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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2018

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.77979 

ARTIGOS

 

Enação: conceitos introdutórios e contribuições contemporâneas

 

Enaction: introductory concepts and contemporary contributions

 

 

Carlos BaumI, Renata Fischer da Silveira KroeffII

I Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

 

 


RESUMO

O presente artigo se propõe a ser uma introdução ao estudo dos processos cognitivos segundo uma perspectiva incorporada da cognição. Para isso, abordamos a teoria enativa, do biólogo chileno Francisco Varela, a partir de cinco conceitos principais: autonomia, adaptatividade, incorporação, emergência e experiência. Destacamos a forma como esses conceitos se alinham de modo a contrapor proposições hegemônicas no campo dos estudos cognitivos, tais como a metáfora do funcionamento da mente como um processamento computacional e a redução dos processos cognitivos à atividade neuronal.

Palavras-chave: cognição, enativismo, autopoiese, incorporação, experiência.


ABSTRACT

The following article presents an introdutory study of cognitive processes from an incorporated cognition perspective. The Enactive Theory, from the Chilean biologist Francisco Varela, is then approached in five of its main concepts: autonomy, adaptivity, incorporation, emergency and experience. We bring forth the way these concepts are aligned in countering hegemonic propositions in the cognitive studies field, such as the metaphor of mind functioning as a computational process and the reduction of cognitive processes to neural activity.

Keywords: cognition, enactivism, autopoiesis, embodiment, experience.


 

 

Introdução

A teoria enativa proposta por Francisco Varela busca ser uma alternativa à compreensão dos processos cognitivos que partem de uma base representacional, a qual, entre os anos de 1960 e 1970, estabeleceu-se como hegemônica no campo de estudos das ciências cognitivas. A metáfora do cognitivismo propõe que o funcionamento da mente e o de um computador são análogos, e indica o estudo do processamento computacional como modelo para explicar a cognição. Assim, a cognição é compreendida como processamento de informação. Nesse modelo, informações chegam ao organismo a partir da exposição a estímulos (input), e retornam ao meio através de respostas comportamentais (output), a partir de regras básicas de processamento (Varela, Thompson & Rosch, 1992). Dessa forma, a mente opera pela manipulação de símbolos representantes de um mundo que existe independentemente do organismo. Os estímulos seriam codificados por símbolos internos que representariam uma realidade externa à mente. Se a descrição dessa realidade – compreendida como externa e objetiva – for correta, significa que a representação utilizada foi acertada. Assim, o cognitivismo tem como proposições centrais: a) o entendimento de que o mundo é preexistente ao sujeito e de que há uma realidade objetiva capaz de ser capturada; e b) a compreensão de que o conhecimento ocorre através de representações desse mundo objetivo.

Apresentando-se como uma crítica direta à abordagem cognitivista, as palavras enação e enativo foram usadas pela primeira vez em A mente incorporada (Varela, Thompson & Rosch, 1992) para descrever uma abordagem não representacionista, na qual a cognição é compreendida como ação incorporada, ou seja, intrinsecamente conectada à realização biológica de um organismo. Varela, Thompson e Rosch (1992) destacam o termo ‘ação’ contido na palavra enação como forma de enfatizar que os processos sensório e motor - ou seja, ação e percepção – são inseparáveis. Desse modo, a abordagem enativa pode ser condensada em dois pontos principais: 1) a percepção consiste em uma ação guiada perceptualmente; e 2) as estruturas cognitivas emergem de padrões sensório-motores recorrentes que permitem que a ação seja guiada pela percepção. Assim, o ponto de partida não é a possibilidade de recuperação de informações referentes a um mundo pré-estabelecido (externo e objetivo), e sim a capacidade de um ator poder guiar perceptualmente suas ações em situações específicas, considerando que as situações mudam constantemente como resultado de suas ações (e das ações de outros organismos). Ou seja, as estruturas cognitivas emergem a partir de padrões sensório-motores recorrentes, sendo esta recorrência uma condição de possibilidade para que a ação seja guiada perceptualmente. Nessa perspectiva, a cognição depende dos tipos de experiência que advêm do fato de se possuir um corpo dotado de diversas capacidades sensório-motoras e delas estarem vinculadas a um contexto biológico e cultural mais abrangente. Isto é, não é possível reduzir a atividade cognitiva à atividade neuronal, uma vez que essa atividade está inserida, simultaneamente, na rede de atividade corporal no meio em que se estabelece e em um histórico de relações intersubjetivas.

Embora não seja uma abordagem recente dentro do campo de estudos das ciências cognitivas, uma primeira aproximação à teoria enativa não constitui, contudo, tarefa simples. O enativismo1 se caracteriza por possuir um encadeamento de conceitos e pressupostos circulares, o que torna complexa a tarefa de compreender a teoria. Além disso, o cognitivismo permanece como abordagem hegemônica no campo de estudos das ciências cognitivas, reeditando, a partir do contexto computacional, uma noção de representação já presente na filosofia e na ciência desde a antiguidade. Tais aspectos colaboram para que ele permaneça como uma linha forte e bem financiada de pesquisa e, consequentemente, seja mais difundido e conhecido entre estudiosos e "mais evidente" aos leigos. Dessa forma, além dos adeptos a essa teoria, leigos ou pesquisadores que pouco desenvolvem pesquisas nessa área de estudos também tendem a utilizar premissas condizentes com uma abordagem cognitivista-representacional ao se referirem a questões relacionadas ao pensamento, às emoções, à percepção ou a outros processos cognitivos.

Com o objetivo de apresentar a teoria enativa proposta por Francisco Varela a pesquisadores do contexto brasileiro, o presente artigo busca descrever como os conceitos centrais foram apropriados e desenvolvidos na literatura seguinte à proposição original. Assim, este texto se configura como uma introdução à teoria, ao atualizar a discussão em torno da compreensão dos processos cognitivos utilizando como estratégia metodológica a sobreposição entre as propostas conceituais originais, presentes no trabalho de Francisco Varela (Maturana e Varela, 1997; 2004; Varela, Thompson & Rosch, 1992), e as discussões desenvolvidas, a partir da abordagem enativa, por estudiosos contemporâneos (Colombetti, 2007; 2010; Di Paolo & Thompson, 2014; Froese & Di Paolo, 2011; Gallagher & Bower, 2014; Thompson, 2007; 2014). O texto serve também, nesse sentido, como apresentação aos estudos de diversos pesquisadores da enação que ainda não possuem obras traduzidas para o português.

Esta introdução à teoria foi organizada a partir da opção pela apresentação de cinco conceitos: autonomia, adaptatividade, incorporação, emergência e experiência. Todos eles aparecem de forma dispersa na publicação A mente incorporada (Varela, Thompson e Rosch, 1992) e são retomados como pilares teóricos da enação em textos subsequentes (De Jaegher, Di Paolo & Gallagher, 2010; Froese & Di Paolo, 2011; Varela, 2000; Thompson, 2005). Nas seções seguintes, os conceitos são apresentados de forma a retomar como cada um deles aponta para uma compreensão da cognição que pressupõe um engajamento incorporado com o mundo, que permite a emergência de uma atividade coerente da unidade viva com seu meio e a possibilidade de distinguir implicações de suas ações frente a diferentes caminhos viáveis.

 

Autonomia

Segundo Froese e Di Paolo (2011), a noção de autonomia é o conceito fundamental da abordagem enativa. Tal conceito remonta ao trabalho original de Maturana e Varela (1997, 2004), no qual os autores propõem a autopoiese como a organização mínima dos sistemas vivos ao refletirem sobre a autoprodução metabólica de organismos unicelulares. Nessa proposição, a unidade viva é pensada como uma máquina, ou como um sistema: um conjunto de processos de produção de componentes encadeados, sendo que os componentes produzidos possuem duas propriedades principais: 2) geram os processos (relações) de produção que os produzem através de suas contínuas interações e transformações e 2) constituem a máquina como uma unidade no espaço físico” (Maturana & Varela, 1997, p. 71). Assim, um ser vivo não é definido por uma característica essencial ou algum componente especial, e sim por uma dinâmica de produção, uma clausura operacional2, isso é, uma rede de processos que dependem recursivamente uns dos outros para sua geração e realização e que estabelecem seus próprios limites e funcionamento interno. Todos os elementos produzidos e transformados no operar dessa rede fazem parte dela. Sendo assim, as interações desses elementos geram não apenas a própria rede que os produziu e os transformou, mas também os limites e extensão dessa rede como parte do seu operar, tornando-a dinamicamente fechada sobre si mesma, em um processo recursivo.

A ideia de sistema dinamicamente fechado sugere que essa cadeia de processos seja compreendida como um conjunto de relações entre componentes, cujo estado ou disposição muda constantemente com a passagem do tempo, sem a dispersão dessas relações. Um exemplo clássico de sistema dinâmico é o sistema solar, cujos componentes (o sol, os planetas e suas luas) mantêm uma relação contínua mesmo que sua configuração mude constantemente. Entretanto, ao contrário do sistema solar, que possui uma variação mais linear em seu estado - o que torna a predição de seu comportamento ao longo do tempo possível - sistemas biológicos são dinamicamente complexos. O termo complexidade, nesse contexto, significa um tipo de variação que não é ordenada e previsível, mas também não é completamente aleatória, ou seja, refere um tipo de variação que obedece a padrões instáveis.

Ao destacar o caráter processual das unidades vivas/cognitivas, Thompson (2007) busca enfatizar a importância do tempo na compreensão do funcionamento cognitivo. Enquanto nos modelos computacionais o processamento de informação é pensado como uma sequência de estados discretos pelos quais a informação deve passar no sistema que a processa, a abordagem dinâmica concebe o funcionamento cognitivo como uma trajetória de mudanças contínuas no tempo. Nessa abordagem, o processo cognitivo não pode ser compreendido a partir de uma estrutura do tipo input-processamento-output, e sim como uma metaestabilidade - uma constante variação dentro de determinados parâmetros - sempre em andamento, sem começo ou fim bem definidos, pois possui um caráter emergente. Essa característica metaestável faz com que a noção de cognição envolva toda a gama de possibilidades de que uma unidade dispõe para agir em acoplamento com seu meio.

Cabe destacar que a noção de fechamento operacional não implica um isolamento do meio. As interações com o ambiente têm o potencial de desencadear mudanças cognitivas e processos externos à rede – ao sistema vivo – e, por isso, podem operar como condições desencadeadoras de mudanças. Podem existir ainda processos internos à rede que possuam uma relação de dependência com processos externos, embora esses processos externos não sejam retroalimentados por nenhum processo da rede. Por exemplo, o processo de fotossíntese é desencadeado pela luz solar, contudo, os processos de combustão solar não são em nada dependentes dos processos de uma planta. Em resumo, um sistema operacionalmente fechado não deve ser concebido como isolado de dependências ou de interações (Di Paolo & Thompson, 2014). Ele, entretanto, mantém uma consistência interna devido a seu fechamento operacional, o que significa que o efeito da interação nesse sistema é especificado por essa rede de relações e não pela estrutura do acontecimento perturbador. Se voltamos a nosso exemplo, a capacidade para fotossíntese é produzida a partir da planta como um todo, mas não da estrutura da luz, que afeta outros tipos de organismos de forma diferente.

Unidades dinâmicas e estruturalmente fechadas existem acopladas com seu meio. Chamamos acoplamento estrutural o histórico de perturbações recorrentes entre dois ou mais sistemas que conduzem a uma congruência comportamental ou estrutural. Portanto, as mudanças de estado de sistemas autopoiéticos podem ocorrer como efeito do acoplamento estrutural mas, como já dito, o resultado dessas mudanças é determinado pelo modo de operar de seu fechamento operacional e de sua estrutura atual, ou seja, a organização e estrutura do sistema restringe/define o conjunto de interações possíveis com o ambiente (Maturana & Varela, 1997; 2004).

Em seus estudos iniciais sobre a cognição, Maturana e Varela propõem a célula como modelo para analisarmos essa relação entre uma unidade autopoiética e seu meio. O metabolismo da célula define as relações entre seus componentes internos, assim como a membrana, que delimita a extensão da rede de transformações. Sem a membrana, o metabolismo celular se dispersaria em uma “sopa molecular”. Essa membrana semipermeável ativamente regula as interações do sistema com o meio. Ou seja, os processos metabólicos criam a membrana, mas a membrana, por sua vez, torna esses processos possíveis. Por meio de seu operar, a célula emerge como unidade a partir de um fundo [background] químico (Maturana & Varela, 2004).

O conceito de autonomia pode ser pensado como uma generalização ou operacionalização do conceito de clausura operacional. Com isso, sistemas autopoiéticos são reinterpretados como os membros mais proeminentes de uma classe de sistemas autônomos. Isso nos permite atribuir essa lógica organizacional a outros sistemas, como o sistema nervoso ou o sistema imune3 (Maturana & Varela, 1997), em diferentes níveis, como o metabólico, o corporal ou o social, ou mesmo em diferentes escalas de tempo (De Jaegher, Di Paolo & Gallagher, 2010).

Quando buscamos compreender o sistema nervoso a partir de sua autonomia, encontramos uma lógica organizacional que conecta, momento a momento, o fluxo de atividade sensorial de forma circular e contínua (Maturana & Varela, 2004). O sistema nervoso vincula superfícies sensoriais – como órgãos dos sentidos e nervos – e efetoras – como músculos – no corpo de uma unidade, agregando-a como unidade móvel ou agente sensório-motor autônomo. Encontramos, em todos os animais, uma rede neuronal que estabelece e mantém um ciclo sensório-motor através do qual tudo aquilo que um animal percebe depende de como se move e como se move depende diretamente de como percebe. Nenhum animal pode ser concebido como entidade reativa, no estilo proposto pelo comportamentalismo clássico, uma vez que sua autonomia implica que ele estabelece os termos sensório-motores com os quais enfrenta o ambiente (Thompson, 2007). Assim, um sistema autônomo e cognitivo não é uma “coisa” específica, uma substância ou uma essência, mas um conjunto de processos codependentes, isto é, cada processo no sistema é uma condição para, pelo menos, um outro processo constituinte, formando, assim, uma rede de processos coemergentes. Em outras palavras, não há processos que não sejam condicionados por outros processos na rede – o que não significa, naturalmente, que os processos externos também não possam influenciar os processos constituintes, mas apenas que tais processos não fazem parte da rede operacionalmente fechada por não dependerem dos processos constituintes.

Para Froese e Di Paolo (2011), a definição de autonomia, centrada, principalmente, na autorreferência como algo inerente ao processo de autoprodução do ser vivo, constitui duas implicações importantes: permite falar sobre noções inter-relacionadas de identidade e a enação de um mundo significativo para o sistema autônomo. Se a noção de autonomia utilizada não fosse baseada no fechamento operacional do sistema vivo, a definição do agente cognitivo como identidade autônoma4 seria apenas uma convenção arbitrária feita por outros agentes. Ou seja, seria uma atribuição externa dada ao conjunto de suas características e capacidades. Uma vez que consideramos, contudo, o fechamento operacional como núcleo central da noção de autonomia, o sistema vivo deve ser capaz de definir sua própria identidade como indivíduo, pois está organizado de tal forma que sua atividade é 'causa e efeito' de seu próprio organismo autônomo. Sua própria atividade demarca o que deve contar como parte do sistema e o que pertence ao meio ambiente, e isso lhe confere uma identidade essencialmente autoconstituída (Froese e Di Paolo, 2011). Esta é uma proposta bem específica de utilização do termo identidade como correspondendo a uma certa capacidade do próprio agente cognitivo se afirmar como unidade de uma forma que independe da designação de um observador externo.

Autonomia, em resumo, significa que seres vivos são agentes autônomos que ativamente geram e mantêm uma identidade - um fechamento operacional - atuando ou “trazendo-a-mão” seus próprios domínios cognitivos. A identidade emergente não se caracteriza como uma entidade estática, visto que os componentes do sistema autônomo normalmente desapareceriam se não fosse pela realização ativa da organização autoproduzida (Froese & Di Paolo, 2011). A necessidade de permanecer constantemente em atividade de autoprodução faz com que ela se torne intrinsecamente aberta a perturbações. Froese e Di Paolo (2011) buscam evidenciar essa noção de que a existência é uma conquista permanente em face da potencial desintegração, caracterizando a identidade de um sistema autônomo como precária.

 

Adaptatividade

A autonomia sistêmica, constituída pelo fechamento operacional, gera dois padrões dinâmicos e complementares de atividades: identidade, discutido na seção anterior, e produção de sentido [sense-making]. O primeiro é a geração e preservação de uma unidade dinâmica em relação às constantes mudanças materiais, seja do sistema, seja do ambiente. O segundo padrão de atividades regula as interações com o meio a fim de manter o sistema viável. Essa regulação transforma um mundo físico-químico em um ambiente de valor e significância, permitindo a emergência de um mundo de vivências específico para o sistema (produção de sentido). Ou seja, a partir da autopoiese, um organismo vivo ativamente produz a si mesmo afirmando sua unidade/identidade. A afirmação dessa identidade constitui um ponto de referência para um domínio de relações e a produção de sentido (Weber & Varela, 2002).

No artigo Autopoiesis, adaptivity, teleology, agency , Di Paolo (2005) desenvolve conceitos para formalizar as relações entre esses dois processos. O autor parte da concepção de autonomia proposta por Maturana e Varela (2004), em que cada unidade e a continuidade de cada organismo vivo é preservada por um princípio de conservação, ou seja, o sistema autopoiético dinamicamente mantém certas relações entre seus componentes ao longo de várias mudanças estruturais compensatórias decorrentes tanto da própria dinâmica interna do sistema como do processo de acoplamento estrutural com o meio. Essa conceituação de autopoiese não admite graduação: por meio dela, um observador pode apenas referir-se a interações letais ou não letais de uma unidade, de acordo com a continuidade ou interrupção de sua autoprodução.

Di Paolo (2005) destaca que, a partir da ideia de conservação, balançar-se à beira de um precipício – ou mesmo cair – é uma interação plenamente viável e que conserva a autopoiese. É apenas colidir com o solo que pode ser caracterizado como uma interação que não pode ser compensada pelo organismo. A primeira interação citada é, a rigor, a definição original de acoplamento estrutural (Maturana & Varela, 1997), ou seja, encontros com o ambiente que resultem em perturbações para a dinâmica autopoiética sem perda de sua organização, constituindo uma estabilidade no padrão de relações (Maturana & Varela, 2004). Mas a conservação é um atributo do tipo “tudo ou nada”, não possibilitando a valoração das interações ou situações, ou mesmo a concepção de riscos para o sistema, e qualquer julgamento de valor só poderia ser feito a posteriori por um observador externo.

Com isso, autopoiese e autonomia não são suficientes para explicar porque uma bactéria, por exemplo, desloca-se sempre na direção aonde há mais açúcar, uma vez que – em tese – apenas a presença de açúcar seria suficiente para a manutenção da autopoiese. Também não seria possível descrever fenômenos biológicos de funcionamentos limítrofes, como fadiga, estresse ou doença. Em especial, a autopoiese não permite explicar como a cognição, enquanto ação corporificada, “é sempre orientada para situações que estão por vir a tornar-se reais [...] estabelecendo os caminhos que deverão ser seguidos” (Varela, Thompson & Rosch, 1992, p. 267).

A proposta de Di Paolo (2005) é a distinção de duas qualidades de sistemas autopoiéticos: robustez e adaptatividade. Ambas são definidas pela organização e estado atual do sistema e, em conjunto, definem um domínio de viabilidade para a unidade viva. A primeira diz respeito à tolerância do sistema vivo a variações, isso é, cada sistema pode sustentar uma certa gama de perturbações, bem como uma certa gama de mudanças estruturais internas antes de perder sua organização. A adaptatividade, por sua vez, é a capacidade do sistema monitorar e regular seus estados e suas relações com o meio em respeito aos limites de sua viabilidade. Com isso, o organismo torna-se capaz de distinguir entre tendências que se aproximam ou se afastam da fronteira de viabilidade, do limite da capacidade de compensação do organismo e, portanto, podem agir de acordo, de modo geral, prevenindo ou retardando o sistema de atingir tais estados limites. A adaptatividade, portanto, permite a sistemas autopoiéticos responder a perturbações externas, evitar situações de risco e buscar situações mais favoráveis. Esse mecanismo possibilita ao sistema distinguir diferentes implicações entre encontros igualmente viáveis com o meio, porém registrando esses encontros como melhorando ou deteriorando sua condição. De acordo com Colombetti (2010), enquanto a noção de autopoiese é binária (vivo ou morto), o conceito de adaptatividade nos permite descrever graus de significado (ou graus de valor) às perturbações desencadeadas pelo ambiente, abrindo espaço para a noção de preferências do organismo.

O acoplamento com o mundo é inerentemente significativo para o sistema vivo. De acordo com a teoria enativa, o organismo não recebe passivamente informações do ambiente e as traduz em representações internas – como defende o cognitivismo. Ele permanece engajado em interações de transformação – e não meramente informacionais – participando de produções de significância de forma ativa e incorporada (Di Paolo, Rohde & De Jaegher, 2010). Além de determinar seu próprio domínio possível de interações, o que qualquer sistema autônomo seria capaz de fazer, o sistema vivo também atualiza constantemente tal domínio de possibilidades de maneira significativa por meio do comportamento adaptativo (Froese & Di Paolo, 2011). Assim, ele se configura como um agente de produção de sentido no decorrer de sua existência, à medida que o resultado das perturbações vividas na interação com o meio não é determinado externamente pela fonte da perturbação – e sim pela estrutura e dinâmica presente do próprio organismo – e as transformações adquirem uma valência em meio a uma regulação normativa. Isso proporciona à teoria enativa uma abordagem de produção de sentido como um processo dinâmico e biologicamente fundamentado (Di Paolo, Rohde & De Jaegher, 2010).

 

Incorporação

Em uma de suas últimas conferências, Varela (2000) elege quatro pontos-chave para o desenvolvimento das ciências cognitivas. O primeiro ponto elencado é incorporação. A importância desse conceito reside no contraste que ele produz com as ciências cognitivas clássicas. Nelas, a cognição, entendida como processamento de informação, poderia ser descrita como conjuntos de procedimentos discretos que incidem sobre a informação vinda do exterior a partir de regras e armazenada na forma de representações. Esse processamento poderia ser realizado em diversos suportes materiais, o que tornaria a mente análoga a um programa de computador (um software) que poderia ser realizada ou reproduzida através de diversos dispositivos, biológicos ou não. Um movimento semelhante ao anterior é aquele que busca reduzir as operações cognitivas e a própria existência de uma mentalidade a padrões de ativação neuronal, ou seja, localiza a totalidade das ações mentais no cérebro. O que Varela propõe com a noção de incorporação é que não se pode compreender a mente ou as capacidades mentais sem que essas estejam inscritas em um corpo e, portanto, em um mundo. De acordo com o próprio autor, esse argumento pode ser reduzido a “A mente não está na cabeça” (Varela, 2000; p. 242), isto é, a mente não pode ser observada em estruturas cerebrais específicas, pois depende crucialmente da forma como a dinâmica cerebral está inserida no contexto sensório-motor e ambiental da vida animal (Varela, Thompson & Rosch, 1992). O cérebro encontra-se intensamente conectado com todos os músculos, o sistema esquelético, equilíbrios hormonais, sistema imune, etc., constituindo uma rede codependente e, portanto, uma autonomia corporal, nos termos descritos anteriormente. O funcionamento cognitivo não pode ser separado do todo do organismo.

A autonomia corporal sugere assim que o corpo é mais do que um suporte para o funcionamento da mente, e contribui ativamente para a capacidade dessa operar em um mundo. Kiverstein (2012) propõe dois modos como podemos compreender a contribuição do corpo para a significação do mundo em um organismo: 1) o corpo deve contribuir para a definição das possibilidades de ação de um organismo em um determinado contexto; 2) deve fornecer à unidade autopoiética a capacidade de transitar continuamente de um contexto de atividade específico para um número virtualmente infinito de outros contextos de atividade possíveis de um modo adequado às necessidades e/ou interesses do sistema.

No primeiro ponto, possuir um corpo dotado de sistema nervoso capacita um ator para lidar competentemente com situações específicas através do estabelecimento de padrões sensório-motores que lhe permitem reconhecer as características de uma situação que possibilitam a ação com a habilidade necessária. Essa habilidade, por sua vez, é adquirida através da prática reiterada, de forma que o aprendizado retroalimente o modo como o sistema percebe o mundo. Isto é, na medida que um ator ganha competência em um domínio de atividade, ele aguça sua capacidade de discriminar diferenças sutis em uma ampla gama de situações. As experiências passadas sedimentam-se em uma performance corporal, preparando o corpo para responder efetivamente às especificidades de diferentes situações, isto é, ação e percepção ocorrem em um fundo de habilidade e práticas através das quais distinguimos um mundo (Baum & Maraschin, 2017).

A circularidade entre ação e percepção encontra-se no centro da definição de enação (introdução), ela estabelece conceitualmente a indissociabilidade entre corpo e mente como um processo de constante enfrentamento das perturbações do meio. A enação não pode ser compreendida, portanto, como solipsista, uma vez que a cognição opera em um corpo-no-espaço-tempo que contribui ativamente para atividade cognitiva do ator. Os padrões de atividade neuronal ocorrem dentro de um enfrentamento sensório-motor constante entre o sistema e seus arredores, tornando a mente uma codeterminação entre o interno e o externo, não sendo localizável em nenhum local específico do sistema (Rudrauf et. al., 2003 ).

O corpo pode ser compreendido como uma rede de elementos codeterminados (autonomia), que, por sua vez, determina a mente, sendo essa “não apenas inseparável do ambiente externo, mas também o que Claude Bernard chamou o milieu intérieur, o fato de que não só estamos dotados de um cérebro, mas um corpo inteiro” (Varela, 2000, p. 243). A relação da mente com esse ambiente interno pode ser melhor compreendida quando examinamos o papel das sensações corporais na habilidade do organismo vivo adequar o fluxo de suas ações a um ambiente em constante mudança. A forma como nossa percepção é guiada envolve a possibilidade de uma avaliação emocional de cada situação (Colombetti, 2007; 2010; Bower & Gallagher, 2013 ), quer dizer, da capacidade de cada organismo desenvolver estados de preparação para a ação a partir de perturbações desencadeadas pelo ambiente. Um exemplo clássico seria que o encontro de um ser humano com um animal selvagem gera uma preparação para fugir. Portanto, parte crucial para desenvolver as competências necessárias para lidar com diferentes situações está na capacidade de reconhecer/desenvolver o conjunto de respostas apropriadas para a situação na qual nos encontramos. Como mencionado acima, a prática de uma perícia e o refinamento de sua performance permitem que um ator incorpore uma sensação ou sentimento para diversos tipos de situações. O processo de adquirir uma sensação do que fazer em diferentes situações torna uma unidade viva pronta para agir tanto de acordo com seus interesses, quanto de acordo com as particularidades de cada situação.

É importante notar que os afetos não se restringem ao domínio da consciência, embora modulem o modo como uma experiência é percebida. Pode-se, por exemplo, conscientemente experienciar a tristeza ou pode passar desapercebido que o todo de nossa atitude reflete uma tristeza. Os afetos são tão profundamente incorporados que os fenômenos afetivos podem ser constrangidos pelo funcionamento de outros sistemas além do sistema nervoso. É como no caso do sistema circulatório: os batimentos cardíacos influenciam a forma como estímulos comumente associados ao medo são percebidos. Quando o coração se contrai em sua fase sístole, estímulos de medo são mais facilmente percebidos e tendem a ser notados como mais intimidadores do que quando apresentados na fase diastólica (Gallaguer & Bower, 2013 ). Ou seja, ao contrário de cérebros em um jarro, somos constituídos de carne e osso e possuímos um coração, e isso explica, em parte, os tipos de estados afetivos e nossas ações no mundo.

O segundo ponto sugerido por Kiverstein (2012) questiona o modo como o cérebro e o resto do corpo constituem um sistema integrado capaz de transitar de um contexto de atividade para outro, que pode ser completamente diferente. Essa situação ocorre, por exemplo, quando se está concentrado escrevendo e, subitamente, o telefone toca. Transita-se de forma fluida entre um conjunto de ações e outro. Varela (2003) endereça essa questão a partir de um exemplo mais abrupto, porém ilustrativo: Um sujeito caminha pela rua tranquilamente em um estado relaxado. Ao colocar a mão no bolso, percebe que esqueceu sua carteira na última loja em que esteve. Nesse ponto, todo seu funcionamento cognitivo se transforma, seu foco obscurece e sua tonalidade emocional muda. Sua disposição para a ação volta-se agora para retornar o mais rapidamente à loja e recuperar seus documentos. Varela sugere que cada conjunto de padrões sensório-motores leva a percepção a atentar para características específicas do ambiente em detrimento de outras, criando uma “micro-identidade”. Cada micro-identidade, por sua vez, faz emergir um “micromundo” correspondente. A transição entre tipos de disposição para a ação ou micro-identidades ocorre através de (micro)colapsos que podem ser correlacionados com padrões de atividade neuronal caóticos com duração de aproximadamente 10 milisegundos. A proposta de Varela é que, nesse período de colapso, se estabelecem dinâmicas de competição ou cooperação entre micro-identidades ativadas pela situação presente, rivalizando entre si para impor diferentes modos de interpretação, a fim de constituir um quadro cognitivo coerente. O resultado é a emergência de uma identidade dominante que se converte em uma disposição para a ação no momento cognitivo seguinte. Diferentes características do ambiente tornam-se mais relevantes e, assim, conduzem à organização de diferentes tendências para a ação. Na proposta de Varela, o self não é uma entidade lógica e unificada, mas se parece mais com uma colcha de retalhos, constituído por diversas sub-redes, reunidas através de um histórico de rivalidade e cooperação que não forma um todo homogêneo. Essa proposição será abordada com maior profundidade a seguir.

 

Emergência

O termo emergência é utilizado para referir interações dinâmicas e simultâneas que seguem regras locais e que ocorrem entre diferentes elementos, processos ou eventos, resultando na formação de uma nova propriedade ou processo (Thompson, 2007; Thompson and Varela, 2001). Em outras palavras, os comportamentos coletivos de grandes conjuntos são considerados processos emergentes quando as interações de feedback positivo e negativo geram consequências não-proporcionais ou não-lineares (Varela & Thompson, 2001). A partir de interações locais, temos a emergência de um estado global, que depende destas interações que lhe são constituintes, mas que não pode ser reduzido a elas. Segundo Varela (2000), este estado global tem um status ontológico diferente dos elementos que, postos em relação, lhe constituem, uma vez que envolvem a criação de uma identidade autônoma, ou seja, de uma unidade cognitiva.

Di Paolo, Rohde e De Jaegher (2010) apontam que as propriedades ou responsabilidades dos componentes de uma rede emergente não se limitam à produção de uma rede autossustentável de transformações químicas, pois o novo nível não é autônomo apenas no sentido de exibir sua própria identidade e leis de transformação. Ele também introduz, por meio de sua interação com o contexto, modulações às condições de contorno dos processos de nível mais baixo que lhe dão origem. Como forma de distinguir um processo emergente de um simples aglomerado de processos dinâmicos, os autores propõem dois critérios fundamentais: 1) o processo emergente constitui sua própria identidade autônoma, cujas características dependem das propriedades dos processos que a compõem, sem que sejam totalmente determinadas por elas; e 2) a permanência desta identidade e a interação entre o processo emergente e seu contexto ocasiona modulações e restrições ao funcionamento dos níveis subjacentes, ou seja, deve haver implicações mútuas entre os níveis emergentes e os níveis habilitantes (que também podem ser descritos como circulares causais ou descendentes).

Imaginemos um ser humano. Sua cognição não é apenas enativamente incorporada. Ela também é enativamente emergente, havendo uma relação de codeterminação entre elementos neurais e o sujeito cognitivo global (Varela, 2000). Sua constituição compreende uma rede extensa de processos dinâmicos que ocorrem simultaneamente e em diferentes níveis como, por exemplo, a multiplicação celular, o funcionamento de seu sistema nervoso central, a digestão de alimentos ingeridos, a regulação da temperatura corporal, a circulação sanguínea por vasos e artérias, entre outros processos. Todos eles participam da emergência de uma identidade autônoma e mais ou menos harmônica a que costumamos nos referir como sendo um indivíduo, um sujeito, uma pessoa. Isso ocorre de forma que, ao falarmos com este sujeito, podemos perceber que conversando conosco o mesmo se comporta de uma forma coerente e não apenas como uma justaposição de movimento, voz, olhar e postura (Varela, 2000). Da mesma forma, este sujeito também é capaz de se reconhecer como uma unidade, algo que denomina como sendo “eu mesmo”. Tais interações com outros indivíduos e do ser consigo ocorrem no nível da individualidade, que é o global, ou emergente (Varela, 2000). Ao conversar com alguém, o sujeito não tem acesso a cada movimento intracelular que ocorre em seu corpo ou a todos os processos motores e neuronais que estão envolvidos na realização dos movimentos necessários para que cada palavra seja pronunciada. O sujeito age sem computar todos os processos locais e habilitantes dos quais sua individualidade emerge. Por outro lado, se a conversa é experienciada de forma desagradável e estressante pelo sujeito, isso pode interferir para que seus batimentos cardíacos e sua pressão arterial aumentem, produzindo modulações nos níveis descendentes (ou habilitantes). É por isso que, mesmo o nível global (sujeito) sendo ontologicamente distinto dos componentes locais (sistema cardiovascular e outros processos ao nível do organismo), o estado global é considerado, ao mesmo tempo, causa e consequência das ações locais.

A relação do sujeito consigo pode ser definida como a experiência de emergência de um self e também apresenta ressonâncias à compreensão da relação entre o sujeito e seu mundo. Na teoria enativa, o mundo de um sujeito é considerado um domínio relacional co-emergente e, por isso, coproduzido, e não um domínio externo e pré-estabelecido ao sujeito, representado internamente por ele por meio de seu sistema nervoso ou das propriedades cerebrais. Esta ideia liga a enação à fenomenologia (Merleau-Ponty, 1972; 2006), pois ambas sustentam que a cognição se constitui a partir de uma relação constitutiva entre sujeito e objetos. Ou seja, a ideia é que o objeto, no sentido preciso daquilo que é dado e experimentado pelo sujeito, é condicionado pela atividade do sujeito. Dito de uma maneira fenomenológica existencial, a ideia é que o mundo de um sujeito – o que quer que ele seja capaz de experimentar, conhecer e praticar – é condicionado por sua estrutura. Da mesma forma, toda experiência vivida pelo sujeito ocorre em um mundo que é desde sempre correlato a toda sua atividade cognitiva, pois o sujeito experimenta o mundo estando desde sempre em acoplamento estrutural com ele. Enquanto esse acoplamento se mantém, a organização autopoiética não se desfaz e, por isso, todas as experiências entre ele e o seu mundo acontecem na permanência desse acoplamento.

Encontramo-nos integralmente vinculados ao mundo e com ele nos constituímos mutuamente (Maturana & Varela, 1997; 2004). A atividade cognitiva envolve a emergência de um self – sujeito que conhece – e também a emergência de um mundo, sendo esses processos coemergentes. Como referido anteriormente, essa maneira da teoria enativa abordar a cognição recusa a concepção do mundo como uma realidade exterior dada, a qual somente seria possível acessar através de representações mentais5 (Varela, Thompson & Rosch, 2001). A dinâmica de coemergência configura a ambos, sujeito e mundo, como efeitos da atividade cognitiva e não como polos pré-existentes a ela. Em consequência disso, a noção de emergência enativa, no que se refere à relação entre o sujeito e o mundo, constitui uma crítica direta ao cognitivismo e ao pensamento representacional como modelos teóricos para a compreensão dos processos cognitivos.

 

Experiência

O enativismo traz a experiência para o centro dos estudos dos processos cognitivos e, desta forma, ela assume uma importância tanto metodológica, quanto teórica. A abordagem enativa se interessa por fundamentar as origens da cognição nos princípios orgânicos mais básicos e no próprio comportamento dos indivíduos (Di Paolo, Rohde & De Jaegher, 2010). A maior parte dos estudos contemporâneos sobre consciência são baseados no cognitivismo, e portanto atuam na busca por correlatos neurais da consciência. Desse modo, procuram eventos neurais que sejam necessários e/ou suficientes para produzir conteúdos conscientes, em uma relação causal-explicativa unidirecional entre os padrões de ativações neurais e os estados globais do sujeito. Tal como propomos na seção três, processos como a consciência, a percepção, a linguagem e o comportamento humano de forma geral, não podem ser diretamente localizados em correlatos neurais, pois participam ativamente em uma cadeia fluida de acoplamentos estruturais e de padrões emergentes constantemente adaptáveis e dinâmicos (Varela &Thompson, 2001; Thompson, 2007).

Estudar o funcionamento cognitivo como um processo emergente de múltiplos acoplamentos dificulta o estudo de qualquer fenômeno cognitivo em particular ou de todo o domínio de um fenômeno de forma completamente isolada (Froese & Di Paolo, 2011). Isso porque, embora não a considere um epifenômeno ou um enigma a ser desvelado – como ocorre na abordagem cognitivista – no enativismo, a experiência está indissociada do processo de estar vivo em um mundo de significância (Di Paolo, Rohde & De Jaegher, 2010), que é enatuado no acoplamento entre sujeito e mundo. Assim, Thompson e Varela (2001) propõem uma compreensão da consciência a partir de três modos permanentes e entrelaçados de atividade corporal: 1) autorregulação, 2) acoplamento sensório-motor e 3) interação intersubjetiva. No decorrer da sessão, discutimos a forma como os dois primeiros modos se acoplam, produzindo uma experiência de self, deixando o terceiro modo para uma reflexão futura.

A primeira atividade coloca a autonomia de um sistema, nos termos acima descritos, como pré-requisito para a constituição de identidade e agência em um sistema. A célula, com sua rede auto-organizada de reações bioquímicas, produz uma membrana que, ao mesmo tempo, limita (fisicamente) as relações internas e regula as condições externas de seu entorno. Assim, a célula, no sistema autopoiético, representa o modo mais básico de autonomia. Ela se relaciona ativamente com seu ambiente de modo a satisfazer suas restrições de viabilidade através de compensações de perturbações. Essas compensações estão submetidas à manutenção da autopoiese (robustez) e são reguladas por normas internas de adaptabilidade (flexibilidade). Esse mesmo tipo de organização e acoplamento com o meio se atualizam no sistema nervoso de uma forma mais complexa. O sistema nervoso estabelece e sustenta um ciclo sensório-motor de forma que o que uma pessoa percebe depende de como ela mesma se move, e como uma pessoa se move depende diretamente do que ela percebe. Enquanto Maturana e Varela (1997, 2004) propõem uma identidade biológica mínima que emerge a partir da clausura operacional de uma rede autopoiética, podemos distinguir uma identidade sensório-motora que emerge da autonomia do sistema nervoso. Thompson (2007) propõe que, em ambos os casos, podemos invocar o conceito de self, uma vez que a dinâmica do sistema pode ser caracterizada por padrões topológicos invariantes recursivamente produzidos pelo sistema e que definem um fora com o qual o sistema se relaciona ativa e normativamente. O sistema nervoso, o corpo e o ambiente são sistemas dinâmicos altamente estruturados, acoplados em conjunto um com o outro em múltiplos níveis. Por estarem tão intimamente envolvidos – biologicamente, ecologicamente e socialmente – uma melhor concepção de cérebro, corpo e ambiente poderia ser sustentada no estudo do modo como sistemas mutuamente incorporados, elementos neurais, somáticos e ambientais provavelmente interagem para produzir (através da emergência como causalidade ascendente) processos globais organismo-ambiente, que, por sua vez, afetam (através de causalidade descendente) seus elementos constituintes.

Ao descentralizar a participação do cérebro na constituição da experiência e do self e retomar as bases biológicas e sensório-motoras de ambos, a teoria enativa reformula o tradicional problema mente-corpo (e a superação do hiato entre duas ontologias distintas) como um problema corpo-corpo, um problema entre dois níveis de incorporação, um nível morfológico – que se refere à organização corporal, como membros, estruturas cerebrais e sistemas regulatórios – e um nível da dinâmica vivencial no fluir do acoplamento entre corpo e mundo. Hanna e Thompson (2003) sugerem conceitualizar esses dois níveis como o corpo objetivamente vivo e o corpo subjetivamente vivido. Essa reconfiguração não é trivial: enquanto no problema cartesiano, o hiato explicativo é absoluto, uma vez que não existe fator comum entre o físico e o mental, no problema enativo, o corpo subjetivamente vivido é uma performance do corpo vivo, o segundo sendo a condição dinâmica do primeiro.

O corpo aparece, nessa perspectiva, simultaneamente como um “ponto zero” de orientação, em relação ao qual o mundo nos aparece, e um conjunto implícito de possibilidades das possibilidades de ação. Isso produz um contraste com o “eu penso” cartesiano, uma vez que a estrutura da subjetividade corporificada não é eu penso um certo pensamento (ego cogito cogitatum), mas um “eu posso”, que aciona conjuntos de disposição para a ação e constitui uma atenção corporal pré-reflexiva (Thompson, 2007). Essa distinção também pode ser compreendida a partir dos conceitos de imagem corporal e esquema corporal propostos por Gallagher (1995; Gallagher & Cole, 1995). A imagem corporal é o corpo como um objeto da consciência, experimentado como propriedade de um sujeito que o experiencia. O esquema corporal, ao contrário, é um conjunto integrado de processos sensório-motores dinâmicos que organizam percepção e ação de um modo subpessoal e inconsciente. Assim, o esquema corporal não é a percepção do “meu” corpo, nem a imagem, nem a representação ou mesmo uma consciência marginal do corpo, mas um estilo de organização corporal na sua convivência com o mundo. Com isso, o esquema corporal é análogo ao que Varela (2000) chama de micro-identidades, uma vez que transitamos entre diferentes estilos de engajamento com o mundo ao longo do fluir da experiência. Assim, o corpo não pode ser resumido a um conjunto de regras que determinam a variação de perspectiva. Ao invés disso, ele é compreendido no enativismo como um fundo de significação sensório-motora. Conforme vimos ao discutirmos a perspectiva incorporada do enativismo, dizer que somos sujeitos corporais remete à impossibilidade de desconsiderarmos os processos biológicos na produção da experiência vivida.

O sujeito cognitivo, ou o que tentamos descrever quando pensamos na existência de um self, é uma propriedade emergente de uma base neural/corporal e que se constitui como um modo de existência (Varela, 2000). De acordo com Varela e Thompson (2001), a mente humana é incorporada em todo o nosso organismo e situada no mundo e, portanto, não é redutível às estruturas dentro da cabeça. Não há algo substancial ou uma capacidade especial que esteja alojada no cérebro ou em alguma outra parte do indivíduo que corresponda a um self unitário (Varela, 2000), mesmo que na experiência cotidiana possamos nos referir aos outros ou a nós como se tais essências existissem. Quando alguém nos reconhece e interage conosco nos chamando pelo nome, esta é uma interação no nível da individualidade, que é um estado emergente global. Segundo Varela (2000), é como se tal propriedade individual “existisse ao mesmo tempo em que não existe” (p. 245), o que também podemos caracterizar quando fazemos referência a existência de um país. O Brasil, por exemplo, é compreendido como um país, tem sua economia, política interna e externa e acordos com outros países, mas não pode ser resumido a uma materialidade específica como, por exemplo, a sua extensão territorial, uma vez que sua existência como uma nação depende do conjunto de interações entre as pessoas, ou seja, de um padrão ou modo de existência em fluxo e passível de variações. Embora possamos seguir pensando, sentindo e agindo como se o self fosse uma essência interior e unificada, para Varela (2000), quanto mais nos apegamos a essa ideia de self, menos estamos sensíveis à experiência.

Thompson (2014) baseia-se nessa ideia para propor a consideração da consciência como uma experiência atencional que tem como efeito a emergência contínua de um self momento a momento. A consciência corporal, por exemplo, consiste em experimentar o próprio corpo como um ponto de convergência de percepção e ação e, portanto, dependente de uma correspondência entre as informações sensoriais e motoras de forma que percepção e ação sejam coerentes. É preciso que haja uma correspondência entre (1) uma intenção de agir; (2) as consequências motoras dessa intenção de agir, incluindo a orientação dos movimentos corporais durante a execução da ação; e (3) as consequências sensoriais da ação, incluindo a propriocepção e a exterocepção. Nessa perspectiva, contudo, o esquema corporal não é um objeto da consciência ou uma representação parcial do corpo, mas um conjunto integrado de processos sensório-motores dinâmicos que organizam a percepção e a ação de uma forma subpessoal e não consciente.

 

Considerações Finais

Quando comparamos o texto original presente em A mente incorporada (1992) com os desenvolvimentos propostos por autores contemporâneos, podemos perceber não apenas um aprofundamento da teoria, mas um deslocamento das questões que motivam a discussão. Enquanto, no final dos anos 1980, o paradigma computacional-representacional convocava críticas e questionamentos, em nosso contemporâneo, o avanço das neurociências e a identificação da cognição com padrões da ativação neuronal se faz presente nas articulações teóricas.

Uma das proposições centrais da teoria enativa consiste na afirmação da inseparabilidade entre o sujeito cognoscente e o mundo conhecido. Essa dinâmica de coprodução a partir de uma perspectiva incorporada da cognição modifica inteiramente a maneira de abordar a relação sujeito-mundo. Um sujeito passivo, que recebe tudo de seu contexto de existência dá lugar a um sujeito ativo que atua constantemente a emergência de si e do mundo. Essa proposição está no cerne da teoria, uma vez que fundamenta a proposta inicial de abordar a percepção como uma ação que pode ser guiada perceptualmente em vista das estruturas cognitivas que emergem dos próprios padrões sensório-motores do organismo.

Varela nos fornece uma concepção de cognição bastante singular – que se afasta dos invariantes, aproximando-se da criação. A análise dos processos cognitivos encontra então uma narratividade que parte da perspectiva da experiência de um sujeito que emerge ao mesmo tempo em que faz emergir um mundo, e não segundo concepções identitárias de uma relação entre entes pré-existentes e do processamento de informações que precisam ser representadas.

As abordagens mais disseminadas dos estudos da cognição têm por padrão compreender a percepção como uma operação de captura de elementos externos (realidade externa) ao sujeito cognoscente. Uma vez que, segundo a teoria enativa, a percepção não consiste na captura de um mundo exterior, e sim na atuação (um agir) – que tem por efeito um sujeito e seu mundo em relação, acoplados e coproduzidos – o que interessa ao estudo da cognição é a estrutura orgânica que, ao longo do percurso histórico dos acoplamentos, se modifica. Isso porque as modulações do sujeito e seu mundo se configuram a partir desta estrutura. Como visto anteriormente, uma perturbação do meio desencadeia uma série de transformações no organismo, mas tal perturbação não contém, em si, o resultado dessas transformações.

Tal ruptura da existência de uma relação entre um ponto emissor (mundo) e outro receptor (o sujeito) faz com que a teoria enativa possibilite repensar radicalmente a forma como estudamos outros processos cognitivos, como a linguagem. No campo das ciências cognitivas, uma das principais decorrências do cognitivismo foi pensar a linguagem como um sistema de códigos que se, adequadamente processados, fariam uma adequada representação de uma realidade já existente e, desta forma, interiorizada. Para Maturana e Varela (2004), entretanto, a linguagem emerge através das interações corporais entre duas ou mais pessoas, que efetuam interações recorrentes operando em uma rede de coordenações cruzadas, recursivas e consensuais, ou seja, ela não tem uma origem localizada no corpo dos participantes (no cérebro ou em um conjunto neural, por exemplo), e sim no fluxo das coordenações consensuais de ações realizadas entre indivíduos. Assim, argumenta-se que os símbolos não preexistem à linguagem, mas surgem com ela, no processo de formação das distinções no domínio de ação da linguagem, e tem-se a compreensão de que a linguagem apresenta sempre um caráter coletivo e atuante, pois são os acoplamentos que estabelecem as condições de sua emergência.

Assim como o exemplo dessa ressonância causada pela teoria enativa para os estudos da linguagem, muitas outras contribuições podem ser observadas ao revisitarmos as teorias mais conhecidas dos estudos da cognição em relação a temáticas como a aprendizagem, a memória, a atenção, a cognição social e a criatividade, entre outras. Esperamos que a discussão realizada nesse artigo a respeito dos conceitos de autonomia, adaptatividade, incorporação, emergência e experiência, considerados por nós como essenciais para uma melhor compreensão da teoria enativa, possam auxiliar nesse sentido.

 

 

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Data de submissão: 12/11/2017
Data de aceite: 05/03/2018

 

 

1 O termo enativismo tem sido utilizado para se referir a todo campo que considera que a cognição emerge de interações dinâmicas entre agentes e um meio. Apesar do termo ser derivado do conceito de enação proposto por Varela, Thompson e Rosch (1992), ele engloba diversas teorias que não se sobrepõem completamente. Nesse texto em especial, nos concentramos na versão do enativismo conhecida como “Enação Autopoiética” que compreende uma continuidade entre vida e mente e, portanto, concentra seus esforços em relacionar os conceitos da enação com aqueles desenvolvidos por Francisco Varela em seu trabalho anterior com Humberto Maturana.

2 Clausura operacional é a tradução oficial de operational closure, que seria melhor compreendido como fechamento operacional.

3 Sobre a autonomia do sistema imune e sua capacidade de constituir sentido, ver Vaz e Magro (1992).

4 Em psicologia, frequentemente, compreende-se o conceito de identidade como uma unidade estrutural e centralizadora, muito próxima da noção de self, capaz de produzir uma teleonomia dos comportamentos. Na enação, identidade corresponde à manutenção da integridade do sistema vivo que se expressa em uma série de transformações. A expressão “identidade autônoma” remete à característica autopoiética dos seres vivos, ou seja, à sua capacidade de autoprodução. Tal processo recursivo ocorre sempre com a preservação do acoplamento estrutural entre a unidade e seu meio, sendo equivocado o entendimento da expressão “identidade autônoma” como designação de uma operação de autoprodução que ocorreria alheia ao contexto social, biológico e cultural mais amplo em que o ser vivo se encontra em processo de interação. Para mais detalhes sobre a noção de identidade na teoria autopoiética, ver Passos (1997).

5 O termo é utilizado segundo a teoria cognitivista, pressupondo o funcionamento da cognição conforme o modelo computacional de processamento de informação, conforme já explicitado.

 

 

I Carlos Baum: Professor Adjunto do Departamento de Psicologia Social e Institucional e do  Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Membro do Núcleo de Estudos em Ecologia e Políticas Cognitivas (NUCOGS). E-mail: baum.psico@gmail.com

II Renata Fischer da Silveira Kroeff: Doutoranda e Mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Integrante do Núcleo de Pesquisas em Ecologias e Políticas Cognitivas (NUCOGS/UFRGS). E-mail: kroeff.re@gmail.com

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