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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2018

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.75038 

ARTIGOS

 

Reencenação como experimento em política, ciência e psicologia: Bergson e Einsten sobre o tempo

 

 

Caroline GarciaI, Dolores GalindoII, José Carlos LeiteIII

I Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT, Brasil.

II Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT, Brasil.

III Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT, Brasil.

 

 


RESUMO

Neste ensaio argumentamos que a adoção da reencenação como experimento metodológico permite uma dramática que articula efeitos inesperados para debates teóricos que, do ponto de vista da História das Ciências, estariam encerrados, produzindo rearticulações entre política, Ciência e Psicologia. Para abordar a reencenação como recurso metodológico, tomamos como fio condutor o debate sobre Bergson e Einstein a respeito do tempo. Pensar o debate entre Bergson e Einstein, ocorrido em 1922, a respeito do tempo, no qual o primeiro teria saído como o protagonista derrotado, sem se referir às soluções já instituídas sobre as controvérsias é uma pista metodológica importante para evitar polarizações e para conseguir percorrer os efeitos da noção de tempo no presente. A perspectiva da teoria ator-rede sobre o estudo de controvérsias permite recuperar o debate épico de 1922 e reinventá-lo por meio da reencenação, pois, ao trazer a concepção de rede como fluxos, circulações, alianças, movimentos, em vez de remeter a uma entidade cristalizada, dá lugar à reencenação como dispositivo de pensamento e de liberdade na criação de campos problemáticos inventivos.

Palavras-chave: Bergson, Deleuze, Ator-Rede.


ABSTRACT

In this essay we argue that the adoption of reenactment as a methodological experiment allows a dramatic one that articulates unexpected effects to theoretical debates that, from the point of view of the History of Sciences, would be closed, producing rearticulations between politics, Science and Psychology. In order to approach re-enactment as a methodological resource, we take as a thread the debate about Bergson and Einstein about time.. The debate between Bergson and Einstein in 1922 about time, in which the former would have emerged as the defeated protagonist, without referring to the solutions already instituted on the controversies is an important methodological clue to avoid polarization and to get through the effects of the notion of time in the present. The perspective of the actor-network theory on the study of controversies allows to recover the epic debate of 1922 and to reinvent it by means of the reenactment, therefore, in bringing the conception of network like flows, circulations, alliances, movements, instead of referring to A crystallized entity, gives way to reenactment as a thinking device.

Keywords: Bergson, Deleuze, Ator-Rede.


RESUMEN

En este ensayo argumentamos que la adopción de la reencenación como experimento metodológico permite una dramática que articula efectos inesperados para debates teóricos que, desde el punto de vista de la Historia de las Ciencias, estarían encerrados, produciendo rearticulaciones entre política, Ciencia y Psicología. Para abordar la reencenación como recurso metodológico, tomamos como hilo conductor el debate sobre Bergson y Einstein acerca del tiempo.. Argumentamos que pensar el debate entre Bergson y Einstein, ocurrido en 1922, con respecto al tiempo, en el que el primero habría salido como el protagonista derrotado, sin referirse a las soluciones ya instituidas sobre las controversias es una pista metodológica importante para evitar polarizaciones Y para lograr recorrer los efectos de la noción de tiempo en el presente. La perspectiva de la teoría actor-red sobre el estudio de controversias permite recuperar el debate épico de 1922 y reinventarlo por medio de la reencenación, pues, al traer la concepción de red como flujos, circulaciones, alianzas, movimientos, en lugar de remitir a la realidad una entidad cristalizada, presenta a la reencenación como dispositivo de pensamiento.

Palabras-clave: Bergson, Deleuze, Ator-Rede.


 

 

Introdução

Num debate ocorrido na Sociedade Francesa de Filosofia, em Paris, em 1922, Bergson convida Einstein a analisar, no mundo físico, elementos metafísicos que foram renegados em sua teoria da relatividade, porém, o físico não o faz. Por seu turno, Bergson argumentava que sua noção de espaço e tempo tinha um significado cosmológico, o qual deveria ser cuidadosamente envolvido com as notáveis descobertas de Einstein. Este último sustentava que existia somente um tempo e espaço – aquele da física – e que Bergson procurava nada mais que o tempo subjetivo – aquele da psicologia.

Ao calor da controvérsia, em 1922, Bergson e Einstein aceitam que exista um elemento de diferença entre as concepções psicológicas e físicas de tempo. Para Bergson, essa diferença só faz a tarefa do filósofo mais relevante, especialmente porque ninguém, nem mesmo os físicos, poderia evitar os problemas sobre o tempo. Já, para Einstein, não existe, como pensou Bergson, o tempo qualitativo ou a vida de duração, em que sujeito e objeto coexistem. Em vez disso, Einstein marca dois tipos de tempo, a saber: 1) o tempo psicológico, que é uma ilusão subjetiva gerada por movimento relativo; e 2) o tempo físico, que é a realidade objetiva existente eternamente no mundo mecânico. Entendemos, enfim, que esse episódio caracteriza uma mudança importante no lugar da ciência e da filosofia na história, propondo-nos uma questão: o que está em jogo, nas disputas entre a natureza do tempo e da simultaneidade?

Seis de abril de 1922, data do debate, é uma data da qual Einstein não se esqueceria, nos próximos anos, porque o físico precisou se deparar com “um dos filósofos mais célebres do século, amplamente conhecido por sua teoria sobre tempo; aquele que problematizou o que os relógios não explicavam sobre o tempo: memórias, multiplicidade, expectativas e criação” (Canales, 2015, p. 3, tradução nossa). Em 1922, o físico e o filósofo entraram em confronto, cada um em seu território, defendendo elementos irreconciliáveis sobre o tempo. Na Société française de philosophie, uma das instituições mais veneráveis da França, eles se enfrentaram sob os olhos de um seleto grupo de intelectuais. O "diálogo entre o maior filósofo e o maior físico do século XX atraiu olhares de todo mundo científico” (Canales, 2015, p. 3, tradução nossa). Depois do debate, a reputação de Bergson, sobretudo sobre suas ideias com relação ao tempo-duração, perderam espaço para a popularidade do jovem físico Einstein. As críticas contra o físico foram imediatamente prejudiciais também, pois, quando o Prêmio Nobel foi atribuído a Einstein, alguns meses mais tarde, não foi em função da teoria da relatividade. Bergson, por sua vez, quando indicado ao Nobel de Literatura, tampouco teve reconhecida a força das reflexões sobre o tempo que trouxe, a partir da Filosofia.

Assumindo a importância do legado de Bergson ao pensamento sobre o tempo, Bruno Latour propõe, quase um século depois do debate de 1922, que este novamente tenha lugar. Busca dar novos rumos ao debate, por meio de uma reencenação, de sorte que Einstein possa ouvir os argumentos de Bergson e, de maneira mais ampla, que a Física e a Filosofia possam estabelecer uma relação de conciliação a respeito do tempo, traçando, então, uma linha emergente com base em ambas. Bruno Latour cria, por conseguinte, um segundo debate, desta feita, em 2010. Ao recriar o problema do tempo, assinalamos a indissociabilidade entre Ciência e Filosofia, como aponta Latour, ao nos fornecer a maneira como devemos ficar atentos às práticas da ciência, sem nenhuma diferença assimétrica entre ciência e não ciência, humanos e não humanos, natureza e cultura. Latour (2011, p. 24) afirma reconhecer, no argumento de Einstein, uma forma recorrente de deslegitimação científica da filosofia, política e arte: “[...] o que você diz pode ser agradável e interessante, mas não tem relevância cosmológica porque ela só é lida com elementos subjetivos, e não o mundo real”.

Dentre outros objetivos, Bruno Latour, com a reencenação, visava a “[f]azer com que os alunos possam sentir o tempo em seus ombros” (2010, p. 95, tradução nossa). O debate, reencenado em 2010, coloca algumas questões, a saber: como seria se, nesse debate, os dois universos de técnicas de inscrição, a Filosofia e a Física, tivessem reconciliado seus discursos? Que mudanças sofreriam as novas controvérsias?

A reencenação mobiliza a repetição e, principalmente, possibilita nessa performance experimentá-la para além do seu original, no intuito de superar os discursos de autoridade e deixar com que corpos sejam afetados por aquilo que lhes cause furor (Latour, 2008). O episódio traz personagens contemporâneos à problemática, e lança a questão do tempo novamente ao devir, não porque deixou de existir, mas porque fomenta novas redes e controvérsias naquilo que se pensou haver ganhadores e perdedores.

No ensaio que segue buscamos propor que a reencenação de debates conceituais é um fértil experimento para o estudo de conceitos por uma via na qual estes ampliam suas conexões com o presente. Fazemos isto, por meio, da reencenação do debate ente Bergson e Einstein, visando ainda contribuir para a tematização do tempo que é um conceito caro à Psicologia ainda que pouco trabalhado numa perspectiva bergsoniana.

Por meio da reencenação é possível perceber que as noções de tempo dependem dos mundos que são criados e concorrem para conformação de determinados mundos. Num mundo feito de pontos de referências, de deslocamentos sem transformação, há um tempo separado do espaço, um quadro imutável para medir deslocamentos e, por definição, os processos. Num mundo feito de mediações, de associações, há um grande número de tempos e lugares. O que está em xeque numa controvérsia é a questão da obediência e desobediência dos seres humanos e não humanos nas disputas sobre o tempo, assim como, os efeitos sobre a ordenação da vida cotidiana derivados.

No manuscrito que segue, buscamos mostrar a potência da reencenação como um recurso metodológico, proposto por Latour, mais do que propriamente um aprofundamento sobre o conceito de tempo. O tempo que entra no texto é o tempo em disputa no calor das controvérsias entre Bergson e Einstein, uma datada de 1922 e uma segunda, que é a que nos interessa, datada de 2010, consistindo de uma reencenação. Para destacar a importância da reencenação como dispositivo metodológico, acolhemos algumas observações de Despret (2009) as quais sinalizam para que a realidade tal como a experimentamos é performada em práticas que se conectam e por afetos que se produzem. Conhecer está intimamente ligado a capacidade de ser afetado pelos acontecimentos. Aquilo que parece sem significado do ponto de vista da História das Ciências de orientação internalista – reencenar um debate cujo desfecho já foi dado e está documentado- pode indicar um caminho que nos leva a derivas promissoras compostas por outras versões sobre noções e conceitos desprezados como versões pouco eficientes de mundo.

Despret (2009) destaca que ser afetado é estar aberto e disponível a ouvir as forças do mundo. Quando a reencenação é colocada para um público, esse recurso metodológico atiça o olhar atento para o jogo do debate, para o que se conserva e o que se perde ao longo do transcorrer de uma controvérsia. Reencenar um episódio histórico, como o debate entre Bergson e Einstein sobre o tempo, pode ampliar conexões e afetos, ou seja, os nossos modos de conhecer. Afetos são agenciados a partir das recalcitrâncias durante os debates, detalhes que se perderam podem saltar a vista, podemos indagar. E se tivesse sido diferente? Podem perguntar as pessoas presentes no debate reencenado. Latour (2008) alerta-nos que recalcitrância produz desvios e propomos que, em vez de negá-los, podemos correr o risco de requalificar os desvios através das reencenações.

 

Reencenar controvérsias sobre o tempo?!

Pensamos que as controvérsias sobre a natureza do tempo estão marcadas por disputas de autoridade. A crescente aceitação da teoria da relatividade conferiu tão somente aos físicos a autoridade para dizer que é o tempo, consolidando a visão de Einstein. Em contrapartida, Bergson sofreu o mesmo golpe de desprezo, conferido a Heráclito, por não querer purificar e separar o mundo dos deuses, como lembra Bruno Latour, em Jamais fomos modernos (1994). A própria constituição dos modernos se define, entre outras contribuições, por pressupor que a passagem (moderna) do tempo se dá na forma protegida de historicidade linear.

De oportuno, as controvérsias são situações nas quais os debates ainda não estão fechados, estabilizados, dispostos em uma caixa-preta. Em uma controvérsia, os actantes discordam, ou melhor, concordam com sua discordância, de sorte que as fronteiras entre ciência e política, cultura e tecnologia, moral e economia são borradas. Controvérsias: (a) envolvem todos os actantes que se fazem presentes nas redes heterógenas as quais compõem o coletivo; entretanto, eles não são iguais, ou agem do mesmo modo: os actantes não emergem igualmente em controvérsias e raramente eles terão o mesmo peso. Isso posto, infere-se que o mapeamento de controvérsias consiste em atribuir para cada um deles uma representação que se encaixa na sua posição de relevância na disputa; (b) exibem o social em sua maneira mais dinâmica, ou seja, nenhuma configuração técnica ou natural está dada ou posta como certa. 

Em controvérsias, qualquer actante pode ser decomposto em uma rede frouxa, e qualquer rede, não importa quão heterógena seja, pode coagular para funcionar como ator; (c) são reduções resistentes, onde os actantes tendem a discordar sobre qualquer coisa, sendo impossível o trabalho de reduzir as questões a uma única pergunta; (d) são debatidas e surgem quando disputas que foram consideradas como consentidas começam a ser questionadas e discutidas, isto é, elas abrem a caixa-preta, favorecendo que, mais e mais, objetos sejam discutidos por mais e mais atores; (e) são conflitos, decidem e são decididas pela distribuição de energia, pelos choques de conflitos; nesse sentido, não importa o quão trivial os objetos de disputas possam parecer, os actantes sempre levam os conflitos a sério. Desse modo, controvérsia é o lugar onde a vida coletiva é derretida e forjada, onde o social é incessantemente construído, desconstruído e reconstruído. Os cartógrafos do social não possuem, por conseguinte, outra escolha senão mergulhar em magma (Venturini, 2009).

Assim, para Venturini (2009), os debates públicos constituem as melhores formas para observar e descrever a construção da vida social pela perspectiva das controvérsias, pois não têm como objetivo mostrar aos actantes que eles são incapazes de compreender as disputas que os enredam em uma rede heterógena de controvérsia, porém, possibilitam ao pesquisador aprender com eles como observar e descrever essa rede. Não obstante em controvérsias, os actantes estão incessantemente empenhados em amarrar e desamarrar as relações, os argumentos e as identidades, revelando o tecido da existência coletiva, de sorte que cabe ao pesquisador fazer tal complexidade legível, por mais confusas e complicadas que as disputas coletivas sejam (Venturini, 2009).

Partindo das observações precedentes sobre controvérsias, o que dizer da reencenação? Situemo-la como dispositivo que serve à analítica da controvérsia e também uma maneira de instalar uma controvérsia. Dupla atividade. Nenhuma controvérsia pode ser reduzida a um binário de oposições entre dois pontos de vistas alternativos. Ela envolve diferentes perguntas, e poucas dessas perguntas podem ser respondidas com um simples sim ou não. Portanto, as oposições entre os actantes, em uma controvérsia, são sempre conectadas e estruturadas numa argumentação. Além do mais, a controvérsia não está isolada, ela é composta por várias subcontrovérsias situadas num mesmo nível, as quais constituem, por conseguinte, uma controvérsia maior.

A reencenação, em suas novas experimentações, promove articulações que não significam capacidade para falar com autoridade, mas de ser afetado por diferenças. A principal vantagem do termo articulação não é a sua associação, em certa medida ambígua, com capacidades linguísticas ou sofisticação; é, antes, a sua capacidade para trazer a lume os componentes artificiais e materiais que permitem progressivamente adquirir um corpo (Latour, 2008). Logo, o que queremos efetuar com o levantamento dessas controvérsias sobre a natureza do tempo? Enfatiza Latour (2008, p. 39):

O que se quer é afetar, o corpo é, portanto, não a morada provisória de algo de superior - uma alma imortal, o universal, o pensamento - mas aquilo que deixa uma trajetória dinâmica através da qual aprendemos a registar e a ser sensíveis àquilo de que é feito o mundo. É esta a grande virtude da nossa definição: não faz sentido definir o corpo diretamente, só faz sentido sensibilizá-lo para o que são estes outros elementos. Concentrando-nos no corpo, somos imediatamente - ou antes, mediatamente - conduzidos àquilo de que o corpo se tomou consciente. É assim que interpreto a frase de James: “Um corpo em si é a principal instância do ambíguo” (James, 1996 [1907]).

Registrar as diferenças naquilo que pode ser experimentado pelo corpo é propiciar, na reencenação, novas criações. Assim, todos esses personagens podem ser definidos como corpos que aprendem a ser afetados por diferenças que anteriormente não podiam registrar, através da mediação desse debate, implicando novas “conversas do corpo” (LATOUR, 2008, p. 42). Nesse trilhar, infere-se que uma rede de atores não é redutível a um único ator, nem a uma rede, mas composta de séries heterogêneas de elementos animados e inanimados, conectados e agenciados. Tal definição implica uma ontologia de geometria variável, cujas consequências, para os estudos em ciências, devem ser seguidas, a fim de não deixarmos escapar as contribuições da teoria ator-rede, tanto em relação aos estudos sociais em ciências quanto aos estudos epistemológicos. Nesse aspecto, articulam-se as duas vertentes de seu itinerário filosófico, a saber; 1) a potente crítica da tradição filosófica, a qual aponta a dualidade (instituída, sobretudo, com o cartesianismo) entre sujeito e objeto – o tempo real escapa às matemáticas; e 2) a possibilidade de fazer e experimentar uma nova aproximação com a vida, com as experiências humanas e com o modo de se fazer ciência.

A reencenação nos permite experimentar “aprender a ser afetado”, para compreender os fluxos do conceito tempo, como categoria do espaço, proposto pela física. Além disso, leva a observar o apelo de Bergson àquilo que ele posiciona como problema fundamental: o tempo. Este é o percurso misto o qual sempre se retoma, em sua filosofia, isto é, a distinção entre a duração e o tempo homogêneo medido diz respeito ao fato de que uma é sentida, vivida, intuída, ao passo que o outro é estático, podendo ser medido em instantes espaciais. Segue na contracorrente do projeto moderno de ciências, para as quais o passado deve existir enquanto aquilo que se superou, seja por revoluções copernicanas, seja por cortes epistemológicos, rupturas epistêmicas. Se o passado não sobrevive no tempo dos modernos, não faria sentido reencenar um debate ocorrido em 1922, dele cabendo apenas depreender uma descrição.

O pensamento de Henri Bergson é atual, na sua crítica a um mundo estritamente regido por leis da física, sendo o tempo parte dessa constituição do arcabouço teórico moderno. A condução a uma nova ideia de tempo, nomeada pelo autor como Duração, implica a própria concepção de mudança essencial e contínua, isto é, tempo que passa incessantemente, modificando tudo e que revela. Todavia, não é assim que aprendemos a ser afetados, pois, presos aos hábitos da inteligência, visando à nossa ação no mundo, percebemos a realidade como estática e passível de ser fragmentada em partes que facilitam nosso agir no mundo (Bergson, 1907/2005). A ciência moderna se pauta por um modelo no qual há um corpo que deve ser correspondente a um sujeito; por consequência, este postula seus correspondentes aos objetos e seus intermediários, como a linguagem e as leis sociais perpétuas, as quais estabelecem ligações entre o mundo e os sujeitos.

Bruno Latour nos lembra de que a permanência nesse modelo cristalizado torna difícil a dinâmica de um corpo criativo e potente: “[...] o sujeito está ‘ali dentro do corpo’ como uma essência definida e a aprendizagem não é necessária para a sua existência; o mundo está fora do corpo, ali, e afetar os outros não é necessário para a sua essência” (Latour, 2008. p. 41). Nesse sentido, podemos dizer que a ciência moderna tem muito pouco do projeto bergsoniano de tempo, em sua constituição, que nem por isso deixa de persistir, pois, como sabemos, as ciências modernas, apesar de todo trabalho de purificação e separação, continuam a produzir incessantemente híbridos e novas conexões, de sorte que é nesse movimento que a filosofia bergsoniana se atualiza.

Para Bergson (1907/2005), ao longo da história da Filosofia, tempo e espaço foram tratados como sendo da mesma qualidade, bastando que, ao nos referirmos ao espaço, falássemos de justaposição e, ao nos referirmos ao tempo, de sucessão. Na obra Duração e Simultaneidade (1922/2006a), publicada no mesmo ano do debate de 1922, Bergson ambiciona, via teoria da relatividade restrita, à conciliação de um tempo da ciência ao tempo da consciência – a noção de um tempo único. Tal obra é ponto de confronto entre os estudiosos de sua filosofia, em face da originalidade de sua concepção do tempo, como potências heterogêneas de criação, advindas da noção de temporalidade como componente do tecido próprio do real que equivalha ao tempo de multiplicidades qualitativas.

Seguindo as pistas do próprio Bergson a respeito da não linearidade do tempo, Bruno Latour propõe que as questões que nortearam o debate entre Einstein e Bergson, em 1922, podem ser recolocadas da seguinte maneira: quem possui os conceitos de espaço e tempo? Artistas? Filósofos? Cientistas? Nós vivemos no espaço-tempo einsteiniano sem perceber ou, como Bergson argumentaria, se Einstein, o físico, vivesse no tempo do que Bergson chamou de duração? Será possível uma conciliação? Em não pertencendo nem a um, nem a outro, que novos problemas filosóficos se colocam à teoria do conhecimento? E com qual Campo Filosófico passamos a lidar? De acordo com Latour, não devemos esquecer que qualquer epistemologia é uma epistemologia política, porque não basta apenas a elaboração de uma teoria do conhecimento.

Latour (1994) insiste no caráter heterogêneo da atividade científica, uma vez que, ao contrário da homogeneidade narrada na história das ciências, ele anuncia que as inscrições epistemológicas surgem a partir das conexões estabelecidas entre atores muito heterogêneos. Dessa forma, quando reencenamos um debate, reabrimos “[...] todo o pandemônio que [...] prematuramente tentaram ordenar num conjunto de ciências indisputáveis, e de outro de ciências falsas disputáveis, misturadas com políticas mal reputadas” (Latour, 2008, p. 55). O que viam como extensão milagrosa da objetividade científica era, na realidade, uma mera consequência da aura de total inimputabilidade que prematuramente atribuíram às ciências (Latour, 2008).

Assim, na perspectiva da Teoria Ator-Rede, alguns dos caminhos demarcados na disputa do tempo interposto entre a duração, tempo real em Bergson e a concepção de tempo que embasa o posicionamento adotado por Einstein estão além dos episódios narrados. A saber, a distinção (e implicações) imprescindível entre o tempo quantidade, a que a teoria da relatividade e a física, de um modo geral, fazem menção, e o tempo qualidade, a duração propriamente dita. Haja vista que, conforme Latour, essas hierarquias não devem ser tomadas como coisas em si, potentes de substâncias, mas provenientes de alianças e influências que atuam e possibilitam ser identificadas em suas relações individualizadas e estriadas.

Venturini (2009) apresenta três aspectos importantes para a observação de controvérsias que, em certa medida, podemos estender às reencenações. A primeira concerne em não especificar um método e/ou teoria rígida, durante a observação, pois a cartografia das controvérsias convida o pesquisador a utilizar todas as ferramentas de observações possíveis, bem como misturá-las sem restrições. A segunda requer que os pesquisadores não podem fingir ser imparciais, simplesmente porque cumprem alguma orientação teórica e promiscuidade metodológica. Segundo a cartografia de controvérsias, toda extensão de divergência dos actantes só pode ser procurada pela multiplicação dos pontos de observações (objetividade de segundo grau). A terceira consequência remonta a que devemos reconsiderar que participantes de um debate podem ser tão informados quanto o são pesquisadores externos e dados obtidos em documentos oficiais.

Ao reencenar um debate, julgamos importante traçar um percurso simétrico entre os possíveis mundos da física e da filosofia. E também articular a potente crítica à tradição racionalista, que, de acordo com Bergson, seguiu os hábitos da inteligência e da linguagem, a fim de problematizar o tempo, para que ele possa se reaproximar da vida e da experiência humana. A Teoria Ator-Rede traz à Filosofia a possibilidade de observar, nas práticas cotidianas e seus emaranhados que envolvem ciência, tecnologia e sociedade, fazer pensar não mais em termos de unidade, ou vencidos e vencedores, mas a partir de um dinamismo processual e constante de associações.

Em última instância, o que está em jogo é vasculhar a adesão ao acordo moderno, que separa e define o que é objetivo (atribuído à Natureza) e o que é subjetivo (atribuído ao mundo social). São cristalizadas e privilegiadas determinadas realidades, no que ele chamou de constituição moderna do fazer científico. A disputa pela constituição do tempo, em que se embrenha a física, através de Einstein, e a Filosofia, por Bergson, é própria do projeto moderno de separar as coisas da natureza das coisas do mundo social, na busca de separar e purificar. Para a manutenção desse projeto moderno de ciências, quatro garantias são constituídas, quais sejam: 1) A Natureza é tomada como transcendente; 2) A Sociedade é tida como imanente; 3) Natureza e Sociedade são distintas; e 4) Deus é retirado de cena, apesar de continuar a intercambiar entre natureza e sociedade (Latour, 1994). Nesse viés garantista, Latour abre mão da distinção entre natureza e sociedade, bem como dispensa qualquer assimetria entre o discurso sobre as coisas, porque essas separações não são oposições, porém, fabricadas por discursos da ciência e da política.

Nos meandros de uma filosofia que se postula como amiga do saber, temos em Deleuze e Guattari (1992) – em O que é Filosofia? – a problematização desse enamoramento, posto que o filósofo, antes de ser amigo do conceito, é aquele que cria e inventa conceitos. Observamos a importância de mapear esses territórios em que profusam conceitos e que acabam por se tornar tão singulares quanto a obra do próprio autor. Nesse sentido, Deleuze e Guattari articulam e nos ajudam a pensar a figura do filósofo e do cientista e nas tramas do debate para justificar dramáticas rivalidades, como o debate, articulado neste trabalho, entre Einstein e Bergson, em 1922/2010.

A noção de tempo – sempre esteve no território do pensador francês e, no momento em que Einstein (1915) se aproxima do território que ele julgava ser seu, ocorre a reivindicação daquele que julga ser o criador. Sobre isso, vale ressaltar:

Apesar de datados, assinados e batizados, os conceitos têm sua maneira de não morrer, e, todavia, são submetidos a exigências de renovação, de substituição, de mutação, que dão à filosofia uma história e também uma geografia agitadas, das quais cada momento, cada lugar, se conservam, mas no tempo, e passam, mas fora do tempo. (Deleuze & Guattari, 1992, p. 16).

Na dramática da experimentação, a noção de tempo precisa de um território que seja seu, e de uma linguagem igualmente particular, para que, juntos, façam sentido. Os filósofos criam os conceitos, que, por sua vez, se organizam na forma de plano de imanência e, simultaneamente, os conceitos também geram o vocabulário desse plano. Por exemplo, o plano do cogito de Descartes não faz sentido sem uma linguagem que inclua o Eu, o gênio maligno, a desconfiança dos sentidos etc. E o habitante desse plano e falante dessa língua seria o personagem: “o Idiota” (Deleuze & Guattari, 2005, p. 83).

Segundo Cardoso (2007), os “[...] afectos e perceptos emitidos pelos conceitos não são sentimentos que se confundam com os sentimentos vividos, num meio histórico, pelos tipos psicossociais dos filósofos que criaram aqueles conceitos”. Ainda para Deleuze e Guattari, os dados sensíveis produzidos por um conceito não coincidem com os sentimentos do filósofo como pessoa ou, se coincidem, é como se outra pessoa os experimentasse, por isso, afirmam eles, “[...] o rosto e o corpo dos filósofos abrigam esses personagens que lhes dão um ar estranho, sobretudo no olhar, como se outra pessoa visse através de seus olhos” (Deleuze & Guattari, 1991, p. 71, citados por Cardoso, 2007, p. 34).

Assim concebido, o personagem conceitual atua como o porta-voz do filósofo, no território definido da narrativa, sejam eles o cogito de Descartes ou os personagens presentes nos diálogos de Platão. Todo conceito contém a ideia, quer política, quer ética, estética ou educacional. Considerando sua origem, o personagem conceitual liga-se consubstancialmente à atividade filosófica, independentemente de qualquer função à qual ele se aplica. O personagem conceitual torna-se uma entidade filosófica autêntica de seu criador e dos possíveis movimentos dados a ele, considerando que todo conceito é simultaneamente absoluto e relativo, como enfatizam Deleuze e Guattari (1992, p. 33-34):

O conceito é, portanto, ao mesmo tempo absoluto e relativo: relativo a seus próprios componentes, aos outros conceitos, ao plano a partir do qual se delimita, aos problemas que se supõe deva resolver, mas absoluto pela condensação que opera, pelo lugar que ocupa sobre o plano, pelas condições que impõe ao problema. É absoluto como todo, mas relativo enquanto fragmentário.

Com uma aposta na fecundidade da teoria Ator-Rede, em conexão com a dramática proposta pela Filosofia da diferença, seguimos a indicação metodológica, na qual a regra é não interromper os fluxos dos discursos tomados ao longo da história da ciência, buscando rastrear as relações que possam atualizar a pergunta: quem possui os conceitos de espaço e tempo? É importante enfatizar que efetuamos uma leitura de Bergson que faz do tempo uma personagem conceitual numa dramática que é a reencenação. Não havia necessariamente em Bergson a busca pela elaboração de uma personagem ou do tempo como conceito, de maneira que se efetua, com a reencenação latouriana articulada à Filosofia da Diferença, uma tradução do tempo como trabalhado por Bergson para um tempo em disputa. E, tal qual todas as traduções, a que realizamos se mostra infiel como ponto de partida.

Conforme Latour, há um preço muito alto nas reduções dos fatos observados na ciência, porque não há falsificação empírica que deixe impune um cientista acusado de ter eliminado, das suas decisões, a maior parte dos contrastes que deveria ter fixado. Até mesmo a Física mais dura pode ser castigada por eliminar os pequenos pormenores do tempo irreversível. Nessa perspectiva, precisamos sinalizar que não é uma luta contra o reducionismo, nem a reivindicação por uma ciência completa, pessoal, subjetiva. Todavia, o que Latour (2008) parece nos dizer é ainda mais difícil: precisa-se mudar o papel do cientista, já que demonstra a incoerência de um cientista reducionista ser reducionista. Nas suas palavras:

Nos laboratórios dos «batas brancas» mais eliminativistas proliferam os fenômenos: conceitos, instrumentos, novidades, teorias, bolsas, preços, ratos, e outros homens e mulheres de batas brancas... O reducionismo não é um pecado de que os cientistas tenham que se redimir, mas um sonho tão inatingível como estar vivo e não ter corpo. (Latour, 2008, p. 54).

 

O debate reencenado, uma dramática

Para reencenação do debate entre Bergson e Einstein, Latour reuniu dois professores de Filosofia, a saber: Elie During, que atua como Bergson, na reencenação. Ele é professor de Filosofia na Universidade de Paris Ouest–Nanterre– Paris 10. Professor na École des Beaux-Arts de Paris, é membro júnior doInstitut Universitaire de France. PhD pela Universidade de Paris-Nanterre, em 2007, por sua pesquisa sobre a recepção filosófica da teoria da relatividade ("De Relatividade de Spacetime: Bergson entre Einstein e Poincaré", 2007). Sua pesquisa explora a noção de espaço-tempo na junção da metafísica, ciência e estética, onde as durações de mente e matéria aparentemente se intersectam. Lançou, em dezembro de 2014, o livro Querelle du temps, sem tradução para o português, que toma como problema o debate de 1922 entre o físico e o filósofo.

Já o professor Bernard Stiegler, que atua como Einstein, é filósofo e professor. Diretor do Instituto de Pesquisa e Inovação do Centro Georges Pompidou, professor associado da Universidade de Londres (Goldsmiths College), professor da Universidade de Tecnologia de Compiègne. Formado em Filosofia pela Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais (EHESS), possui seu doutorado pela mesma instituição. Foi diretor de programação do Colégio Internacional de Filosofia da França, diretor adjunto geral do Instituto Nacional do Audiovisual (INAH), Diretor do Instituto de Pesquisa e Coordenação Acústica/Musical (IRCAM).

Participaram ainda como observadores do debate entre Elie During-Bergson/Bernard Stiegler-Einstein, Jimena Canales, professora de História da Ciência em Harvard, licenciada em engenharia física, que lançou em março de 2015 um livro também sobre o debate de Bergson/Einstein, sem tradução no Brasil: The Physicist & The Phylosopher – Einstein, Bergson and the Debate that chanced. No artigo “Einstein, Bergson, and the experiment that failed” (2005), Canales explora o debate de 1922 de maneira simétrica, expondo as fronteiras entre natureza, ciência e política, durante esse período. Para a autora, o debate caracteriza uma mudança importante no lugar da ciência e da filosofia na história, pois foi, “[...] em essência, uma controvérsia sobre quem poderia falar de natureza e sobre qual destas duas disciplinas teria a última palavra” (Canales, 2005, p. 11).

Foi convidado também o artista Olafur Eliasson, conhecido pelas suas instalações que inserem deliberadamente seu trabalho e a experiência que sua obra oferece aos espectadores, em situações espaciais marcadas pela ambiguidade entre “dentro” e “fora”. Os processos de percepção e construção da realidade estão no centro da pesquisa artística de Olafur Eliasson. A maioria de suas obras, tais como Waterfall (1998), Take your time (2008) e Seu corpo na obra (2011), incorporam leis conhecidas da física, neurologia e óptica, as quais convidam o espectador a experimentar fenômenos naturais, como neblina, luz, cor e reflexos. Muito embora as instalações do artista em geral se pareçam, ao nascer, com o cenário de um experimento, seu interesse não reside no aspecto científico, mas na participação ativa do espectador na criação de determinados fenômenos, por meio de uma interpretação para a qual se serve de seu corpo, de seus sentidos e de seu conhecimento no espaço.

Latour (2011) adverte que, “[...] apesar de parecer bobagem pedir para um artista julgar um debate entre um filósofo e um físico” (p. 09) – especialmente um debate cuja ordem de grandeza tinha sido historicamente resolvida de uma vez por todas: pelo qual o físico fala do mundo real, e o filósofo "não entende de física" –, através da reencenação, o passo que possibilita é tornar plano a hierarquia de vozes e fazer a conversa entre disciplinas avançar de modo mais representativo, no século XXI, do que no século XX, posto que “[...] nenhuma disciplina é o árbitro final de quaisquer outras” (Latour, 2011, p. 9).

O documento/vídeo que registra o debate tem a duração total de 1h 48min 13s – da qual 1h 07m está organizada da seguinte forma: os primeiros 4 minutos são dedicados à audição, no original, da voz de Bergson e da voz de Einstein, em inglês, cada qual rapidamente resumindo sua ideia. O tempo seguinte é marcado por dois momentos; o primeiro – a reencenação do encontro de 1922 – e, em seguida, Elie During, em uma ação que Latour (2011) nomeia como um “brilhante trabalho de ficção filosófica”, reescreve o diálogo de 1922, estabelecendo simetricamente o olhar atento de Einstein para Bergson e vice-versa, tratando-os nos mesmos termos, os vencedores e os vencidos da história das ciências. Ao dar início ao experimento, Latour esclarece a proposta:

A ideia da reencenação, além de retomar um diálogo tradicional, dá-se a possibilidade de restabelecer certo equilíbrio entre Bergson/Einstein que, por razões históricas, possuía um certo contexto, em 1922, mas que não tem, necessariamente, que sofrer o mesmo desfecho em 2010. Quem está no mundo do outro? Está Bergson no mundo de Einstein, Einstein no mundo de Bergson? Eles propuseram um acordo, mas não entraram em um acordo, de arbitrar, de alguma forma. (2010, s/p, tradução nossa.)

A reencenação convida a resistir aos discursos de autoridade presentes nos debates, posicionando a reencenação como um grande laboratório – que, de fato, é – capaz de operar, no tempo real, deslocamentos de certezas na fala dos personagens, bem como observar uma série de sedimentação nas disciplinas, instrumentos, linguagens e práticas. Reencenar possibilita fluxos outros para um debate anterior, que, muito embora, tenha suas singularidades articuladas a personagens conceituais, toma para si uma tarefa paradoxal, a de criação e a de libertação do conceito. Mesmo "datados, assinados e batizados, os conceitos têm sua maneira de não morrer” (Deleuze & Guattari, 1992, p. 16), e um modo de renová-los é lançá-los em novos territórios, submetendo-os às outras exigências do tempo.

Numa palavra, dizemos de qualquer conceito, que ele sempre tem uma história, embora a história se desdobre em ziguezague, embora cruze talvez outros problemas ou outros planos diferentes. Num conceito, há, no mais das vezes, pedaços ou componentes vindos de outros conceitos que respondiam a outros problemas e supunham outros planos. Não pode ser diferente, já que cada conceito opera um novo corte, assume novos contornos, deve ser reativado ou retalhado. (Deleuze & Guattari 1992, p. 29-30).

Latour (2012), ao convidar novos personagens para renovar os conceitos do famoso debate, permite desvios e caminhos, que, por vezes, nos pareciam fechados. Nesse campo da reencenação, a oportunidade de repetição aparece como um procedimento capaz de dar novos contornos a um debate, um acontecimento. Pensemos o debate e seus efeitos, também, pelos afetos engendrados, através do cenário recriado. E indagamos: é possível pensar novos vencedores?

Ao situar o debate numa reencenação à luz de um novo campo problemático, restauramos memórias e histórias que se articulam no tempo e no espaço, em uma rede que pode inspirar múltiplos sentidos. Despret (2012) afirma que as experiências precisam ser disseminadas pela via do contágio, e que este só se dá pelos encontros. Talvez seja essa a importância dos debates científicos organizados por Latour: de que eles não precisam necessariamente ser pensados como oposição, mas como possibilidades de novos encontros e agenciamentos sobre o tempo.

O experimento da reencenação chama atenção para a reflexão sobre a complexidade dos discursos e para aquilo que ainda está por via de afetar. É muito comum, nos textos encontrados sobre a reencenação, a afirmação de que o sucesso desse dispositivo parece estar ligado a um retorno ao não observável, tanto como um gênero praticado pelas novas gerações quanto como prática artística com a sua própria evolução. Por outro lado, a reencenação acompanha dois fenômenos: o retorno às performances artísticas já retratadas e a revisitação, em forma de performance, aos eventos reais – sejam eles debates públicos, tal como o trabalho ao qual este projeto se destina – a reencenação de Bergson/Einstein de 1922, revisitada em 2010. Ambos esses aspectos merecem atenção, não menos importante para o fato de que eles revelam a complexidade do fenômeno, e as motivações e abordagens que eles suscitam sob a égide desse dispositivo.

Partindo desse gênero fascinante, Latour (2012) apoia-se em artistas como Rod Dickinson, conhecido por algumas reencenações, em especial o experimento de Milgram (1960-1963), recriado em 2002. O experimento original teve como objeto testar o comportamento de obediência na tentativa de compreender o episódio de julgamentos de Nuremberg, onde os réus nazistas justificaram seus crimes pelo fato de estarem apenas cumprindo ordens. A reencenação do experimento incluiu desde assistentes que administraram choques elétricos aos que foram cobaias do experimento, assim como no original. O trabalho de Dickinson nos auxilia na observação da reencenação e seus deslocamentos, uma vez que cria diferenças da versão original e agencia novos fluxos. Nesse sentido, a reencenação torna-se um laboratório de experimentação.

As recalcitrâncias nos experimentos de reencenação são pistas promissoras que anunciam novas possibilidades de articulação entre a durée e a relatividade, capazes de nos ensinar a resistir às reduções e a pensar em modos de se relacionar com o tempo que não sejam apenas pelas representações do relógio. Sabe-se que uma das ferramentas mais importantes na vida social tem sido a medida do tempo. Nossas ações se orientam em torno dela, como garantia de encontro e desencontros. A eficácia na realização cotidiana dos afazeres depende quase completamente dessa simples demarcação. Ora, padrões de medida são capazes de solucionar muitos problemas de ordem prática, de sorte que chega a ser difícil imaginarmos a vida sem o tempo-relógio. Contudo, o tempo contado, de acordo com a argumentação bergsoniana, não corresponde ao tempo vivido.

Temos como corriqueira a assimilação do tempo ao espaço, levando-nos a crer que se pensamos em um minuto, considerando as sessenta oscilações do ponteiro maior do relógio, de modo a não nos representarmos as sessenta oscilações como sucessivas, teremos apenas sessenta pontos em uma reta. Mas, se propusermos pensar a sucessão independente de um meio homogêneo, no qual as oscilações se cristalizariam, a percepção mostrará uma interpenetração melódica, isto é, não haverá mais como distinguir as oscilações espacialmente, quantitativamente. Com efeito, a diferença passaria a ser qualitativa, o que equivale a dizer que não há diferença essencial entre passar de um estado a outro e continuar no mesmo estado, se o estado que cremos “parece o mesmo”, é pluralmente variado do que se crê, ou que nossas paragens possam imaginar, “a transição é contínua”, dirá Bergson (Bergson, 1907/2005, p. 2).

Se experimentarmos, ainda que apenas durante uma reencenação, outra versão do tempo diferente da que se consolidou com a Física de Einstein, a continuidade do tempo e do espaço que acreditamos quantificar não seria a única versão de mundo com a qual lidamos. A ficção científica tem sido pródiga em apresentar outras versões de mundo e de modos de conhecer a partir de noções de tempo não vinculadas ao espaço, sendo válido mencioná-la, ainda que não seja o nosso foco. As ficções científicas podem ser lidas como reencenações do presente sob a forma de futuros alternativos, como bem o descreve Úrsula Le Guin no Prefácio de A Mão Esquerda na Escuridão. Podemos estender as observações de Le Guin (2014) às reencenações e situá-las como recursos que permitem outras versões do presente. Assim, como a matéria da Ficção científica não é o futuro, a matéria da reencenação não é o passado.

 

Considerações finais

Reencenar um debate, ao mesmo tempo em que rompe com o passado, torna-se criação simultânea, ou seja, ela coexiste em um único e mesmo palco de criações. A ruptura provocada pela reencenação convida seus espectadores a tornar-se testemunhas imediatas de evento que se desenrola. Nesse sentido, a reencenação transforma representação em forma de realização. Esse envolvimento direto transforma o observador em testemunha ou participante. Com isso, as testemunhas ou participantes substituem o seu conhecimento generalizado em experiência viva e íntima, ao passo que o colocam como responsável por novas inscrições.

A reencenação tem uma natureza performática, na qual a ontologia não é definida de antemão e onde a substância é concebida como protocolo e não como matéria, forma ou essência. Nela, a experiência do conceito e o conceito se unem na ação expressiva do debate de ideias, a ação performática expressa o conceito como experiência do conceito, articulando-o ao corpo, ao mundo, às circunstâncias que dão sentido ao conceito, à batalha que forja aos conceitos no calor das disputas.

Uma reencenação pode ser desdobrada em outras tantas reencenações, articuladas a diferentes planos de experimentação e questionamentos políticos-conceituais. O que aconteceria se a Psicologia se orientasse pelo tempo bergsoniano? Quem estaria presente num debate sobre o tempo Bergsoniano e seus efeitos para a Psicologia? Esta seria uma controvérsia, que se coloca como possível desdobramento para novas pesquisas a partir do uso do recurso à reencenação.

 

 

Referências

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Data de submissão: 10/08/2017
Data de aceite: 09/03/2018

 

 

I Caroline Garcia: Graduada em Psicologia e Filosofia e Mestre em Estudos de Cultura Contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). É Mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). E-mail: carolinegarcia@gmail.com

II Dolores Galindo: Graduada em Psicologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Mestra e Doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUCSP). É docente do Programa em Pós-graduação em Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea, da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). E-mail: dolorescristinagomesgalindo@gmail.com

III José Carlos Leite: Professor Titular da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). Docente do Programa de Pós-graduação em Estudos de Cultura Contemporânea e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia, ambos da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT). E-mail: joseleite@gmail.com

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