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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.80423 

ARTIGOS

 

Cartografia e Hermenêutica nos Enlaces da Pesquisa Participativa

 

Interlacings of Cartography and Hermeneutics in Participatory Research

 

Cartografía y Hermeneutica en los Vínculos de la Investigación Participativa

 

 

Liane Beatriza RighiI, Cristiane Holzschuh GonçalvesII

I Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil.

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

 

 


RESUMO

Avaliação de Quarta Geração e Método Cartográfico têm sido referências importantes para pesquisas no campo da saúde mental, mas são poucos os registros de suas conexões. A análise da investigação “Qualificação da Saúde Mental na Atenção Básica” visa contribuir para discutir características que a composição entre os dois referenciais metodológicos pode imprimir às pesquisas deste campo. A maneira como a investigação conectou os dois referenciais resultou em ampliação da participação.

Palavras-chave: Avaliação; Pesquisa Qualitativa; Cartografia; Saúde Mental; Atenção Primária em Saúde.


ABSTRACT

Fourth Generation Evaluation and Cartographic Methods have been important references for researches in the field of mental health even if there is little substantiation as to their connection. The analysis of the “Appraisal of Mental Health Care in Primary Health Care” study looks to contribute to the discussion on what the combination of these two key methodological approaches can contribute to research in this field. The way the study connected these two key approaches resulted in increased participation. Entwine

Keywords: Appraisal; Qualitative Research; Cartography; Mental Health Care; Primary Health Care.


RESUMEN

Evaluación de Cuarta Generación y Método Cartográfico han sido referencias importantes para investigaciones en el campo de la salud mental, pero son pocos los registros de sus conexiones. El análisis de la investigación "Cualificación de la Salud Mental en la Atención Básica" pretende contribuir para discutir características que la composición entre los dos referenciales metodológicos puede imprimir a las investigaciones de este campo. La manera como la investigación conectó los dos referenciales resultó en la ampliación de la participación.

Palabras-clave: Evaluación; Investigación Cualitativa; Cartografía; Salud Mental; Atención Primaria en Salud.


 

 

Este artigo discute a composição de conceitos e perspectivas de diferentes abordagens metodológicas, na investigação “Qualificação da Saúde Mental na Atenção Básica: uma análise das práticas de equipes da Região 10 – Macrometropolitana/RS a partir do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ)”. Em todo o seu percurso, a pesquisa produziu a inclusão crítica de aspectos da Avaliação de Quarta Geração, Método da Cartografia e Pesquisa-Intervenção. Quais os fundamentos dessas críticas, possíveis pontos de contato entre as metodologias utilizadas e alguns apontamentos que se desdobraram em novos dilemas teórico-metodológicos são alguns dos aspectos que este texto propõe-se a examinar.

A proposta de investigação partiu de um entendimento a respeito da relação ensino-serviço e da viabilidade e potência de desenhos participativos e interventivos. É por isso que seu ponto de partida foi o Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ). Apostou-se na produção de saber, com os sujeitos, a partir de informações já coletadas e relacionadas ao cotidiano do seu trabalho ou a busca de atenção à saúde. Acreditou-se que as informações do PMAQ poderiam disparar questões e, com isso, contribuir para ampliar a capacidade de análise a respeito das formas de gestão, atenção e seus efeitos na qualidade da Atenção Básica e, especialmente, do cuidado em Saúde Mental.

As conexões entre diferentes abordagens e teorias que orientaram o desenho da referida pesquisa são objeto deste texto. A problematização das posições (que distinguem) e composições (que aproximam e mesclam) pretende revelar desafios que a pesquisa enfrentou, desde impossibilidades de conciliar aspectos das diferentes perspectivas metodológicas até – e especialmente - o que resultou das composições.

 

Avaliação de Quarta Geração: Hermenêutica e Dialética

A Avaliação de Quarta Geração foi proposta a partir da crítica às três gerações anteriores de pesquisa avaliativa: a primeira marcada pela mensuração, a segunda pela descrição e a terceira pelo juízo de valor. As principais críticas a essas gerações são a tendência ao gerencialismo, a relação entre administrador e avaliador (que os autores definem como enfraquecedora, injusta e privadora de direitos), a incapacidade de acomodar o pluralismo de valores e o comprometimento exagerado com o paradigma científico de investigação (Guba & Lincoln, 2011).

Tal maneira de análise metodológica é apresentada como um novo paradigma na pesquisa avaliativa. Para Kuhn (2013, p. 53), paradigmas são “as realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções para uma comunidade de praticantes de uma ciência”. A expressão “Paradigma Hermenêutico-dialético” anuncia as características que diferenciam a Avaliação de quarta Geração de outras perspectivas, evidenciando o seu caráter interpretativo e a possibilidade de comparação e contraposição de pontos de vista divergentes (Guba & Lincoln, 2011).

O conceito de dialética, neste referencial, segue a construção e sentido hegelianos e, coerente com esta filiação, busca sínteses mais elaboradas dos pontos de vista divergentes. Trata-se de uma metodologia responsiva e construtivista. O termo responsiva indica que os parâmetros e limites da avaliação não são estabelecidos a priori, como nas gerações anteriores. O termo construtivista designa a “metodologia de fato empregada para conduzir uma avaliação” (Guba & Lincoln, 2011, p. 47). Por isso, a Avaliação de Quarta Geração é apresentada como uma abordagem alternativa que seus autores designam como “avaliação construtivista responsiva ou respondente”.

Um conceito central nesta metodologia é o de Grupos de Interesse ou interessados (stakeholders). Beneficiários, representantes ou vítimas são “pessoas ou grupos que de alguma forma são colocados em risco pela avaliação, isto é, pessoas ou grupos que têm algum interesse em jogo” (Guba & Lincoln, 2011, p. 47).

Resultado destas concepções, o círculo hermenêutico é uma roda de respostas e construções que viabiliza interpretar os processos. Tomando conceitos de Testa (1992), definimos – em uma aproximação com o campo do Planejamento em Saúde - estes processos como conflitivos, complexos e contraditórios.

 

Método Cartográfico: Intervenção e Movimento

O método cartográfico, tal como formulado por Deleuze e Guattari, tem como principal objetivo acompanhar processos e não representar um objeto. O que há a ser cartografado é tudo o que envolve os afetos, as redes e as rupturas (Kastrup, 2007).

A cartografia é um modo de pesquisar não prescritivo, que não se baseia em uma lógica de neutralidade do pesquisador, até por que ele é corpo vivo e político nos encontros afetivos com o campo interventivo e entende o pesquisar como um processo em movimento, cujos delineamentos vão-se fazendo ao caminhar. Tal perspectiva considera a inseparabilidade entre conhecer e fazer, sendo assim, um método de pesquisa-intervenção (Barros & Passos, 2012b).

A pesquisa cartográfica, como uma pesquisa-intervenção, tem como princípio o primado do processo à meta, a inversão do método, uma hódos-meta,contraversão metodológica que, ao priorizar o processo de produção dos dados e não seu mero levantamento, afirma a força da experiência concreta como guia para o (per)curso (Barros & Passos, 2012b).

Pesquisar com a cartografia é encontrar-se com reentrâncias fugidias de dimensões mínimas que abrem problemáticas ilimitadas, sem espaço para binarismos advindos da partição abstrata do mundo em categorias estanques. Encontro singular e intempestivo entre os fluxos de um devir-mundo que tecem o cartógrafo e sua cartografia: olho e paisagem são um movimento de movimentos em encontro. Movimentos do mundo que tornam impossível a neutralidade do ver: a perspectiva é a afirmação do ser em seu modo (Costa, Angeli & Fonseca, 2012, p. 47).

Cartografar, para estes autores, não é saber sobre, pois se trata de saber com. A dimensão do produzir com realça o aspecto da participação, que poderia passar secundarizado em uma leitura mais tradicional da Avaliação de Quarta Geração. Neste sentido, a inclusão da perspectiva do método cartográfico força a pesquisa a ser mais que sequência de informações tomadas de representantes de diferentes Grupos de Interesses e sistematizada em consequentes exposições. Realçar o aspecto da participação, apostar na possibilidade de produzir com, provoca necessariamente alguma desordem no desenho do círculo hermenêutico.

Finalizando esta apresentação mais conceitual das duas perspectivas metodológicas que compuseram a pesquisa em análise, afirma-se a importância de um movimento paradoxal, com reconhecimento daquilo que distingue e com investimento em aproximações e análise das possibilidades no desenvolvimento do processo investigativo.

 

Círculo Hermenêutico e Método Cartográfico Enredados no Cotidiano da Pesquisa

O percurso da pesquisa “Qualificação da Saúde Mental na Atenção Básica” não se deu por sucessivas apropriações ou utilizações de diferentes perspectivas metodológicas, mas por negociações e reposicionamentos; ou afirmações e composição de diferenças. Vale ponderar, nesta situação, duas considerações. A primeira é elaborada por Guba & Lincoln (2012) e coincide com a defesa da Avaliação de Quarta Geração como um novo paradigma. Para eles, sustentar que os paradigmas estão em disputa pode ser menos útil que indagar como e onde eles confluem e onde e como apresentam controvérsias, diferenças e contradições. Ainda de acordo com estes autores, o reconhecimento de que “los diversos paradigmas están comezando a <<cruzar>> de modo que los teóricos antes considerados en conflicto irreconciliable ahora pueden aparecer bajo un epígrafe teórico diferente, comunicando uno los argumentos del outro” (Guba & Lincoln, 2012, p. 39). A segunda é anunciada por Gastão Campos em reflexão a respeito de uma pesquisa avaliativa em saúde mental. Ele diz que “em geral as pesquisas apoiam-se em constelação de conceitos e categorias analíticas” (Campos, 2008, p. 100).

O projeto de pesquisa foi elaborado com a participação de trabalhadores, usuários e gestores, o que anuncia tanto o posicionamento ético-político como a perspectiva metodológica do processo. A inclusão de diferentes grupos (e interesses) e a sustentação da participação nas diferentes etapas da investigação não seria possível se o percurso estivesse definido e restrito a uma teoria ou estratégia de pesquisa.

 

Grupos de Interesse e Grupo de Interesses

Para conhecer como se fazia Saúde Mental na Atenção Básica buscou-se conhecer grupos de usuários nas comunidades dos seis municípios componentes do campo da pesquisa. Deparou-se, por exemplo, com um grupo de convivência e bem-estar de idosas promovido pelos Agentes Comunitários de uma Estratégia de Saúde da Família (ESF).

Para iniciar a conversa nos Grupos de Interesses foram utilizados gráficos produzidos a partir do banco de dados do PMAQ-AB. Esta estratégia possibilitou a leitura qualitativa dos dados que, embora coletados e divulgados pelos gestores federal e locais, seguiam distantes dos diferentes grupos e sujeitos interessados em seus resultados.

A partir destas questões houve abertura para o debate sobre o que é Saúde Mental, o que é o SUS e o que é controle social. A metodologia permitiu que discursividades menores pudessem ser escutadas diante de discursividades maiores, fazendo circular várias lógicas: o médico que, mesmo atravessado pelo poder psiquiátrico, propõe grupo de meditação; o pesquisador, que deseja revolucionar, mas que se vê desorientado com as diferenças que o campo oferece em relação ao script; o usuário que entende por cuidado em saúde mental unicamente a medicação, mas que se percebe com mais saúde quando começa a participar de uma roda de Terapia Comunitária... Foram intervenções com potência de produzir desvios nos modos instituídos de conceber e viver a saúde mental, como pode ser observado na fala de uma usuária, que afirma: “se existissem mais grupos, mais conversa... Conversar é ótimo. Faz bem. Te garanto que não precisaria mais hospital psiquiátrico!”.

Tais exemplos reforçam o caráter interventivo da pesquisa, em que os pesquisadores, imersos nos problemas lançados no campo da pesquisa, produzem realidades e não são apenas meros observadores dela (Fischer, 2002). Neste sentido - se os diferentes atores sociais têm problemas singulares - como fazer para que tais singularidades não sejam apagadas no processo de pesquisa? E como fazer para que produzam algo coletivo? Estes eram os maiores desafios dos grupos de interesses.

Ao reunir em uma roda gestores, trabalhadores e usuários percebeu-se que todos vinham com queixas há muito repetidas e não ouvidas, seja dos usuários (em relação à qualidade do atendimento), dos trabalhadores (que declaram buscar mudar sua atuação, mas avaliam que a gestão não os apoia) ou do gestor (que tenta justificar-se por não conseguir verba adequada para a execução dos projetos demandados). Ao unir tais discursos -sem a hierarquia do que teria mais valor- e transversalizá-los por novas combinatórias e mediações, novas perspectivas se anunciavam, superando, muitas vezes, a forma de queixa.  Os limites de saberes e poderes de cada um, dos lugares que ocupam, são colocados em questão e ganham potência de criação.

Retomando o desenho da pesquisa-intervenção, identificamos encontros que ampliavam a transversalidade nos grupos, dando passagem aos devires. O conceito de transversalidade criado por Guattari (1964), remete a uma relação entre maiorias e minorias, em acionar as linhas menores e deixá-las ver diante de discursividades maiores, fazendo circular várias lógicas. Como afirmam Barros & Passos (2012, p. 239a), “conjurando as oposições, é a operação de transversalizar que permite outro modo de investigar”. Tal conceito remete mais diretamente à comunicacionalidade. Guattari (1964) criou esse conceito indicando “um aumento dos quanta comunicacionais” em um grupo ou intragrupos. Nas palavras de Barros & Passos (2012 p. 241a):

[...] na pesquisa a operação de transversalizar se realiza na intensificação/aposta nos devires que estão sempre presentes nos chamados “objetos de pesquisa”, indicando o que neles há de diferentes graus de abertura e potências de criação. Transversalizar é considerar este plano em que a realidade toda se comunica. A operação de transversalizar produz um desarranjo no sistema binário de definição/categorização do objeto da pesquisa permitindo conectar devires minoritários que estão adjacentes ao objeto [...] Transversalizar é traçar o eixo da diagonal que embaralha os códigos, colocando lado a lado os diferentes, liberando as diferenças de seus lugares dados.

Para cartografar é preciso, pois, querer o acontecimento, o lançar dos dados, estar aberto à afirmação do acaso, àquilo que faz problema no mesmo. Suportar um problema, uma sempre vizinhança com territórios de soluções. Estar a caminho e perguntar, que é que insiste aqui? Que é que pede passagem na língua? Que é que ganha verbo no que acontece? Aqui, tratamos com um mundo inteligisensível.

 

Grupo Gestor

O Grupo Gestor da pesquisa foi pensado inicialmente – como a denominação anuncia – para garantir a conexão da pesquisa com os serviços. O processo propunha a participação –principalmente de gestores – na definição de aspectos fundantes da pesquisa, especialmente a criação das condições necessárias ao trabalho de campo e avaliações. O grupo gestor participaria da construção de um cronograma viável e garantiria o reposicionamento da pesquisa, antecipando e diminuindo possíveis ruídos na entrada em campo e desenvolvimento da pesquisa. A participação dos gestores no grupo de condução da pesquisa também funcionaria como sinal de autorização para a participação dos trabalhadores nas atividades que a pesquisa estava desenvolvendo nos diferentes municípios. Decorre deste desenho inicial uma primeira questão conceitual: o reconhecimento dos gestores como sujeitos interessados na pesquisa e a aposta de que poderiam interessar-se mais – inclusive cogerindo-a – dá, ao grupo gestor/condutor, características simultâneas de um grupo focal de pesquisa e de grupo de coordenadores de saúde mental apoiado por pesquisadores. Grupo focal, pois apresenta a posição e o conhecimento de um grupo de interesse a respeito do objeto da pesquisa e grupo em experimentação cogestiva de uma política, pois analisa a forma de implementação/desenvolvimento local e regional do SUS, da Atenção Básica e da Saúde Mental. Os encontros foram regulares, com datas propostas em agenda pactuada e tiveram a participação sistemática da equipe de pesquisadores.

Ao final de uma reunião do Comitê Gestor foi registrada a fala de uma gestora, que sintetizou a importância da dimensão interventiva da investigação: “vocês estão fazendo o que a gente da gestão teria que ter feito, vocês estão pensando conosco sobre os nossos problemas, que é o que a gente devia estar fazendo com as nossas equipes”. Ou seja, uma investigação pode colocar em análise, e em certa medida intervir, sobre os modos de gestão e de atenção que, de acordo com Campos (2000) são indissociáveis.

Quem, como e quando reunir e mobilizar sujeitos, por este motivo, foi pauta desse espaço a partir do início do trabalho de campo. A pactuação do cronograma de atividades a serem desenvolvidas junto aos trabalhadores e usuários foi revelando diferentes responsabilidades em relação à gestão e garantia dos atendimentos; os gestores na maioria das vezes mostravam-se preocupados com o tempo dispensado para as atividades da pesquisa. Contudo, o mais importante é que se tratava de uma discussão a respeito das formas de gestão e de cuidado, que necessitava mediação entre os sujeitos que cogeriam o processo e que já seriam representantes de dois dos Grupos de Interesse da pesquisa: pesquisadores e gestores.

Pode residir aí a primeira contribuição da perspectiva cartográfica para a Avaliação de Quarta Geração, que é acrescentar ao entendimento de que o pesquisador e sua pesquisa não são neutros – entendimento este destacado pelos autores desta metodologia avaliativa -, o reconhecimento de que são também interessados e implicados. O tema da implicação é destacado por Barros & Passos (2012b) que, a partir de Guattari, a associam a um imbricado trabalho de descrição, de intervenção e de criação de efeitos-subjetividades.

 

Enredamentos

A principal condição para participação, nos primeiros espaços criados pela pesquisa, foi a identificação do grupo de interesse. O grupo gestor foi proposto nesta lógica.  O seguimento da pesquisa a partir da Avaliação de Quarta Geração, resultaria na criação de grupos de usuários e de trabalhadores em cada um dos municípios. Contudo, ao propor esses espaços em cada município, os pesquisadores perceberam que outras forças disputavam ou definiam o pertencimento, com destaque para o vínculo com o lugar e com os serviços da interface saúde mental-atenção básica. A partir desta mudança, ganhou forma um desenho que se aproximou mais da cartografia e que foi se distanciando do círculo hermenêutico. A constituição dos Grupos de Interesses potencializa a proposta de transformar para conhecer, característica importante da cartografia que a diferencia das outras metodologias.

A última etapa da pesquisa - que foram seminários loco-regionais nas cidades pesquisadas a fim de apresentar e discutir os dados coletados - tinha como objetivo também incluir mais pessoas que não puderam se fazer mais próximas dos processos da pesquisa. Buscou-se ampliar a participação com gestores, trabalhadores e usuários e outros interessados na temática.

Assim, o perder-se em campo, ao visitar cidades desconhecidas, fez com que os pesquisadores, mesmo que involuntariamente, se colocassem mais abertos ao acaso, abrindo em si um vértice maior para atrair os afetos que o permitiriam conhecer. Perambular pelas cidades à procura dos serviços de saúde fez encontrar pessoas, espaços, movimentos outros que indicavam modos de fazer saúde e que uma pesquisa que se detém a um instrumento ou questionário pronto não permitiria. Além disso, este “estar a caminho” e perdidos, possibilitou ser “resgatados” pelos participantes da pesquisa, que levavam os pesquisadores ao local onde os grupos aconteceriam e a partir destes encontros, outra forma mais afetiva de se vincular com o campo ia se tecendo.

Ayres (2008, p. 50), assinala que “não faz sentido pretender definir uma metodologia hermenêutica de avaliação em saúde, mas sim, é possível, identificar alguns princípios que podem orientar métodos para tais estudos”.  Para o autor, trata-se da defesa da hermenêutica sem condicioná-la à aplicação de um método. Na nossa investigação, a criação dos grupos de interesses e sua dinâmica de funcionamento limitava a interpretação com o suporte do círculo hermenêutico. Contudo, não inviabilizava um exercício interpretativo sustentado na hermenêutica.

A forma como a investigação foi sendo construída permitiu a emergência de procedimentos metodológicos que saiam do roteiro e que faziam brotar dados onde não se esperava. Sustentar as inclusões que uma investigação pode fazer exige que a pesquisa se desenvolva em um ambiente democrático, o que significa dizer que composições metodológicas requerem cogestão na condução da investigação. Campos (2008) identifica, em pesquisas do campo da saúde mental, processos de coconstituição de sujeitos que dificultam padronizações de técnicas e instrumentos, pois estimulam ou exigem aplicações singularizadas e mutantes.

A pesquisa assumiu, desde seu desenho inicial, importantes características da metodologia cartográfica e apostou na possibilidade de composições entre investigação, apoio e educação permanente. A perspectiva da cogestão, do apoio institucional e da educação permanente esteve presente no espaço do grupo gestor, mas ele foi também – especialmente para os gestores que permaneceram (no seu cargo de gestor da Saúde Mental ou Atenção Básica ou na pesquisa) – um espaço para negociar a perspectiva interventiva da investigação.

 

Conclusão

A investigação desenvolveu-se – e sustentou-se – como uma experimentação de metodologia participativa para pensar o processo de saúde confirmando que se pode fazer pesquisas com estas apostas. Investigações com caráter participativo e analítico podem ampliar a concepção de saúde presente na academia e nos serviços, criando espaços temporários para educação permanente e apoio institucional em ato, espaço potente para articulação Saúde Mental-Atenção Básica. A investigação interventiva aciona, nos diferentes interessados, novas possibilidades de análise com efeitos em vários pontos da rede de saúde, visto que estão conectadas. A trama interventiva foi transformando os “Grupos de Interesse” posicionados em círculos (a princípio hermenêutico-dialéticos), em “Grupos Implicados”, interessados na questão-foco da pesquisa a ponto de aderirem aos espaços propostos de análise das suas implicações.

 

 

Agradecimentos

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo auxílio de bolsa de fomento à pesquisa de mestrado para a segunda autora e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) que financiou a pesquisa da qual decorre este artigo - “Qualificação da Saúde Mental na Atenção Básica: análise das práticas de equipes da Região 10-Macrometropolitana/RS a partir do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB).

 

 

Referências

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Data de submissão: 28/09/2017
Data de aceite: 25/11/2017

 

 

I Liane Beatriz Righi: Graduada em Enfermagem e Obstetrícia e Doutora em Saúde Coletiva pela Universidade Estadual de Campinas. Professora do Mestrado Profissional em Ciências da Saúde da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Professora de Saúde Coletiva nos cursos de Graduação em Fisioterapia, Farmácia, Terapia Ocupacional e Medicina. Pesquisadora no Grupo Intervires nos anos de 2014 e 2015. E-mail: lianerighi@ufsm.br

II Cristiane Holzschuh Gonçalves: Graduada em Psicologia pelo Centro Universitário Franciscano (UNIFRA-2009). Especialista em Saúde Pública via Residência Multiprofissional Integrada em Sistema Público de Saúde com ênfase em Atenção Básica e Saúde da Família pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM-2012). Mestre em Saúde Coletiva pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS-2016). E-mail: psicristianehg@yahoo.com.br

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