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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.3 Porto Alegre set./dez. 2017

 

ARTIGOS

 

Contribuições da Psicologia à Residência Multiprofissional em Saúde da Mulher: Relato de Experiência

 

Contributions of Psychology to a Multiprofessional Residency in Women's Health: An Experience Report

Aportaciones de la Psicología a la Residencia Multidisciplinar en Salud de la Mujer: Relato de Experiência

   

 

Silvia Nogueira CordeiroI, Maria Elizabeth Barreto Tavares dos ReisII, Nathália Tavares Bellato SpagiariIII e Weronica Derene AdamowskiIV

I Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, PR, Brasil.

II Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, PR, Brasil.

III Universidade Estadual de Londrina (UEL), Londrina, PR, Brasil.

IV Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS), Dourados, MS, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por objetivo relatar a experiência da inserção do psicólogo em um programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Mulher. O trabalho se baseou nas atividades das duas primeiras turmas do programa, sendo cada uma composta por 16 residentes das áreas de educação física, enfermagem, farmácia, nutrição e psicologia. Durante o primeiro ano, os residentes atuam na Atenção Básica e, no segundo ano, na Atenção Secundária e Terciária. A participação da Psicologia nos diferentes campos de abrangência da residência motivou diversos questionamentos sobre o seu papel. Neste contexto destacamos os desafios e as contribuições da participação do Psicólogo na equipe multiprofissional, especialmente quanto no atendimento às especificidades da saúde da mulher.

Palavras-chave: Residência Multiprofissional; Psicologia; Saúde da Mulher.


ABSTRACT

The purpose of this article is to report the experience of integrating a psychologist to a Multiprofessional Residency Program in Women's Health. The work is based on the activities of the first two graduating classes of the program, each composed of 16 residents from the areas of physical education, nursing, pharmacy, nutrition and psychology. During the first year, residents work in Primary Care and, in the second year, in Secondary and Tertiary Care. The participation of psychology in the various fields of residency prompted diverse questioning on its role. In this context, we highlight the challenges and contributions of a psychologist's participation in the multiprofessional team, specifically regarding issues of women's health.

Keywords: Multiprofessional Residence; Psychology; Women’s Health.


RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo describir la inserción del psicólogo en Multidisciplinar Residencia en Salud de la Mujer. El trabajo se basó en las actividades de las dos primeras clases del programa, cada uno consistiendo en 16 residentes de las áreas de educación física, enfermería, farmacia, nutrición y psicología. Durante el primer año, los residentes trabajan en atención primaria y en el segundo año, la práctica sucede en atención secundaria y terciaria. La participación de Psicología en diferentes campos de alcance residencia llevó a varias preguntas sobre su papel. En este contexto se destacan los desafíos y las contribuciones de la participación del psicólogo en el equipo multidisciplinar, especialmente para satisfacer las específicas necesidades de salud de la mujer.

Palabras-clave: Residencia Multiprofesional; Psicología; Salud de la Mujer.


 

 


Introdução

O conceito de saúde e de assistência à saúde baseado nos princípios da universalidade, integralidade, equidade, intersetorialidade, humanização do atendimento e participação social propostos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) demanda constante reformulação das práticas realizadas pelos diversos profissionais que compõem o quadro da atenção à saúde. Entre essas reformulações encontra-se a proposta da atuação em equipe multiprofissional na assistência ao usuário (Ministério da Saúde, 2006b). Ela, segundo Peduzzi (1998), configura-se como uma modalidade de trabalho coletivo baseada na comunicação e no diálogo como instrumentos fundamentais para a interação entre os agentes e a troca de saberes técnicos, visando à integração dos diversos profissionais em prol de um objeto comum – o paciente.

O SUS, Ministério da Educação junto com o Ministério da Saúde, desenvolveu o programa de residência multiprofissional em saúde (Ministério da Saúde, 2006b). As residências não médicas multiprofissionais em saúde existem no Brasil desde 1978 (Ministério da Saúde, 2006b), regulamentadas pela Lei n° 11.129, de 30 de junho de 2005; entretanto, ainda persiste a escassez de estudos sistemáticos que contribuam para compreender e aprimorar a formação de recursos humanos nesta modalidade, especialmente na área da saúde mental.

Alguns estudos analisaram as contradições e os conflitos inerentes ao processo de institucionalização das residências multiprofissionais e ressaltam que elas poderiam contribuir para desenvolver formas alternativas de atendimento e fomentar a integralidade da saúde a partir da articulação do serviço com espaços acadêmicos (Dallegrave & Kruse, 2009; Clemente, Matos, Grejanin, Santos, Quevedo, & Massa, 2008; Simoni, 2007).

A partir de 2004, houve a inserção dos psicólogos no SUS por meio de portarias ministeriais que incentivam o apoio matricial à saúde da família, reforçando a ampliação desse trabalho. Ainda assim, alguns autores apresentam um panorama frágil no que diz respeito à garantia normativa da inserção. Dos 964 documentos oficiais analisados relativos à regulamentação e à implantação de políticas públicas no Brasil, apenas 14 se referem à inclusão do profissional de Psicologia, predominantemente com participação nos níveis secundário e terciário de assistência à saúde (Boing & Crepaldi, 2010).

A atuação do psicólogo nas equipes multiprofissionais vem se consolidando gradativamente, levando à necessidade de produção de conhecimento nessa área. Nesse sentido, o presente artigo tem por objetivo relatar a experiência da inserção do psicólogo em um programa de na Residência Multiprofissional em Saúde da Mulher.

Residência Multiprofissional em Saúde da Mulher – RMSM

A caracterização da Saúde da Mulher como uma área interdisciplinar vem sendo confirmada em âmbito nacional e internacional há algum tempo. Desde a menarca até depois da menopausa, algumas mulheres sofrem de transtornos físicos e psíquicos específicos relacionados à vida reprodutiva. Somam-se a eles transtornos alimentares, doenças autoimunes, quadros álgicos e de patologias orgânicas específicas, tais como câncer de mama e ovário e endometriose, que também afetam a saúde mental (Justo & Calil, 2006; Rennó & Soares, 2007).

Alguns estudos demonstram que as mulheres sofrem depressão duas vezes mais do que os homens e possuem um índice maior de comorbidades, tanto físicas quanto mentais (Toffol, Koponen & Partonen; 2013 Justo & Calil, 2006). Estão expostas, ainda, a fatores estressores como abuso, estupro e violência desde uma idade precoce, embora nem todas as mulheres que sofrem tais violências desenvolvam transtornos (Steiner, 2005). Neste sentido, a interação entre vulnerabilidade genética, fatores ambientais, fisiológicos, psicossociais, funcionamento neurotransmissor e neuroendócrino, somada ao sentido de resiliência, desempenha um importante papel nas suas patogêneses (O’Mahony & Donnely, 2013; Steiner, 2005; Soares, Joffe & Steiner, 2004; Steiner, Dunn & Born, 2003).

Por outro lado, Ferraz & Kraiczyk (2010) apontam que o símbolo do início da discussão de gênero na política de saúde foi com o Programa Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher (PAISM), em 1983, ao abordar a mulher além do sistema reprodutivo. Contudo, atualmente, o trabalho realizado pelo SUS ainda demonstra uma visão biologicista vigente na prática dos seus profissionais de saúde dirigida à mulher, principalmente ao que concerne às questões de gênero (Coelho, Silva, Oliveira & Almeida, 2009). Por mais que os trabalhadores do SUS identifiquem essa fragilidade no cuidado, não potencializam suas ações para supri-la adequadamente (Coelho, Silva, Oliveira & Almeida, 2009). Essa atitude promove a reflexão sobre novas ações para combater esse desfecho e possibilitar condutas de acordo com a proposta de integralidade e universalidade do SUS.

O programa de Residência Multiprofissional em Saúde da Mulher (RMSM), objeto deste estudo, foi criado com o objetivo de formar profissionais aptos a realizar ações de caráter multidisciplinar e interdisciplinar para a promoção, prevenção e recuperação da saúde da mulher em idade reprodutiva nos diferentes níveis de atenção, propiciar intervenções críticas no trabalho em equipe e melhorar a qualidade de vida da mulher de forma integral. Logo, este programa visa alcançar em sua prática os princípios norteadores do SUS em um público específico – as mulheres.

As atividades dos residentes consistiam em sessenta horas semanais, das quais 80% se concentravam na prática assistencial e os 20% restantes, atividades teórico-práticas. A parte teórica ocorria através de aulas ministradas de forma multiprofissional e seminários específicos de cada profissão, com a participação de todos os 16 residentes de cada turma; nas atividades práticas, os residentes eram divididos em equipes compostas por quatro residentes, sendo dois representantes da área de enfermagem e dois representantes que poderiam ser das seguintes áreas - Educação Física, Farmácia, Nutrição e Psicologia.

A RMSM configurou-se como uma estratégia para a promoção de diálogo entre profissionais das diferentes áreas, sendo que, no primeiro ano, o trabalho desenvolvido pelos residentes (R1) voltou-se para a Atenção Primária em Saúde, e no segundo ano (R2) para a Atenção Secundária e Terciária.  Ao longo do primeiro ano, cada equipe multiprofissional de R1 ficava alocada em uma das 4 Unidades Básicas de Saúde (UBS), enquanto, no segundo ano, cada equipe de R2 permanecia temporariamente em diferentes setores do Hospital Universitário (HU) e Ambulatório de Especialidades do Hospital Universitário (AEHU).

Atuação do Psicólogo nas Unidades Básicas de Saúde

As Unidades Básicas de Saúde (UBS) em que se inserem os residentes do programa RMSM contam com outros profissionais para o trabalho, como médicos (clínico geral, ginecologista e pediatra), enfermeiros, dentistas, agentes comunitários de saúde, agentes de endemias, técnicos de enfermagem, técnicos em saúde bucal, técnicos administrativos e auxiliares de limpeza.

A primeira questão vivenciada pelos residentes das diferentes áreas foi o entendimento em como atuar nas UBSs localizadas em bairros que possuem um alto índice de violência. O cuidado com a segurança dos residentes motivou preocupação e diálogos entre tutores e preceptores, assim resolveu-se agregar à equipe os Agentes Comunitários de Saúde (ACS) quando houvesse intervenções fora das UBSs.

Outra situação desafiadora foi a falta de psicólogos, nutricionistas, educadores físicos e farmacêuticos nas equipes profissionais das UBSs. Em algumas havia o serviço de psicologia e nutrição ligado ao Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF), sendo apenas quatro horas semanais por UBS, situação similar à vivenciada por psicólogos de outros programas de residência (Cezar, Rodrigues & Arpini, 2015). O residente (R1) de Psicologia deparava-se também com a ausência de espaço físico para o atendimento psicológico. Situação que provocava desconforto nos R1, recém-formados, que foram preparados para exercer a clínica em consultórios, onde a privacidade e o sigilo são condições absolutamente necessárias. Tal desconforto evidenciou a ausência de conhecimento dos residentes sobre a Clínica Ampliada que possibilita uma prática humanizada e diferenciada ao mostrar urgência no trabalho multi e interdisciplinar, por compreender o processo saúde-doença como sócio-histórico-cultural (Araújo & Xavier, 2014; Brasil, 2009). Contudo, os profissionais do SUS ainda sofrem dificuldades em aplicá-la, uma delas devido à falta de diálogo entre os diferentes profissionais (Cerqueira & Castelar, 2017).

Portanto, o primeiro desafio foi viabilizar, dentro das condições existentes, um ambiente para a atuação do psicólogo. Esta movimentação para criar espaço – este além do lugar físico, mas sim, um espaço de compreensão da atuação do psicólogo –  causou resistência dos profissionais que já atuavam na UBS. Foram realizadas reuniões com esses profissionais, abordando as possibilidades de atuação do psicólogo e da equipe multiprofissional, as quais se caracterizaram como capacitações para o trabalho, onde foi enfatizado o compromisso ético e o respeito com o outro, com os demais profissionais e, principalmente, com as usuárias do serviço. Após a capacitação e com o ambiente mais integrado, cada equipe multiprofissional procurou construir a sua atuação a partir das demandas levantadas nas unidades. A equipe de R1 desenvolveu atividades educativas por meio de campanhas, acolhimento em salas de espera e grupo de gestantes e ações de sensibilização da equipe, usuárias e comunidade. Realizou-se um mapeamento das mulheres atendidas nas UBSs e posteriormente foram construídos projetos de intervenção.

O programa multiprofissional desenvolvido nos dois primeiros anos foi o projeto Na Medida, que teve o objetivo de atender mulheres em idade reprodutiva com doenças cardiovasculares e metabólicas, para que tivessem mudanças significativas na qualidade de vida, que seriam advindas da reeducação alimentar, prática de exercícios físicos e aspectos gerais da saúde da mulher. Houve uma preocupação especial das residentes de Psicologia em acompanhar as mulheres durante a realização do programa e considerar os aspectos afetivo-emocionais que estão presentes nesses casos. A intervenção da psicologia foi relevante para esse trabalho pois pôde contribuir no processo de ressignificação de como a obesidade e a relação desses sujeitos com o mundo, e ainda levar aos outros profissionais a preocupação com os aspectos emocionais envolvidos no processo almejado (Gromowski, Cordeiro, Naves, & Carreira, 2016).

Ao iniciar o segundo ano de atuação do programa da residência na UBS, verificou-se que tanto a equipe de saúde quanto a população atendida buscavam por serviços prestados pela Psicologia. O trabalho realizado pelos residentes de Psicologia durante o primeiro ano possibilitou a integração do psicólogo – enquanto membro de equipe multiprofissional – com os demais trabalhadores da UBS e seu trabalho pode ser melhor compreendido, favorecendo as atividades desenvolvidas para promoção da saúde na atenção básica.
Ao iniciar nova turma, os residentes R2 apresentaram aos novos integrantes (R1) como ocorria a atuação da Psicologia tanto nas atividades realizadas em equipe multiprofissional quanto específicas da área. Para se ambientar no serviço e encontrar um espaço de atuação multiprofissional, os novos residentes fizeram um estudo visando conhecer e diagnosticar a realidade das UBSs. Ao realizaram um levantamento das condições geográficas, nível socioeconômico, problemas de saúde física e mental da população atendida, os residentes começaram a perceber de forma mais concreta a carência de serviços de psicoprofilaxia e tratamento psicológico à população referida. Percebe-se que a estratégia tem sido utilizada em outros programas de residência multiprofissional (Cezar, Rodrigues & Arpini, 2015), a qual também contribui para que o psicólogo R1 possa desenvolver a sua identidade como profissional de saúde, considerada uma das funções dos programas de residência (Reis & Faro, 2016).

A partir de então, verificou-se uma busca por locais e formas alternativas, para que o serviço da residência pudesse ser realizado e aprimorado em cada uma das UBS, pois, apesar de, no ano anterior, os residentes terem conquistado um espaço para atuação – inclusive do psicólogo –, ele ainda não estava consolidado. O incômodo inicial vivenciado nesta segunda turma de R1 era ter o seu trabalho pouco valorizado e/ou questionado pelos profissionais das respectivas UBSs. No entanto, à medida que o trabalho do psicólogo foi ocorrendo, verificou-se que os próprios funcionários das UBSs começaram a solicitar o encaminhamento/atendimento psicológico para pessoas do seu convívio – atendimentos estes de maneira individual e/ou em grupo e, em sua maioria, multiprofissional.

As atividades realizadas pelos R1 de psicologia eram supervisionadas por tutores – psicólogos docentes. Além disso, havia reuniões periódicas com a equipe multiprofissional formada pelos residentes das demais áreas e respectivos tutores, nas quais eram organizadas as atividades específicas em que a equipe multiprofissional participava. Os tipos de atendimento e as frequências respectivas variaram em função das características e demandas da população atendida em cada UBS. Durante o período de um ano, foram contabilizadas as atividades realizadas pelos R1 de Psicologia nas duas UBSs.

Ao analisar as atividades desenvolvidas durante os dois primeiros anos da RMSM, verificou-se que inicialmente as práticas desenvolvidas pelos R1 de psicologia estavam mais voltadas ao atendimento individual, de certa forma reproduzindo as práticas tradicionalmente vivenciadas durante os estágios realizados nas clínicas-escola. Fato mencionado por outros psicólogos ao relatar suas experiências em residências multiprofissionais (Cezar, Rodrigues & Arpini, 2015).

Pouco tempo após o início das atividades da RMSM, os psicólogos foram solicitados a participar de visitas domiciliares em que as equipes de saúde levantavam hipóteses de problemas psicológicos em pessoas com dificuldades em buscar atendimento nas UBSs, a partir dos relatos das ACSs. Além disso, os R1 começaram a participar das visitas puerperais domiciliares, previstas pelos protocolos do SUS (Ministério da Saúde, 2015, 2013, 2012, 2006a), que devem ser realizadas nos primeiros dias após o nascimento dos bebês com o intuito de avaliar a saúde física e psicológica das puérperas e dos recém-nascidos. Embora os protocolos solicitem a avaliação psicológica da díade mãe-bebê, não está prevista a participação do psicólogo nas visitas (Ministério da Saúde, 2015). Assim, resolveu-se realizar uma pesquisa por meio de observação das interações mãe-bebê e também entre as puérperas e equipe de saúde, o qual contribuiu para melhorar a maneira como a visita puerperal era conduzida nas respectivas UBSs. Logo, a residência não funcionava apenas como forma de aprimorar as habilidades dos residentes, mas também para melhorar o serviço já instituído.

Movido pela demanda da população e também pela necessidade de prestar auxílio psicológico mais imediato, foi realizada a escuta dos pacientes enquanto aguardavam pelos diferentes atendimentos nas salas de espera, atividade que tem sido considerada relevante em outras residências multiprofissionais (Cezar, Rodrigues & Arpini, 2015). Outra atividade que incorporou o residente de psicologia – e demais áreas – aos serviços da UBS foi a participação em grupo de artesanato já existente e coordenado pela enfermeira. Esta integração favoreceu às pacientes partilharem as dores psíquicas e encontrarem um ambiente de escuta compreensiva enquanto confeccionavam seus produtos e o serviço ofertado pela UBS se tornou multiprofissional.

Uma questão fundamental do trabalho na Atenção Básica foi o contato com a realidade social das famílias atendidas, observada especialmente nas visitas domiciliares, a qual muitas vezes englobava inadequação das residências, condições de higiene precárias, falta de informação quanto aos atendimentos disponibilizados, medicamentos, diagnóstico, entre outros. A partir dessa experiência foi possível identificar e buscar encaminhamentos para os usuários que necessitavam de serviços especializados.

A grande demanda de pessoas em situação de vulnerabilidade social por atendimento psicológico naqueles contextos motivou o desenvolvimento de atendimentos em grupo partilhados pela equipe multiprofissional da residência, corroborando as vivências relatadas por outros autores a respeito da participação dos psicólogos em equipes multiprofissionais (Lima & Santos, 2012; Mendes, Matos, Schindler, Tomaz, & Vasconcellos, 2011). Entre as várias atividades desenvolvidas destacaram-se as seguintes: campanhas educativas, consultas compartilhadas em situação de coleta de CO, pré-natal e planejamento familiar, grupos de apoio, de artesanato e de gestantes, reuniões com outros serviços de saúde, palestras sobre visitas domiciliares e, especialmente, visitas puerperais domiciliares. Desta maneira, as atividades realizadas buscaram atender as propostas de humanização do SUS (Brasil, 2009).


Experiência no Ambulatório de Especialidades e Enfermaria

A inserção da RMSM na Atenção Secundária começou pelo Ambulatório de Especialidades do Hospital Universitário (AEHU) da instituição onde se situa a residência. Foi um desafio iniciar as atividades neste campo pois, apesar da receptividade ao programa, na prática, os residentes se depararam com muitas dificuldades, tais como falta de ambiente físico para a atividades da equipe multiprofissional, recusa de alguns médicos em aceitar a presença dos residentes no ambulatório de sua especialidade e a dificuldade de reconhecer o trabalho desenvolvido pela equipe multiprofissional por parte dos funcionários e técnicos.

Diante desses obstáculos para atuação da residência no AEHU, foi apresentado um projeto para criar o Ambulatório Multiprofissional de Atenção à Saúde da Mulher (AMASM) no AEHU com o objetivo de oferecer atendimento multiprofissional às mulheres atendidas nas clínicas de ginecologia e obstetrícia, as quais já estavam consolidadas no atendimento específico à saúde da mulher, bem como na clínica médica, devido à prevalência das doenças crônicas degenerativas na população feminina, cujas morbidades são frequentemente associadas aos maus hábitos alimentares, à prática insatisfatória de atividade física, ao alto consumo de diferentes medicamentos, a não adesão ao tratamento, entre outros fatores de risco.
O encaminhamento era realizado pelos médicos, com a colaboração dos R2, que selecionavam os casos que poderiam se beneficiar do atendimento no ambulatório multiprofissional. Inicialmente realizava-se uma consulta compartilhada para identificar a necessidade de intervenção; nesse primeiro contato, dois ou mais residentes estavam presentes. Posteriormente, a paciente poderia ser atendida individualmente ou através da equipe multiprofissional.

A avaliação afetivo-emocional das mulheres encaminhadas ao AMASM foi realizada através da Escala Diagnóstica Adaptativa Operacionalizada - Revisada (EDAO-R) (Yoshida, 2013; Simoni, 2007; Simon, 1997), fundamentada na concepção de que a adaptação é o resultado de um processo contínuo e permanente do indivíduo no enfrentamento das intercorrências e na busca da preservação da vida (Yoshida, 2013). A EDAO tem sido considerada útil em diferentes contextos como um procedimento auxiliar na avaliação dos recursos adaptativos do indivíduo e nos encaminhamentos para psicoterapia (Yoshida, 2013; Yoshida, Enéas & Santeiro, 2010). O psicodiagnóstico adaptativo, por meio da EDAO, favoreceu a comunicação com a equipe multiprofissional, ao demonstrar as dificuldades apresentadas pela mulher nos diversos setores avaliados pela escala - afetivo - relacional, produtividade, sociocultural e orgânico (Simoni, 2007), decorrentes da problemática vivenciada pela mulher naquele momento da vida. Assim, foi possível realizar o planejamento das intervenções multidisciplinares e, quando necessárias, psicológicas individuais.

Os casos acompanhados no ambulatório eram discutidos uma vez por semana junto com os tutores das diferentes áreas para propostas de intervenções multiprofissionais. Entre as atividades realizadas destacaram-se a criação do grupo operativo Mente-Corpo e do grupo com pacientes de quadro ansioso e compulsivo, coordenados pela psicologia e com integração das outras áreas.

Experiência na Enfermaria e Maternidade

Os residentes R2 desenvolviam atividades na enfermaria feminina e na maternidade do Hospital Universitário. A enfermaria feminina possuía 41 leitos de alojamento conjunto e sete leitos de isolamento, onde as pacientes eram acompanhadas pelas diferentes clínicas, com predomínio de neurologia, cardiologia, ortopedia, reumatologia e hematologia. Além de médicos, enfermeiros e técnicos de enfermagem, a enfermaria contava com a presença de residentes de medicina, fisioterapia e enfermagem. Os residentes da RMSM realizavam atividades multiprofissionais por meio de consultas compartilhadas e também atendimentos específicos a cada profissão. Os psicólogos R2, além das atividades multiprofissionais, realizavam o psicodiagnóstico das mulheres por meio da EDAO e, quando necessário, realizavam atendimentos individuais.

O HU é considerado de complexidade terciária, sendo que na maternidade eram atendidas predominantemente mulheres que tiveram gestação de alto risco. Sendo assim, na maioria das vezes, a realização dos partos demandava atendimento especializado à díade. A equipe multidisciplinar alocada na maternidade passava a visita nos leitos dando orientações básicas sobre o cuidado com o recém-nascido e com a puérpera, sobre o aleitamento materno e buscava também desvendar mitos sobre alimentação e aleitamento, entre outros. Além disso, observava-se o desenvolvimento da interação mãe-bebê, desde o pré-parto até a alta de mãe e recém-nascido. Caso fosse percebida alguma dificuldade na interação mãe-bebê, a psicóloga fazia um acompanhamento individualizado, com intervenções pontuais até a alta da maternidade. Caso necessário, realizava-se o encaminhamento para o serviço de psicologia da UBS. Uma vez por semana havia discussão dos casos atendidos na enfermaria com toda equipe de residentes e tutores.

A atuação específica da psicologia ocorreu por meio de visitas multiprofissionais aos pacientes e seus familiares e, quando necessário, atendimentos individuais. Ambas atividades com objetivo de oferecer um espaço de escuta, suporte e acolhimento a eles diante o adoecimento e a hospitalização.

Atividades teórico-práticas das equipes multiprofissionais

As atividades teórico-práticas da RMSM, tanto na atenção básica em saúde como nos serviços de atenção secundária e terciária, foram realizadas através de discussões multiprofissionais de casos clínicos junto com os tutores das diferentes áreas. As atividades eram realizadas em momentos distintos com os R1 e R2, quando cada equipe de residentes selecionava um caso, de acordo com especificidades do tema proposto para cada encontro científico, através da apresentação da história clínica, considerando aspectos somáticos e afetivo-emocionais, situação nutricional, uso de medicamentos, hábitos de atividade física, condução de tratamento adotada pela equipe médica. Em seguida, realizava-se um debate sobre as possibilidades de atuação conjunta da equipe multiprofissional. Essa dinâmica possibilitou que todos os residentes (R1 e R2) se inteirassem das vivências das outras equipes e também exporem os seus conhecimentos a respeito dos temas abordados, aprimorando suas habilidades sociais em equipe, especialmente necessárias ao trabalho multiprofissional.

Observou-se que na formação acadêmica dos profissionais da área de saúde o conhecimento sobre a atuação em equipe multiprofissional era superficial. Entretanto, o contato, diário e intenso, com os diferentes profissionais possibilitou conhecer melhor a função de cada área e apreenderem um fazer multiprofissional singular. Por outro lado, o curto período de tempo em cada setor hospitalar não favoreceu maior interação com os profissionais já estabelecidos nesses locais.

A experiência destes três primeiros anos trouxe muitos ganhos, entre eles o manejo do trabalho em equipe. Foi possível traduzir e fazer-se compreender dentro das questões específicas da área da psicologia, de forma que os outros profissionais também pudessem refletir sobre suas práticas e os aspectos subjetivos que acompanhavam a paciente, guardando e respeitando o código de ética profissional.

Considerações finais

A experiência de atuação na residência multiprofissional em saúde da mulher foi desafiadora por se tratar de uma população específica com maior vulnerabilidade tanto nos aspectos histórico, social, cultural, psicológico quanto biológico.

Nesta experiência observamos algumas possibilidades de contribuição da psicologia, como por exemplo, o serviço de escuta psicológica como um ponto de partida dos processos coletivos e da inserção do saber e da prática da psicologia no campo da saúde. Assim, a escuta psicológica contribuiu para minimizar o sofrimento psíquico das mulheres atendidas pelo programa da residência. As discussões de casos, as intervenções terapêuticas coletivas ou singulares, as consultas compartilhadas e as atividades educativas de campo foram estratégias importantes na construção do trabalho em equipe. Essas experiências demosntram a necessidade do psicólogo nos programas com foco na saúde da mulher, pois a prática se estabeleceu como parte de um trabalho coletivo que demandou a aplicação de vários saberes, caracterizando-o como inter e transdisciplinar, isto é, possibilitando um olhar integral para a saúde dessa população.

Também foi possível identificar a importância do trabalho do psicólogo junto a equipe multiprofissional. A flexibilidade e o amadurecimento profissional conquistado nessa experiência favoreceu o trabalho das diferentes áreas, de modo a aumentar a qualidade dos atendimentos as pacientes, bem como melhorar as relações existentes entre residentes e profissionais dos serviços de saúde. Desta maneira, como apresentado neste estudo, a formação multiprofissional contribui para o desenvolvimento de profissionais que operam no referencial científico utilizando o recurso do pensamento crítico, com atitudes interdisciplinares e humanizadas, contribuindo para o atendimento integral, universal e humanizado preconizado pelo SUS às mulheres brasileiras.


Referências

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Data de submissão: 05/04/2017
Data de aceite: 27/11/2017

 

I Silvia Nogueira Cordeiro: Docente do Departamento de Psicologia e Psicanálise da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: silvianc2000@gmail.com

II Maria Elizabeth Barreto Tavares dos Reis: Docente do Departamento de Psicologia e Psicanálise da Universidade Estadual de Londrina. E-mail: bethtavaresreis@gmail.com

III Nathália Tavares Bellato Spagiari: Psicóloga pós-graduanda em Clínica Psicanalítica pela Universidade Estadual de Londrina (UEL) e pós-graduada pela Residência Multiprofissional em Saúde da Mulher pela UEL. E-mail: nspagiari@gmail.com

IV Weronica Derene Adamowski: Mestranda em Desenvolvimento Regional e Sistemas Produtivos da Universidade Estadual do Moto Grosso do Sul (UEMS). E-mail: wero_derene@yahoo.com.br

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