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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2018

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.73791 

ARTIGOS

 

Coletividade e histeria: psicanálise e manifestações sociais

 

Collectivity and hysteria: psychoanalyses and social events

 

Colectividad e histeria: psicoanálisis y manifestaciones

 

 

Patrícia do Prado FerreiraI

I Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil.

 

 


RESUMO

A proposta deste trabalho é trazer uma contribuição partindo da noção psicanalítica de histeria que percorre o avanço teórico em Freud e em Lacan, para dizer de organizações coletivas. Para isso, pretendemos dedicar-nos às elaborações de Freud (1921) sobre ‘identificação por meio do sintoma’ -- que dão margem a uma suposta ‘histeria coletiva’ -- e a posterior teoria dos discursos de Jacques Lacan (1969-1970) sobre o enquadramento dos laços sociais, nos atentando em sua provocação aos ‘revolucionários’ de maio de 1968, indicando-os como alocados ao que denominou de ‘discurso da histérica’. Com isso, pretendemos defender, a partir da noção de histeria em psicanálise, a existência de ao menos dois desdobramentos diferentes que se originam do mesmo tipo clínico: ‘histeria coletiva’ e ‘discurso da histeria’. Assim, tentamos contribuir para melhor compreensão das possibilidades e limitações das manifestações coletivas e grupamentos sociais, especialmente alguns que permearam a cena política brasileira nos últimos tempos.

Palavras-chave: histeria; histeria coletiva; discurso da histeria; manifestações sociais.


ABSTRACT

The proposal of this paper is to bring a contribution starting from the psychoanalytic idea of hysteria that goes of theoretical advance by Freud and by Lacan to think about collective organisations. For this purpose, we intend to dedicate our studies especially to elaborations by Freud (1921) about ‘identification to a symptom’ – that permit it a suppose ‘collective hysteria’ – and the succeeding theory of the discourses by Lacan (1969-1970) about the social ties’ framework, observing his provocation to the ‘revolucionaries’ of 1968 May, pointing them as being allocated to the ‘Discourse of the Hysteric’. Therefore, we intend to defend from the idea of hysteria in psychoanalyses, the existence at least two different ramifications originating from the same clinical type. Thus, we will try to contribute to a better comprehension of the possibilities and limitations of the social events and social groups, especially those that permeated the Brazilian political scene in recent times.

Keywords: hysteria; collective hysteria; discourse of the hysteric; social events.


RESUMEN

La propuesta de este trabajo es aportar una contribución a respeto de las organizaciones colectivas partiendo de la formulación psicoanalítica de histeria, haciendo un recorrido por los avances teóricos encontrados en la obras de Freud y de Lacan. Nos dedicaremos a las elaboraciones de Freud acerca de la 'identificación a través del síntoma' - que abre una grieta para pensar en una supuesta 'histeria colectiva'- y la posterior teoría de los discursos de Lacan acerca del encuadre de los lazos sociales, llamando nuestra atención a su provocación a los 'revolucionarios' de mayo de 1968, indicándonos de que se trataba de hallarse emplazado en lo que él ha denominado el ‘Discurso de la Histérica’. De esta manera, nuestra intención es defender, partiendo de la noción de histeria en psicoanálisis, la existencia de al menos dos desenlaces distintos que tienen origen  en la misma tipología clínica. Así pensamos contribuir para avanzar en una mejor comprensión de las posibilidades y limitaciones de las manifestaciones, en especial algunos de los cuales formaron parte de la escenario político brasileño reciente.

Palabras-clave: histeria; histeria colectiva; discurso de la histérica; manifestaciones.


 

 

Em uma aula no primeiro semestre de 2016 na graduação do curso de Psicologia da Universidade de São Paulo, um aluno questiona o que pode ser considerado ‘histeria coletiva’ nas manifestações que estavam às ruas no Brasil. Atravessávamos um momento radicalmente polarizado da política nacional por razão do encaminhamento de pedido de impeachment da presidente Dilma Rousseff. Essa pergunta serviu como ponto de partida deste trabalho por ter permitido um exercício de elaboração de uma possível e importante distinção na teoria psicanalítica em Freud e em Lacan, na qual os autores articulam os significantes ‘histeria’ e ‘coletividade’ em vias que entendemos convergentes e também discerníveis.

Para tentarmos responder e desenvolver essa distinção, partimos da teoria freudiana associada ao coletivo, sobretudo no texto Psicologia das massas e análise do eu (Freud, 1921), passando pela compreensão da identificação histérica e de pistas que permitem dizer de certa ‘histeria coletiva’. Em seguida, nos lançamos à apropriação lacaniana (1969-1970) daquilo que culmina discurso da histeria, elaborado no final da década de 1960, quando Lacan desenvolve a teoria dos discursos e acrescenta a histeria, ou o fazer desejar, aos ofícios impossíveis freudianos (governar, educar, curar)1, indicando posições insustentáveis que são, ao mesmo tempo, modos distintos de composição de laço social.

Isso posto, buscamos trazer colaborações e considerações da psicanálise sobre manifestações sociais2 que estiveram às ruas no Brasil, assim como possíveis desdobramentos e implicações. Estamos tomando como imagem as manifestações em razão do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff em 2016. Concordamos com Rodrigo Nunes (2016) que estas manifestações são originárias de encontros e também desencontros que aconteceram nas ruas do Brasil em junho de 2013. Nunes afirma que os ‘encontros’ fortaleceram a ‘direita’ que foi potencializada por “pequenos grupos organizados, com capacidade estratégica, logística e de convocação, como o Movimento Brasil Livre – MBL” (2016, s/p.) e “interlocutores no empresariado, nos meios de comunicação e no sistema político” (2016, s/p.) que souberam aproveitar o momento para direcionar a população. Os desencontros podemos localizar à ‘esquerda’ ou entre aqueles que, como sugere Nunes, estavam nas ruas em 2013 demandando mais transformações sociais e, em resposta, encontraram repressão por parte do governo que indicou que não os representaria. Mesmo assim, em 2016 boa parte desse mesmo grupo de pessoas compunha a parcela da população que desceu às ruas contrárias ao impeachment da presidente.

Nosso entendimento é de que a teoria psicanalítica pode auxiliar na compreensão das razões pelas quais pessoas se reúnem em grupos e, ainda, esclarecer como tais reuniões potencialmente podem se desdobrar em razão do tipo de laço que as fundam e as sustentam. Além disso, pretendemos avançar na contribuição psicanalítica sobre o tema, pois algumas vezes a psicanálise parece servir, inclusive por intermédio dos próprios psicanalistas, como sustentáculo de uma barreira intransponível de deslegitimação de todo e qualquer tipo de agrupamento – sendo o cartel considerado única exceção.

 

Freud e a ‘histeria coletiva’

Freud não usou o termo ‘histeria coletiva’. O que encontramos em sua obra e que nos permite pensar em algo que poderia ser compreendido desta forma é um exemplo que ele faz uso em seu livro Psicologia das massas e análise do eu, de 1921. Nessa obra, Freud dedica-se a descrever a dinâmica dos processos grupais e também está interessado em desenvolver o conceito da identificação a partir de três fontes distintas:

O que aprendemos dessas três fontes pode ser assim resumido: primeiro, a identificação constitui a forma original de laço emocional com um objeto; segundo, de maneira regressiva, ela se torna sucedâneo para uma vinculação de objeto libidinal, por assim dizer, por meio de introjeção do objeto no ego; e, terceiro, pode surgir com qualquer nova percepção de uma qualidade comum partilhada com alguma outra pessoa que não é objeto de instinto sexual. Quanto mais importante essa qualidade comum é, mais bem-sucedida pode tornar-se essa identificação parcial, podendo representar assim o início de um novo laço. (Freud, 1921/2006, p.117)

O exemplo que utiliza do terceiro tipo de identificação é o das ‘moças do internato’. A situação é de uma moça que recebe uma carta de alguém por quem está apaixonada, que lhe causa ciúmes e ela tem uma ‘crise de histeria’. A crise da moça apaixonada desperta como reação o fato de que suas amigas que sabem da situação ‘compartilham da crise’, num mecanismo que Freud subscreve como ‘infecção mental’ ou “identificação baseada na possibilidade ou desejo de colocar-se na mesma situação” (p.117). Freud assinala que esse efeito não se dá por simpatia, mas por uma ‘identificação ao desejo’ das outras moças que também desejariam ter um romance e, por isso, compartilham o sofrimento envolvido na situação. Disso, ele argumenta que o que acontece em uma cena como a descrita acima pode ser compreendido como ‘identificação por meio do sintoma’, na qual há uma ‘analogia significante’ entre o eu da moça da carta e o das outras, isto é: há um sinal de um ponto de coincidência entre os eus. Desse ‘ataque histérico’ em série, pode-se então supor uma histeria que é coletiva, ou seja: uma histeria que se compartilha e, daí, sugerir de onde é que se extraiu o termo ‘histeria coletiva’ – que nada tem que haver como uma predeterminação de tipo clínico histérico. Ou seja: isso não tem qualquer relação com o tipo clínico dos membros de um grupo, diz muito mais do modo como se delineia o contágio em grupo.

O exemplo das ‘moças do internato’ é o que Freud utiliza para falar que é possível que se dê um tipo de identificação através de algo em comum compartilhado e que não tem o sexual como mediador ou causa; e, como destacou, quanto mais comum, mais bem-sucedida é a identificação. Para Freud, este é o tipo de identificação presente nos membros de um grupo e isso também pode ser remetido ao laço que o grupo estabelece com o líder. Característica, aliás, que permite Freud elaborar que os sujeitos não possuem um ‘instinto gregário’, mas que são animais de horda, na medida em que os grupos capazes de subsistir estão sempre remetidos a uma liderança3:

Já começamos a adivinhar que o laço mútuo existente entre os membros de um grupo é da natureza de uma identificação desse tipo, baseada numa importante qualidade emocional comum, e podemos suspeitar que essa qualidade comum reside na natureza do laço com o líder. Outra suspeita pode dizer-nos que estamos longe de haver exaurido o problema da identificação e que nos defrontamos com o processo que a psicologia chama de ‘empatia’ [Einfühlung] o qual desempenha o maior papel em nosso entendimento do que é inerentemente estranho ao nosso ego nas outras pessoas. Aqui, porém, teremos de nos limitar aos efeitos emocionais imediatos da identificação, e deixaremos de lado sua significação em nossa vida intelectual. (Freud, 1921/2006, p.117-118)

Não é possível localizar as razões de cada um que desencadeiam esse tipo de reação em série e isso que se diz ‘comum’ fica aprisionado à imagem de ataque histérico, mesmo que não se trate de um. Se voltarmos ao próprio texto de Freud, em uma de suas passagens, ele pressupõe que o sujeito no coletivo ‘abre mão’ daquilo que lhe é individual para agregar-se ao grupo, esfacelando assim o que lhe é particular. Pois, em grupo, o sujeito está exposto a uma condição que afrouxaria as repressões inconscientes (Freud, 1921/2006, p. 85). O afrouxamento das repressões inconscientes seria uma característica constitutiva da sociedade humana, na qual “pouca originalidade e coragem pessoal podem encontrar-se nela, de quanto cada indivíduo é governado por estas atitudes da mente grupal que se apresentam sob formas tais como características raciais, preconceitos de classe, opinião pública etc.” (Freud, 1921/2006, p.127).

É também neste texto de Freud que encontramos que os sujeitos se juntam em grupos por uma ‘unidade’, isto é: por aquilo que os deixa em ‘comum-unidade’. Essa ideia de unidade e de pertencimento subsistiria em coletivos, dando certo ar de ‘identidade’, ou seja: o laço entre os membros de um grupo estaria delineado por esta demanda social do sujeito de uma identitarização que se baseia na ideia unificante, disso que é comum a mim e ao outro, numa associação positiva – o que legitimaria uma espécie de fantasia da totalidade.

A busca pela unidade, por esse UM, seria o procedimento que acontece e que alimenta os laços entre membros de grupos artificiais que Freud analisa (mas não só), o Exército e a Igreja, nos quais a presença de uma liderança – o Comandante-chefe para o primeiro, Cristo para o segundo – exercem a função de colocar os indivíduos em pé de igualdade por encontrarem-se submetidos de maneira igualitária ao ‘mesmo amor’. Freud diz que esta dinâmica permite perceber um ‘traço democrático’:

Um traço democrático perpassa pela Igreja, pela própria razão de que, perante Cristo, todos são iguais e todos possuem parte igual de seu amor. Não é sem profunda razão que se invoca a semelhança entre a comunidade cristã e a família, e que os crentes chamam-se a si mesmos de irmãos em Cristo, isto é, irmãos através do amor que Cristo tem por eles. Não há dúvida de que o laço que une cada indivíduo a Cristo é também a causa do laço que os une uns aos outros. A mesma coisa se aplica a um exército. O comandante-chefe é um pai que ama todos os soldados igualmente e, por essa razão, eles são camaradas entre si. (Freud, 1921/2006, p. 106)

Portanto, estas seriam as bases teóricas na teoria freudiana que dariam margem a uma interpretação de aproximação entre a identificação histérica com aquilo que ficou comumente (e também banalizado) conhecido como ‘histeria coletiva’. E como a histeria e o coletivo se articulam em Lacan?

 

Lacan e o discurso da histeria

Em ‘O seminário, livro 17: O avesso da Psicanálise’ (1969-70), Jacques Lacan elabora a teoria dos quatro discursos entendido como estratégia de colocar estruturalmente os modos de aparelhamento de gozo ou como a pulsão é enquadrada e os laços sociais se estabelecem a partir do lugar que ocupa o sujeito falante. É um passo adiante na teoria freudiana das organizações coletivas, elaborado a partir dos três ofícios impossíveis ou posições insustentáveis, conforme indicados por Freud (1925, 1937): educar, governar e curar (analisar); acrescido do fazer desejar. Nos matemas indicados por Lacan há elementos fundamentais [S1 (significante mestre), S2 (saber), $(sujeito dividido) e a (objeto perdido, mais-de-gozar)] que ocupam posições (agente, outro, verdade e produção) distintas, possibilitando quatro tipos de formações discursivas: discurso do mestre (governar), discurso do universitário (educar), discurso da histérica (fazer desejar) e discurso do analista (analisar). Calcado na ideia de que o discurso ultrapassa a palavra, Lacan (1968-69) afirma que um discurso pode subsistir sem as palavras em algumas relações fundamentais que não se mantêm sem a linguagem. Partindo de uma de suas máximas “um significante é aquilo que representa o sujeito para outro significante” (1960/1998, p.833), Lacan sugere que estas estruturas podem apresentar esta relação fundamental:

 

 

Matemas dos quatro discursos

Lacan realiza alguns acontecimentos sociais nos discursos como, por exemplo, localiza a União Soviética no discurso universitário (U), afirmando que é este discurso que chega a configuração dos operários-camponeses: “o que reina no que é chamado comumente de União das Repúblicas Socialistas Soviéticas é a Universidade” (Lacan, 1969-70, p. 195), onde “o saber é o rei” (p.196). Žižek (1992) desenvolve um pouco mais esta ideia e afirma que “o discurso stalinista talvez seja a forma mais pura do discurso da Universidade na posição do senhor” (p.89). Ele diz que o ‘discurso stalinista’ aponta que no lugar de agente (S2) está um ‘saber objetivo-neutro’, sustentado pela verdade recalcada (S1) como ‘performativo do senhor’’4. O outro é “pura aparência de um saber ‘subjetivo’(‘metafísico’)” (Žižek, 1992, p.88-9), tendo o ‘gesto performativo’, a verdade, dirigindo-se ao ‘traidor’ do Partido, isto é, ao sujeito dividido desejante.

 

 

Discurso da Histeria

O discurso da histeria (H) se dá a partir de um quarto de giro no sentido horário do discurso do mestre. Na posição de agente neste discurso tem-se o sujeito barrado, suscitado pela falta (a), que se dirige ao significante mestre (S1) para que ele produza saber (S2), em função do desejo de saber do sujeito dividido. O matema do discurso da histeria aproximando a ideia desenvolvida na teoria freudiana de que o sintoma histérico é o retorno do recalcado - sintoma esse que se constitui a partir de significantes-mestres, desse mestre que é interrogado pelo sujeito. Para Coutinho Jorge (2002), ao tomar o outro como S1 (mestre), a histérica dirige a ele sua demanda insatisfeita de cura do sintoma e o sujeito dividido no lugar de agente teria o valor de sintoma que pede decifração. Complementa Lacan que a histérica “quer um mestre sobre o qual ela reine e ele não governe” (1969-1970, p.122).

Em Vincennes (1969-1970), Lacan responde a uma intervenção marcando que a aspiração revolucionária – referindo-se aqui aos acontecimentos de maio de 1968 – teria como único destino o discurso do mestre (M):

Se tivessem um pouco de paciência, e se aceitassem que nossos improvisos continuassem, eu lhes diria que a aspiração revolucionária só tem uma chance, a de culminar, sempre, no discurso do mestre. Isto é o que a experiência provou.

É ao que vocês aspiram como revolucionários, a um mestre. Vocês o terão. (Lacan, 1969-70, p. 196)

Assim, esta passagem de Lacan localiza os ‘revolucionários’ como agentes do discurso histérico e esta provocação é desde sempre entendida como tendo uma espécie de caráter pejorativo, como se estar nesta posição desvalidasse ou deslegitimasse ‘a luta’ revolucionária. Inclusive, podemos afirmar que muitas vezes são os próprios psicanalistas os que costumam colocar esta sentença como uma condenação ou limite das ‘aspirações revolucionárias’, muito justificado pelo fato também de que os revolucionários estariam em grupo. Ou seja: o único destino de um grupo seria o de cair da alienação a um significante mestre.

De algum modo, é como se os ‘revolucionários’ colocados na função de agente do discurso fossem tomados como multidão histérica aos moldes das ‘moças do internato’ do exemplo freudiano. Em nossa opinião, tal leitura possui um caráter reducionista que limita a interpretação da afirmativa lacaniana. Por certo, o contexto na qual ela se deu é bastante relevante. Lacan estava sendo ‘provocado’ por um grupo de estudantes na França. A discussão era fervorosa e Lacan havia falado sobre a União Soviética enquanto representação do discurso universitário e respondia a um comentário sobre uma possível afasia de Lênin. Claramente, trata-se também de uma crítica de Lacan à forma dos partidos, mas pensamos que é possível ir além dessa espécie de rochedo da ‘luta-revolucionária’ que a leitura usual parece ter tido dificuldade em ultrapassar. Por isso, tentar avançar essa afirmativa nos parece importante.

Marcamos a posição de agente no discurso da histeria do elemento sujeito barrado ($), aquele que emerge nas frestas da cadeia associativa. Essa não é uma posição qualquer. Enquanto agente do discurso, o sujeito barrado – sustentado pela sua castração, pelo ser não-saber (a), fará o movimento de dirigir-se ao mestre (S1) em busca de uma produção de saber (S2). Essa dinâmica permite afirmar o discurso da histeria coloca o mestre em questão, interpelando-o, demandando, contestando, na tentativa de provocar o desejo e também a criação de um saber. Foi com esse movimento de ‘fazer desejar’ que as histéricas provocaram o saber em Freud. Lacan nos lembra:

Quanto ao discurso da histérica, foi este que permitiu a passagem decisiva, dando seu sentido ao que Marx historicamente articulou. Que é, a saber, existirem acontecimentos históricos que só podem ser julgados em termos de sintomas. Não se viu aonde isso chegaria até o dia em que se dispôs do discurso da histérica para fazer a passagem com uma outra coisa, que é o discurso do psicanalista. (Lacan, 1969-70, p.193)

Portanto, é o discurso da histeria que permite a passagem para o discurso do analista5 e é essa a posição que se ‘busca’ do sujeito genérico em processo de análise, isto é: a ‘histerização discursiva’:

Na análise dizemos que há histerização e, por vezes, se supõe que são os não histéricos que precisam ser histerizados, mais isto é falso. As histéricas também têm de ser histerizadas, e esta é uma mudança, pois, deixada a si mesma, a histeria não é trabalhadora, mas no máximo questionadora. É preciso histerizá-la para que ela se converta em histérica analisante, o $ vindo no lugar daquilo que trabalha. (Soler, 2016, p.83)

O sujeito histerizado/questionador, então, é o quem vai dar passagem ao sujeito analisante/trabalhador.

A analogia que propomos, trazendo a discussão para o âmbito do social, não é de modo algum, inapropriada. É a fala de Lacan, como vimos na menção à União Soviética ou aos revolucionários, que nos autoriza esta discussão em larga escala.

 

Identificação histérica e discurso da histeria operando no coletivo: organização tradicional, reativa e questionante

Temos, pois, estas duas construções distintas e articuladas da histeria e da coletividade em Freud e em Lacan. Uma como manifestação coletiva da ordem da identificação, outra como posição de sujeito que questiona o mestre, marcando sua castração. E, então, perguntamos se um processo ponderado a partir de organizações coletivas pode ser pensado em detrimento ou exclusão do outro. Explicamos: como é possível um movimento de aglomeração de pessoas se não há a ‘identificação histérica’, ‘identificação pelo sintoma’ ou pela identificação ao desejo do outro? De que modo as pessoas podem se engajar coletivamente sem que se estejam identificadas entre si?

Antes de partirmos para a discussão que propusemos, podemos mencionar a sugestão ‘emancipatória’ proposta por Lacan (1964) pela via do cartel como dispositivo. Esta proposta lacaniana – que ele funda e diz ser ‘órgão de base’ de sua Escola – tenta organizar ‘pequenos coletivos’ em escala de 4+1, almejando justamente outro rearranjo à identificação coletiva usual. Não vamos adentrar à sua elaboração, mas consideramos importante marcar que Lacan tentou criar algo que contrapusesse a formação grupal descrita por Freud no ‘Psicologia das Massas’, em cujo modo circular, horizontalizado ou sem hierarquia intenta orientar um funcionamento que se sustenta pela experiência e pela identificação pelo trabalho. No entanto, anos depois, Lacan (1974-75) afirma que esperava do cartel uma identificação em grupo, pois é “claro que os seres humanos se identificam com um grupo. Quando não se identificam com esse grupo, estão mal, devem ser trancafiados” (p.64), indicando a necessária identificação em toda e qualquer formação grupal. O que o cartel traria de diferente seria a estrutura que não almeja a competição entre os pares e a não-referência ao Outro, uma vez que cabe o mais-um justamente furar qualquer tentativa que o coloque neste lugar.

Como colocamos na introdução deste trabalho, a questão de um aluno em sala de aula enquanto discutíamos o texto de Freud provocou a escrita destas linhas. Com isso, lembramos que em junho de 2013 o Brasil entrou na rota dos países que tiveram ruas e praças ocupadas, seguindo o ‘ciclo mundial’ de manifestações como a Primavera Árabe, o 15-M Espanhol, o Aganaktismenoi na Grécia, o Diren Gezi da Turquia, o Occupy Wall Street na América do Norte, etc.. Claro que cada contexto nacional teve sua própria mola propulsora e, no caso do Brasil, isso se deu especialmente em decorrência da forte repressão policial que sofreram as manifestações contra o aumento da tarifa de transporte público em São Paulo pelo Movimento Passe Livre (MPL) em 06 de junho daquele ano.

Nos primeiros dias de manifestação toda a imprensa tradicional condenava o que denominavam de vandalismo, o que também “justificava” a forte repressão policial e a prisão de manifestantes e jornalistas. Partidos e movimentos sociais (que já estabeleciam algum diálogo com o MPL) se juntaram às manifestações. O MPL tentou estabelecer um diálogo com os governantes – que neste interim viajaram a Paris – e a popularidade do prefeito de São Paulo, Fernando Haddad (PT), começou a cair. Os relatos de violência policial se espalharam pelas redes sociais e os jornais continuaram pedindo medidas duras contra os ‘vândalos’ – a violência policial seria, portanto, uma reação ao vandalismo dos manifestantes acusados de quererem ‘quebrar a ordem’. Assim, a violência ganhou mais destaque e o discurso da imprensa começou a se modificar. Se antes era tudo nomeado como vandalismo, agora é colocado em discussão os 20 (vinte) centavos de aumento, a violência policial e a insatisfação popular com o transporte público. E, ainda, começaram a surgir outras pautas de descontentamento, apontando para diversos lados. O aumento da tarifa foi revogado em 19 de junho de 2013.

Apesar de ‘junho de 2013’ ter florescido neste contexto, não se pode deixar de apontar que sua maturação foi acontecendo durante o governo do Partido dos Trabalhadores e aquilo que foi ficando de fora. Não pretendemos nos aprofundarmos nesta questão por este não ser nosso objetivo, mas é importante marcar que o governo do PT, apesar de todos os avanços no campo social, deixou de fora e atropelou uma série de pautas ‘progressistas’. Com a Copa do Mundo de Futebol e as Olímpiadas, por exemplo, há remoções de comunidades pobres, especulação imobiliária, etc. No entanto, como afirma Rodrigo Nunes (2014), também é possível falarmos de uma nova geração que foi formada durante estes anos de governo e que se interessa justamente em olhar os pontos cegos, aquilo que foi ficando para trás. Isso é uma mudança de perspectiva e também um contraponto que pode servir como um nó a ser desfeito que colocaria as coisas em movimento ou a andarem novamente.

Propomos, portanto, que esse contexto de 2013 que recuperamos foi o ponto de partida para três modos de organização coletiva que apareceram nos anos seguintes e, mais claramente, em 2016, sendo: 1) a organização tradicional, que tem a figura do ‘inimigo comum’ (aqui personificado no PT e seus membros); 2) a organização reativa que nasce com os ataques direcionados ao ‘inimigo comum’ e que se mobiliza em torno do combate ao golpe e aos conservadores/‘reacionários’, e 3) a organização questionante (ou histericizada) interessada em sua própria (falta de) organização, que provocou uma espécie de ‘autocrítica’ e de consequente luto de organização – especificadamente do que se compreendia como esquerda no Brasil6.

Diante disso, nosso argumento é de que as manifestações de 2016 que, de certa forma, decorreram dos ‘encontros’ de junho de 2013, podem ser compreendidas nos dois primeiros modos de organização, a tradicional e a reativa. Isso quer dizer que as compreendemos como similares ao que Freud propôs sobre formação grupal no Psicologia das Massas, especialmente pelo seu caráter de contágio, como explicaremos no decorrer desse escrito.  

Em 2013 houve a manifestação de insatisfações populares difusas que demandaram alguma ‘localização’ de sentido, de significante, disso que poderia ser compreendido com um ‘sintoma do campo social’ que faz laço7. Para Lacan, o sintoma, no lugar que o discurso histérico o reserva, “faz, à sua maneira, uma espécie de greve” (Lacan, 1969-70, p.98)8, denunciando o furo da ordem estabelecida. No momento em que, em 2013, milhares de pessoas saíram às ruas sem ter muita ideia do que estão reivindicando – e, no Brasil, as demandas foram da genuína insatisfação tarifária do transporte à radical intervenção militar/volta da ditadura, apenas para citar tamanha disparidade -, uma leitura possível de realizar é que aquelas manifestações em larga escala teriam se dado em decorrência de uma ‘infecção mental’, para usar o termo freudiano – “não sei muito bem o que me traz aqui, mas venho, me manifesto, participo também”.

Por um lado, este momento de mobilizações pode ser compreendido como “a criação de uma memória de resistência que se expande e permanece em toda uma geração”9; (Shavelzon, 2016, s/p) ou como uma possibilidade de abertura para um “novo contingente de pessoas somadas a mobilização, que conheceram a força do coletivo e a efetividade do protesto”10 (Shavelzon, 2016, s/p) – como fica comprovado com as ocupações das escolas, por exemplo. Por outro, a emergência de demandas díspares abriu espaço para possibilidade de nomeação de um descontentamento político generalizado. Ainda, entrou no jogo o encontro que nomeou o mal-estar, que recorreu a um significante para tentar dizer o que estava acontecendo, que deu nome a isso. Não tinha mais relação com o problema da tarifa, essa pauta foi ficando para trás na mesma velocidade em que os protestos foram aumentando. Entra em cena a corrupção como o grande problema, alavancado como significante com a ajuda dos meios de comunicação em massa, e que segue articulando e presente até os protestos de 2016, tendo como alvo principal o Partido dos Trabalhadores, que ocupava o poder. Se de um lado temos corrupção, de outro, em 2016, o mal-estar recebe também o nome de golpe. Daí, entendemos que abre espaço para a organização reativa, que emerge como uma resposta à outra organização, como reflexo. No entanto, sua estrutura se deu do mesmo modo que a organização tradicional, i.e., em torno de um significante comum: o golpe; com ‘inimigos-comuns’: os reacionários, os conservadores, a ‘direita’; e que compartilhavam o interesse de defender o Estado de Direito ou a democracia. Esse seria o caso de inúmeros coletivos que surgiram nesse momento e que foram perdendo sua força e se desfazendo na medida em que o ‘golpe’ foi instituído.

Não julgamos ou qualificamos as demandas que emergiram e os desdobramentos disso, estamos apontando para a entrada em cena da identificação por esse ponto de significância entre os eus, a partir dessa qualidade comum da insatisfação compartilhada, como sugere uma leitura freudiana. Destacamos também as elaborações realizadas por Ernesto Laclau (2013), quando desenvolve sua concepção de ‘populismo’ sustentado pela ideia de demandas não satisfeitas, articuladas à identificações e identidades. Como argumentado, “(...) em qualquer processo que inclui a lógica identificatória, é preciso a existência de denominador comum” (Ferreira, 2017, s/p.).

Nas manifestações de 2016, podemos perceber o mecanismo de situar o ‘inimigo comum’ (no caso das organizações tradicionais e das reativas) e também o compartilhar de uma ideia comum (no caso das organizações reativas e as ideias que defendiam), sustentando a estrutura de grupo. No entanto, e em resposta ao aluno que deu início a esse trabalho, diríamos que ‘histeria coletiva’ é um falso problema, uma vez que o que temos é apenas a estruturação de organização de grupo como Freud descreveu sobre as ‘moças do orfanato’ ou as massas e que Laclau avançou elaborando o conceito de populismo. Estas são organizações coletivas que se dão em torno de um denominador comum, atravessadas por paixões e afetos e transmitidas por contágio.

Além disso, gostaríamos de adicionar ao nosso argumento de exercício de pensamento sobre as manifestações sociais e a organização coletiva, atentando à fugacidade e fragilidade em que laços sociais que se estabeleceram. A sugestão é de que por trás disso estaria o que Lacan nomeia de ‘discurso do capitalista’ (1972, 1974).

Lacan apresenta o matema do discurso do capitalista (DC) na Conferência de Milão (1972) e indica que esse discurso se dá em uma inversão do discurso do mestre (DM). No DM, o mestre (S1) ocupa o lugar de agente do discurso, sustentado pelo sujeito barrado no lugar da verdade. No DC é o sujeito que aparece ocupando essa função, mas não se dirige a nenhum outro e também não estabelece nenhuma relação com o saber. O sujeito pode ser tido como uma ‘verdade absolutizada’, na qual não cabem perguntas. Portanto, o sujeito é convocado ao seu lugar de gozo. O ‘mestre moderno’ (Lacan, 1974) clama pela satisfação e, ainda, permite que o ‘objeto’ alcance o sujeito, fazendo semblante de que é capaz de realizar a fantasia, já que opera visando tamponar a falta:

 

 

Discurso do capitalista

Como nos lembra a psicanalista francesa Colette Soler (2016), o discurso capitalista tem a marca do ‘desfazer’ de laços e também pode ser considerado “aquele que multiplicou ao máximo as possibilidades de relação, dando a eles instrumentos inéditos, sem precedentes na história e que alargam a circunferência dos investimentos libidinais a dimensões até mesmo planetárias” (p.15). Ela destaca que os meios de comunicação, de deslocamento e de informação tornam presentes aquilo que está longe, para que a ‘elasticidade da libido possa trazer de qualquer lugar produtos e pessoas’11.

Os laços que se estabelecem a partir dessa ‘rejeição da castração’ (Lacan, 1971-72) deixa de lado as coisas do amor. É nesse sentido que os laços sociais tornam-se precários, pois ao se estabelecerem a partir da lógica do DC, o amor é deixado de fora e se consolida uma relação direta e imediata entre os sujeitos, do mesmo modo que com as coisas. E, acima de tudo, essas são relações descartáveis, deixam de ter seu ‘valor de uso’ quando tornam-se desnecessárias. Isso posto, a ‘histeria coletiva’ ou o efeito de contágio das manifestações que nos ocupamos poderia ser esse tipo de agregação frouxa, associada a uma aglomeração que se deu em função de uma satisfação imediatista, sem que fosse capaz de fazer perguntas, de interrogar o mestre. A verdade, como vimos, não aparece como enigma a ser decifrado, mas como saber absoluto.

No entanto, a contrapartida disso pode vir de uma disposição para ação que se dá em decorrência do desencontro que mencionamos ter ocorrido nas manifestações de junho de 2013 entre movimentos sociais, partidos, militantes e o governo; a polarização política fortalecida pelas eleições presidenciais e regionais em 2014 (entre ‘esquerda’ e ‘direita’) e o processo de impeachment em 2015/2016 (corrupção e golpe), que aguçou a polarização e deixou ver a fragmentação política, especialmente da ‘esquerda’ que realizou leituras diferentes dos eventos. Essa combinação de acontecimentos, ao mesmo tempo em que trouxe à tona a crise política, fez emergir o questionamento.

A ‘organização questionante’ é o que temos aqui. Entendemos que esse tipo de formação se arranja de modo distinto das organizações tradicionais e reativas, nas quais os laços sociais se estruturam pela via do discurso do mestre ou do capitalista, o mestre moderno, como argumentamos. O que compreendemos como organização questionante se arranja de modo distinto e a localizamos como sendo análoga ao discurso da histeria. Na ocasião das manifestações sociais de 2016, o cenário que percebemos e que poderia apoiar nosso é argumento é o de militantes do próprio PT à militantes de outros partidos, movimentos sociais, coletivos e mesmo em pesquisas e evento acadêmicas, realizando o movimento de fazer questões a partir da insatisfação ou do desencanto político. Tentaremos explicar partindo de seu avesso.

Ao recuperar a ideia de ‘melancolia de esquerda’ de Walter Benjamin que Wendy Brown (1999) e Jodi Dean (2013) fazem uso para falar da ‘crise da esquerda’, Nunes (2017) alude a um posicionamento que realiza o movimento oposto ao de uma organização questionante. Como ele destaca, as autoras utilizam o termo para descrever o modo como a esquerda tem lidado com seu momento de crise. Enquanto para Brown, essa melancolia permitiria o movimento de substituição da identificação narcísica com o objeto perdido pelo ódio direcionado (que ela identificou sendo à política identitária e ao pós-modernismo e que nos remete à dinâmica das organizações tradicionais e reativas), para Dean o desejo revolucionário cedeu espaço à uma atividade incessante – “crítica e interpretação, pequenos projetos e ações locais, campanhas focadas e vitórias legislativas, arte, tecnologia, procedimento e processo, as práticas ramificantes, fragmentadas da micropolítica, do cuidado de si e da conscientização em torno de temas específicos” (Dean apud Nunes, p. 136) – que tem o fracasso como objetivo. O que pode ser interpretado como certo gozo na incapacidade de fazer acontecer. Ou, que poderíamos sugerir, como sendo uma espécie de procrastinação obsessiva, muito mais que uma ‘melancolia’. Nunes considera que nessa leitura a esquerda é “incapaz de romper os padrões repetitivos de comportamento que asseguram sua impotência continuada: ela deseja esta impotência”(p.136), é daí que ela colhe prazer. No entanto, há aqui um movimento em falso.

Apoiados nesse contraexemplo, marcarmos a distinção entre esse tipo de organização e as organizações questionantes ou histericizadas, pois, angustiadas com sua ‘impotência’, as organizações questionantes buscam o movimento de se dirigem ao ‘mestre’, a fim de provocá-lo à produção de saber.

Quando a força crítica do pensamento começa a agir, então todas as respostas começam a ser possíveis, alternativas novas começam a aparecer na mesa. Nesses momentos, é como se o espectro das possibilidades aumentasse, uma vez que, para que novas propostas apareçam, é necessário que saibamos, afinal de contas, quais são os verdadeiros problemas. (Safatle, 2003, p.19)

Pois, desse ‘movimento’ – no sentido de impulso para ação –, surge uma série de posicionamentos que apresentam potência para se ‘movimentarem’ de fato, para-além de uma queixa de demanda insatisfeita. Dentro disso, podemos pensar desde inúmeros eventos acadêmicos que dispuseram e se dispõem a discutir a ‘crise política’, até em formações de coletivos ou tentativas de composição de blocos de luta. Eles apontam para certa tentativa de avançar mais adiante do enunciado da ‘defesa’ (ou da denúncia da falta) da democracia ou de apontar que estaria havendo um golpe. Isso quer dizer que essa organização questionante é composta por um pensamento mais implicado, reflexivo e efetivo. Ou seja: não se trata de lamentação ou de ‘desinvestimento’, como no caso das ‘melancolias’ de Brown e Jean, mas de uma tentativa de construção de narrativa para que daí se produza saber.

Destacamos, nessa lógica, uma faísca do que estamos tentando argumentar e que pudemos ouvir em algumas das falas no seminário do Bloco da Esquerda Socialista, realizado em São Paulo, em agosto de 2016, e que reuniu alguns partidos, movimentos e coletivos sociais. Apesar de ter sido um evento em pequena escala, demonstrou a tentativa de formar um movimento reunido pelo comum de uma luta e também interessado em questionar, interrogar o que foi que aconteceu com ‘a esquerda’ que não se organizou nos anos passados enquanto o PT, tomado como ‘fracasso’, estava no poder. Isto é: colocando em questão o S1 até então instituído.

Não usamos esse exemplo com intuito de demonstração de um modelo de ‘discurso da histeria’, mas para afirmar que são reuniões de pessoas configuradas a partir de interrogações, ‘autocrítica’, de histórias e reconstrução de suas narrativas, que podem ser tomadas como potentes e propícias a produzirem algum tipo de saber. Pois, é questionando o mestre instituído (S1), compreendendo o convite à formulação de perguntas, que se abre espaço para o desejo de saber.

No entanto, podemos perguntar: isso garante alguma coisa? Não, não garante nada. Não há o que possa efetivamente garantir. Mas, entendemos e defendemos, que a construção de uma narrativa permite a possibilidade de ouvir a própria história, aos moldes do que se faz em um processo de análise. Ao se ocupar esta posição de sujeito do discurso, de maneira similar ao que ocorre no processo de histerização discursiva, fundamental em um processo analítico, o que se tem é um movimento que interroga o significante-mestre, questionando seu saber, sua verdade. Defendemos que só assim é possível desconstruir uma discursividade e realizar qualquer tipo de passo adiante que, neste caso, se dá pela via do desejo do sujeito.

A ‘fragmentação da esquerda’ e o que restou disso não tem valor de causa de desejo por si só, assim como manifestações também não o tem. Em realidade, o que vimos ser produzido é muito mais da ordem do ‘não querer saber’, do não se direcionar para nada nem ninguém – a não ser ao outro como inimigo –, e se sustentar em sua ‘verdade absolutizada’, aos moldes do que encontramos no discurso do capitalista.

Portanto, nosso argumento é de que o primeiro movimento ‘necessário’ é o da histerização do discurso. Agora, se a ‘histerização discursiva’ é ‘vã’ ou se tende a cair na repetição, como sugere Lacan aos revolucionários (e é bem possível que sim), nossa aposta, sustentada pelos próprios argumentos psicanalíticos, é também e ao mesmo tempo, que aquilo que retornar, que seja repetido de modo diferente, produzindo saber. Se vier a se ter um ‘outro mestre’, como insinua a provocação lacaniana, já não será o mesmo mestre, talvez se produza outro significante. No entanto, é daí que se pode, aos poucos e em movimento, chegar a qualquer espécie de ‘separação’ ou ‘emancipação’. Antes disso, sabemos com a psicanálise que é preciso e precioso que se recorde, repita e elabore – e é deste modo que é possível reinscrever o que aconteceu e seguir adiante.

Vladimir Safatle (2015) sugere que é presumível uma experiência política que se constitua a partir da circulação do desamparo. Entretanto, Safatle atenta para o fato de que não se trata de uma proximidade de uma ‘sociedade sem pais’ (p.89), pois nesta, tal como mostrou Freud em Totem e Tabu (1911), o que se tem é a orientação para certa ‘nostalgia do pai’:

A sociedade sem pais deverá assim converter-se gradualmente em uma sociedade organizada de forma patriarcal. Pois o lugar do vazio do poder é, ao mesmo tempo, um lugar pleno de investimento libidinal em uma figura de exceção que se coloca em posição soberana. (Safatle, 2015, p. 89)

O lugar vazio traz o complemento fantasmático, ou seja: pensar em uma ‘sociedade’ ou campo político despossuído de certa representação referente, não é garantia alguma de que não se opere este componente, inclusive produzindo efeitos. Isso é importante na medida em que da leitura mais comum da ‘crítica aos revolucionários’ de Lacan, acaba sendo projetado um horizonte (numa espécie de hipótese ‘para-além do discurso da histeria) no qual a sociedade poderia vir a ser composta a partir do vazio. Tal horizonte acaba por colocar o discurso do analista, que tem o objeto a ocupando a função de agente, em contraponto ao discurso da histeria e, ainda, como aquele que ‘serve mais’ por servir ao vazio, isto é: a nada ou a ninguém.

O sujeito político, no entanto, tal como os neuróticos que contam suas narrativas, não parte do vazio, parte da história. Ele está em contato direto com o passado, que pode ser e é sempre reinscrito. E só partindo disso é possível compreender o presente e pensar em possibilidades e potencialidades para o futuro.

 

 

Referências

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Data de submissão: 30/05/2017
Data de aceite: 18/01/2018

 

 

1 Em Prefácio a juventude desorientada, de Aichhron (1925/2006) e em Análise terminável e interminável (1937/2006).

2 Antes de tudo, tratamos de uma análise ‘genérica’ daquelas manifestações, pois nosso exercício concentra-se muito mais na tentativa de avançar a teorização sobre leituras possíveis de laço social desde a ideia de histeria e coletivo.

3 Sugerimos o esquema da ‘massa primária’ contida no final da parte VIII do ‘Psicologia das massas’ como uma boa imagem para a compreensão desta ideia, que serve tanto para as ‘massas artificias’ - como o exército e a igreja -  como para a massa ‘primeva’, remetida à horda.

4 Para Žižek (1992), o discurso stalinista é o auge do performativo puro: “a tautologia da auto-referência pura situa-se nesse exato ponto duplo, lugar pivotal em que, ‘nas palavras’, o discurso se refere a uma pura realidade extralinguajeira, ao passo que, ‘em (seu próprio) ato’, só se refere a si mesmo” (p.84).  Além disso, ele destaca que o discurso stalinista se apoiava no texto como ferramenta, enquanto o facismo na voz e no olhar do líder.

5 Nesta ocasião não vamos nos estender nas características desse discurso, mas trata-se daquele em que no lugar de agente está o não-saber, objeto causa de desejo (a), que como efeito “aciona o sujeito a dizer o que ele próprio sabe, sem saber que sabe” (Coutinho Jorge, 2002, p.31).

6 O artigo Holanda, M., Manzano, G. Três livros analisam o período do pt no poder e a crise da esquerda  (http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,tres-livros-analisam-periodo-do-pt-no-poder-e-a-crise-da-esquerda,70001921744) serve como boa ilustração de como tem se tentado produzir um debate em torno do pensamento. É claro que não estamos aqui afirmando que todas as produções tem esse caráter questionador que acreditamos estar presente no discurso da histeria, mas indicam esse movimento em torno da ‘autocrítica’.

7 Sugerimos a leitura a partir também da obra de Ernesto Laclau, especialmente em A Razão Populista (2013), na qual ele desenvolve o conceito de populismo. Este conceito é importante na compreensão da organização daquilo que ele designa como ‘identidade popular’, ‘povo’ e  ‘também a ideia de ‘significante vazio’. Indicamos estas formulações especialmente no que se relacionam a um ‘sintoma do campo social’, pois uma identidade popular só pode vir a tona a partir de distintas demandas não satisfeitas, que são colocadas em uma cadeia equivalencial e  condensadas por um significante vazio, um nome, que irá se fazer uma identidade.

8 Em 1974-75, no Seminário R.S.I, Lacan afirma que o proletário é o sintoma social.

9 “(…) la creación de una memoria de Resistencia que se expande y permanence en toda una generación.”

10 “(…) Nuevo contingente de personas sumadas a la movilización, que conocieron la fuerza de lo colectivo y la efectividade de la protesta”.

11 Sugerimos a leitura do artigo Ferreira-Lemos, P.P. (2016). Amplificação do Discurso do Capitalista no sujeito e nos laços sociais. Em: Psicanálise e Barroco em revista. V. 14, n.1. p.151-70.

 

 

I Patrícia do Prado Ferreira: Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista (UNESP), Mestre em Psicanálise, Saúde e Sociedade na Universidade Veiga de Almeida (UVA-RJ), Doutora em Psicologia Social pelo Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e Pós-doutoranda no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (USP). E-mail: ppferreira01@gmail.com

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