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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.7 no.3 Porto Alegre Sept./Dec. 2017

 

ARTIGOS

 

“Fantástica Fábrica de Leite”: Problematizando o Discurso de Apoio à Amamentação

 

“A Fantastic Milk Factory”: Problematising the Discourse in Support of Breastfeeding

“Fantástica Fábrica de Leche”: Problematizando el Discurso de Apoyo a la Lactancia Materna

   

 

Débora Fernanda HaberlandIAndrea Cristina Coelho ScisleskiII

II Universidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS, Brasil.

 

 


RESUMO

A amamentação, é foco de discursos das políticas direcionadas à gestante. O pré - natal tem como principal objetivo a diminuição da morbidade e da mortalidade materna e infantil. Este artigo busca problematizar as políticas de apoio à mulher durante a gravidez no contexto de uma instituição filantrópica que oferece o serviço. Trata-se de uma pesquisa-intervenção, sendo realizadas oficinas com as gestantes. Nas discussões apontamos as falas trazidas por essas mulheres sobre como se sentiam e os discursos dos profissionais de saúde relatados por elas. Para análise, embasamo-nos nas reflexões foucaultianas para debater como esse discurso se conecta às políticas públicas direcionadas a elas e como delas se distancia. Conclui-se que os discursos atuam gerando determinados modelos relacionados a amamentação e à função como mãe. O controle do corpo, a influência da mídia e o julgamento social estão presentes nos atendimentos e produzem referência de como devem ser mães.

Palavras-chave: Aleitamento Materno; Discursos; Gestação.


ABSTRACT

Breastfeeding is a focus of policy discourses directed at pregnant women. Pre-natal care has as principal objective the protection of both mother and child and aims at reducing their morbidity and mortality rates. This paper seeks to problematise assistance policies directed at pregnant women by a philanthropic institution providing pre-natal assistance. An intervention-research was carried out and two workshops were organised with pregnant women. In the discussions with the participants, we focused on their testimonials as to how they felt and their accounts of the discourses of health professionals. The analysis was based on a Foucauldian scaffolding to assess how women’s discourse is connected to current public policies directed at them and how this discourse is also disconnected from them. We conclude that the discourses generate specific models of breastfeeding and bolster women’s role as a mother. The control of the body, the influence of the media and judgmental social attitudes permeate care practices for pregnant women and generate a prescriptive normative reference for mothering.

Keywords: Breastfeeding; Discourse; Pregnancy.


RESUMEN

Los cuidados con la lactancia materna, tanto durante el prenatal o el pos-parto, son focos de discursos de las acciones direccionadas a la mujer y  forman parte de los cuidados médicos e sociales , según orientación del Ministerio de Salud, teniendo como principal justificación la disminución de la morbilidad y de la mortalidad del lactante y la madre. Este artículo busca problematizar las políticas de apoyo a la mujer durante el ciclo del embarazo, parto y puerperio en el contexto de una institución filantrópica que ofrece el servicio de asistencia prenatal. Para realizar el estudio, se ha optado por la investigación e intervención, siendo realizados talleres, previamente programados con las gestantes. En las discusiones con las participantes, apuntamos las conversaciones traídas por esas mujeres acerca de cómo se sentían y los discursos de los profesionales de salud según lo relatado por ellas. Para el análisis, nos basamos en las reflexiones de Foucault para debatir como el discurso presentado por las gestantes se articula a las políticas públicas dirigidas a ellas en ese momento y cómo de ellas se aleja. Se concluye que los discursos actúan generando determinados modelos relacionados con la lactancia materna y en el papel cómo madre. El control del cuerpo, la influencia de los medios y el juicio social atraviesan las prácticas de atención de las gestantes y producen referencia de cómo deben ser madres.

Palabras-clave: Lactancia Materna; Discursos; Gestación.


 

 

Introdução

Este artigo objetiva discutir a visão de gestantes sobre o processo de tornar-se mãe, considerando aspectos sociais que as subjetivam, especialmente no que tange à problemática de “apoiar” o aleitamento materno durante o ciclo gravídico puerperal. Esta discussão origina-se de uma pesquisa de mestrado que visava a problematizar a transformação da mulher em mãe, valendo-se da realização de oficinas com gestantes atendidas em um hospital filantrópico em Campo Grande (MS), finalizada em 2015.

A pesquisa emergiu da vivência de práticas cotidianas de enfermagem nessa instituição, onde, embora houvesse um programa de pré-natal instituído e com consultas regulares, muitas gestantes buscavam atendimento na área querendo sanar dúvidas durante a consulta de puericultura; as gestantes alegavam que muitas dúvidas não eram contempladas durante as consultas médicas de pré-natal. O referencial teórico que sustenta a análise da pesquisa baseia-se no pensamento foucaultiano.

A partir deste pensamento, temos os dispositivos de controle do corpo – a disciplina que operam para que se adapte o sujeito a uma conduta esperada. Assim, também na lógica da disciplina, se problematizarmos, percebemos que o aleitamento, as mulheres são responsabilizadas pelo sucesso ou fracasso não apenas do próprio processo de amamentar, mas sobre algo que irá refletir a sua posição como mãe. Desse modo, muito além da fala embasada em uma visão biológica de produção do leite, muito comum entre os profissionais de saúde, a “Fantástica Fábrica” que se produz do Aleitamento Materno, estão envoltos em jogos de poder e saber. Muitos fatores se articulam e influenciam grandes padrões de comportamentos para as lactantes, dessa maneira, o aleitamento materno se torna um dispositivo de controle da conduta da mulher, não apenas frente à alimentação da criança, mas governando os modos como deve conduzir uma moral frente à sexualidade, ao seu próprio comportamento e à sua competência como mãe.

Dos Protocolos Às Formas De Gestão: Gerir A Família Por Intermédio Da Mãe

Para uma primeira aproximação com o atendimento à mulher gestante, referenciamos o Manual Técnico do Pré-natal e Puerpério: atenção qualificada e humanizada (Brasil, 2005), e a Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher: princípios e diretrizes (Brasil, 2004a). Nesses materiais, a proposta de redução de índices e taxas de mortalidade, bem como em nortear protocolos que envolvem os atendimentos dessas mulheres. Contudo, há de se salientar dois pontos que aparecem no Manual técnico do pré-natal e puerpério (Brasil, 2005): a escuta ativa das mulheres e de seus acompanhantes e a realização de atividades educativas em grupo ou individualmente. Neste último aspecto, a ideia das oficinas, que será apresentada adiante, conecta-se com essas recomendações que embora não seja explicitada mais acuradamente no manual, se tornou para nós um importante instrumento metodológico.

Além dos manuais, a Organização Mundial da Saúde (OMS) entende a assistência pré-natal como “um conjunto de cuidados médicos, nutricionais, psicológicos e sociais destinados a proteger o binômio mãe-feto durante a gravidez, o parto e o puerpério, tendo como principal finalidade a diminuição da morbidade e da mortalidade materna e perinatal” e estimular o aleitamento materno. Ainda hoje, como rotina no pós-parto, mediante uma “gama de informações”, os profissionais de saúde orientam sobre aleitamento; porém, considerando-se que a puérpera está passando por um período de transformações físicas e psicológicas, ela nem sempre consegue absorver todo o conhecimento ou colocá-lo em prática imediatamente. É importante explicar que, na prática da enfermagem, é enfatizada a assistência à mulher e ao recém-nascido (RN) durante todo o ciclo gravídico puerperal. A reflexão sobre como a mulher se sente quando amamenta, como ela se vê diante de todas as mudanças pelas quais passa e as dificuldades que encontra durante a amamentação levou-nos a repensar a prática profissional, refletindo sobre as ações de cuidado realizadas pelos profissionais de saúde no pré-natal para a promoção do aleitamento materno.

Para realizarmos esta pesquisa optamos pela pesquisa-intervenção, onde realizamos oficinas. Na pesquisa-intervenção existe a produção fundamental de uma interação direta com os participantes, delineada a partir de trocas entre participantes e pesquisador. É importante destacar que diversos pesquisadores têm trabalhado com pesquisa-intervenção e que essa estratégia metodológica é já bastante reconhecida nas ciências humanas (Maraschin, 2004; Maraschin, Chassot & Gorczevski, 2006; Szymanski & Cury, 2004). A pesquisa foi realizada após a autorização do Comitê de Ética e Pesquisa – CEP/UCDB. As participantes foram esclarecidas sobre a pesquisa e assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) para participação.

Podemos dividir a estratégia metodológica desta pesquisa em dois eixos. Um eixo que contempla a realização das atividades, e outro eixo que abrange a forma pela qual a análise se dará. No primeiro caso, optamos pela pesquisa-intervenção, na qual trabalhamos com oficinas. Segundo caso, a parte da análise, foi composta a partir da elaboração de diário de campo dos encontros das oficinas, escrito pela pesquisadora. A partir das falas oriundas das oficinas registradas no diário, passou-se à análise de discurso a partir da pesquisa, não são antagônicos desta pesquisa, não são antagônicos os divergentes, mas agregam-se como ações distintas que, juntas, compõe um campo rico de análise. Evidentemente, não queremos propor com isso que se trata de um método aplicável, como uma fórmula, inúmeras pesquisas, porém, enfatizar a possibilidade de atuar em conjunto com estratégias deferentes, mas nem por isso incompatíveis.

Segundo Maraschin e cols. (2006), a oficina é um espaço de intervenção que se produz no próprio exercício de oficinar. A estratégia da oficina opera como uma rede de elementos interconectados capaz de sofrer alterações estruturais ao longo de uma história coletiva com certa permanência (Maraschin e cols., 2006). Essa proposta de intervenção no grupo de gestantes, voltada para a discussão de temas em que as participantes tivessem interesse. Optamos pela modalidade de oficina, cunhada por nós como “Oficina de Ideias”. Essa modalidade foi escolhida como uma aposta diferente do que ocorria no cotidiano ambulatorial, por entendermos que, para o contexto da pesquisa, seria um modo de trabalhar com as gestantes fora da rotina das consultas. A proposta da oficina consistia em sair de um discurso universal e biológico para adentrar em assuntos trazidos pelas próprias gestantes. As oficinas da pesquisa foram realizadas em dois encontros, previamente agendados. O convite para as oficinas foi feito pela enfermeira durante a primeira consulta do pré-natal, em que as gestantes eram convidadas a participar do grupo para grávidas do hospital. Essa ideia surgiu do incômodo que a prática de enfermagem nos colocava, uma vez que a ação do profissional com frequência se pautava em reproduzir o conhecimento biológico baseado na produção láctea e na ejeção do leite. Tal situação conduziu-nos aos seguintes questionamentos: como pensar a assistência integral e singular se é utilizado sempre um mesmo protocolo para todas? E como fazer isso se a forma de atendimento se restringe ao próprio protocolo ou o reproduz?

Entendemos que as práticas da rotina das consultas pré-natal no contexto do hospital indica o desenvolvimento de um conjunto de ações que investirão sobre o corpo, a saúde, a sexualidade, enfim, sobre formas de viver, e não apenas na mãe e bebê. Nesse olhar, criam-se práticas nas quais os aspectos biológicos dos indivíduos passam a ser um alvo de gestão, tornando-se um importante elemento relacionado à nova ordem econômica capitalista. Essa nova ordem econômica teria desenvolvido uma forma assistencial e administrativa de gerenciamento não apenas do indivíduo, mas do coletivo, da população em geral (Foucault, 1979). O corpo passou a ser considerado em seu aspecto útil, em torno do qual se organizaram dispositivos para assegurar o incremento de sua utilidade. Nesse campo estratégico de gestão, a medicina moderna seria, portanto, uma estratégia Biopolítica (Foucault, 2011; Moura, 2003).
Conforme o Ministério da Saúde destaca, embora os protocolos e políticas para a mulher no período da gestação tenham-se demonstrado em processo de aprimoramento, ainda não se atingiu uma assistência de forma integral e adequada, tanto que houve a necessidade de se intitular uma Política Nacional de Humanização (Brasil, 2004b), revendo-se alguns conceitos e práticas dos profissionais na assistência ao paciente. As políticas tomam a mulher, como quem gera a criança, foco de uma gestação saudável que levará a uma criança também saudável; porém, outras faces das possibilidades da mulher não são muito valorizadas, além das práticas biologizadas e protocoladas, que se concentram apenas no que está institucionalizado, muitas vezes deixando de perceber o que essa mulher procura naquele momento.

Isso é vivenciado na prática corriqueira do profissional de enfermagem, pois as mulheres atendidas têm trazido inúmeras inseguranças, relatando situações em que percebem que as políticas não as têm atendido, principalmente no que se refere às suas atuações como esposas-trabalhadoras-mulheres-mães. Trata-se de um momento em que elas acabam por serem vistas somente na situação de gestantes, com foco na gravidez e na criança que está sendo gerada.
Cabe aqui especificarmos com qual ideia de discurso estamos operando. A partir da perspectiva foucaultiana. Podemos entender o discurso como um conjunto heterogêneo de enunciados de um determinado campo de saber, ultrapassando em muito a ideia de fala ou de texto tão somente; neste caso, a saúde da mulher é, enquanto campo discursivo, constituída historicamente e em meio a disputas de poder (Medeiros, 2008).

As políticas de atenção destacam a necessidade de exercer o cuidado sobre a mulher e diminuir os índices de morte materna, pois crianças sem mães posteriormente acarretarão uma série de gastos à sociedade.

Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse “mais” que os torna irredutíveis à língua e ao ato de quem fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever (Foucault, 1979, p. 55).

Definida como um “conjunto de regras anônimas e históricas, sempre determinadas no tempo espaço, que definiram, em uma dada época e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa” (Foucault, 1997, p. 43).

O aleitamento é abordado como algo que vai muito além de prover alimento ao filho, envolvendo também a responsabilização da mãe pela saúde da criança; sendo assim, a mãe, além de exercer o cuidado, deve ser a mantenedora do alimento da criança. Essa prática visa à diminuição da mortalidade materna e infantil, como destacado anteriormente. Tal conceito refere-se ao modo como instauram-se novas formas de exercício de poder e controle sobre a população, caracterizadas especialmente pelo emprego de estratégias disciplinares dos corpos, tendo suas premissas repercutido sobre as configurações que a maternidade e as práticas de maternagem adquirem no contexto da chamada família moderna.

Ao refletirmos sobre esse cenário, concordamos com Azevedo (2013, p. 153) que afirma que “o discurso compreende os momentos e as práticas desenvolvidas das regras de sua ação e dos sistemas de seus discursos míticos”. O discurso sobre o aleitamento materno permeia diversos tipos de orientações provenientes dos saberes dos profissionais de saúde, que devem ser seguidos pela população. Nas falas das mulheres participantes da pesquisa, vemos claramente o discurso profissional tomado frequentemente como verdade absoluta de quem detém o conhecimento; a quem recebe as orientações e a quem cabe praticá-las. Na perspectiva foucaultiana, o conhecimento e a verdade são questões históricas, são produções sistemáticas que se manifestam também por meio de discursos científicos tidos por verdadeiros e, por isso, aceitos e tomados em toda a sua positividade (Azevedo, 2013). Ao mesmo tempo, novamente, aqui aparece a questão da nosopolítica, uma vez que são os próprios sujeitos - no caso, a família e, mais especificamente, a gestante - que deverão aprender os procedimentos adequados para atender o bebê, especialmente no que tange ao aleitamento, o que, por conseguinte, configura a medicalização da família e do gestar.

As instituições e as normas postulam as regras de controle, de forma a consolidar as leis gerais e vice-versa. Ao pensar sobre o aleitamento, percebemos que as instituições de saúde e seus profissionais destacam uma série de ensinamentos que irão melhorar a saúde da mulher assistida nesse período. Contudo, ao mesmo tempo envolvem estratégias eficientes em vigiar, recompensar, punir e certificar, buscando com que o sujeito tenha o comportamento esperado. Segundo Fischer (2001), tudo está imerso em relações de poder e saber, que se implicam mutuamente; ou seja, enunciados e visibilidades, textos e instituições, falar e ver, constituem práticas sociais por definição permanentemente presas, amarradas às relações de poder que as supõem e as atualizam.

Ainda é muito perceptível a ideia curativa e biologizada em que a mulher é vista como o foco na reprodução. Nessa lógica, privilegia-se a atenção para órgãos reprodutores, e a ideia de uma criança saudável se dá a partir da tomada da mulher considerando-se apenas as características primitivas de “fêmea mamífera”. Essa separação do corpo que privilegia a parte reprodutiva em detrimento de outras funções, não apenas biológicas mas também sociais, reproduz práticas e protocolos de cuidados padronizados. Mas, como padronizar o cuidado e respeitar as singularidades de cada sujeito?

Estas práticas e saberes responsáveis pela administração do governo do outro, articulados pelas diversas artes de governo para dar coesão ao seu exercício sobre a população, delineia uma biopolítica que se ramifica e penetra nos capilares da vida, disciplinando-a e regulando-a (Souza, Sabatine & Magalhães, 2011).

Não estamos negando ou culpabilizando a participação e importância dos profissionais de saúde na promoção do Aleitamento Materno. O que trazemos aqui é pensar de que modo se operacionalizam situações que podem reduzir a mulher que amamenta apenas a sua função de lactante, como ocorre entre os profissionais de saúde quando enfatizam apenas o aspecto biológico do aleitamento materno. Contudo, a ideia neste momento é ressaltar o saber que constitui a formação dos profissionais que atuam na saúde da mulher.

As rotinas dos serviços de saúde muitas vezes promovem situações geradoras de desconforto, tais como insegurança na mãe, conflito na família sobre aleitamento ou dificuldades para realizar a amamentação. Na prática cotidiana da enfermagem, deparamo-nos com enunciados, tais como: “Você quer ser uma boa mãe? Então, tem que conseguir amamentar”, “Depende apenas de você seu bebê ter saúde”. “Você não quer que ele cresça bem e saudável?”, ou ainda, “A natureza é perfeita, mas você não irá ter leite se você não fizer certo”. A atenção à saúde focado nos saberes biomédicos ainda está fortemente presente na formação dos profissionais em saúde.

O aleitamento é algo além da biologia, é influenciada socioculturalmente, toda cultura e crenças se relacionam e estabelecem modos de fazê-lo. Ao retornar a figura da ama-de-leite até os dias do leite em pó, a alimentação da criança, em especial ao lactente, estão envolvidos em questões além da saúde, mas em propósitos de estabelecer diversos tipos de comportamentos que são úteis aos dispositivos de poder.

A realização das oficinas: a produção da subjetividade maternal

Foram realizadas duas oficinas, onde abordamos temas anteriormente sugeridos pelas gestantes, buscando um espaço informal para realizar uma troca de ideias. O convite para as oficinas foi feito pela enfermeira no período de um mês durante a realização da primeira consulta do pré-natal, em que as mulheres eram convidadas a participar do grupo de gestantes do hospital onde se deu a pesquisa. A quantidade de reuniões foi sugerida pelas gestantes devido à necessidade de deslocamento até o referido hospital, por isso, optamos por fazer duas oficinas com um tempo maior de duração, nas datas e horários escolhidos por elas, sendo estas as mesmas datas em que iriam à consulta pré-natal.

Segundo Maraschin e cols. (2006), a oficina é um espaço de intervenção que se produz no próprio exercício de oficinar. Correlacionando este tipo de pesquisa Prudente e Tittoni (2014), afirmam que os argumentos de autoridade, os referenciais teóricos e as problematizações conceituais clássicas e consagradas, pouco dizem, comunicam ou transmitem sobre as singularidades do processo e sobre a experiência, se não estiverem inseridos em um exercício de reflexão e de apropriação pelo sujeito-pesquisador-escritor. Cabe ressaltar que o processo singular da escrita, essa ruptura que se dá no encontro entre as coisas já ditas e a configuração que vai ganhando forma na experiência do sujeito-pesquisa-dor-escritor insere-se nas condições de possibilidade que circunscrevem e con¬textualizam este processo (condições teóricas, linguísticas, práticas, políticas, culturais, históricas, entre outras).
O intuito é acompanhar como os protagonistas da pesquisa penetram e ajudam a moldar os assuntos compartilhando questões, problemas e, em alguns casos, soluções. Vendo essas mulheres como protagonistas do processo de gestar e amamentar, acredito que o espaço aberto pôde deixá-las mais à vontade para que expressassem suas ideias e assim podermos discutir de uma forma menos imposta aquilo que elas apontavam como alvo de seus interesses, possibilitando também o entendimento de que a profissional está ali para auxiliá-las e não impor condutas pelas quais serão avaliadas e julgadas como “boa ou má mãe”. Desse modo, entendo que a oficina é uma via capaz de estreitar vínculos, compartilhando seus medos e angústias também com outras mães em situação semelhante. Para registrar e estar o mais próximo dessas participantes, utilizamos também a ferramenta de um diário de campo, onde eu realizei anotações após cada entrevista inicial para o convite às oficinas e após a realização de cada oficina, além de colocar ali os relatos das participantes que mais me chamaram a atenção, as minhas impressões e outras questões que me afetassem a partir da realização dessas intervenções. Durante as oficinas, surgiram muitas dúvidas relacionadas a questões técnicas, como a pega do bebê e o mito do leite fraco. Na ocasião, foi feita uma exposição geral sobre o leite materno. Durante as falas das mulheres, aparece como elemento importante a influência da avó do bebê, bem como a experiência prévia de aleitamento, no caso das mulheres que já haviam amamentado.

“Ninguém explica pra nós que tem jeito de colocar o neném, só falam que tem que dar de mamar. Se me ensinassem igual antes, agora ia ser bem mais fácil.”

Algumas também apontam a necessidade de conseguir amamentar, não pelo apelo nutricional da criança ou apenas pelas vantagens para a saúde do binômio mãe e filho, mas pela repercussão social e pela própria cobrança que lhes recai a partir desse ato. O sucesso ou fracasso como mãe está muito ligado à condição de conseguir amamentar, como percebemos nas falas destas mães:

“Preciso conseguir, amo muito meu filho, quero ser uma boa mãe.”

“Passei por dias muito difíceis...Eu não conseguia dar o peito, e doía muito, me deu até febre, mas a enfermeira e a fono falavam que tinha que dar. Até que inflamou.”

Essas falas levam-nos a refletir sobre a culpabilização da mulher. Ela se sente responsável diretamente por conseguir ou não amamentar; mais que isso, a amamentação torna-se um dispositivo de (auto)avaliação como boa mãe perante si mesma, a sua família e a sociedade. Especialmente as que tiveram dificuldades também se demonstravam amorosas e preocupadas; essas mulheres querem ser o modelo de mãe descrito e prescrito anteriormente. A estratégia biopolítica de controle, mantida por meio da medicalização, surge nas práticas e nos discursos das pessoas, sobretudo das mulheres. Da mesma forma, o processo de naturalização do ato de amamentar empurra as mulheres para a maternidade como condição e identidade natural (Costa, Stotz, Grynszpan & Souza, 2006).

Desse modo, “focos locais de poder e saber veiculam formas de sujeição e esquemas de conhecimento, relações entre saúde e família, cidadania e práticas de liberdade” (Medeiros, 2008), o que nos leva novamente à questão da medicalização da família e às formas de disciplinar.

“Se a gente consegue logo, vai ter alta mais rápido, e fica mais tranquilo também. O perigo é rachar todo o peito... Aí, para melhorar, é difícil.”

“Temos que saber dar de mamar direito, assim ele ficará com saúde. Todo mundo cobra se ele está mamando no peito.”

Com esse pano de fundo, as ações propugnadas orientam-se, invariavelmente, para informar a mulher sobre as vantagens em ofertar o seio a seu filho e responsabilizá-la pelos resultados futuros, decorrentes do sucesso ou do fracasso (Almeida, 1999). Assim, o que se cria não é uma estratégia para acolher essa mulher, mas uma lógica de informar sobre o aleitamento, o que faz com que, no caso de não conseguir realizá-lo, se sinta culpada. Tal prática procura disciplinar o comportamento da mulher em favor da amamentação, imputando-lhe culpa pelo desmame precoce, que é associado de forma direta a agravos para a saúde de seu filho (Almeida & Novak, 2004).

Nas áreas de saúde da mulher e de saúde da criança, a amamentação constitui um dos focos fundamentais do cuidado, demandando a integração da mulher, da família e do Estado. As famílias têm peculiaridades, sejam elas culturais, religiosas ou sociais, que necessitam ser consideradas. Conforme as recomendações do Ministério da Saúde (Brasil, 2002), é preciso considerar esses fatores para convencer a mãe da importância da amamentação. Embora a amamentação esteja relacionada ao cuidado familiar, outras dimensões, como a comunitária, a religiosa e a estatal, requerem atenção das políticas públicas ao se falar em mãe que amamenta seu filho.

A elevada eficácia e o custo reduzido estão presentes nos discursos sobre o aleitamento materno. Porém, o ato de amamentar está longe de ser um processo simples ou puramente biológico, pois, em muitos casos, representa mais um desafio a requerer adaptações diversas da mulher e de sua família, incluindo a autoimagem, como veremos mais a frente. Além disso, a recuperação requer lidar com dores e líquidos que normalmente não são abordados e que ocorrem no período pós-parto. Esse período, além de trazer muitas mudanças físicas e psicológicas, requer que a mulher cuide de si e da criança, o que muitas vezes gera insegurança.

Constata-se que a alimentação do lactente está envolta em questões que não se referem de modo exclusivo à saúde, denotando, em muitas situações, interesses relacionados à modulação de comportamento social e à economia (Almeida & Novak, 2004). Sobre essa relação de saber-poder. As políticas públicas em saúde para a mulher, os discursos que a tornam um objeto de saber-poder não consistem em perguntar somente o que a ciência diz sobre saúde, e sim o que se diz organizar essa multiplicidade, descrevendo como se articulam esses diferentes campos econômicos, políticos (Medeiros, 2008). Queremos enfatizar que não se trata só da ciência, mas de movimentos políticos e da economia também, no sentido de articulá-los, e não de unificá-los.

Percebemos nas falas que muitas vezes os profissionais visam a auxiliar as gestantes, mas impõem a prática de amamentar como o comportamento que deve ser seguido.

“Eu penso: preciso fazer isso, cuidar da saúde do meu filho acima de tudo, e mesmo que o peito rache ou caia um pouco depois, é o melhor para nós. Então, estou tranquila porque minha médica ajuda muito e disse que o pessoal do banco de leite também vai me ensinar.”

“A enfermagem da maternidade lida com isso todo dia, sabem mostrar para a gente como fazer certo e cuidar de nós e da criança. Bom saber que dá para contar com alguém além da mãe da gente.”

O processo de amamentar, como dito anteriormente, está sob inúmeras influências, seja para a adesão ou para o desmame. Nas falas das mulheres e na experiência profissional, percebemos que cada mãe possui necessidades diferentes; embora todas sejam mulheres com filhos para amamentar, requerem diferentes abordagens e apresentam inseguranças distintas. A mulher que passa por esse processo traz consigo muito das suas experiências de vida prévias como mãe ou não, suas inseguranças e situações vividas anteriormente para suas atitudes frente ao processo de amamentar. Tal situação nos faz refletir sobre a criação de protocolos e a dificuldade de atingir uma assistência interdisciplinar e intersetorial para pessoas diferentes realizarem exatamente o mesmo cuidado.

Todos os aspectos que intervêm na amamentação são sintetizados nas justificativas dadas pelas gestantes para aderir ou não ao aleitamento. Trata-se de um sistema de valores e crenças que afeta e influencia as práticas de cuidado, modificando o modo como elas interagem com a criança, a família e a condução do cuidado. É nessa dinâmica complexa que se situam os discursos gerados sobre a amamentação, o cuidado e os processos de desenvolvimento da família, especialmente da mãe-bebê.

Retomamos aqui as técnicas destinadas a dirigir as condutas no que se refere à saúde, nas formas como construímos relações de saber-poder e saúde - o controle das populações e a saúde não apenas de forma individual, mas também com reflexos no coletivo. Apoiado nos pensamentos foucaultianos, fala sobre os jogos de verdade, os quais se referem ao conjunto de regras de produção da verdade que sustenta uma determinada forma de dominação. “São discursos que constituem um determinado campo e reforçam uma relação permanente de forma (enunciado) e força (poder). Entendendo-se que a verdade é produzida, cada época determina o que pode ser dito e pensado a partir dos “jogos de verdade” (Medeiros, 2008).

Diante das falas relatadas pelas mulheres que já vivenciaram o processo de amamentar, surge uma insegurança quando se trata de conseguir realizar a amamentação. As mulheres querem ser o modelo de mãe já condicionado, e não atingir esse modelo causa insegurança. Relatam também em suas falas como a primeira experiência com os profissionais de saúde ainda traz relações para a postura que pensam em adotar. As experiências negativas ou mesmo quando não se atinge o esperado para o momento causam insegurança.

“Ninguém pergunta se quer dar o peito. Chegam e põem ele para mamar. Me senti meio assim... Nunca tinha ficado sem roupa na frente de estranhos, aí, de repente, tem gente colocando a mão em mim, eu de peito de fora.”

“Eu me esforcei, meu peito rachou tudo de tanto tentar, até me falaram: você não quer ver seu bebê com saúde? Porque minha mãe pediu a receita do leite em pó para a pediatra.”

Tais julgamentos morais expressos nessas falas permitem observar a gestação, o parto e o nascimento como funções reprodutivas do mamífero imbuídas de questões culturais (Orlandi, 1985), que de certa forma reduzem o momento da maternidade à função da mulher como agente de reprodução e de cuidado da espécie (Orlandi, 1985).  A maioria das mães demonstra claramente vontade de amamentar, como nas falas anteriores descrevem que querem ser boas mães, como seu sucesso como mãe também estivesse ligado exclusivamente ao ato de amamentar a criança. Mesmo as mulheres que já vivenciaram o processo de gestar demonstram insegurança em fazê-lo, alegando que cada filho é diferente. Há também o medo de ser rotulada como uma “mãe ruim” ou, ainda, de não seguir as normas dadas pelos profissionais:

“É assim, todo mundo fala para dar mamazinho, mas ninguém explica direito como que faz. Só fui conseguir no segundo filho.”

“A natureza é perfeita, a gente precisa ficar relaxada, que vai dar certo.”

As ações caracterizam-se pela verticalidade das construções e seguem a lógica que reduz a prática da amamentação a um atributo natural, comum a todas as espécies de mamíferos, o que é simbolicamente traduzido em slogans do tipo amamentar é um ato natural, instintivo, biológico e próprio da espécie (Almeida & Novak, 2004, p. 120).

Essa é uma das questões cruciais nas políticas de aleitamento: amamentar não é um ato natural, mas algo que deve ser minuciosamente ensinado, conferido, acompanhado, controlado. Nesse tortuoso processo de adequação às exigências disciplinares para a boa condução da vida, às mães que não se submetem ou simplesmente têm dificuldades, são atribuídos estigmas que as tornam alvos de vários processos de patologização e de discriminação (Souza e cols., 2011).

    Cabe deixar claro que não defendemos um posicionamento contrário à amamentação ou ao aleitamento materno. Entendemos que a maior parte dessas mães nos indica que os profissionais de saúde muitas vezes são os primeiros a colaborarem na avaliação social (e moral) que recai sobre a mãe que não pode/consegue/quer amamentar, a partir de um discurso que a coloca associada a não ser uma boa mãe, diretamente articulado ao ato do aleitamento materno. Essa ideia se faz presente também nas falas:

“Acho que eu não me sentia segura de impedir que outras pessoas decidissem por mim... Eu me senti muito frágil. Eu esperava o apoio das pessoas e, na hora, me sentia apenas cobrada.”

“Cheguei a dizer...Gente, eu quero dar o peito, mas está doendo, alguém me ensina então...”

“Eu era nova, chorava muito... E ninguém disse que doía. Aí, você está nervosa, e chega alguém cobrando... É difícil.”

O fato de essas mulheres admitirem que tiveram ou sentiram medo do insucesso leva a uma prática que coage o sujeito a utilizar - sobre si mesmo, suas ações, seus pensamentos e seus desejos - um discurso verdadeiro; logo, terá que mudar a conduta como um ato de obediência e transformação.

“É barato também, não precisa gastar com a lata em pó, e se der peito a criança não pega doença.”

“Até o médico disse, é prático, não precisa preparar, é limpo e é de graça. Tira o peito, e o mama está prontinho para ela.”

Dependendo da realidade econômica a ser considerada, a ambiguidade amamentação/desmame pode ir além de um embate entre saúde e doença, implicando também aspectos econômicos, entendendo-se que esses processos se associam em todos os momentos à diversidade social (Almeida & Novak, 2004). Essas formas de discurso favorecem a ordem econômica vigente. A presença de profissionais veiculando conselhos favorece uma abordagem individual para questões que envolvem também o coletivo, o econômico e as formas de disciplinar o cuidado.

Apesar de ser aceita a importância da mulher na promoção da amamentação, o campo das políticas nem sempre reflete a ótica da mulher nesse processo (Orlandi, 1985). Devem-se questionar quantos dos profissionais de saúde e das próprias políticas de apoio estão de fato preparados para dar suporte aos anseios das mulheres nesse momento (Almeida & Novak, 2004). Analisando de forma geral as falas geradas durante as oficinas, percebemos que nelas estão presentes não apenas a obrigatoriedade em amamentar como prática para a manutenção de um sujeito saudável, mas outros valores sociais e até mesmo religiosos, como é o caso da culpa inerente à impossibilidade da amamentação. Atrelado a isso, o cumprimento de determinados deveres, alicerçados nos modelos de função feminina a desempenhar, constituindo a amamentação em um ato instintivo e natural, contribuiu para fomentar a amamentação como tarefa a ser cumprida com prazer, o que muitas vezes traz incômodos que as mulheres não imaginavam ou nem sequer admitem para não ferir sua função de excelente mãe.

Reflexões Finais

O acesso maior aos serviços de saúde que temos atualmente favorece também a educação para que se realizem a amamentação e os cuidados da maneira esperada. Constata-se a atribuição de sentidos valorativos por parte dessas mulheres aos profissionais de saúde, em especial às enfermeiras, que atuam diretamente no cuidado da amamentação, seja no âmbito hospitalar ou na saúde coletiva.

Nesse sentido, a Fantástica Fábrica de Leite que se produz na prática da amamentação se constitui nos jogos de poder e saber. O conhecimento e aquele que o veicula podem interferir no estabelecimento de regras e padrões de comportamentos para as mulheres que amamentam, tornando-as capazes ou fazendo-as se sentirem incapazes na gestão desse tipo de cuidado. Nesse discurso, consideramos que não basta à mulher ter as informações referentes à amamentação; ela também deve estar inserida em um ambiente favorável e poder contar com a ajuda de um profissional habilitado para auxiliá-la durante todo o processo, além de ter suporte familiar. Salientamos ainda, nas falas das gestantes, que os fatores biológicos continuam sendo o foco principal nas falas dos profissionais e também nos manuais de recomendação estabelecidos pelas políticas de atenção à mulher.
Nas falas das mulheres que vão ao pré-natal, percebemos também que a situação de gestar é vivida de forma distinta e passível de gerar sentimentos diferentes em cada gestante. Muitas relataram a necessidade de dar ênfase ao diálogo, à sensibilidade e à capacidade de percepção do profissional de saúde, dando condições para que o saber em saúde seja disponibilizado à gestante e à sua família para que ela possa atuar ativamente nesse processo, e não apenas no cumprimento de normas.

Durante a reflexão sobre as oficinas, notamos que, muito além dos protocolos e orientações aprendidas nos manuais das políticas públicas em saúde, temos vidas que precisam ser potencializadas e valorizadas em todos os detalhes de atendimento. A partir dos discursos aqui debatidos, entendemos que o ato de amamentar é mais que um ato biológico - é social e culturalmente condicionado. No espaço das oficinas, percebemos uma diversidade entre as falas e as diferentes situações sociais, mas, ao mesmo tempo, uma preocupação geral com uma conduta “correta” acerca do que vem a ser a posição de mãe em nossa sociedade.

Tecemos e reproduzimos uma série de discursos aprendidos no que tange ao assunto aleitamento, abrangendo não apenas a face biológica, esta que ainda é muito destacada, mas também os fatores que o envolvem, desde questões de saúde relacionadas à criança e à mãe até aspectos de controle do corpo, discursos relacionados a saberes médicos e redução da mortalidade materna e infantil. Todos esses discursos apresentam efeitos diversos sobre o comportamento das mulheres e o desenvolvimento da família. Ações implementadas pelo Estado no intuito de educar e orientar o comportamento no setor saúde, compreendendo a formação dos profissionais de saúde, o planejamento do pré-natal para o aconselhamento em amamentação e os cuidados com o corpo da mãe e da criança, oferecem suporte e monitoramento, além de promoverem mudanças no comportamento por meio da informação.

A participação da mulher durante o pré-natal e puerpério envolve um amplo conjunto de interesses e possibilidades sociais, as quais estão implicadas na postura que cada mulher assume para exercer o cuidado; diante disso, aparece a importância de investir nas formas de controle, gerenciar a maneira como a mulher irá gestar, parir, alimentar e cuidar da criança e da família.

As falas das mulheres acentuavam a importância do cuidado da criança conforme o modelo esperado. O discurso que implica a valorização da figura da boa mãe é generalizado entre os profissionais e até mesmo reproduzido e reverberado nas falas das mulheres como uma naturalização de práticas sociais. Os aparelhos de regulação do corpo, dentre os quais se destaca a medicina (mas não apenas, pois podemos indicar os saberes da saúde com base no discurso biológico como um todo), funcionam como instrumento para esse momento de recodificação dos saberes e práticas sobre a amamentação, constituindo a Fantástica Fábrica de Leite.

O aleitamento materno, tomado aqui como um discurso, embora implique uma dimensão individual de cuidado envolvendo o binômio mãe-bebê, também envolve a coparticipação da família e do Estado. A amamentação não se trata, então, de um assunto que diz respeito tão somente ao seio da mulher-mãe; sobretudo, trata-se de uma questão permanentemente politizada, alvo de disputas do campo do saber (e aqui não apenas médico, mas também familiar e midiático). Essa prática implicará a construção de uma forma de pensar, de sentir, de agir e de desempenhar outra importante função no cuidado direto das famílias. Dessa forma, a presença do Estado e dos saberes biológicos na rotina das famílias é constante.


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Data de submissão: 09/08/2017
Data de aceite: 06/10/2017


I Débora Fernanda Haberland: Enfermeira, Mestre em Psicologia da Saúde pela Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). Doutorando em Psicologia pela UCDB. E-mail: deborahaber@hotmail.com

II Andrea Cristina Coelho Scisleski: Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Atualmente é docente e pesquisadora no Programa de Pós-graduação Mestrado e Doutorado em Psicologia da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB). E-mail: ascisleski@yahoo.com.br

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