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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2018

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.80424 

ARTIGOS

 

Análise de Implicações: Uma Potência Problematizadora aos Pesquisadores Supostamente “Sabidos”

 

Analysis of Implications: A Problematizing Power to the Researchers Supposedly “Known”

 

Análisis de Implicaciones: Una Potencia Problematizadora a los Investigadores Supuestamente “Sabidos”

 

 

Mário Francis Petry LonderoI, Letícia Quarti SoaresII

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

II Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Porto Alegre, RS, Brasil.

 

 


RESUMO

Este artigo tem por base uma pesquisa de conotação avaliativa, participativa e interventiva, realizada na região metropolitana de Porto Alegre, que investigou os processos de cuidado em Saúde Mental na Atenção Básica da rede de saúde pública. O estudo aqui tratado realizou um recorte dessa pesquisa, analisando os encontros ocorridos especificamente na capital, uma das seis participantes da intervenção, à luz da metodologia cartográfica. A proposta foi analisar as implicações dos pesquisadores sitiados neste campo da pesquisa maior, como foram os processos dialógicos entre pesquisadores, usuários, trabalhadores, familiares e gestores de saúde, e o que se produziu diante das problemáticas da rede e suas possíveis invenções para dar conta do cuidado em saúde mental na atenção básica. Vimos, ao longo do processo, o quanto o contato com um campo participativo produz um saber que problematiza e transforma os conhecimentos preestabelecidos pelos pesquisadores.

Palavras-chave: Análise de Implicação; Saúde Mental; Atenção Básica; Pesquisa-Intervenção; Pesquisa Participativa.


ABSTRACT

This article is based on an evaluative, participatory intervention-research which studied Mental Health Care processes within Primary Care in the public health network of the greater metropolitan region of Porto Alegre, Brazil. We present a summary of this research and analyse the encounters which occurred specifically in the city proper of Porto Alegre, one of the six urban communities participating in the research. Using a cartographic methodology, the research proposition aimed to analyse the implications of siting researchers throughout the major research region; to examine the dialogic processes between researchers, users, workers, family members and healthcare managers; and study what transpired within the networked problematique and its possible inventions in order to provide an account of mental health care within primary care. We were able to see throughout the process how direct contact with the participatory field produces an understanding that problematises and transforms researchers’ preconceived knowledge.

Keywords: Implication Analysis; Mental Health; Basic Care; Intervention Research; Participatory Research.


RESUMEN

Este trabajo está basado en una investigación de connotación evaluativa, participativa e interventiva, realizada en la Región Metropolitana de Porto Alegre, que buscaba apurar los procesos de cuidado en salud mental en la atención básica de la red de salud pública. El estudio que aquí se presenta realizó un recorte de esa investigación, analizando los encuentros que ocurrieron específicamente en la capital, una de las seis participantes de la intervención, a la luz de la metodología de la cartografía. La propuesta fue analizar las implicaciones de los investigadores sitiados en ese campo específico de la investigación, cómo fueron los procesos dialógicos entre investigadores, usuarios, trabajadores, familiares y gestores de salud, y qué se produjo frente a las problemáticas de la red y sus posibles invenciones para dar cuenta del cuidado en salud mental en la atención básica. A lo largo del proceso, vimos cuanto el contacto con un campo participativo produce un saber que problematiza y transforma los conocimientos preestablecidos por los investigadores.

Palabras-clave: Análisis de Implicación; Salud Mental; Atención Básica; Investigación y Intervención; Investigación Participativa.


 

 

Caminhante Não Há Caminho

O artigo aqui apresentado tem a intenção de trabalhar com as paisagens afetivas que moveram a pesquisa “Qualificação da Saúde Mental na Atenção Básica: Análise das Práticas de Equipes da Região 10-Macrometropolitana/RS a Partir do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB)”, mais especificamente no campo efetivado na cidade de Porto Alegre. Como tal estudo fora realizado em seis cidades da região metropolitana de Porto Alegre, o mesmo acabou por ganhar nuances singulares em sua concretização, dependendo dos encontros ocorridos entre os pesquisadores junto a cada campo interventivo. A cada cidade, com seus desenhos, nuances, gestões, trabalhadores, usuários, serviços, histórias e tantos outros atravessamentos e atores envolvidos neste processo de análise reflexiva e participativa sobre a saúde mental na atenção básica, uma trajetória de análise e de criação de espaços de cuidado se desenvolveu.

Em Porto Alegre, com sua diversificada e complexa rede de cuidados em saúde mental, percorremos, ao longo de dois anos, muitos lugares, como: Associação dos usuários de saúde mental, chamada Construção; Gerências distritais de saúde; Secretaria de Saúde e coordenações da Atenção Básica e da área Técnica de Saúde Mental; Instituto Municipal de Estratégia de Saúde da Família (IMESF); Unidades Básicas de Saúde; serviço de geração de trabalho e renda – GeraPOA; e Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). A partir da metodologia de pesquisa de cunho avaliativo, qualitativo e participativo, inspirada em avaliações de 4ª geração em saúde (Guba & Lincoln, 1989/2011), construímos alguns espaços de encontros entre os interessados na temática, nos quais foram realizados Grupos Focais e de Interesse para pensar as práticas de atenção em saúde mental na rede de cuidados da cidade. A tentativa foi de aprofundar o saber sobre as produções de cuidado na atenção básica em articulação com a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), reconhecendo tanto o volume de serviços instalados quanto as dimensões relacional, territorial e intersetorial que compõem a rede de saúde.

Poderíamos trazer para a discussão muitas questões deste rico campo problemático que constituímos coletivamente ao longo de todo o processo: contratação da pesquisa com seus atores; escuta dos gestores, trabalhadores, usuários e familiares; finalização da pesquisa no evento conclusivo de Porto Alegre, realizado junto ao primeiro encontro da RAPS da cidade. Contudo, gostaríamos de destacar e colocar em análise um movimento que foi uma espécie de acontecimento no decorrer dos encontros com os Grupos Focais e de Interesse, sobretudo para nós, pesquisadores, que, mesmo vacinados sobre a leitura distante que a academia por vezes produz em suas intervenções sobre o social, acabamos, volta e meia, por reproduzir tais modelos de pesquisa sem os perceber. O acontecimento aqui comentado diz respeito a um desviar, em pleno traçado do campo problemático, de um caminho crítico e já pressuposto que a academia costuma levar ao campo interventivo antes mesmo de estar em relação com ele, com o qual pouco escutam-se as singularidades que emergem para problematizar as conclusões quase preestabelecidas. Neste caso, estaríamos em um plano de pesquisa que planeja e pensa – e, por que não, julga - suas ações antes de estar em contato com o campo, o clássico Metá-Hódos, nos diriam Passos & Barros (2009).

Atravessados por essa institucionalização do modo de fazer pesquisa e sedentos por afirmar prerrogativas da reforma psiquiátrica em sua militância na saúde mental - já, por vezes, um tanto institucionalizada -, acabamos por entrar no campo muito mais para julgar - criticando o que se tem de errado e imperfeito ao valorizar ao extremo as problemáticas existentes na rede - do que para avistar ações e vínculos de cuidados potentes que também existem e que podem ser propagados de maneira molecular. O pesquisador, territorializado por uma ideologia militante da reforma, entra em campo desconfiado e resistente a se contaminar por uma rede que problematiza seus ideais, seus pontos cegos instituídos. Neste posicionamento sobreimplicado, tomado pelas instituições (Monceau, 2008) que atravessam o pesquisador militante da reforma psiquiátrica, acabamos por não fazer questão, redundando em um discurso já elaborado em gabinetes acadêmicos e militâncias. A pesquisa parecia perder fôlego antes mesmo de começar...

Neste sentido - e de maneira contraposta -, a composição do estudo realizado por diversos atores do cenário da atenção tornou o percurso híbrido de ideias, análises e propostas via grupo de interessados (trabalhadores, usuários, pesquisadores acadêmicos, gestores, familiares de usuários, estudantes de cursos da saúde) que se formou. Os pesquisadores acadêmicos, a cada passo que davam junto à rede e ao Grupo de Interesses, ao invés de formarem opiniões e apontarem caminhos para que, supostamente, a rede se qualificasse e deixasse de lado suas conjecturadas imperfeições, acabaram inundados por experimentações que desterritorializaram seus saberes prontos. A cada passo no campo, uma linha de surpresa e tensão, uma costura entre problematização e invenção, o acontecimento do pesquisar participativo produz mais experimentações-questões do que conclusões...

Quais implicações e transformações entram em jogo quando o realce não fica sob a responsabilidade do pesquisador dentro de uma pesquisa? Como se passa a produção de um saber sobre saúde mental na atenção básica quando construída por várias mãos, de diferentes instâncias e com singulares experiências? Quais afecções e, consequentemente, desterritorializações podemos analisar que se passam nos corpos dos pesquisadores quando abertos para o inusitado de uma pesquisa participativa, na qual o papel do pesquisador não é o de detentor de uma verdade a partir de sua experiência acadêmica?

Com essas questões - sobretudo guiados pela última -, tentaremos traçar um caminho cartográfico sobre os encontros ocorridos na pesquisa em Porto Alegre, com suas descobertas, tensões, laços e rompimentos, dores e alegrias que se passaram e marcaram os corpos que se dispuseram a caminhar juntos, neste desafio que foi conhecer e recriar a saúde mental porto-alegrense e a própria maneira de se pensar a pesquisa em saúde.

O objetivo do artigo se passa em analisar as implicações dos pesquisadores acadêmicos e colaboradores em serviço no ato do pesquisar aqui comentado, tendo como entendimento que a implicação diz respeito ao posicionamento que cada indivíduo constrói junto as instituições que o constituem e que assim produzem um certo óculos pelo qual cada um lê, percebe e age junto a vida, de maneira singular, mas sempre em contato com este inconsciente institucional (Monceau, 2008). Para pôr em análise essas desterritorializações que o campo produziu no decorrer da pesquisa junto as implicações analisadas, movimento nomeado como Hódos-Metá, o caminho que produz análise (Passos & Barros, 2009), cartografaremos cenas, falas vivenciadas que produziram afecções nos encontros dos grupos de maneira a marcarem acontecimentos e transformações tanto no modo de pensar a rede de atenção em saúde mental, como no trato e na condução do pesquisar interventivo.

 

PMAQ-AB¹ e os Primeiros Passos da Pesquisa

O modelo de atenção em saúde mental se transformou nas últimas décadas, indicando um cuidado integral e no território existencial do sujeito em sofrimento, ao invés de excluí-lo de sua própria vida e de seus laços afetivos, como nos tempos do manicômio. Com base nisso, como podemos pensar o papel da atenção básica neste cuidado integral e territorial de saúde mental? As práticas hoje realizadas neste nível de atenção e em toda a rede estão pautadas por uma ideia de cuidado territorial? Estas foram perguntas que nos acompanharam para a entrada no campo problemático, isto é, a rede de saúde de Porto Alegre.

Para investigarmos um pouco mais tais questões a partir da ótica porto-alegrense da atenção básica, um dos dispositivos analisados foram os dados do PMAQ em Porto Alegre e o que eles nos proporcionam em termos de indicadores para pensar a saúde mental na atenção básica. Entretanto, o mapeamento dos dados contidos sobre saúde mental no PMAQ revelou, no que diz respeito à complexidade da saúde mental, um escopo muito reduzido. A questão 29, referente à saúde mental, dividida em seus quatro indicadores de monitoramento nesta área advindos do Sistema de Informação da Atenção Básica (SIAB), privilegia a temática de álcool e outras drogas – o que sugere uma concepção restrita de saúde mental, reduzindo o que pretende avaliar. O instrumento/Programa, com isso, abdica de avaliar, por exemplo, ações de promoção e prevenção em saúde mental. Todavia, as práticas de saúde mental realizadas de fato pela atenção básica de saúde e descritas ao longo da pesquisa, compõem um conjunto de ações que são bem mais complexas e amplas, fazendo com que os dados levantados pelo PMAQ no 1º ciclo destoem do perfil predominante dos atendimentos encontrados nos territórios estudados. Para além das questões envolvendo álcool e outras drogas, existe uma gama de problemáticas no campo do sofrimento psíquico que passaram despercebidas pelo PMAQ, mas que estão presentes no cotidiano da vida da população, como: depressões, crises de angústia e isolamentos sociais por múltiplos motivos.

Em uma primeira análise, podemos entender que a saúde mental foi valorizada tardiamente nos processos de pesquisa em saúde, e ainda é incipiente a participação desse campo de conhecimento na atenção básica. Temos um cuidado em saúde mental pensado somente a partir da crise, que requer cuidados e ações de alta densidade tecnológica, ou que erroneamente relacionamos como de alta complexidade na atenção, normalmente, recaindo em uso de internações. Lancetti & Amarante (2006) comentam que, na saúde mental, a complexidade se passa no cuidado territorial, e não nas internações, invertendo a hierarquia pressuposta a partir da complexificação que não olha apenas para uma doença, mas também escuta um sujeito: “no hospital o procedimento é simplificado e no território os procedimentos são mais complexos” (Lancetti & Amarante, 2006, p. 632). Nada obstante, essa complexidade das ações e cuidados que se requer na Atenção Básica deveria definir investimento em recursos – humanos, estruturais, de desenvolvimento e de formação -, porém isso não se verificou na pesquisa em suas primeiras análises de campo.

Para além deste mapeamento a partir dos dados do PMAQ, em um primeiro momento, em diálogo com a gestão de Saúde de Porto Alegre – tanto junto à coordenação da Atenção Básica quanto com a da Saúde Mental –, realizamos um levantamento dos serviços instalados na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) da cidade. Os dados permitiram avaliar que a RAPS de Porto Alegre estaria defasada tanto em termos de serviços quanto de equipes de trabalhadores em saúde, o que precariza e traz como efeito uma rede de cuidados fragilizada e pouco efetiva, que volta e meia recorre às práticas de atenção atravessadas pela instituição manicomial, com excessos de internações e uso acentuado de medicações desnecessárias, por exemplo. Fora a carência de espaços de apoio entre trabalhadores, com os quais poderiam se sentir mais à vontade para realizarem algum tipo de cuidado em saúde mental que parece, muitas vezes, aterrorizante para cuidadores que nunca vivenciaram tais experiências. A solução, como vimos nos encontros com a rede, é sempre “passar adiante o usuário para um especialista”, que, de preferência, se responsabilize por ele.

Com esse levantamento primeiro da rede, iniciamos o campo e argumentamos tais posicionamentos para serem discutidos e analisados nos Grupos Focais e de Interesse. Para nossa surpresa, tais constatações – a insuficiência e a desarticulação da rede, a ênfase no especialismo e as práticas protocoladas -, já vividas na carne pelos integrantes da rede, pouco foram valorizadas nas discussões, o que desviou significativamente o curso das conversas tratadas nos encontros dos interessados na pesquisa e mesmo na proposta do evento final em Porto Alegre, como veremos adiante.

 

O Véu da Sobreimplicação: Como Não Abafar as Experimentações de Cuidado da Rede?

Propusemos o Grupo de Interesses, inicialmente, com a intenção de que ele se constituísse como espaço de análise hermenêutica e de avaliação das narrativas extraídas dos Grupos Focais que estariam sendo realizados concomitantemente, com a especificidade dos últimos estarem abertos e distribuídos nas oito gerências distritais de Porto Alegre e separados entre trabalhadores e usuários. Entretanto, ao longo do processo, o Grupo de Interesses tomou proporções maiores e tornou-se um lugar de gestão local da pesquisa, de caráter participativo, em que a coletividade, ao problematizar a rede de saúde, dizia algo a respeito de todos os presentes, interessados em compartilhar experiências de cuidado muitas vezes invisíveis e não reconhecidas no cotidiano do trabalho da atenção. Ao longo dos debates travados, foram realizados nove Grupos de Interesses, que envolveram a participação de oitenta e cinco pessoas ao todo, distribuídas entre gestores, pesquisadores, usuários, familiares, estudantes e trabalhadores; e dezesseis Grupos Focais, sendo nove grupos com trabalhadores da rede de Atenção Básica e sete grupos com usuários, o que contabilizou a participação de sessenta e sete trabalhadores e vinte e cinco usuários.

A partir da primeira rodada dos Grupos Focais, realizada em seis das oito Gerências Distritais² de Porto Alegre, levantamos uma multiplicidade de falas de usuários e trabalhadores da rede de atenção básica, disparadas pelos dados quantitativos do 1º ciclo do PMAQ, que contribuíram para iniciar as discussões sobre saúde mental, transbordando em muito os conteúdos levantados pela questão 29 do questionário.

Com essas falas produzidas pelos trabalhadores e usuários participantes dos Grupos Focais, retornamos ao Grupo de Interesses para propor uma análise sobre cada uma dessas narrativas que destacamos, elencando as que apareciam mais e nos pareciam emblemáticas para desencadear o debate no grupo de interessados. A sistematização das narrativas permitiu pensar e debater sobre alguns nós críticos da rede, tais como: a) a alta rotatividade de trabalhadores e gestores, que implica uma dificuldade de produção de vínculo e de longitudinalidade nas práticas de cuidado; b) um sentimento de desvalorização e de falta de investimento nos trabalhadores e serviços; c) a valorização de procedimentos quantitativos em detrimento de cuidados mais processuais que afirmam a integralidade da atenção; d) o desafio de qualificar a atenção básica, cujas práticas de cuidado, apesar de ampliadas nos últimos anos, ainda rechaçam e apresentam uma série de restrições no que tange à saúde mental; e) o diálogo truncado e a pouca escuta mútua entre gestores, trabalhadores e usuários, o que resulta em cristalização de hierarquias e práticas desalinhadas e não integradas.

A partir desses nós críticos da rede apresentados acima, surgem, no Grupo de Interesses, duas questões para serem desenroladas à medida que os encontros fossem se realizando. São elas: considerando as dificuldades da rede que estão em jogo nas práticas cotidianas de cuidado, dificuldades que dizem respeito aos serviços concretos e às formas como são pactuados os processos de trabalho, como efetivar um cuidado em rede e territorial na atenção em saúde mental? Como produzir modos de cuidar que levem em consideração a complexidade e a singularidade de cada usuário, sem perder de vista o princípio da integralidade da atenção, que precisa incluir a saúde mental de modo mais transversal?

Com essas questões e com as discursividades que emergiam no Grupo de Interesses, realizamos uma análise coletiva com a qual pinçávamos fatores significativos que apontassem para as problemáticas do cuidado em saúde mental, bem como para algumas experimentações até então invisíveis à rede, mas que, no entanto, vinham acontecendo e indicando caminhos interessantes à composição de um cuidado integral na atenção básica. As falas-narrativas de cada sujeito incluído no estudo da pesquisa enunciavam testemunhos, experiências vividas na temática saúde mental. Essas falas-narrativas exprimiam dores, fracassos, impossibilidades, preconceitos, medos, mas também apontavam certas experiências ricas, complexas, que, sendo compartilhadas com outros atores da rede de atenção, poderiam reverberar em novos modos de cuidar. Eram narrativas que traziam experimentações de cuidado indicativas de quantas possibilidades criativas existem, ligadas às singularidades locais, que apontam para um encontro pautado por trocas afetivas que destoam da burocratização, da hierarquização e da manicomização da vida no cuidado em saúde mental. A fala proferida por um dos trabalhadores em um dos Grupos Focais é expressiva desta produção do grupo aqui referida:

Muitas vezes os profissionais não se dão conta das próprias ações e práticas no dia a dia e como elas são potentes, e como também nem sempre saberemos tudo, sendo necessário de fato criar, inventar, persistir, inventando cuidado no dia a dia.

Contudo, mesmo com essa potência crescente do grupo em salientar os processos de cuidado exitosos feitos de maneira ímpar em diversos pontos de atenção da rede, os pesquisadores, seguidamente, em certa medida, valorizavam mais as narrativas que enunciavam os fracassos, e pouco ouviam as experiências eventualmente trazidas como possibilidades inventivas de cuidado. Um exemplo disso foi quando conhecemos um médico de saúde da família que realizava, em sua Unidade de Saúde, grupos de meditação e de terapia comunitária. Ao invés de valorizarmos tal trabalho, feito a muito custo, e de maneira solitária na sua unidade, interpretamos, apressada e grosseiramente, que o saber médico estava a predominar, sem espaço para outros trabalhadores do serviço se aproximarem dessas práticas de promoção e prevenção em saúde mental.

Neste sentido, ao nos depararmos com modos crítico-ressentidos de analisarmos as narrativas daqueles atores do Sistema Único de Saúde (SUS), tomamos um susto, pois isso engessaria qualquer possibilidade de a pesquisa pensar rumos inovadores, limitando as alternativas que pudessem transpor a barreira de dificuldades que vínhamos escutando e que constitui o cotidiano nas redes de atenção. Difícil sair da perspectiva crítica de somente achar o trabalho insatisfatório, com imperfeições em todas as instâncias, quando se está às voltas de um ideal pouco criativo e que cruza os braços no primeiro momento que enfrenta dificuldades, que não sabe experimentar sem a segurança dos protocolos as relações imprevisíveis de cuidado. Como pesquisadores, precisávamos sair da “burocratização acadêmica” no fazer pesquisa, sair dos ideais instituídos pela reforma psiquiátrica, de forma a inventar outros processos de análise e de intervenção.

O pesquisador militante da reforma psiquiátrica, no sentido ressentido do termo, “colou” em nós, fazendo com que interpretássemos de maneira reativa a potência de cuidado exercida pelo médico de família, por exemplo. Dunker & Neto (2015, p. 136) apontam que as ideologias militantes são “imunes à reflexão”, pois se pautam em um saber fechado e ideal, com o qual não se admite nuances e esgarçamentos nas regras que se institucionalizam em determinada relação de forças. E quando isso ocorre, não há questões a se pensar, somente afirmações ideológicas sobreimplicadas, como a de que se deve combater um suposto poder médico na rede. Nesta ótica míope de analisar as práticas de saúde mental na rede de cuidados, tornamo-nos previsíveis, moralmente classificadores dos movimentos moleculares que operam silenciosamente na rede, o que está distante de todo o compromisso ético de fazer pesquisa participativa e de um devir revolucionário que a reforma psiquiátrica já ofertara em suas micropolíticas e lutas.

Tal análise das implicações no grupo de pesquisadores conduziu a algumas questões: por que teríamos enviesado o olhar e a escuta dos grupos para o mesmo sintoma de desvalorização de que estes grupos nos falavam volta e meia, sem dar a devida saliência para os acontecimentos potentes da rede também ali enunciadas? Isso levaria a investigação a quais resultados? Por que àquelas vozes, emudecidas de trabalhadores e usuários predominantemente queixosos, ofertávamos uma escuta ensurdecida de pesquisadores predominantemente “sabidos”? Perguntas que começaram a nos perturbar e desviar para um outro olhar, com o qual iniciamos uma escuta/leitura diferente do que vínhamos colhendo em campo. Ao analisarmos as sobreimplicações que nos conduziam a uma escuta fechada no próprio saber acadêmico, cristalino frente às questões mundanas da rede de saúde mental, passamos a nos descolar progressivamente de forças institucionais reguladoras, e, portanto, não menos determinantes de nossas implicações com a temática da pesquisa. A lógica capitalista, o cuidado manicomial, a saúde como ausência de doença, a gestão da saúde como um lugar-modelo, a pesquisa acadêmica com sua expertise científica e toda uma sorte de ideais inalcançáveis influenciados pela reforma psiquiátrica com os quais todas as práticas tornam-se insuficientes, começaram a ruir.

Cada um dos encontros com o Grupo de Interesses e a intensa sutileza das tantas vozes, silenciosas ou silenciadas no cotidiano da rede, narrando experiências de cuidado dignas de aplausos na perspectiva da reforma psiquiátrica, aos poucos, reverberavam nas reuniões e análises da pesquisa. Os ranços de um “queixume-idealista”, marcado pelo mesmo ressentimento que compõe o discurso predominante na rede de cuidados, este “vapor de pessimismos tenebrosos de cansaços e de fatalismos, de decepções e de medos de novas decepções” (Nietzsche, 1887/2004, p. 188), começou a ceder lugar às forças ativas, para aqueles movimentos também existentes na rede que criam novos caminhos, que inventam pegadas inusitadas. Afinal, as forças ativas, nas palavras de Nietzsche (2003, p. 13), são injustas, desejam o esquecimento do “que se encontra atrás [...] e só conhece um direito, o direito daquilo que deve vir a ser agora”. E no vir a ser das experimentações que ali se produziam e que se apoiavam umas nas outras para pensar a saúde mental na rede de atenção, fomos visualizando possibilidades antes invisíveis, o que municiava cada corpo ali afetado pelo encontro para polinizar tais acontecimentos em suas redes afetivas de cuidado, multiplicando as alternativas de intervenção sem delas esperar protocolos.

A partir dessa análise das implicações dos pesquisadores com os valores instituídos em nossos modos de pesquisar - o que se deu a muito custo, pois não é fácil se sujar pelas contaminações que o campo problemático produz -, foi possível atentar mais para as narrativas que enunciavam movimentos de potência no cotidiano dos serviços. Uma outra leitura foi possível de se efetivar junto às problemáticas da rede, uma leitura coletiva, construída e compartilhada que entendia as dificuldades não mais como algo que exerceria uma parada intransponível, mas sim como um desafio a ser superado ao nos elevarmos sobre uma barreira antes impensável de ser atravessada. Passamos a nos colocar na roda, ou, ainda, abrindo a roda da pesquisa para todos seus participantes, os atores dessa rede de cuidados. Começávamos a exercitar a ética participativa, trocando saberes e distanciando-nos da tradicional hierarquização de conhecimentos que, volta e meia, ronda o ambiente acadêmico.

Entendemos que era necessário não entrarmos atentos e valorizando por demais as discursividades que enunciassem os fracassos, burocracias, impedimentos, medos e preconceitos que operam na rede de cuidados. Obviamente, isso não indicava que adotaríamos uma postura ingênua, acrítica, com a qual deixaríamos escapar as problemáticas que incidem na rede. Entretanto, começamos a desejar estar de espíritos mais leves, pois somente com tal leveza poderíamos escutar as experimentações que ainda não foram marcadas pelo excessivo peso institucional que atravessa o cotidiano.

Focamos muito mais, a partir de então, na escuta dos que criavam caminhos inusitados - práticas de cuidado que salientavam o vínculo, a solidariedade, a afetividade, o coletivismo nas relações, pois, com elas, demarcamos enfrentamentos nos modos queixosos e ressentidos de operar o cuidado. São essas experimentações que passamos a destacar dos encontros da pesquisa junto ao grupo de interessados, no intuito de multiplicá-las na rede para que gestores, trabalhadores e usuários que anunciam vivências dolorosas, solitárias, angustiadas, fracassadas e humilhadas pudessem sentir que existem saídas, esperanças, alternativas que eles mesmos criavam.

Uma espécie de apoio matricial coletivo se operava nos encontros do grupo, em uma “busca e compartilhamento de experiências exitosas do SUS na rede” [...], para a [...] “construção de espaços favoráveis e legitimados de cogestão dos processos de produção de saúde” (Guedes, Roza & Barros, 2012, p. 94). Uma multiplicidade de vozes que narravam suas experimentações de cuidado e que produziam trocas afetivas, com as quais testemunhavam e levavam como lição múltiplos encontros positivos dentro dos espaços de cuidado em saúde mental. Entendemos que assim socializou-se uma outra perspectiva de cuidado, aberta à diversidade das forças, que pode ser experienciada a partir de muitas formas, sobretudo quando inventadas no contexto de cada região e de maneira coletiva, com a participação conjunta de gestores, usuários e trabalhadores. Multiplicidade de forças interagindo sem a necessidade de achar um uno, [...] “segundo movimentos de multidões [...] sob forma de multiplicidades moleculares” (Deleuze & Guattari, 1980/1995, p. 43). Ainda com Deleuze & Guattari (1980/1995, p.14), poderíamos comentar que o “mundo perdeu seu pivô”, isto é, a verdade que insiste em ser extraída em uma pesquisa ou em um protocolo de cuidado, acabaram por deixar de ser importantes, posto que são inexistentes quando o que valorizamos é a multidão de experimentações que compõem o desenrolar do conhecimento compartilhado operado no Grupo de Interesses.

Neste sentido, nos pareceu estratégico levar essas análises para a segunda rodada dos Grupos Focais, bem como para o Grupo de Interesses, na intenção de já pensarmos em como efetivar um evento final da pesquisa que pudesse refletir essa diversidade de práticas de cuidado que apostam nos afetos, nos vínculos, nos encontros que respeitam a singularidade de cada sujeito, que atualizam potências tramadas em cada vida peculiar. Afinal, essas análises que fomos construindo se iniciaram, justamente, em um Grupo de Interesses de Porto Alegre, ao qual levamos os primeiros apontamentos dos Grupos Focais recém-iniciados na cidade e que, naquele momento, pareciam dar espaço tão somente às tais discursividades ressentidas acima descritas. A resposta, entretanto, de grande parte dos participantes então presentes, foi indicativa de bons encontros na rede, apontaram, para surpresa dos pesquisadores, que, mesmo com tantas dificuldades, existiam potentes ações de cuidado em saúde mental ocorrendo na atenção básica e convidativas à experimentação.

Comentaram, inclusive, de antemão, quão prazeroso seria mostrar à rede as práticas de cuidado que produziam, entendendo-as, então, desde aquele instante, como produtoras de bons encontros, de vínculo, de relações afetivas em práticas produtoras de saúde. O que o Grupo de Interesses desejava oferecer para a rede porto-alegrense no evento final da pesquisa, e no primeiro encontro da RAPS de Porto Alegre, era uma espécie de apoio matricial coletivo, com trocas experimentativas que fossem disparadoras de invenções de cuidado na rede.

Neste espaço do Grupo de Interesses – que, cada vez mais, servia para afirmação, compartilhamento e troca de experiências exitosas em saúde mental na atenção básica -, elencamos algumas estratégias para enfrentar as problemáticas da rede de cuidado. O resultado desse levantamento apontou para a importância da produção de espaços de troca de experimentações de cuidado em saúde mental que já ocorrem na rede, mas que são, muitas vezes, invisibilizadas e mesmo desvalorizadas. No turbilhão de exigências procedimentais, de protocolização e efetividade do cuidado, muitas vezes, nos vemos impedidos de potencializar atos de cuidado inventivos no encontro com um usuário ou coletividade que apresenta singularidades a serem consideradas.

Assim, o Grupo de Interesses foi um espaço que promoveu encontros, facilitou trocas, fazendo com que estratégias de cuidado que vêm sendo realizadas e consideradas potentes pudessem ser reconhecidas como tal e divulgadas. Algumas dessas experimentações de cuidado foram, por exemplo: grupo de meditação; rodas de terapia comunitária; grupo de ginástica terapêutica; grupos de caminhada; oficinas de artesanato e geração de renda; grupos de música e de teatro; práticas de apoio matricial; e cuidado em rede. Foi significativo para os participantes entenderem como eles mesmos, ao não divulgarem nem promoverem espaços de socialização de tais experiências pouco conhecidas por vários trabalhadores, contribuem, de algum modo, para que elas (e, com isto, eles mesmos) sejam desvalorizadas em suas capacidades de promoverem saúde mental.

Esta construção, que, ao mesmo tempo, problematizou a rede e seus atores, criou estratégias de enfrentamento para certas dificuldades, abrindo condições para que insurgisse a proposta de organização do evento final da pesquisa em Porto Alegre, promovendo também o 1º Encontro da RAPS da cidade. Para sua realização, então, seriam convidados os participantes da RAPS de Porto Alegre que quisessem apresentar suas práticas de saúde mental na atenção básica, trazendo ao debate práticas de cuidado que estão na rede, mas que nela têm sido “minguadas”, no intuito de promover espaços de trocas, espécie de apoio matricial coletivo e mútuo entre trabalhadores, gestores e usuários.

Para isto, os pesquisadores junto ao Grupo de Interesses se articularam com a Secretaria Municipal de Saúde de Porto Alegre a fim de oportunizar um encontro entre as diferentes regiões de saúde da capital, o que colaborou significativamente com a costura da rede, colocando a Atenção Básica como ponto integrador da RAPS. Inclusive, a costura desse evento oportunizou importantes encontros entre a equipe de pesquisa, a gestão, os trabalhadores e os usuários, em uma organização que produziu debates e embates que abarcavam desde escolhas acerca dos orçamentos e das atrações de cada momento do evento, até a definição de quais seriam os espaços destinados aos encontros com a rede de cuidado de cada região, momentos que propiciassem às equipes analisarem os dados da pesquisa e, a partir deles pensarem como estavam se olhando e se conhecendo. Mais que isso, o evento final da pesquisa junto ao primeiro encontro da RAPS, com as experimentações de cuidado e análises sobre os cuidados territoriais na cidade, proporcionou um momento de produção de planos de ação por território, construídos com a participação de gerentes distritais, trabalhadores e usuários locais, conciliando interesses interventivos da pesquisa e da gestão de saúde municipal. Para além disso, este primeiro encontro da RAPS com a finalização da pesquisa serviu como propulsor para esquentar a rede, sendo tal potência reverberada no decorrer dos meses a partir de novos e periódicos encontros entre a rede, as gerências distritais, os serviços, os trabalhadores, os gestores e os usuários que acabou por se instituir.

 

O Que Fica Deste Encontro Com a Rede e Suas Experimentações Moleculares?

Para finalizar essa experiência de pesquisa, salientamos que as práticas de cuidado em saúde mental, muitas vezes, não são visíveis por que são difíceis de serem colocadas em protocolos, não existindo uma receita clara e padronizada que sirva para todos os casos. É sobretudo a partir de vínculo de cuidado, da disposição e do apoio à experimentação de processos de cuidado criativos que temos a possibilidade de avançar em termos de tecnologias de atenção em saúde mental. Um cuidado, por sinal, que nos parece muito mais complexo, devido à exigência de transitarmos por ele a partir de tecnologias relacionais, chamadas, por Merhy (2002), de tecnologias leves. O cuidado em saúde mental já não pode ser compreendido como um saber restritivo a se dar exclusivamente em espaços delimitados e individualizados, em intervenções especializadas, em um abarrotamento medicamentoso do usuário, em uma tecnologia dura de cuidado e com raízes manicomiais. O cuidado em saúde mental no plano da atenção básica se realiza em práticas que favoreçam os encontros de atenção integral, que amplifiquem a diversidade dos modos de viver, o que só pode ser alcançado com escuta compartilhada como ocorre em uma terapia comunitária; no movimentar o corpo como nos grupos de caminhadas e de ginástica; e na potencialização da inventividade de cada sujeito como acontece nas produções artesanais e nas experimentações teatrais e musicais. Duas falas de usuárias trazidas nos grupos parecem ter traduzido um pouco desta proposta: “Eu sei o que é saúde mental: eu antes ia lá no postinho e pegava remédio. Agora, eu ainda vou, mas tem grupo e eu converso. Agora eu tenho amigos. Isto é saúde mental!” Na mesma lógica, outra usuária enuncia o seguinte: “A gente precisa da medicação, mas também de amigos. Quando tu tá envolvida com alguma coisa, tu não tá pensando no teu problema, daí diminui a dor, diminui o nervoso e até a medicação controlada precisa menos, não acha?”

O desafio é saber como oferecer lugares que preparem, transmitam e visibilizem esse tipo de conhecimento/experimentação aos trabalhadores e gestores da rede. Pareceu-nos estratégico poder oferecer mais espaços de trocas e elaborações coletivas, como circunstancialmente o Grupo de Interesses da pesquisa ofertou, como uma espécie de dispositivo de compartilhamento das potências de cada equipe, trabalhador, usuário ou região - o apoio matricial coletivo já apontado acima no texto. As reincidentes reivindicações por formação, capacitação, especialização em saúde mental, assim como a receptividade que a pesquisa encontrou na maioria dos grupos a que se dirigiu, são, em nosso entendimento, indicativos desta forte demanda por espaços de coletivização das experiências e intensidades afetivas que delas emanam. Por vezes, tal demanda surge como pedido de matriciamento, pedido de mais profissionais da saúde mental, são muitas suas formas, mas em todas permanece um anseio de experimentação coletiva, desejos de forças inventivas que sustentem estes sujeitos em suas vidas precarizadas, mas que não cansam de querer ser mais do que isto.

As experimentações moleculares estão aí para enfatizar a possibilidade de uma outra rede de cuidados em saúde mental. Uma rede colaborativa que possa se apoiar à medida que troca entre si experiências de cuidado, variando e enriquecendo o repertório e as estratégias que até então usava para uma ou outra escuta produzida junto a um usuário.

Experimentar, experimentar, até desterritorializar... Até perceber que perder o eixo, um pivô que sempre nos indicava o mesmo caminho, uma verdade tranquilizadora, não é algo aterrorizante, e que inclusive se faz potente na prática cotidiana do cuidado e de pesquisa, abrindo questões, suscitando movimentos ao invés de paradas na construção de saberes sobre saúde mental. Afinal, “só há saber quando a reflexão se depara com a possibilidade de indeterminação, quando aceita o risco de não contar com garantias prévias” (Dunker & Neto, 2015, p. 136).

Deslocar-se de si mesmo para se apoiar em um outro que tem a nos transmitir suas vivências parece ser estratégico, exige vínculo e confiança neste outro que não nos dá garantias de resolutividade, mas que nos abre uma brecha em nós mesmos para que sejamos contaminados com as experiências que até então não tínhamos passado. Esse vínculo e essa confiança pressupõem encontros periódicos de partilha e convivência, para a (re)atualização de desejos, demandas, necessidades, saberes no território e, principalmente, a renovação do vínculo e da confiança para um afetivo e efetivo trabalho em rede. E foi isso que essa rede-campo problemática ensinou aos pesquisadores - o quão importantes são as trocas, a convivência que faz vínculo, o diálogo, a invenção de modos de cuidar coletivos, e, ainda, o quanto é excepcional o conhecer/cuidar com o outro, e não sobre o outro, superando pressupostos que, volta e meia, levamos de antemão sem mesmo conhecer os sujeitos/usuários/objetos que serão cuidados/pesquisados. Com esta pesquisa, aprendemos a exercitar o cointervir para conhecer e o fazer caminhos a partir de uma passada conjunta.

 

 

Agradecimentos

Agradecemos à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) pelo auxílio de bolsa de fomento à pesquisa de doutoramento para o primeiro autor e a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS) que financiou a pesquisa da qual decorre este artigo - “Qualificação da Saúde Mental na Atenção Básica: análise das práticas de equipes da Região 10-Macrometropolitana/RS a partir do Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica (PMAQ-AB).

 

 

Referências

Deleuze, Gilles & Guattari, Félix. (1980/1995). Mil Platôs – Capitalismo e Esquizofrenia, vol. 1; tradução de Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. Rio de janeiro: ED 34.

Dunker, Christian Ingo Lenz & Neto, Fuad Kyrillos. (2015). Psicanálise e saúde mental. Porto Alegre: Criação Humana, (Doces Bárbaros, 1).         [ Links ]

Guba, E. & Lincoln, Y.S. (1989) Fourth generation evaluation. Newbury Park: Sage Publications.         [ Links ]

Guba, E. & Lincoln, YS. (2011). Avaliação de quarta geração. (Tradução de Beth Honorato). Campinas: Editora da Unicamp.         [ Links ]

Guedes, Carla Ribeiro; Roza, Monica Maria Rafhael & Barros, Maria Elizabeth Barros de. (2012). O apoio institucional na Política Nacional de Humanização: uma experiência de transformação das práticas de produção de saúde na rede de atenção básica. Em Cadernos de Saúde Coletiva, Rio de Janeiro, 20 (1): 93-101.         [ Links ]

Lancetti, Antônio & Amarante, Paulo. (2006). SAÚDE MENTAL E SAÚDE COLETIVA. Em Tratado de Saúde Coletiva. Campos, GWS ET AL (Orgs.). São Paulo: Hucitec; Rio de Janeiro: Ed. Fiocruz, p. 615 – 634.

Merhy, Emerson Elias. (2002). Saúde: a cartografia do trabalho vivo. Col. Saúde em Debate. São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Monceau, Gilles. (2008). Implicação, sobreimplicação e implicação profissional. Em Fractal Revista de Psicologia. Volume 20, número 1, página 19-26.         [ Links ]

Nietzsche, Friedrich Wilhelm. (2003). Segunda consideração intempestiva: da utilidade e desvantagem da história para a vida. Tradução Marco Antônio Casanova. Rio de Janeiro: Relume Dumará         [ Links ].

Nietzsche, Friedrich. (1887/2004). A Gaia Ciência. Tradução: Jean Malville. Editora: Martin Claret – São Paulo.

Passos, Eduardo & Barros, Regina Benevides de. (2009). Pista 1: A cartografia como método de pesquisa-intervenção. Em Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Passos, Eduardo; Kastrup, Virgínia & Escóssia, Liliana (Orgs). Porto Alegre: Sulina.         [ Links ]

 

 

Data de submissão: 13/04/2017
Data de aceite: 23/10/2017

 

 

1 Programa Nacional de Melhoria do Acesso e da Qualidade da Atenção Básica.

2 Duas gerências Distritais, no momento da contratação da pesquisa em Porto Alegre, decidiram não participar das atividades propostas na pesquisa. Mesmo assim, alguns trabalhadores e, sobretudo, usuários de tais gerências acompanharam o Grupo de Interesse por entenderem o valor da pesquisa para as suas respectivas regiões. A única atividade que trabalhadores e usuários de tais gerências não puderam participar foi a dos Grupos Focais, pois os mesmos aconteciam a partir das gerências que se dispuseram a oferecer oferecer espaços para os encontros em suas regiões.

 

 

I Mário Francis Petry Londero: Graduado em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS - 2008). Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS - 2011). Doutorando e pesquisador no grupo INTERVIRES do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS. E-mail: francislonder@hotmail.com

II Letícia Quarti Soares: Graduada em Psicologia pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Mestre em Educação pela PUCRS. Assessora na coordenação da política de Atenção de Rua desde 2016. De 2011 à 2016 assessora da Coordenação de Saúde Mental de Porto Alegre. E-mail: leticia.quarti@gmail.com

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