos ao campo da ciência. Operamos desvios em direção a outros modos de compreender os fenômenos clínicos – individuais e coletivos – e a prática profissional, nos aproximando da arte e da filosofia para produzir agenciamentos ético-estéticos com a nossa sensibilidade de cartógrafas. Mais do que pesquisar, intervir e publicizar o conhecimento produzido, compreendemos o caráter político de nossas escolhas epistemológicas e da problematização das dicotomias aqui realizada, que difere da neutralidade científica propagada pelas pesquisas hegemônicas. Assim, a arte se mostra como ferramenta potente para resistir à produção do conhecimento homogeneizante e generalizadora.




Referências

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Data de submissão: 08/09/2017
Data de aceite: 11/12/2017

 


1 Tradução livre de: “We are moved by the arts from moment to moment as well as over longer stretches of time. Tensions, forces, and excitement rise and fall. Our arousal level is constantly in play during a performance. The time-based arts are largely about the dynamics of experiences. Vitality forms are the working experiential units.” (Stern, 2010, p. 75).

2 Simultaneamente aos estudos da graduação em Psicologia, a autora esteve matriculada no curso Técnico em Música da Escola Sinodal de Educação Profissional (ESEP), da Faculdades EST, no município de São Leopoldo/RS, entre 2014 e 2015. Os estudos, focados no instrumento musical contrabaixo elétrico, foram interrompidos antes da conclusão deste curso, a fim de que pudesse dedicar-se ao término da graduação.


I Gessica Carneiro da Rosa: Graduada em Psicologia, com ênfase em Práticas Sociais e Institucionais, pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Mestranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). E-mail: gessica.psico@hotmail.com

II Vilene Moehlecke: Professora da Graduação em Psicologia (UNISINOS), Doutora em Informática na Educação PGIE/UFRGS, Mestre em Psicologia Social e Institucional PPGPSI/UFRGS. E-mail: vilenemo@unisinos.br

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