SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.8 número1Saúde Mental na Atenção Básica: Dividir ou Somar Apoios Matriciais?Gestos Pesquisantes: Ressonâncias de uma Intervenção em Saúde Mental na Atenção Básica índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2018

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.80417 

ARTIGOS

 

Pesquisa-Intervenção em Saúde Mental: Balançando as Redes da Saúde

 

Research-Intervention in Mental Health: Balancing Health Networks

 

Investigación-Intervención en Salud Mental: Balanzando las Redes de Salud

 

 

Tamires da Cunha SivinskiI, Júlia Monteiro SchenkelII

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

 

 


RESUMO

A implantação de redes de saúde proposta pelo Sistema Único de Saúde (SUS) tem-se dado com diferentes desafios, entre estes, destacamos a construção de um cuidado integral. Como contribuição a este debate nos propomos a discutir a circulação dos usuários do SUS na Rede de Atenção Psicossocial. Apresentamos resultados de uma pesquisa-intervenção participativa realizada de 2013 a 2015 na região metropolitana de Porto Alegre com usuários, trabalhadores e gestores ligados à Rede de Atenção Psicossocial, que pôde acompanhar as práticas de saúde mental na atenção básica. Questionamentos dos usuários acerca dos modos instituídos de encaminhamentos e quanto às possibilidades de vinculação aos serviços foram os eixos de reflexão deste artigo. Conclui que a constituição de uma Rede de Atenção Psicossocial articulada e integrada, tendo a Atenção Básica como ponto de referência requer a renovação de contratos e de vínculos para a produção afetiva e efetiva de cuidado integral.

Palavras-chave: Cuidado Integral; Redes de Saúde; Atenção Básica; Saúde Mental.


ABSTRACT

The implementation of health services networks by the Brazilian Health System has faced many challenges, among which we highlight the institution of integrated care. As a contribution to this debate, we propose to discuss how Brazilian national public health system (SUS) users navigate the Psychosocial Care Network. We present the results of a participative research-intervention conducted from 2014 to 2016 in the metropolitan region of Porto Alegre, Brazil, with users, workers and managers linked to the Psychosocial Care Network that closely follows mental health practices in basic care. Questions from users on norms for referrals and the possibility of securing services were the axes of reflection of this article. Using primary care as a bench mark, we conclude that the constitution of an integrated and harmonised Psychosocial Care Network would require the revision of agreements and relations in order to achieve affective and effective integrated care.

Keywords: Integrated Care; Health Networks; Primary Health Care; Mental Health.


RESUMEN

La implementación de redes de salud propuestas por el Sistema Nacional de Salud se ha dado con diferentes desafíos, destacamos aquí la construccion de un cuidado integral. Para profundizar este debate, discutimos cómo se ha dado el movimiento de los usuarios en la Red de Atención Psicosocial. Presentamos los resultados de una investigación participativa, realizada de 2013 a 2015 en la región metropolitana de Porto Alegre con usuarios, trabajadores y gestores, que puede supervisar este asunto, desde el enfoque de las prácticas de salud mental en la atención primaria. Preguntas de los usuarios acerca de los modos establecidos de referencias y das posibilidades de vinculación a los servicios fueran los ejes de reflexión. Concluye que la constitución de una Red de Atención Psicosocial articulada, teniendo la Atención Básica como punto de referencia requiere la renovación de contratos y de vínculos para la producción afectiva y efectiva de cuidado integral.

Palabras-clave: Cuidado Integral; Redes de Salud; Atención Básica; Salud Mental.


 

 

Introdução

 “Era um, era dois, era cem; Era o mundo chegando e ninguém; Que soubesse que eu sou violeiro; Que me desse o amor ou dinheiro” (Lobo, 1967). Quem nos dera agora tivéssemos a viola para cantar1, comporíamos então uma canção para expressar as impressões e as marcas que o estudo sobre as práticas de saúde mental na atenção básica deixaram em nós pesquisadoras e naqueles que por ela foram envolvidos. Não podendo elaborar uma canção para este fim, buscamos através desta escrita ritmar nossas vivências. O trecho da canção “Ponteio” inaugura este artigo e nos ajuda a cadenciar aquilo que ouvimos de usuários e trabalhadores da saúde, sobre a quantidade de pessoas que por eles passavam e não necessariamente os conheciam, ou sabiam de suas histórias de vida, angústias e potencialidades. Assim, convoca-nos a problematizar o desafio da produção de um cuidado em rede, que se faça integral.

Nesse processo de pesquisa2, o objetivo central era dar visibilidade e qualificar as práticas de saúde mental na atenção básica, bem como contribuir na necessária articulação entre esses campos (Paulon e Dimenstein, 2013). Chamamos para a roda gestores, trabalhadores e usuários da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), convidando-os para o debate sobre o cuidado em saúde mental na atenção básica. A proposta de reunir diferentes atores do campo da saúde para realizar a investigação se justifica por nos basearmos na metodologia de pesquisa participativa de 4ª geração (Guba e Lincoln, 2011), que se desenvolve com ampla participação das pessoas que se envolvem ou são afetadas pelo tema pesquisado. Desse modo, desenharam-se diferentes dispositivos para abranger os envolvidos e interessados na temática proposta pela pesquisa. Foram criados Grupos de Interesse híbridos (GI), abertos para a participação de quaisquer interessados no tema elencado, reunindo, assim, usuários, trabalhadores e gestores da saúde; Grupos Focais com trabalhadores da atenção básica de unidades de saúde; Grupos Focais com usuários dessas unidades de saúde, separadamente; e o Comitê Gestor, composto pelos gestores da saúde dos municípios participantes. Tais dispositivos serviam como espaço de discussão sobre o tema pesquisado, sobre os resultados do PMAQ e de pactuação sobre os rumos da própria pesquisa, como a própria escolha das unidades de saúde a serem contempladas pela pesquisa. Os materiais produzidos nesses espaços eram gravados e registrados em diários de campo. A partir dessa produção de dados, os temas mais recorrentes abordados pelos grupos foram identificados em categorias de análise para a pesquisa. Como resultados das discussões foram criadas as seguintes categorias: concepção de saúde-saúde mental; concepção de prática de cuidado tutelar; concepção de prática de saúde psicossocial; gestão do trabalho; controle social e articulações em rede.  Posteriormente, tais categorias foram discutidas e analisadas coletivamente com os atores do Grupo de Interesses3.

Com essas intenções e referencial metodológico a pesquisa se iniciou nos municípios da região metropolitana de Porto Alegre, distribuindo os pesquisadores em subgrupos que se ocupariam das especificidades de cada território investigado. Este artigo centra suas reflexões a partir dos efeitos desse processo de intervir-pesquisar no município de Viamão. Nesta singularidade do caminhar, produzimos dados conjuntamente com o Grupo de Interesses daquele município, registrando nossas impressões em diários de campo e, selecionando as falas mais relevantes. Neste território, em especial, nos deparamos com a grande relevância com que uma das categorias de análise, “Articulações em Rede”, apareceu na pesquisa do território de Viamão. Mais do que qualquer outra categoria, este tema surgiu com maior ocorrência nos grupos realizados, e mereceu ser problematizado neste artigo. Neste campo de Viamão destacava-se a participação comunitária na rede de saúde, nos deparamos com a potência do envolvimento de associações e usuários voluntários no cuidado em saúde mental na atenção básica. Estes se interessaram pelo tema da pesquisa e, por seu caráter participativo, puderam adentrar nos dispositivos da pesquisa e conosco produzir conhecimento. Nós que pensávamos apenas encontrar os trabalhadores, usuários e gestores, contamos com expressiva participação da comunidade organizada e disposta a apontar as suas necessidades e visões críticas acerca do cuidado oferecido pela Rede de Saúde. Entendemos que tal característica só foi possível por considerarmos em uma pesquisa-interventiva-participativa a relevância da participação de todos os interessados. Dessa forma, diferentes atores puderam nos indicar os caminhos e produzir coletivamente questões sobre a atenção ao usuário da saúde mental no seu território específico.

O presente artigo pretende destacar a questão que mais emergiu naqueles debates: o modo como o sujeito, na condição de usuário, vai produzindo (ou não) sua rede de cuidado a partir de seu encontro com os serviços de saúde. O tema decorre de um nó crítico evidenciado pelos participantes da pesquisa: a questão dos encaminhamentos. A nós era relatado o quão dificultoso se davam os encaminhamentos entre os Centros de Atenção Psicossociais (CAPS) e os serviços da Atenção Básica (AB). Diante dessa problemática, situada pelo campo investigado e dada a importância que ela assume no contexto de funcionamento das Redes de Saúde do SUS, queremos aqui debater: como possibilitar que o usuário efetivamente encontre um novo serviço? Nas situações em que há o chamado “encaminhamento” entre serviço básico e especializado, não seria necessário um “andar junto” no processo de vinculação? Que significa serviços e trabalhadores que compõem equipamentos de uma Rede de Atenção em Saúde estarem funcionando com base em encaminhamentos?

Ocorre que a proposta de Rede de Atenção à Saúde, no âmbito do SUS, se sustenta pela diretriz de territorialidade e integralidade – o usuário sendo atendido no seu território e sua demanda de saúde compreendida de modo integral, vista como um todo. Nessa estratégia, a Atenção Básica aparece assumindo uma função de organização na rede e como um ponto de atenção da RAPS. Nesse enlace, o usuário acaba transitando por diferentes serviços de saúde, sendo ainda importante lembrar que a saúde é apenas uma das políticas públicas dentre outras que envolve os setores como a Assistência Social, a Educação, a Cultura, o Esporte. O diálogo entre estes atores das políticas públicas, para entender o trânsito do usuário nas redes de cuidado, que vai para além do setor saúde, torna-se imprescindível ao cuidado que se queira em Rede. A necessidade de tais caminhos estarem preparados e alinhados é de extrema importância, sob o risco do usuário literalmente “se perder” nos buracos de uma Rede em que deveria ser acolhido e cuidado.

Em espaços de formação de equipes e trabalhadores de saúde, a dinâmica do novelo de lã é comumente utilizada para que os trabalhadores possam visualizar as redes de saúde. Entretanto, a experiência de imersão investigativa que aqui apresentamos nos remeteu a outra imagem de rede. Em vez de um novelo organizado que vai sendo passado de mão em mão, formando uma rede, com a qual, seguindo a linha, visualizamos facilmente o início do fio; encontramos, na verdade, a imagem de fios emaranhados, uma imagem semelhante à imagem final dessas dinâmicas, quando os fios acabam e ficam todos enrolados, sendo quase impossível voltar a ser um novelo de lã em separado.

Entramos nesse emaranhado, que de pronto associamos ao conceito de rizoma, em que nem o começo e nem o fim são localizáveis. O rizoma, pensado por Deleuze e Guattari (1980/1995) em contraposição às estruturas arborescentes, é um conceito que emerge de uma noção de multiplicidade e que escapa às tentativas de totalização, uma infinidade de fios em agenciamento ou, como visto nas dinâmicas, em emaranhamento. Esse conceito nos ajuda a compreender que aquele emaranhado não necessariamente é um problema, ele é, ainda assim, uma rede, que balança, se impõe e se conjuga para cuidar do usuário. Na escrita que aqui desenvolvemos, a partir dessas afetações do campo, propomos discutir como o cuidado em saúde mental se dá na rede concreta, real, não como os ideais de livros ou cartilhas a desenham, mas como um cuidado rizomático que se produz nos encontros, em composição ao território. Para isso, apresentaremos o contexto estudado, análises dos trechos de nossos diários de campo e falas dos participantes da pesquisa. Traremos a multiplicidade do caminho que trilhamos para assim produzirmos conhecimento sobre como ainda é possível acreditar na construção de redes múltiplas que sustentem um cuidado em saúde mental territorial, que contribua para a construção da integralidade na atenção básica.

 

Pesquisar-Intervir-Produzir: Rizomar

“Coisas transformam-se em mim; é como chuva no mar, se desmancha assim; em ondas a me atravessar; um corpo sopro no ar” (Antunes, 2014). Em uma pesquisa-intervenção, trata-se de se colocar entre e fazer parte. Ao absorver os respingos de uma entrada no campo de pesquisa, nos abrimos para as diferentes afecções, modificando escolhas metodológicas de acordo com o próprio caminhar. Utilizamos o modo cartográfico de conhecer aquela realidade, que para Alvarez e Passos (2012), implica acompanhar os processos, estar imbricado com a produção de subjetividade do território habitado. Trata-se de um processo de investigação que se dá encarnado na experiência estudada, diferente de um simples exercício de abstração sobre dada realidade. Encarnamo-nos no cenário, para então conhecê-lo. A ferramenta metodológica da cartografia inverte o escopo do método e temos um hódos-meta, não será o método a priori que nos dirá o que produzir, mas sim o encontro com o campo que produzirá as pistas necessárias para a produção do conhecimento (Passos e Barros, 2009). É o encontro com a multiplicidade do campo que atravessa o sujeito pesquisador, e esse, ao se transformar, produz conhecimento: coisas transformam-se em mim.

Fomos, assim, cartografando e produzindo registros sobre a complexidade da articulação entre equipes de saúde mental e de atenção básica, mas pousamos o nosso olhar, a nossa atenção, no modo como os usuários se localizavam por aquelas redes. Iniciamos tal “habitação” no período de construção do diagnóstico situacional, quando gestores da Atenção Básica e da Saúde Mental nos descreviam que a articulação entre estes campos estava sendo um desafio, nos levando a perceber que havia dificuldades em conceber o usuário da saúde mental como também usuário da atenção básica, e vice-versa. Nos grupos e reuniões em que os gestores se encontravam, os discursos pareciam indicar que usuários da atenção básica eram uns e os da saúde mental eram outros. No decorrer da pesquisa essa questão foi igualmente surgindo nas conversas com as equipes e com os usuários participantes.

A partir daí, fomos criando o Grupo de Interesses e o conceito de rizoma nos ajudou a analisar as produções daqueles encontros. Na botânica, rizomas são plantas que crescem para todos os lados, possuem numerosas ramificações, por cima e por baixo da terra, vão se estendendo nas mais adversas situações climáticas, poderíamos dizer que são quase teimosas. Deleuze e Guattari aplicam tal conceito à filosofia e nos convocam a pensar rizomaticamente:

“Deixarão que vocês vivam e falem, com a condição de impedir qualquer saída. Quando um rizoma é fechado, arborificado, acabou, do desejo nada mais passa; porque é sempre por rizoma que o desejo se move e produz” (Deleuze e Guattari, 1980/1995, p. 23).

Assim como a produção do desejo, fomos percebendo que as redes de atenção à saúde não se fazem burocraticamente nem administrativamente. Não houve caminho pronto, nem fluxo que funcionasse de antemão. Deparamo-nos com percursos, as redes comportavam desistências e insistências, como quando usuários relatavam terem pedido alta do CAPS por não se sentirem acolhidos nas suas demandas; ou quando as agentes comunitárias se organizavam para promover grupos de saúde mental, mesmo sabendo que não tinham o devido apoio de outros pontos da rede. No curso da pesquisa, fomos tateando o território, encontrando portas de entrada para o sistema de saúde das mais diversas: usuários que tinham sua atenção à saúde centralizada apenas nos CAPS e que nunca haviam frequentado a unidade de atenção básica; ou lideranças comunitárias que acolhiam sujeitos em situação de sofrimento e com eles faziam o percurso pelos serviços de saúde - quando não, eles próprios inventavam atividades para acolher aquelas situações. Eram percursos diferentes dos habituais, descritos pelas políticas de saúde.

No processo da cartografia, o conceito de território é fundamental. Entendemos território por sua noção dinâmica, fluida, viva; sendo que sua formação e suas relações são elementos heterogêneos que se agenciam (Paulon e Neves, 2013). Pode ser também, entendido como um ato que afeta, como expressão, uma assinatura com constância temporal e alcance espacial, que se apresenta como marca (Deleuze e Guattari, 1980/1997). Uma assinatura expressiva que comporta diferentes ritmos, não sendo da ordem de uma identidade, mas da ordem da formação de certo domínio. De fundamental importância numa cartografia é o reconhecimento desse habitat, suas relações afetivas, tensões e necessidades para a prática e produção de conhecimento. Em Viamão, fomos identificando algumas transformações que eram recentes, e imprimiam novas marcas e ritmos para os serviços de saúde e seus usuários. A Estratégia de Saúde da Família (ESF) estava sendo implementada desde 2012, saindo de zero para 28 equipes de ESF, e a RAPS, no ano de 2013, começava a contar com dispositivos singulares, como uma Equipe de Desinstitucionalização em Saúde Mental, um Fórum Intersetorial de Saúde Mental, Oficineiros de Saúde Mental na Atenção Básica, Equipe de Redução de Danos, Equipe de Consultório na Rua e Equipe de Matriciamento em Saúde Mental. O grupo de interesses de Viamão, habitat produzido para o desenvolvimento da pesquisa, foi composto pela Equipe de Matriciamento em saúde mental, alguns trabalhadores da ESF, dos CAPS, membros da comunidade, usuários dos serviços e um representante da Associação de Usuários da Saúde Mental do município.

Com a metodologia de pesquisa-intervenção-participativa, podemos dizer que inauguramos/compusemos alguns territórios junto àqueles atores, sendo que os participantes puderam aproveitar os encontros para debater suas questões locais e colocar em pauta as particularidades que dificultavam a produção de um cuidado em rede. Compreendendo esses territórios como espaços-tempo de diferentes atores, foi ali, nesse ínterim, que tomamos decisões coletivas sobre o andamento da pesquisa no município, como a indicação dos locais em que ocorreriam as próximas etapas. E também, foi neste espaço que articulamos e organizamos o evento final da pesquisa. Desse modo, a análise que segue decorre das trocas, dos afetos, das inquietações produzidas naqueles encontros, os quais provocaram um “rizomar” de ações.

 

En-Caminhar: Renovar Receitas ou Vínculos?

A articulação entre os serviços especializados de saúde mental e a atenção básica desenhava-se como um nó crítico no desenvolvimento da RAPS de Viamão. Os próprios usuários relatavam, de modo recorrente, as dificuldades que encontravam naquele processo de encaminhamento, como consta no diário de uma das pesquisadoras:

“Um usuário descreveu-nos que sua alta do CAPS foi sentida como abandono ou mesmo expulsão. Seu lugar não era mais ali, mas era onde? Passou a ‘renovar as receitas’ na unidade de saúde da família de referência para seu território, com a qual não tinha nenhum vínculo(...) Após cinco meses, ele retornou ao CAPS. Por que justamente nós, trabalhadores da saúde mental, que falamos tanto da importância do vínculo no tratamento, negligenciamos a delicadeza de uma passagem de vínculo de um serviço para o outro?” (Diário de campo, após Grupo Focal com usuários).

A sensação de abandono no processo de encaminhamento entre os serviços foi recorrentemente relatada pelos usuários. No âmbito legal, todos os usuários têm direito a ter uma determinada unidade de saúde como sua referência na Atenção Básica, que se constitui como principal porta de entrada para a Rede de Atenção à Saúde (RAS). A Portaria 4.297/10, que estabelece diretrizes para a organização da Rede de Atenção à Saúde, aponta para organização intersetorial que promova saúde, contemple a integralidade dos saberes e considere vulnerabilidades de grupos ou populações e suas necessidades, agindo, também, sobre as condições crônicas (BRASIL, 2010).

Nessa proposta de atenção à saúde, a noção de cuidado integral do SUS é entendida como transversal nos diferentes pontos da rede. A construção de um cuidado em saúde integral está na capacidade das ações em saúde desenvolverem-se em sintonia com as singularidades territoriais, conduzindo de modo efetivo o usuário por seus serviços. Porém, alguns dos usuários com que tivemos contato durante a pesquisa relataram não ter vínculo significativo com unidades de saúde e assim, muitas vezes, apesar da Atenção Básica ser considerada porta de entrada no SUS, o usuário acessava o Centro de Atenção Psicossocial (CAPS), e apenas no momento da alta é que conhecia (ou não) uma equipe de Atenção Básica.

Ao entendermos o SUS como uma Reforma interminável, obra aberta, é preciso considerar que, assim como a RAPS está em construção, a expansão da ESF como estratégia principal na AB, de inversão do modelo de cuidado hegemônico – biomédico, hospitalar e individualizante – para um modo de cuidar pautado por uma clínica ampliada (Campos, 1997), também é um processo em construção. Ter a Atenção Básica como referência de cuidado e de acesso ao SUS exige investimentos na tessitura de redes, para que resulte em um vínculo forte e longitudinal entre usuário e serviço. Entendemos que uma saída para essa problemática é a diferenciação entre vínculo e referência. Sendo a vinculação uma ligação afetiva, esta precisa ser produzida no encontro entre trabalhadores e usuários. Como na música citada de início do artigo, de nada adianta, no campo da saúde mental, passarmos por um, dois ou cem que não nos querem conhecer ou nos ofertar um pouco de afeto. Se seguirmos na rima escolhida, encontraremos uma pista para a construção do vínculo: “Era um, era dois, era cem. Vieram prá me perguntar: ‘Ô você, de onde vai de onde vem? Diga logo o que tem prá contar’... Parado no meio do mundo senti chegar meu momento...” (Lobo, 1967). Como nós, trabalhadores, fazemos para o usuário sentir que seu momento chegou? O momento de ser escutado e de ter uma acolhida ao seu sofrimento?

Quando um encaminhamento é produzido no âmbito da RAPS, espera-se que essa passagem possa contar com a vontade do outro, de saber quem chega, quem vem, de onde vem...Uma passagem de vínculo que, incluída no Plano Terapêutico Singular (PTS) do usuário, o considere não como de um ou outro serviço, mas pertencente a toda rede de cuidado. É no desenhar de cada PTS que a possibilidade de vinculação ocorre, pois tais planos carregam o potencial de comportar projetos de vida e de futuro. Como Kinoshita, Barreiros, Schorn, Mota e Trino (2016) nos explicam, somos – nós e nossa comunidade - produto das interações que tivemos durante a história, e no campo da atenção psicossocial, para constituir um projeto de futuro com os nossos usuários é necessário aprimorar operativamente as estratégias de cuidado para produção da subjetividade.  “Com planejamento na medida justa para a pessoa ou coletivo (família/comunidade) e o principal parâmetro de justeza advém da participação da própria pessoa/família/comunidade na formulação e operacionalização do cuidado” (Kinoshita e cols., 2016, p. 54).

Um encaminhamento, então, nunca será simples, carregará consigo a complexidade daquele modo de vida que irá requerer nova produção de encontros. No território estudado, pudemos analisar que a continuidade do cuidado se concentrava na chamada renovação de receitas. Para alguns usuários, a prática de renovação das prescrições medicamentosas ao receberem alta do CAPS era o modo de iniciar o vínculo com a Atenção Básica (AB) e, muitas vezes, essa oferta era a única estratégia de cuidado em saúde mental praticada pela AB. No momento de “encaminhar”, como “renovar” vínculos com o usuário para então poder cuidar integralmente?

Os participantes da pesquisa nos apontavam que o trabalho dos serviços muitas vezes estava se dando de modo isolado, como alertou um usuário numa discussão do Grupo de Interesses: “- O CAPS está virando uma ilha!” Outros relatos indicavam que quando a entrada do usuário no SUS se dava pelo serviço especializado de saúde mental - o CAPS, as outras demandas de saúde, que necessitavam de acompanhamento pela Atenção Básica, nem sempre tinham atenção.

Identificamos, então, um modo de trabalho no CAPS que não compreende a construção da alta como algo a ser pensado desde o ingresso do usuário no serviço e não apenas na sua saída. Pande e Amarante (2011) abordam essa questão como a “nova cronicidade” que os CAPS podem provocar, quando sua prática de atenção não rompe definitivamente com o paradigma manicomial. São práticas baseadas na tutela, na hierarquia entre técnicos e pacientes e no afastamento dos pacientes de suas relações sociais, laborais, familiares. Quando os CAPS produzem suas práticas sem desconstruir essas características culturais de lidar com o sofrimento psíquico, entre outros aspectos, promovem um novo processo de cronificação dos pacientes, como uma nova institucionalização, na qual qualquer alta será sentida como abandono, pois seus usuários ficam dependentes do cuidado, já que um movimento de maior autonomia para circular por outras redes não foi experimentado ao longo do processo terapêutico.

Por outro lado, a lógica manicomial também se apresenta no modo de trabalho da Atenção Básica, por ser a forma culturalmente instituída de lidar com a loucura. Nos encaminhamentos recebidos pelos serviços de atenção básica, a ideia de que a responsabilidade pela escuta do sofrimento psíquico é do especialista – aquele que não se encontra na AB, justamente porque está nos níveis especializados – ainda se fazia fortemente presente: Uma usuária ao falar sobre o acolhimento na unidade de saúde refere: “ Eles não querem escutar a dor da alma, só ouvir falar da dor física” (Diário de Campo, Grupo Focal com Usuários da AB). Esse relato expõe de modo bastante vivo o desafio da desinstitucionalização na saúde. Se por um lado o CAPS pode tornar-se uma ilha, abarcando as necessidades dos usuários sem promover uma abertura ao território, os outros pontos da rede também correm o risco de se tornarem pequenas ilhas, com o que no lugar de uma rede fluida teremos um grande e disperso arquipélago. Tal processo tende a reduzir a rede de atenção à saúde em pontos de distribuição dos usuários por tipo de adoecimento – com demandas físicas dirigidas à Atenção Básica, psíquicas aos CAPS e crises aos hospitais (Nunes, Torrenté e Londim, 2016).

O enfrentamento à lógica manicomial, portanto, também precisa constituir-se em rede, com a RAPS tomando para si a responsabilidade de produzir processos de desinstitucionalização. O território cartografado nos deu indícios de como prosseguir num cuidado em rede sem recair nas práticas fragmentadas de atenção. Apesar dos relatos já mencionados, dos encaminhamentos que não encontravam eco naquela rede, o território também mostrou sua heterogeneidade – mostrou a importância de voltarmos nossa atenção cartográfica para os detalhes, como comenta uma trabalhadora:

“Às vezes ele vem todo espiadinho (sic), sem saber se ele vai ou não consultar, como será recebido... Será que alguém vai ouvir ele? Metade deles vê aquele monte de gente e não gosta de falar, aí volta pra casa... Então, a acolhida é importantíssima”. (Agente Comunitária de Saúde em Reunião do GI)

Vemos que o processo de passagem envolve sempre a singularidade e o modo de vida do usuário, como na situação destacada, na qual a ACS aponta para a importância do acolhimento na Atenção Básica. Desse modo, como a vinculação de um usuário entre os serviços pode se resumir a apenas a renovação dos seus medicamentos?

Amarante e Torre (2010) problematizam que contemporaneamente vivemos o período de fabricação de doenças, com as quais situações de angústia, insatisfações, tristeza, entre outras, podem ser facilmente medicalizáveis. A medicalização é o modo contemporâneo de lidar com pessoas que se encontram com alguma forma de sofrimento ou de mal-estar social. Por sentirem-se rechaçadas, rejeitadas, identificam-se com determinados diagnósticos e na medida em que passam a ser consideradas doentes, deixam de ser responsáveis por suas características, as quais consideram que incomodam os demais. E passam a se apresentar como depressivas, portadoras de pânico e bipolares (Amarante e Torre, 2010).

A medicalização do sofrimento está inserida no projeto global de controle da vida – o biopoder – conceito arquitetado por Foucault (1976/1999), que se desenvolve através de dois mecanismos de poder: o modo disciplinar e o modo biopolítico de controle das formas de vida. Ambos atuam no sentido de “proteger” as populações, no empenho de diminuir a morbidade, estimular a natalidade e em criar meios de esticar e controlar a vida.

Foucault (1976/1999) avaliou que o biopoder se desenvolve para fazer viver, ao tempo em que a vida social a partir dessa lógica torna-se mais possível, essa massificação do socius tem o preço de excluir da cena social tudo que vai contra os padrões impostos, entre eles, a loucura e toda gama de sofrimentos que atrapalham o bom andamento de produção do cidadão. Daí que nesses movimentos massificadores, padronizantes, a comunidade global se desenvolve e opera a manutenção das exclusões. Segundo Sivinski (2015) o contexto em que são desenvolvidas as políticas públicas é, inevitavelmente, marcado pelo biopoder, que está disperso no meio social, fabricando subjetividades. Por estar imbricado com as políticas públicas, “no interior delas poderemos assistir à dinâmica do fazer viver e deixar morrer. Há sempre algo à margem das políticas” (Sivinski, 2015, p.76).

Nesse sentido, é possível perceber a serviço de qual lógica a RAPS trabalha, quando seus encaminhamentos se concentram na questão da medicalização do usuário e não na valorização de seu projeto de vida. Na pesquisa, os próprios trabalhadores da Atenção Básica demonstram estar preocupados com essa dimensão, quando problematizam seu processo de trabalho: “A gente, às vezes, está sendo renovador de receita com o paciente” (Trabalhador da AB em Grupo Focal).

No projeto do biopoder, a singularidade não encontra valor, pelo contrário, é necessária a massificação dos modos de existência, a homogeneização das populações para seu melhor controle. Os modos de vida desviantes dos padrões sociais tornam-se um risco à ordem social. Assim, a atenção aos detalhes de uma passagem de vínculo são um potente meio para a desinstitucionalização. Um modo de desviar da fábrica de doenças e estigmas e caminhar conjuntamente para outras formas de ser, outras formas da própria RAS acolher e compor caminhos com os usuários.

 

Entre Enlaces e Interrupções: a Singularidade no Vínculo Saúde Mental e Atenção Básica

No percurso de investigação, encontramos, também, a coexistência de práticas antagônicas, desde usuários que interromperam um histórico de internações em hospital psiquiátrico e, após alguns anos de tratamento no CAPS, encontraram suporte nos grupos de saúde mental na AB, até aqueles usuários que carregam demandas de saúde mental reprimidas, as quais nunca encontraram brechas para serem ouvidas na unidade de saúde. Tais contrastes nos apontam que a construção do cuidado em saúde mental na atenção básica tem avançado de modo desigual, com idas e vindas. Escutar a dor da alma, como sugeriu a trabalhadora, é vital para a construção de uma Rede que também se faz desinstitucionalizante, com a potencialidade de romper, ou, abrir brechas, na instituída máquina de fazer atendimentos-consultas-gerar-exames-prescrever-medicações que encontramos nos cenários estudados.

Na singularidade dos encontros, destacamos a sensibilidade das Agentes Comunitárias de Saúde (ACS), que encarnadas no seu território produziam esse andar junto articuladas com redes comunitárias, com associações de moradores, sustentando parcerias que buscavam dar conta localmente de práticas de cuidado em saúde mental. Inclusive, foram estas trabalhadoras que estiveram de modo mais presente nos encontros da pesquisa, mais do que trabalhadores dos serviços especializados da saúde mental. As Agentes traziam uma queixa quanto à ausência de formação em saúde mental e de suporte para trabalhar com os casos. Na busca de apoio e legitimização de suas práticas, mostravam-se abertas e interessadas no tema pesquisado, com relatos de práticas que desenvolviam de modo independente dos serviços especializados.

Produzir uma rede de cuidado que se proponha a ir além de uma prática de encaminhamento e ações já preestabelecidas entre os serviços, carece de esforços múltiplos, de ambos os lados. No que tange à articulação entre os serviços especializados em saúde mental e a atenção básica, em diversos momentos da pesquisa sentíamos uma tendência à oposição entre a AB e os CAPS, de atribuição dos problemas ao outro ponto da rede. Interessante observar que essa postura de atribuir ao outro o problema é exatamente o que está em jogo nos modos instituídos e manicomiais de lidar com a loucura e o diferente: pois circunscrever a loucura e afirmá-la fora de si é justamente a postura de quem almeja ser normal! Pelbart (1991), a partir da noção de “manicômio mental”, atenta ao fato de que não basta fecharmos as portas dos manicômios sem também mudarmos o modo como socialmente nos relacionamos com a desrazão. Dessa forma, lembra-nos que ao mesmo tempo em que a loucura foi encarcerada a partir do Século XVII com a invenção da Psiquiatria, também o pensamento científico trancafiou a desrazão. E, para que a “libertação dos loucos”, não seja apenas uma estratégia de homogenização social – vide a atual hipermedicalização - faz-se necessário, então, certo direito à desrazão. Esse direito implica poder adentrar no potencial de desterritorialização do pensamento.

[...] poder pensar loucamente, significa poder levar o delírio à praça pública, significa fazer do Acaso um campo de invenção efetiva, significa liberar a subjetividade das amarras da verdade, chame-se ela identidade ou estrutura, significa devolver um direito de cidadania pública ao invisível, ao indizível, e até mesmo, porque não, ao impensável (Pelbart, 1991 p.137).

Entendemos, portanto, que a articulação entre SM e AB carrega uma potência de desterritorialização de modos instituídos de produção de saúde em um vértice de mão dupla, com a qual a AB convoca o CAPS a se aproximar do território e os serviços especializados convocam a AB a acolher a loucura. Deparamo-nos não só com a necessária desinstitucionalização dos modos de conceber a loucura, mas com a necessária desinstitucionalização dos modos de se fazer rede entre os serviços.

Além da potência contida na ideia de diversificar os caminhos para a construção de redes singulares de cuidado, e de poder articular-se com a comunidade para a inovação das práticas, identificamos também a importância de certa memória territorial que, nos balanços da rede, pode resgatar potências esquecidas. Os trabalhadores descreviam épocas em que os serviços estavam mais próximos e trabalhando conjuntamente, “Eles faziam várias dinâmicas com os usuários... pois se chegassem surtando eles saíam muito 'zen';... depois de lá pra cá se perdeu esse vínculo com o CAPS” (Trabalhador de ESF no grupo focal).

Temos aí uma dimensão mnêmica da rede, que só pode ser acessada pela narrativa do outro, pela possibilidade de troca entre os atores que já habitaram o território e nele produziram outras práticas e saberes. Tais narrativas puderam vir à tona pela proposição de discutir o tema, pela disposição dos atores em se reunir em torno de um assunto comum a todos. Essa memória de rede surgia não só dos trabalhadores antigos da AB, mas também nas falas de usuários que presenciaram distintos períodos de oferta de cuidado. Foi possível identificar as marcas, as assinaturas expressivas inscritas naqueles territórios, e que foram ativadas nos discursos, possibilitando outras composições para atualização e renovação da rede.

Buscando cartografar os movimentos instituintes nos serviços, experimentamos a dimensão interventiva da pesquisa na medida em que os grupos focais em uma das unidades de saúde foram utilizados, principalmente, pelas Agentes Comunitárias de Saúde, como espaços agenciadores de ações voltadas à saúde mental, momento em que viramos pesquisadoras-apoiadoras de movimentos instituintes na equipe. As trabalhadoras foram, ao longo do período em que se deu a pesquisa, identificando desafios e articulando com associações de moradores e outras redes locais a produção de oficinas de promoção de saúde, tais como oficinas de ginástica para idosos e adultos, taekwondo para crianças e adolescentes, artesanato, desenho, entre outras.

Como finalização da pesquisa no município, organizamos coletivamente o seminário final para toda a rede do município. Este proporcionou discussões coletivas importantes para as redes locais reconhecerem-se e fortalecerem laços, constituindo-se em um momento para as renovações de contratos, mas sobretudo de vínculos. Também foi considerado pelos participantes como um momento de formação sobre o tema Saúde Mental na Atenção Básica. Trabalhadores e usuários puderam conhecer ações de diferentes unidades de saúde, resultando em combinações posteriores, como um passeio conjunto de todos os grupos de saúde mental desenvolvidos na atenção básica.

Essa experiência de finalização da pesquisa, realizada também de modo participativo, integrando usuários, trabalhadores e gestores de vários pontos de atenção da RAPS, nos apontou um dos caminhos para responder ao desafio da maior articulação entre atenção básica e demais pontos de atenção da RAPS. Uma Rede de Atenção Psicossocial articulada e integrada precisa de encontros de (re)conhecimento, para (re)pactuação de ações e de decisões a partir de avaliações compartilhadas. Produzir encontros, com o foco no (re)conhecimento das redes de produção e transição do cuidado em saúde mental faz rizomar os saberes, multiplicando-os de modo afetivo e, assim, produtivo. A construção de um momento como esse, a partir da pesquisa, fez nascer outras possibilidades de encontros e reencontros, não só entre os atores, mas desses atores com suas próprias afecções territoriais. Encontros capazes de desconstruir certa postura defensiva de atribuir os problemas da rede aos outros, para identificar possíveis comuns e, assim, construir laços de confiança entre os serviços.

 

Considerações Finais

Ao debatermos a circulação dos usuários na RAPS foi possível identificar que para além do referenciamento, a vinculação do usuário passa por uma construção de confiança. Essa vinculação, no caso de usuários acolhidos e encaminhados tanto nos Centros de Atenção Psicossociais quanto nos/pelos serviços de Atenção Básica, precisa desenhar-se enquanto construção fio a fio, como uma “clínica artesanal”. Das relações que se davam no decorrer da pesquisa pudemos analisar que a centralidade dos encaminhamentos no quesito da medicação indica o quanto as redes ainda precisam debruçar-se sobre o tema da desinstitucionalização da loucura. Bem como, problematizar a dinâmica do bipoder, em que a “fabricação de doenças” justifica a atenção exclusiva para a medicação, que mantém intacto os manicômios mentais.

Nesse sentido, efetivar a Reforma Psiquiátrica na AB implica que esse ponto de atenção cumpra seu papel, compartilhando com os CAPS o encargo de poder suportar e acolher a loucura e sofrimento psíquico dos usuários. Acolher, dar contorno, mesmo que não se saiba exatamente o que fazer com ela, mesmo que se acredite carecer de um saber especializado, é de fundamental importância à construção de um cuidado integral com ênfase em projetos de vida e na desinstitucionalização da loucura.

A constituição de uma Rede de Atenção Psicossocial articulada e integrada, tendo a Atenção Básica como ponto de referência, parece requerer renovação de alianças/contratos/vínculos para a produção afetiva, e assim, efetiva de cuidado integral. A proposta da pesquisa de propiciar rodas de debate sobre o tema acabou por qualificar escutas entre os atores de diferentes pontos de atenção da RAPS. Foram debates entre trabalhadores, gestores, usuários, comunidade, produzindo novas versões territoriais, novas configurações e composições para aquelas redes. Assim, a pesquisa potencializou uma renovação de estratégias de atenção psicossocial. Cartografamos nessas redes dispositivos que se faziam possíveis, para além de simples renovações de receitas, produziram-se renovações de possibilidades de vida, de vínculos. Coproduzimos contratos singulares, conVIDAndo a reinventar práticas, em reescritas, em novas experiências de relações, conVIDAndo a com/cantar em outros tons.

E, se antes falamos de dificuldades que fazem a RAPS balançar, terminamos falando de outro balanço, daquele prazeroso balanço em uma rede, na qual é possível confiar e entregar o corpo. Afinal, rede que é segurada em um só ponto não balança, fica apenas pendurada! Que deixemos os usuários nos ensinar a balançar essa rede! E, acompanhando sua circulação na RAPS, auxiliemos para que suas dores da alma possam contribuir para fazermos furos naquele velho modelo de atenção que há tempos dizemos querer superar, recriar, mas que de fato, ainda muito reproduzimos.

 

 

Agradecimentos

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo auxílio de bolsa de fomento à pesquisa para a primeira autora e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) que financiou a pesquisa da qual decorre este artigo. E por fim, agradecemos à rede municipal de saúde do município de Viamão –RS, aos gestores, trabalhadores e usuários que participaram dessa pesquisa.

 

 

Referências

Alvarez, Johnny & Passos, Eduardo (2012). Cartografar é habitar um território existencial. Em: Passos, Eduardo. Kastrup, Virgínia & Escóssia, Liliana. Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina. p. 132-150.         [ Links ]

Amarante, P. & Torre, E. H. G. (2010). Medicalização e determinação social dos transtornos mentais: a questão da indústria de medicamentos na produção de saber e políticas. Em R. P. Nogueira (Org.). Determinação social da Saúde e Reforma Sanitária. (pp. 151-160). Rio de Janeiro: Cebes.         [ Links ]

Antunes, Arnaldo. (2014).  Chuva no mar. Álbum: Canto. Parlaphone Portugal.         [ Links ]

Brasil, Ministério da Saúde. Portaria N. 4.297, de 30 de dezembro de 2010. Brasília: Ministério da Saúde, 2010.         [ Links ]

Campos, Gastão Wagner de Souza. (1997). A clínica do sujeito: por uma clínica reformulada e ampliada. Em: Saúde Paidéia. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. (1980/1995). Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora 34.         [ Links ]

Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. (1980/1997). Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia, vol. 4. Rio de Janeiro: Editora 34.         [ Links ]

Foucault, Michel. (1976/1999). Em defesa da sociedade. 1ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes.         [ Links ]

Guba, Egon & Lincoln, Yvonna S. (2011). Avaliação de quarta geração. (Tradução de Beth Honorato). Campinas: Editora da Unicamp.         [ Links ]

Kinoshita, Roberto Tykanori. Barreiros, Cláudio Antônio. Schorn, Mariana da Costa. Mota, Taia Duarte & Trino, Alexandre Teixeira (2016). Cuidado em saúde mental: do sofrimento à felicidade. Em: Nunes, Mônica & Landim, Fátima (Org.). Saúde Mental na Atenção Básica: Política e Cotidiano. 1 ed. Salvador, p. 47-76.         [ Links ]

Lobo, Edu. (1967). Ponteio. Álbum: Ponteio. Gravadora Philips.         [ Links ]

Nunes, Mônica. Torrenté, Maurice de & Landim, Fátima (2016). Saúde mental e Atenção Primária: Transvetores de Articulação. Em: Nunes, Mônica & Landim, Fátima (Org.). Saúde Mental na Atenção Básica: Política e Cotidiano. 1 ed. Salvador, p 123-142.         [ Links ]

Pande, Mariana Nogueira Rangel & Amarante, Paulo Duarte de Carvalho (2011). Desafios para os Centros de Atenção Psicossocial como serviços substitutivos: a nova cronicidade em questão. Ciência & Saúde Coletiva, 16(4):2067-2076.         [ Links ]

Passos, Eduardo & Barros, Regina Benevides de. (2009). Pista 1: A cartografia como método de pesquisa-intervenção. Em Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Passos, Eduardo; Kastrup, Virgínia & Escóssia, Liliana (Orgs). Porto Alegre: Sulina.         [ Links ]

Paulon, Simone Mainieri; Dimenstein, Magda & Ferla, Alcindo (2013). (Org.). Saúde Mental na Atenção Básica.  Oficina Avaliativa da inserção da Saúde Mental no PMAQ. Porto Alegre, Relatório. UFRGS/Rede Governo Colaborativo.         [ Links ]

Paulon, Simone, Mainieri & Neves, Rosane (2013). Apresentação. Em: Paulon, Simone Mainieri & Neves, Rosane. Saúde Mental na Atenção Básica: A territorialização do cuidado. Porto Alegre: Sulina, v.1. p 11-16.         [ Links ]

Pelbart, Peter Pal. (1991). Manicômio mental: a outra face da clausura. Em: Saúde e Loucura, n.2. São Paulo: Aderaldo e Rothschild Editores.         [ Links ]

Sivinski, Tamires da Cunha (2015). A participação faz nascer o tempo: sobre a participação dos usuários da saúde mental na produção de saúde. Porto Alegre: UFRGS, 2011.111f. (Dissertação Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre.

 

 

Data de submissão: 10/07/2017
Data de aceite: 15/09/2017

 

 

¹ Referência à canção Ponteio, de Edu Lobo, Álbum: Ponteio. Gravadora Philips, 1967.

² Desenvolvida entre 2013 e 2015 e financiada através do PPSUS (Programa de Pesquisa para o SUS/Ministério da Saúde), a pesquisa intitulada “Qualificação da Saúde Mental na Atenção Básica – uma análise das práticas de equipes da Região 10 – Macrometropolitana/RS a partir do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica”, foi proposta pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS e pelo Programa Pós-Graduação em Saúde Coletiva, em parceria com a Secretaria Estadual de Saúde. Desenvolveu-se em seis municípios da região metropolitana de Porto Alegre, partindo dos resultados do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB) para iniciar o debate sobre o tema com os participantes.

³ Para facilitar a identificação das categorias de análise, utilizamos o software de pesquisa qualitativa Atlas-Ti.

 

 

I Tamires da Cunha Sivinski: Psicóloga do Núcleo de Apoio à Saúde da Família – Viamão/RS. Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. E-mail: tamiressivinski@gmail.com

II Júlia Monteiro Schenkel: Psicóloga no Projeto “Tipo Assim!”- Secretaria Municipal de Saúde/CAPSi Novo Hamburgo - RS. Mestre em Saúde Coletiva pela UFRGS, com especialização em Saúde Mental Coletiva pela UFRGS e Especialização em Análise Institucional e Esquizoanálise pela Fundação Gregório Baremblitt – Instituto Fèlix Guattari (MG). E-mail: juliamonteiroschenkel@gmail.com 

Creative Commons License