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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2018

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.80418 

ARTIGOS

 

Gestos Pesquisantes: Ressonâncias de uma Intervenção em Saúde Mental na Atenção Básica

 

Research Gestures: Repercussions of a Mental Health Intervention Within Primary Health Care

 

Gestos Investigativos: Resonancias de una Intervención en Salud Mental en la Atención Primaria

 

 

Luciana Rodríguez BaroneI, Juliana de Bittencourt EscobarII, Afonso Wenneker RovedaIII

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

III Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.


 

 


RESUMO

Neste artigo, objetivamos relatar a experiência de uma pesquisa participativa, interventiva e cartográfica em saúde mental na atenção básica, problematizando os modos de conhecer e explorando as potencialidades e afetos despertados em campo. Trazemos a trajetória da pesquisa “Qualificação da Saúde Mental na Atenção Básica: análise das práticas de equipes da Região 10-Macrometropolitana/RS a partir do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB)”, discutindo especificamente o processo em um dos municípios envolvidos. Adentramos o campo, descentralizando gestos acadêmicos em contato com os descentramentos da atenção básica. Experimentamos composições nesse nível porta de entrada do sistema de saúde, junto a usuários, trabalhadores e gestores, abrindo-nos aos imprevisíveis que exigem invenção e construção de um comum em meio às comunidades e territórios. Tal perspectiva articula pesquisa e saúde mental na busca por modos clínicos e pesquisantes mais autônomos, singulares e produzidos em conjunto no campo.

Palavras-chave: Cartografia; Saúde Mental; Atenção Básica.


ABSTRACT

This article is an experience report of a participatory intervention and cartographic research on mental health within primary care. It problematises modes of knowledge acquisition and explores potentials and affects awakened during fieldwork. We examine the research process of the "Appraisal of Mental Health Care in Primary Health Care: An analysis of Macro-Metropolitan Region 10/Rio Grande do Sul, in light of team practices in the National Program for the Improvement of Access and Quality in Primary Care (PMAQ-AB)" and specifically discuss one city's approach. We engage the field of mental health by decentralising academic gestures in the encounter with the uncentering of basic care. Together with end-users, workers and administrators, we experimented with compositions at this level, as the entrance portal to the healthcare system, opening up to the unpredictable which requires invention and construction of a common in the midst of communities and territories. This perspective articulates research and mental care in the search for clinical practices and modes of research that are more autonomous, singular and produced jointly with the fieldwork.

Keywords: Participatory Research; Mental Health; Primary Care.


RESUMEN

En este artículo, pretendemos relatar la experiencia de una investigación participativa, interventiva y cartográfica en salud mental en atención primaria, problematizando los modos de conocer y explotando las potencialidades y afectos despertados en el campo investigativo. Traemos la trayectoria de la investigación “Calificación de la Salud Mental en Atención Primaria: el análisis de prácticas de equipos en la Región 10-Macrometropolitana/RS a partir del Programa Nacional para Mejoramiento del Acceso y Calidad de Atención Primaria (PMAQ-AB)” analizando específicamente el proceso en uno de los municipios participantes. Entramos en campo, descentralizando gestos académicos al entrar en contacto con los descentramientos de la atención primaria. Experimentamos composiciones en ese nivel de atención que es puerta de entrada del sistema de salud, junto a usuarios, trabajadores y administradores, abriéndonos a los imprevisibles que requieren invención y construcción de un común en medio de las comunidades y territorios. Esta perspectiva articula investigación y salud mental en la búsqueda de modos clínicos y investigativos más autónomos, singulares y producidos en conjunto en el campo.

Palabras-clave: Cartografía; Salud Mental; Atención Primaria.


 

 

Introdução

Neste texto, objetivamos relatar a experiência de uma pesquisa participativa, interventiva e cartográfica, problematizando os modos de produzir conhecimento e explorando as potencialidades e afetos despertados na imersão em campo. Na pesquisa “Qualificação da Saúde Mental na Atenção Básica: análise das práticas de equipes da Região 10-Macrometropolitana/RS a partir do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB)”, coordenada pelo grupo Intervires da Universidade Federal do Rio Grande do Sul de 2013 a 2015, propusemo-nos a identificar e qualificar as práticas em saúde mental, ampliando a análise proposta pelo PMAQ-AB e as discussões entre os atores da atenção básica dos seis municípios participantes (Alvorada, Cachoeirinha, Glorinha, Gravataí, Porto Alegre e Viamão). Inspiramo-nos nas metodologias participativas de quarta geração (Guba & Lincon 2011), sendo a pesquisa qualitativa, avaliativa, participativa e interventiva, levando em conta o caráter histórico, processual e coletivo da produção de conhecimento.

Ao longo do processo, buscamos continuamente deliberar com os envolvidos os modos como esta seria realizada. Formamos um Grupo Gestor, composto por gestores da saúde dos municípios, no qual eram discutidas as etapas e o desenvolvimento da pesquisa. Outro espaço criado foi o Grupo de Interesses (GI) em que reunimos, em cada município, usuários, trabalhadores e gestores interessados, acompanhando a pesquisa no território, discutindo juntamente suas etapas, produzindo análises e indicando caminhos para seu andamento. Ademais, realizamos Grupos Focais (GF), separadamente com usuários e trabalhadores, nos quais problematizamos o cuidado em saúde mental na atenção básica, assim como sua relação com as questões específicas deste tema na avaliação externa do PMAQ-AB.

Abordaremos, neste artigo, as particularidades do processo construído em Alvorada, município vizinho a Porto Alegre, de aproximadamente 200.000 habitantes, marcado pela pobreza e violência, tendo o menor PIB do estado (Fantinel & Agranonik, 2012). Em relação à Atenção Básica, Alvorada possuía, na época, em torno de 50% de cobertura de Estratégia de Saúde da Família, com 27 equipes de saúde da família e 12 equipes de saúde bucal, distribuídas em 13 unidades de saúde, e um Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF) composto, em sua maioria, por profissionais de saúde mental. Ademais, sua rede de atenção era composta por três Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), um ambulatório de saúde mental, um serviço de urgência e um hospital geral. Neste município, o trabalho foi produzido por pesquisadores que, em sua maioria, também são trabalhadores do Sistema Único de Saúde (SUS), o que acrescentou à  perspectiva cartográfica (Rolnik, 2006; Passos, Kastrup & Escóssia, 2010) construída neste campo, aliada às abordagens metodológicas participativas e interventivas da pesquisa como um todo, um especial mergulho implicacional que será foco de debates no presente texto.

 

Adentrando Uma Linha Pesquisante

Fomos adentrando uma linha pesquisante, experimentando diferentes sensações e tentando dar forma a uma pesquisa, nem sempre unificada e homogênea como supõem as preparações programáticas para ir a campo. Por vezes, dispersávamo-nos ao tentarmos organizar tamanha diversidade de campos e temáticas. Víamo-nos, por um lado, limitados pelas verdades acadêmicas, por outro, perdidos em meio aos sofrimentos e alentos de nossas experiências de cuidado em saúde mental agora atualizadas.

Desenhamos etapas que nos ajudaram a estabilizar um terreno de conhecimentos, ao mesmo tempo instável, aberto aos fluxos imprevisíveis dos encontros no campo. Inicialmente, estudamos a saúde mental na atenção básica e os dados do PMAQ-AB, assim como contratualizamos com os municípios como se daria a investigação naquele território específico. A seguir, nos aproximamos dos gestores e do Conselho de Saúde, mapeando os recursos da rede, desafios e potencialidades, a partir de reuniões e entrevistas. Encantamo-nos com a abertura e disponibilidade de um município que, muitas vezes, se sente à margem - cidade-dormitório, alguns diziam - e tomou nossa chegada como oportunidade de se qualificar, desfazendo uma ideia frequente de que uma pesquisa é mais uma demanda que pesa no cotidiano do trabalho. "O pessoal da UFRGS está chegando!", ouvíamos pelos corredores estreitos da secretaria de saúde.

Intuíamos, nessa abertura, possíveis ressonâncias que fazem vibrar um encontro pesquisador-campo, geralmente ampliando a escuta e diminuindo enrijecimentos que, por vezes, invisibilizam os movimentos imperceptíveis sempre presentes. Almejávamos estar mais próximos do outro, fazer redes, buscando saberes singulares e locais. Nessas aproximações com a gestão em saúde, os primeiros desafios eram-nos apresentados: uma rede em construção com poucos recursos; uma gestão tomada pela judicialização dos processos em saúde; o alto número de internações psiquiátricas em Porto Alegre; e uma instabilidade da gestão que nos fazia, a cada entrada de um novo coordenador, retomar a pesquisa em andamento. Apesar dos problemas identificados, do ponto de vista da gestão, tudo parecia muito organizado, coerente, com estratégias traçadas.

Junto a tal abertura, chegávamos com o título: Os Pesquisadores!, sentindo o peso de expectativas sabedoras advindas da academia, adormecendo as ignorâncias que a todos atravessam. Surgia um pedido da secretaria de saúde para que humanizássemos os trabalhadores. Estranhávamos o modo como este pedido chegava. Não era nesses encontros com os trabalhadores que seria produzido um saber acerca daquela realidade? Acompanhados por nossos desejos de desinstitucionalizar, que entendíamos também como um dos objetivos da atenção básica, inquietávamo-nos aos sentirmos as forças que demarcam e separam os que sabem (pesquisadores) dos que se submetem a serem conhecidos (sujeitos de pesquisa); os especialistas hospitalares e os cuidadores generalistas do território, nem sempre com formação superior; os gestores dos que se dedicam às atividades ditas "da ponta". Corpos-pesquisadores aqui pesavam, sentindo as cargas das instituições escolares encontradas com os poderes na saúde, atravancando movimentos.

Alternávamos entre o encantamento e o incômodo. Aproveitávamos tais pesos para tomar impulso (Gil, 2001), tentando produzir desvios diante dos lugares esperados. Intuíamos, nesses estranhamentos e questionamentos sobre o lugar do pesquisador, possíveis rupturas e movimentos de aproximação com os trabalhadores e usuários, com o cotidiano da atenção. Para além das etapas previstas na pesquisa, queríamos ampliar e heterogeneizar as percepções sobre o cuidado.

Nesses desequilíbrios da pesquisa e da clínica em saúde mental na atenção básica, entrávamos meio aos tropeços em uma linha pesquisante. Dizíamos que era o começo de um projeto, mas já estávamos a pesquisar, em movimentos imperceptíveis, que fatigávamos pela dificuldade de aproximar, de seguir linhas flexíveis, fluxos moleculares. Sempre há movimento (Gil, 2001). As correntes curiosas não estavam sob nosso controle e movimentavam intensamente as pequenas moléculas de nossos corpos heterogêneos, forçando a produção de um projeto de pesquisa que tomava forma, muito aquém e além dessa demarcação no tempo, de um projeto que, por decreto, começa e termina, em um dado momento. Estudávamos as melhores formas de “estar com”, de articular saberes de gestores, trabalhadores, usuários e acadêmicos. Línguas diferentes, muitas vezes, desencontradas. Queríamos fazê-las dialogar a partir de um programa de avaliação (PMAQ-AB) que já nos parecia reducionista e precisaria ser ampliado, modificado. Encontrávamo-nos com indicadores frágeis que tentam medir o quanto de saúde mental as equipes atendem e como organizam o cuidado nesse campo, demonstrando uma preocupação restrita com o registro, o modo de acesso às consultas e o uso de alguns medicamentos, sem visibilizar outras formas de cuidado frequentes e relevantes. Tentávamos pensar em modos de apoiar, mas estávamos também atravessados pelo sentimento de impotência do trabalhador junto às idealizações milagrosas diante de um sistema que, ao organizar fluxos, muitas vezes, encerra e limita possibilidades de cuidado singulares.

 

Descentralizando Caminhos na Atenção Básica

O território parecia grande demais nessa chegada inicial com a gestão, ainda distantes das equipes e usuários da atenção básica. Ansiávamos, nesse deslocamento de Porto Alegre até Alvorada, e da gestão até os demais atores do cuidado, também nos deslocar dos lugares acadêmicos instituídos. Queríamos juntar diversidades, misturar corpos, descentralizar movimentos geralmente centralizados na universidade e na gestão. Sentíamos o próprio corpo em trânsito, ao acompanharmos os serviços e trabalhadores da atenção básica esparramados nas periferias, em um processo de mudanças consideradas ainda recentes dos modelos de organização da saúde em que se desloca a centralidade dos grandes hospitais para os serviços de saúde territoriais (Paulon & Neves, 2013). A Atenção Básica exigia, também dos pesquisadores, um exercício de descentralização, valorizando as sutilezas do dia-a-dia do cuidado.

Fomos nos aproximando, a partir da equipe do NASF que parecia ocupar um entre gestão-atenção, circulando nos diferentes espaços. O que antes era um encantamento com a abertura da gestão agora se transformava em alegria de ver uma equipe apoiadora que, de fato, articulava os trabalhadores e usuários das unidades apoiadas (85% das equipes eram matriciadas pelo NASF). Conforme referido acima, tínhamos previsto na metodologia a construção de um grupo com gestores, trabalhadores e usuários, o Grupo de Interesses (GI), que acompanhasse o processo da pesquisa e desejávamos que este espaço fizesse sentido para esses atores. Sutilmente, a equipe do NASF foi nos ajudando a mapear algo que não é da ordem da racionalidade, nem tão presente para os gestores, e que diz dos afetos, dos espaços de circulação das intensidades, dos desejos de mudança e de possíveis parcerias nessas equipes e seus usuários. Organizamos um primeiro encontro a partir desse mapa afetivo traçado conjuntamente.

Nós, os ditos pesquisadores, íamos novamente para Alvorada para essa primeira reunião do GI, composto, naquele momento, por profissionais e gestores da atenção básica (inicialmente não tivemos usuários) interessados no tema. Nessa aproximação inicial com a gestão, parecia tudo muito organizado na saúde do município. Viu-se logo que não era. Gestores atrasados, dificuldades em conseguir local, ar condicionado quebrado, pesquisadores levemente despreparados, um tanto ansiosos e preocupados com o peso das expectativas. Mas, surpreendentemente, a sala começou a se encher de trabalhadores, os gestores também foram se chegando. Alternavam-se queixas de colegas, de sofrimento, com desejos de cuidar, de pensar, de desfazer as durezas tão conhecidas da saúde. Falas sensíveis, contando de pessoas acompanhadas, um suicídio não evitado, tristezas e alegrias. Falavam de possíveis caminhos do cuidado, de um bom curso de formação que ampliou o horizonte. Nós, contagiados por tamanho desejo dos trabalhadores de se reunirem sem uma funcionalidade tão definida, empolgados, víamo-nos diante dos embates entre inúmeros agentes comunitários de saúde, algumas poucas médicas, enfermeiros, técnicos de enfermagem e gestores. Queríamos, de alguma forma, valorizar todas as posições, falas, tudo acolher em meio a alguns debates e cobranças sutis que se insinuavam nas vozes dos diferentes atores. As equipes pareciam aproveitar a oportunidade de estar com os gestores para também trazer suas reivindicações.

O brilho nos olhos daqueles trabalhadores, tomados por uma alegria paradoxal diante das precariedades, encontrava-se com nossas pupilas agora dilatadas e saltitantes. Tomávamo-nos de brilho e perdíamos a noção do tempo, estendendo-nos além do relógio nesse início de conversa. Sentíamos nuances da potência dos movimentos simples no encontro, com olhares e suores trocados diante do ar condicionado quebrado, que nos forçavam a transbordar fluídos. Aquecíamos movimentos, pesquisadores-trabalhadores-gestores, criando uma atmosfera que acolhesse novos possíveis. Abriríamos espaço para a fuga de devires que borbulhavam diante dos olhos encontrados e dos corpos inquietos? Queriam sair, furar os frequentes engessamentos tão entediantes e protocolares das reuniões no campo da saúde, os termos endurecidos e os tempos de fala demarcados? Essas movimentações faziam-nos sentir vivos na pesquisa, voltando a perceber o corpo saltitante, vibrátil, que quer experimentar, criar, fazer conexões (Rolnik, 2006). Encontro paradoxal, marcado por falas sobre as precárias condições de trabalho diante das imensas dificuldades e sofrimentos vividos por usuários, trabalhadores e gestores, e que mostravam a potência de estarem ali, juntos, ao misturar heterogeneidades, tentando conversar e ansiosos por espaços de trocas. Desejávamos ainda nos conectar diretamente com os usuários. Seria possível dialogar?

Deleuze e Parnet (1998) referem que uma conversa não seria exatamente uma troca simples entre identidades afirmadas, não uma reunião, nem justaposição de diferentes, mas uma linha quebrada que corre entre dois, dissimetria convivendo. Uma espécie de multiplicidade que não tem a ver com muitas identidades, papéis, profissões em busca de um bem comum, mas uma micropolítica que se dá na possibilidade de esburacar, de se desterritorializar num encontro e que, por conta dos abandonos que isso implica, abre a possibilidade de contagiar devires, proliferações. Nesse primeiro encontro do GI, abríamos espaço para fracassos de um trabalhador que não evitou um suicídio, que se encontravam com fracassos gestores em garantir estruturas físicas esperadas, e também fracassos pesquisadores em não prever o tempo e a concatenação das falas-participantes. Falas desencontradas, não muito organizadas, permeavam-se de fragilidades que despiam nossos profissionalismos, nossos especialismos, abrindo um campo afetivo que nos fazia escutar com o corpo todo, para além do tempo previsto. Diferentes experiências habitavam um mesmo tempo e espaço, mantendo suas singularidades e, concomitantemente, encontrando-se através de olhares, suores, sorrisos e despreocupação com o tempo cronológico, alvo de tanto controle e segmentação no contemporâneo.

 

Entre Portas de Entrada e de Saída

Com o corpo-pesquisador ativado, uma atmosfera começava a ser criada. Seguíamos constituindo espaços de trocas em diversos encontros do Grupo de Interesses, repetidos uma vez ao mês, com retornos e novos participantes, em locais alternados geralmente entre os pontos centrais da rede de saúde e gestão. Nesse momento do percurso, os usuários já integravam o grupo, engrossando heterogeneidades e aumentando o desafio de potencializar uma conversa. O grupo foi se constituindo como espaço de escuta, trocas, formação e articulação política, colocando também em discussão uma Análise Situacional da rede de saúde do município, construída entre pesquisadores e gestores inicialmente, ademais das questões metodológicas do andamento da pesquisa.

Em uma etapa seguinte, por fim, chegávamos até as unidades básicas de saúde, escolhidas nos encontros do GI, para a realização dos grupos supostamente focais (GF). Tais grupos ocorreram em dois momentos: um de discussão e análise das práticas de saúde mental na atenção básica e dos resultados do PMAQ do município; e o outro momento do grupo para a análise e validação dos elementos por eles levantados no primeiro encontro. Os GF buscaram aprofundar as discussões presentes no GI com usuários e trabalhadores de uma mesma unidade, separadamente. Foram escolhidas duas unidades (cada uma com duas equipes de saúde da família e uma equipe de saúde bucal) para tal atividade, sendo feitos quatro grupos focais em cada uma. Nesse processo de escolha, tensões evidenciavam o desejo de diversas equipes de participar dos GF, em critérios que foram sendo deslocados, negociados, pactuados conjuntamente.

Assim, adentrávamos portas de entrada do sistema de saúde, por vezes, portas dos fundos, através de imprevistos rastejantes, fugidios. Sentíamos o clima de acolhida no serviço que se supõe poder a todos receber, universalizando o acesso e constituindo vínculo através do território adstrito. Entretanto, ao estar junto com estas unidades, pesava também a responsabilidade da atenção básica de solucionar 80% dos problemas de saúde, prevenindo, promovendo, antecipando-se ao adoecer (Starfield, 2004). Escutávamos queixas dos trabalhadores carregados de responsabilidades e confrontados cotidianamente com a diversidade de dores que por ali chegavam, já sem tempo para antecipação ou prevenção...

...Toc, toc, toc. Uma batida na porta. _"Está fechada!" - respondeu a trabalhadora, gritando lá de dentro da reunião. Toc, toc, toc!! Repetia-se o toque insistente do dito usuário do sistema. _"Eu já lhe disse que agora estamos com a unidade fechada em reunião!". Ele responde imediatamente: _"Mas, eu vim…" Perdemos o foco do grupo focal? O ruído que vinha da porta, insistindo em entrar, fazia-nos sentir a marca de descentralizar serviços, esparramar portas de entrada e tornar-se um centro para os moradores daquela comunidade. Fazia desviar frases, trazendo as alegrias e os pesos de ser referência em saúde de um território. Seriam o único ponto de apoio daquelas pessoas? (Trecho de diário de campo).

Segundo o que nos relata uma das trabalhadoras, sim:

O ponto de encontro aqui é o posto de saúde. Aqui é o point da cidade. Eu até tô pensando em criar um point, quero botar uma sorveteria (risos). Porque aqui é o shopping, é o parque. Não tem banheiro público na comunidade, então eles usam o do posto. Então as pessoas entram pra usar o banheiro, pra tomar água, pra ver TV, pra conversar. E às vezes a gente não consegue escutar a pressão sanguínea porque o barulho é muito alto. Aqui ainda é Brasil colônia. (Trecho da fala de uma trabalhadora em um dos grupos focais).

Sentimos o peso da referência esperada em relação às unidades de saúde como porta de entrada resolutiva de uma determinada área adstrita. Centro. Ponto de apoio importante (senão o único) em um cenário de carências, pobrezas e violências característico da cidade, contrastando com a acolhida e o vínculo percebidos na unidade. Entre ruídos insistentes nas portas, desfocamos os objetivos pesquisantes, fazendo do corpo inteiro ouvidos e incrementando a heterogeneidade de elementos, ao sermos perpassados por fluxos dispersos que evidenciam a articulação entre saúde mental, subjetividade e os territórios geográficos, carentes e afetados pelas proximidades. Experimentávamos a complexidade de realizar um serviço dito primário, supostamente simples e básico.

Entremeavam-se questões sociais e de saúde, mesmo com as segmentações frequentes de campos e de serviços, em misturas trazidas também nos Grupos Focais com usuários que clamavam a falta de espaços para brincar e de lazer, ao mesmo tempo em que percebaim as agitações hiperativas de crianças e o uso abusivo de drogas, aliado ao tráfico, como caminho recorrente dos jovens. Em outro espaço, ouvíamos também de uma trabalhadora-moradora sobre os efeitos da construção de Alvorada que, em sua história, tentou atrair empresas e fábricas, cedendo suas áreas públicas. Os modos solitários de habitar a cidade, a fragmentação, a privatização e a interiorização das vivências mostravam-nos as dificuldades que articulam tão fortemente subjetividade, cidade e modernidade, como afirma Rodrigues (2009).

Deste modo, diante da centralidade das unidades e da carência da convivência social, percebíamos o desafio de produzir saúde mental, encontrando-nos com a loucura também enclausurada na patologia, estigmatizada, desconectando corpo e mente, adoecimento e território, na qual o corpo orgânico merece tratamento, sem uma possível escuta aos percursos do usuário e seus laços para com o social. Por outro lado, paradoxalmente, atravessavam-se práticas de cuidado afetivas e aproximadas, permeadas pelos modos de vida na comunidade, com as dificuldades e as potencialidades de inventar uma vida. Em análises conjuntas com trabalhadores e usuários, conversávamos sobre os adoecimentos depressivos e suas alianças com a ausência de espaços que favorecessem os encontros no bairro, marcados também pela insegurança de circular pelas ruas. Assim, a patologização do usuário, que associa seu sofrimento exclusivamente ao indivíduo ou a uma falha química possivelmente contornada com medicamentos, complexificava-se na discussão e na atenção em saúde mental, incluindo outras dimensões de espaço e de convivência a serem consideradas.

Ademais, trabalhadores também criavam possibilidades de escutar o outro em equipe, com um grande protagonismo dos agentes comunitários de saúde (ACS), em meio à precarização do trabalho, rotatividade de profissionais, estruturas físicas inadequadas e dissociação da atenção-gestão-formação. Metas quantitativas e individualização da atenção conviviam com ações desmedidas, singularizadas, conjuntas e coletivas.

_"Tu tens que ser mais rápida, tem um monte de prontuário atrasando as consultas do doutor". Eu fui motivo de piada na minha equipe, a minha coordenadora riu de mim, tava comigo no acolhimento e disse assim: _"A Fulana, no acolhimento, perguntou até do marido da mulher". A mulher com dor de cabeça, eu disse assim: _"Como é que tá na tua casa? E o teu marido? Vocês estão com algum problema?". (Trecho da fala de uma trabalhadora em um dos grupos focais).

Insinuava-se, em um gesto atento de cuidado, a possível relação entre dor de cabeça e dificuldades familiares, muitas vezes, dissociadas em meio aos processos de trabalho produtivistas e acelerados. Mas como colocar em questão com trabalhadores tais agenciamentos, buscando potencializar vínculos equipe-usuários? Arriscávamos afetivamente abrir interrogações em meio às discussões, desejando expandir o campo de práticas e os encontros de corpos heterogêneos, com suas diferentes compreensões, valorizando os deslocamentos e os percursos singulares trilhados. Assim, diante dos pesos e levezas paradoxais, presenciávamos portas de entrada para a diversidade de dores vivenciadas e de saídas construídas na impossibilidade de responder com protocolos de atenção estandardizados. A atenção à saúde exigia inventividade.

Em meio às conversas, compartilhávamos idealizações trabalhadoras e expectativas usuárias que, por vezes, temiam não alcançar o movimento esperado, as condições estruturais e humanas adequadas, bloqueando transformações. Diante das fragilidades do serviço, sentiam-se despreparados para cuidar das loucuras variantes, percebendo-se improvisando, evidenciando ou invisibilizando cuidados sutis e, por vezes, imperceptíveis.

E esses dias a gente começou a implantar e reiniciei as terapias. E aí uma colega disse assim pra mim: _"E se der algum surto num paciente lá no grupo, o que tu vai fazer?". Eu disse:_"Tu vai ao grupo de hipertensos, se der uma parada, o que tu vai fazer?" É a mesma coisa, eu tô na recepção, tô sujeito a uma pessoa enfartar, ter surto no posto como em qualquer lugar. (Trecho da fala de um trabalhador em um dos grupos focais).

Nem sempre a falta de recursos tinha um caráter paralisante. Gestos simples ensaiavam-se em um sopro de pequenas coragens e impulsos ativos de trabalhadores diante das limitações e dos pesos da responsabilidade. Em ressonância, usuários ativos questionavam a terapia medicamentosa e seus modos, desejando dela se apropriar nos grupos de saúde mental espalhados pelas unidades na aposta do cuidado coletivo. Que clínica era essa? Quem podia cuidar, afinal?

Diante dos imperceptíveis que se atravessavam no processo de pesquisa, no qual emergiam tais questionamentos, surgiam personagens paradoxais, queixosos e ativos, repetitivos e inovadores, desarticulados e cheios de conexões. Saltavam aos olhos os híbridos ACS, um misto de trabalhador - em parte reconhecidos por um sistema que tenta fugir dos especialismos e coloca-os como cuidadores em saúde - e morador da comunidade - usuário, trazido para aproximar comunidade e unidade de saúde, que colocavam em análise nossas durezas pesquisadoras: “Mas e o agente de saúde, senhores pesquisadores?”, pergunta outro ACS. “...Aquele que adoeceu por questões de saúde mental; participa dos grupos focais como trabalhador ou como usuário?” (Trecho de diário de campo).

A pergunta saltitante colocava em cheque nossas tentativas de divisões identitárias demandadas pela instituição pesquisa. Sentimos a alegria do paradoxo. Com o corpo ativado nesse encontro, seguíamos caminhando, acompanhando os movimentos dos ACS que não escapavam às burocracias e ao controle, mas nos ajudavam a resgatar o aquecimento que movimenta o corpo e reconhece o espaço no cuidado, espacializando e diminuindo especialismos das grandes preparações formais.

Por vezes, sentiam-se pouco qualificados, quebrando-galho, fazendo pesar as idealizações do cuidado esperado em saúde mental. Por outras, buscavam um lugar para seus gestos simples: "Somos de tudo um pouco na visita: psicólogo, enfermeiro, médico!". Faziam-se outros e se autorizavam a relizar cuidados mais aproximados, à medida que iam percebendo as necessidades e afetos envolvidos no cuidar conversado, disponível, acolhedor, junto aos seus conhecimentos comunitários.  Demonstravam um saber relacional, dos costumes daquele bairro, daqueles moradores, que os ajudavam a cuidar de modo mais horizontal, sem tanto tecnicismo. Sem perceberem, faziam e eram estratégicos na equipe no que tange às práticas de cuidado em saúde mental na atenção básica (Leite & Paulon, 2013).

Diante dos compartilhamentos no campo de pesquisa, éramos forçados a pensar, como diria Deleuze (2006). Quem pode cuidar em saúde mental? Que cuidado é esperado, idealizado, possível? Buscávamos seguir o fluxo dos cuidados compartilhados, radicalizando os questionamentos também nas conversas com usuários, percebendo sua potência de autocuidado nos espaços coletivos. Seriam capazes de se autocoordenarem, assumindo a equipe um papel menos protagonista e mais disparador de processos? Seriam coletivas as autonomias? Somos mais autônomos quanto mais dependências temos, nos ensina Kinoshita (1996), indicando um caminho possível de ampliação de pontos de apoio de usuários, em que as coletividades dão consistência aos processos de autonomia.

 

Ensaios de Um Comum em Meio à Comunidade

Nossas inquietações reverberavam também junto à equipe de NASF, que experimentava apoios em saúde mental, tentando proliferar coexistências, sem destaques protagonistas. Dividiam cenas de cuidado com ACS, técnicos de enfermagem, tradicionalmente ocupadas por profissionais de nível superior. Aproximavam-se e se distanciavam à medida que percebiam os movimentos autônomos de cada trabalhador.  Com nossas intervenções em campo, as matriciadoras aproveitavam nossos impulsos curiosos para dar mais consistência a desvios potentes e desejados em saúde mental, convocando colegas e usuários a conversar afetivamente. Não estávamos sozinhos. Fazeres psi eram relançados em novos movimentos, impulsionados pelos encontros possíveis, por vezes difíceis, dos territórios atendidos.

Agenciamentos sutis, cotidianos, faziam-se em meio às tentativas de conversar. Ressonâncias mútuas possibilitaram cumplicidades, afetividades, parcerias entre pesquisadores, matriciadoras, trabalhadores das unidades de saúde, usuários, sem, entretanto, anular diferenças e questionamentos diante do outro. Pelbart (2003) recusa a ideia de comunidade que busca totalizar e constituir novas identidades grupais, como se estas fossem mais ampliadas, e advoga pelo que há de comum entre nós e o outro, coletivo que nos compõe para aquém e além das formas grupais homogêneas que buscamos instituir. O comum, aquilo que de fato nos une, não diz de uma instância transcendentalizada, de uma comunidade que a sociedade teria destruído e deveríamos resgatar. Mas, sim, de uma possibilidade de convivência de diferenças sempre variantes e provisórias que conseguem estar umas com as outras, afirmando um plano de transversalidade que nos compõe, mantendo dissimetrias sem subordinações. O comum, neste sentido, não é o achatamento das singularidades em prol de uma identidade única, mas o plano no qual forças singulares pululam em um agenciamento coletivo que faz comunidade aberta e não fechada sobre si mesmo.

O comum é, assim, abertura ao Outro, composição de singularidades, capacidade de diferir. É alargamento da capacidade de comunicar, de associar, compartilhar, forjar novas conexões e proliferar redes e tem, como condição, a abertura a uma multiplicidade de encontros que não se fecha a um conjunto de pessoas (Barros & Pimentel, 2012, p.12).

Diante das pequeninas composições possíveis, suspendendo correrias cotidianas na saúde, experimentávamos instantes transformadores, entremeando-nos de modo singular ao campo. Nesse momento, no Grupo de Interesses, usuários, trabalhadores e pesquisadores acadêmicos ensaiávamos um possível fechamento da pesquisa, evento final (ou seriam novas aberturas?). Organizávamos o I Fórum de Saúde Mental na Atenção Básica de Alvorada, tentando ser cuidadosos para não anular e subjugar, impondo modos de fazer. Confudiam-se as autorias do evento, não sendo mais um evento exclusivo de encerramento da pesquisa, e sim um evento da rede de saúde da cidade. Exercícios gestores conjuntos. Entretanto, assimetrias permaneciam: Quem se autorizaria a falar em um grande palco ou em uma grande roda? Mas os hibridismos respondiam com outra pergunta: tratam-se apenas de falas? Tomávamos essa interrogação como pista para compor o encontro.

Agrupamos então cerca de 170 participantes entre gestores, trabalhadores e usuários de Alvorada, dos diversos níveis de atenção à saúde, incluindo também trabalhadores da assistência social e da educação nesse evento que ocorreu em setembro de 2015 no Sindicato dos Municipários. Música, teatro, exposições dos grupos realizados nas unidades, meditação, intercalaram-se com as falas, apressentação de um serviço da rede e fechamento formal da pesquisa, instaurando um campo outro de sensibilidades e trazendo inclusive usuários a coordenar. Nessa atmosfera, permeada por gestos artistas e desacelerações, surgiam interrogações e tensões que colocavam frente a frente os diferentes atores. Entre elas, a fala inquieta de uma usuária reverbera:

 “Como vou me apropriar da minha saúde se eu não recebo a bula do medicamento psiquiátrico? Se eu não conheço o medicamento, como vou saber se aquilo que estou sentindo se deve ao efeito do remédio ou a outra questão de saúde?” (Trecho de um diário de campo do evento final).

Ao interrogar o porquê de não receber a bula do medicamento quando retirado na farmácia do SUS, sua fala colocava-se como um ato. Gestos questionadores quebravam alguns engessamentos e borravam fronteiras entre atores no grande salão em roda, trazendo a discussão sobre autonomia e gestão compartilhada do cuidado. Quem é gestor do cuidado? O prescritor do medicamento? Que lugar é esperado do usuário? Questionavam-se os entraves para o autocuidado, suspendendo estereótipos loucos, que aos usuários em saúde mental atribuem apenas desrazão, e ampliando o campo de possíveis relações entre usuários, trabalhadores, gestores e pesquisadores.

O questionamento sobre autonomia abria brechas para reconhecermos diferentes protagonistas em um cuidado em rede, descentrado. Disparava a legitimação de outros atores-cuidadores, usuários e profissionais de nível médio, muitas vezes com suas potencialidades deslegitimadas, colocando em discussão a coprodução de sujeitos e a cogestão do cuidado (Cunha & Campos, 2010; Brasil, 2009). Em meio aos coletivos da pesquisa, exercícios sutis de autonomia eram possíveis, clamando por novas grupalidades. Fronteiras identitárias se faziam mais porosas diante das flexibilidades nesses encontros inéditos, marcados por corpos interessados, mas mantendo as singularidades.

Nesse sentido, buscávamos fazer do evento final da pesquisa não apenas um espaço oficial, mas sim aberto às informalidades que conectam sujeitos. Assim, junto às falas formais, éramos transversalizados pela cultura produzida nas unidades de saúde, pelo compartilhamento de experiências e por uma grande roda de conversações no imenso salão, em que todos escutavam e muitos queriam falar. Buscávamos instaurar uma conversa múltipla e perpassada por fluxos heterogêneos no sentido trazido por Deleuze e Parnet (1998), mas, diante da grandiosidade, temíamos não conectar diversidades, apreensivos sobre os efeitos possíveis das metodologias escolhidas para conversar. Atentávamos aos imprevistos e improvisos, diante das responsabilidades e pesquisadores diluídos em meio ao grupo organizador. Rodamos, agenciando afetos, falas, silêncios, arte, cuidado e pesquisa, afirmando a coexistência de heterogêneos entremeados em uma experimentação comum. Junto a essas intensidades e empolgação que tomava o encontro entre os atores da rede, construímos também um relatório das principais demandas e questões levantadas em relação à saúde mental na atenção básica no município a partir desses debates.

 

Sobre Considerações Pesquisantes Nada Finais

Diante da complexidade de tais encontros, percebíamo-nos capturados, por vezes, por nossa necessidade pesquisadora de tudo significar, submetendo as vivências em campo ao nosso modo instituído de relação acadêmica. Nos exercícios de análise, instituímos categorias e agrupamentos, tentando organizar a multiplicidade desse tempo de imersão, mas também encerrando sentidos. Temíamos perder as identidades pesquisadoras. Entretanto, enchemo-nos de dúvidas, diante das brechas abertas. Quando a prática de um médico, por exemplo, centralizava em si o cuidado de um grupo, mas mantinha vínculo e afeto com os usuários (que se sentiam cuidados em princípio), não sabíamos exatamente o quanto se enquadrava em uma prática especialista, hierárquica e tutelar ou categoria que dizia do cuidado afetivo, vinculado e assumindo a coordenação do cuidado. Onde caberia este ponto da análise? Parecia estar em todos os campos, esparramando-se na rede de falas e vivências. Esgarçavam-se demarcações científicas, embaralham-se agrupamentos e categorias.

Ao acolhermos fluxos imprevisíveis em meio às categorizações, aproveitando as dúvidas, evidenciávamos o paradoxo das práticas de cuidado e percorríamos o desafio de não cair na armadilha de encerrar em uma significação linhas que tentam fugir. A mesma prática, por vezes, fazia-se em um encontro potente, produtor de singularidades e novos caminhos e, em outros, parecia apenas reforçar a imitação de uma vida que não lhes pertencia, padronizando modos de trabalhar, de cuidar e de ser paciente. Incômodo por não conseguir traduzir e significar, alternado com o encantamento diante da multiplicidade, riqueza e conexões. Necessidade de inventar.

Buscando modos de expressar, encontramo-nos com Mia Couto (2009) que nos apresenta um caminho possível: “Mas na verdade, meus amigos, é que nenhum escritor tem ao seu dispor uma língua já feita. Todos nós temos de encontrar uma língua própria que nos revele como seres únicos e irrepetíveis” (p.25). Advoga, ainda, por um ser plural, munido de um idioma consoante com a multiplicidade da vida e afirma: “Ao lado de uma língua que nos faça ser mundo, deve coexistir uma outra que nos faça sair do mundo” (p.26). Tentávamos criar uma língua que nos fizesse entrar e sair do mundo ao mesmo tempo, sair das identidades manicomiais, seriadas, fragmentadas. Buscávamos composições singulares por onde passam os fluxos fugidios que abrem novos caminhos inventivos.

Queríamos movimentar, expressar, conectar, deixar fluir a energia em movimento, pesquisar. Conhecer para que? Suspeitávamos do utilitarismo das pesquisas que visam ser aplicadas ao campo, moldes de saber que tentam se encaixar no outro e nos perguntamos sobre os sentidos e os efeitos de pesquisar. Desejávamos qualificar a clínica. Mas o que seria qualificar? Enquadrar supostos bons movimentos para reproduzi-los mais? Deixar fluir movimentos caóticos, arriscando desmanchar diante da imensidão da academia?

Entre repetições e diferenças habitando um mesmo plano ensaiado de vaivéns pesquisantes, sentirmo-nos potentes e ampliar nosso desejo por conhecer era uma pista interessante. Nossos questionamentos de pesquisa insinuavam, seguindo a pista de Fonseca e Costa (2014), que, quanto mais agenciamentos heterogêneos fizéssemos, aumentando sua coexistência e consistência, mais desejaríamos seguir pesquisando e possibilitaríamos as criações singulares. O plano do comum emergia entre os diversos atores participantes. Pesquisar poderia ganhar autonomia, desde que produzisse conexões, conhecimento a partir dos encontros no campo. Experimentávamos, nas portas de entrada, de saída e comuns em meio aos coletivos, uma produção de pequenas redes, articulações que aumentavam a vontade de seguir experimentando mais e mais.

Pesquisar de modo interventivo e participativo implicava justamente movimentar os gestos acadêmicos junto aos da cidade, dos sujeitos, complexificando experiências. Obviamente, produziam-se também relatórios, artigos, produtos demandados institucionalmente, mas tentando não perder a intensidade do processo de aprender pesquisando com o outro. A potência dos gestos construídos nos coletivos dizem justamente da duração que se instaura nos instantes de criação, que, apesar dos términos formais, seguem intensificando corpos que se abrem a outros recomeços. Pudemos experimentar um pouco desses movimentos que se seguiram (nem sempre visíveis), por exemplo, nos pedidos que nos chegaram após o encerramento formal da pesquisa em Alvorada. Em diferentes momentos, alguns trabalhadores da rede e conselheiros de saúde nos demandaram novas conversas e apoio nos processos de articulação que continuaram reverberando no município. Estivemos, dentre outras ações, no Conselho Municipal de Saúde de Alvorada, retomando as questões apontadas durante a pesquisa e auxiliando no planejamento de um evento alusivo à luta antimanocomial.

Consideramos que os sentidos produzidos nessa experiência de pesquisa foram diversos e não tivemos garantias de sucesso. Mas buscamos, diante da ética da ampliação da vida, construir um caminho singular, complexo e múltiplo que conectasse periódicos científicos e complexidades da atenção básica. Seguir, guiados pelos momentos de alegria ao estar com, era uma de nossas pistas. Diante de um mundo informe e caótico, sempre misturado, tentávamos criar relações que fizessem mover a escrita e a pesquisa, construindo caminhos, perigosos e, por vezes, frágeis, mas necessários quando queremos “transformar para conhecer” (Passos, Kastrup & Escóssia, 2010, p.18).

 

 

Agradecimentos

À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul que possibilitou a pesquisa “QUALIFICAÇÃO DA SAÚDE MENTAL NA ATENÇÃO BÁSICA: Análise das Práticas de Equipes da Região 10-Macrometropolitana/RS a Partir do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB)”, que, como um dos produtos, resultou este artigo aqui apresentado. À rede de saúde da cidade de Alvorada que acolheu a pesquisa e participou em conjunto com os pesquisadores.

 

 

Referências

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Data de submissão: 28/08/2017
Data de aceite: 30/11/2017

 

 

I Luciana Rodríguez Barone: Psicóloga da Gerência de Saúde Comunitária do GHC, Unidade Coinma, preceptora da Residência Multiprofissional em Saúde da Família e Comunidade. Especialista, Mestre e, recentemente, defendeu a tese de doutorado em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. E-mail: lucianarbarone@yahoo.com.br

II Juliana de Bittencourt Escobar: Psicóloga, especialista em Saúde da Família e Comunidade pelo Programa de Residência Integrada em Saúde do GHC, especialista em Educação Permanente em Saúde e mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. E-mail: ju_escobar@yahoo.com.br

III Afonso Wenneker Roveda: Psicólogo, mestrando em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Encerrou recentemente sua pesquisa de mestrado sobre a Militância em tempos de Biopoder. E-mail: rovedaafonso@gmail.com

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