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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.3 Porto Alegre set./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.85814 

ARTIGOS

 

A Política de Assistência Social e a Educacionalização do Social

 

The Social Assistance Policy and the Educationalization of the Social

 

La Política de Asistencia Social y la Educacionalización de lo Social

 

 

Betina HillesheimI, Letícia Lorenzoni LastaII

I Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Santa Cruz do Sul, RS, Brasil.

II Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Santa Cruz do Sul, RS, Brasil.

 

 


RESUMO

O artigo tem por objetivo discutir a articulação entre as políticas públicas de assistência social e a educação. Para isso, parte-se do pressuposto de que, em nosso tempo, existe uma associação entre o fenômeno denominado educacionalização do social, a partir do qual a educação passa a ser recorrentemente citada como causa ou solução de uma variedade de problemas sociais, e uma racionalidade governamental neoliberal que opera em uma lógica concorrencial. Tendo em vista tais questões, realiza-se uma análise da Cartilha SUAS: modos de usar (2017), entendendo-a como uma estratégia educativa que, ao afiançar mais autonomia aos usuários, acaba por governar e conduzir camadas mais vulneráveis da população brasileira a entrarem nas redes produtivas e de consumo, mediante um investimento em capital humano.

Palavras-chave: políticas públicas; assistência social; inclusão produtiva.


ABSTRACT

This paper aims to discuss the articulation between public policies for social assistance and education. In order to do that, we have considered the assumption that, in our time, there is an association between the phenomenon called educationalization of the social, which has caused education to be recurrently mentioned as either the cause of or solution for a series of social problems, and a neoliberal governmental rationality that operates in a competitive logic. Regarding such issues, we have performed an analysis of SUAS Handbook: How to use (2017), by understanding it as an educative strategy that, by giving more autonomy to the users, ends up governing and leading more vulnerable layers of the Brazilian population to enter in production and consumption networks by means of an investment in human capital.

Keywords: public policies; social assistance; productive inclusion.


RESUMEN

El artículo tiene por objetivo discutir la articulación entre las políticas públicas de asistencia social y la educación. Para ello, se parte del supuesto de que, en nuestro tiempo, existe una asociación entre el fenómeno denominado educacionalización de lo social, a partir del cual la educación pasa a ser recurrentemente citada como causa o solución de una variedad de problemas sociales, y una racionalidad gubernamental neoliberal que opera en una lógica competitiva. Teniendo en cuenta tales cuestiones, se realiza un análisis de la Cartilla SUAS: modos de usar (2017), entendiéndola como una estrategia educativa que, al afianzar más autonomía a los usuarios, acaba por gobernar y conducir esferas más vulnerables de la población brasileña a entrar en las redes productivas y de consumo, mediante una inversión en capital humano.

Palabras-clave: políticas públicas, asistencia social, inclusión productiva.


 

 

Introduzindo o tema

Este texto parte da compreensão de que há um enlace entre as políticas públicas de assistência social e a educação, buscando mostrar como se dá tal articulação e quais os seus efeitos. Para problematizar a evidência naturalizada que conclama ao direito social à educação ou a uma parceria entre educação e assistência social, operamos com o pressuposto de que, em nosso tempo, existe uma associação entre o fenômeno denominado educacionalização do social (cf. Lockmann, 2016) e uma racionalidade governamental neoliberal que opera em uma lógica concorrencial (Foucault, 2008a). Para tanto, tomamos como pano de fundo desta discussão a Política Nacional de Assistência Social, fundamentando-nos nos Estudos Foucaultianos para apontarmos como a educação passa a ser recorrentemente citada na atualidade como causa ou solução de uma variedade de problemas sociais.

Conforme Noguera-Ramirez (2009), a Modernidade é caracterizada por uma profunda marca educativa. Isso não significa que a educação tenha sido sua causa ou que a Modernidade tenha tido uma causa educativa, mas a própria expansão das disciplinas, entre os séculos XVII e XX, esteve estreitamente vinculada a questões pedagógicas ou educacionais, com implicações políticas, econômicas e sociais. Nessa perspectiva, a Modernidade é compreendida como um processo de constituição de uma sociedade educativa, ou seja, uma sociedade na qual, pela primeira vez, passa a se pensar que “a educação de todos e de cada um era a condição necessária para a salvação, o progresso, ou o desenvolvimento econômico e social” (p. 23) e, além disso, era necessário ensinar tudo a todos e que esse processo deveria ocorrer durante não só a passagem pela família ou pela escola, mas durante toda a vida do sujeito. Dessa maneira, mais do que aprender, passa-se a valorizar o aprender a aprender, constituindo-se, assim, o que o autor denomina como um Homo educabilis.

O autor distingue diferentes momentos dessa preocupação com a Educação na Modernidade: o primeiro, entre os séculos XVII e XVIII, com uma centralidade nas práticas de ensino e na constituição de uma forma de ser sujeito; o segundo, a partir do século XVIII, no qual o Estado passa a ter uma função importante na expansão da educação para diferentes camadas da população; e, finalmente, o terceiro, a partir do final do século XIX, quando se estabelece as bases para uma sociedade na qual a aprendizagem adquire um papel central, com o foco sobre um sujeito que não só aprende, mas deve aprender a aprender. Apesar das diferentes ênfases, todos esses momentos constituem uma sociedade educativa, isto é, a educação é vista como condição fundamental para a formação, realização e salvação tanto do sujeito, quanto da própria sociedade.

A partir disso, é possível compreendermos que não poderia ser diferente no que tange à assistência social. Se a educação adquire esse status central em nossas sociedades, de algum modo, as ações voltadas para os segmentos pobres da população, mesmo em caráter de caridade, já denotavam uma preocupação em educar tais grupos. Portanto, não é novo o entrelaçamento entre assistência social e educação. Porém, o que nos interessa aqui é pensar quais os novos contornos que tal enlace adquire nas políticas de assistência social, com um redimensionamento das funções do Estado, tal como pode ser visto no Brasil a partir da década de 1990.  Em tal cenário, vive-se a primazia do público e supressão do privado, ou seja, o público cola-se à figura de Estado, assim, o público emerge enquanto território de acesso universal, igualitário às ações e serviços para a promoção dos direitos sociais via políticas públicas.

Dessa maneira, como ponto de partida, tomamos a Assistência Social como política pública que, na tentativa de garantir melhorias nas condições de vida da população e realizar o enfrentamento das desigualdades sociais e da tradição histórica e política da divisão de classes sociais, da pobreza, da baixa escolaridade, dentre outras, pode ser pensada como política de inclusão e proteção social. Assinalamos que, no Brasil, os compromissos proclamados pela Constituição Federal de 1988, que ao longo da história deram sustentação às políticas públicas sociais, se amparam nos discursos da universalidade dos direitos, da igualdade de acesso e da participação de todos.

No país, o sistema de proteção social, após a Constituição Federal de 1988, sustenta-se pela garantia constitucional da Seguridade Social, a qual é composta pela Previdência, Saúde e Assistência Social. No caso da Assistência Social, será a partir da Lei 8.742/93 que esta assume o estatuto de política social pública, havendo a possibilidade de provimento social a quem dela necessite, sem necessidade de contrapartida financeira e estando relacionada com as demais políticas sociais (Couto, 2009). Nessa articulação, ressaltamos que a seara dos direitos sociais e suas políticas públicas, em especial o direito à educação e sua aproximação com as políticas de assistência social em nosso país, apontam para um discurso de educação para todos, o qual, nos parece, trama-se a um educar por vezes utilitário, na medida em que se coloca como forma de inclusão dos sujeitos na cadeia produtiva. Tal proposta articula-se a uma racionalidade governamental neoliberal (cf. Foucault, 2008a), que opera a fim de que todos os cidadãos (sujeitos de direito) possam acessar certos bens e serviços.

Tendo em vista tais considerações, organizamos a discussão a partir de três pontos: as políticas de assistência social como estratégia biopolítica; os entrelaçamentos entre educação e assistência social, compondo o que se entende por uma educacionalização do social, visando a um investimento em capital humano e à inclusão dos sujeitos na cadeia produtiva e de consumo; e, para finalizar, realizamos a análise de um material disponibilizado pelo Ministério do Desenvolvimento Social, a Cartilha: SUAS modos de usar (2017), evidenciando os efeitos de tais questões.

 

As políticas de assistência social como estratégia biopolítica

Para pensar a constituição das políticas de assistência social no Brasil, é necessário, segundo Cruz e Guareschi (2009), focar o Brasil República. Em um primeiro momento, a assistência social é regulada a partir da filantropia, estando estreitamente relacionada com ações religiosas e, mais tarde, do próprio Estado, mas ainda mediante ações pontuais, descoladas de uma concepção de política pública. Diferentemente de outros países, não é possível apontar, no Brasil, a existência de um Estado de Bem Estar, sendo que, o Estado passa a intervir de forma mais ativa nas relações entre capital e trabalho a partir dos anos 1930.

É importante assinalar que os anos 1930 marcam, no Brasil, tanto as especificidades do liberalismo, quanto à emergência da ideia de população. Como aponta Linhares da Silva (2003), ao analisar o pensamento jurídico e a organização do Brasil como Estado Nação, há um embate, na história brasileira, entre a tradição e a modernidade, conferindo determinadas especificidades que não permitem que se pense o processo de governamentalização do país da mesma forma do que na Europa. Assim, Silva (2014) aponta que, se para Michel Foucault, a partir do século XVIII vivemos uma governamentalização do Estado Moderno, processo histórico que só pode ser compreendido mediante a problemática do que o filósofo denominou biopolítica, isto é, uma forma de poder que investe maciçamente na vida da população, no Brasil, o próprio conceito de população só irá emergir bem mais tarde. Desse modo, enquanto Foucault (2008b) discute que a arte de governar sofre um bloqueio no século XVII e que seu desbloqueio, no século XVIII, somente se dá justamente pela emergência do problema da população, isto é, pelo deslocamento do modelo da família, para esse novo sujeito - a população -, Silva (2014, p. 17) argumenta que “no Brasil a emergência da população como objetivo final de uma governamentalidade política é um fato muito recente, que ganha forma a partir das décadas de 1920 e 1930”.

Nessa perspectiva, para Silva (2014), na sociedade brasileira, o modelo de gestão que tomava a família como base foi hegemônico na maior parte do tempo, deixando, no corpo social, as marcas do patriarcalismo. Como discute Gadelha (2009), na passagem do século XIX para o século XX, o Brasil era um país pobre, com uma economia eminentemente agrícola, formado principalmente por analfabetos (80%) e rural (90%). O país era dominado por oligarquias regionais (República dos Coronéis) e tinha uma educação voltada exclusivamente para as elites (República dos Bacharéis), marcado pela concentração de renda e significativas diferenças regionais. Nesse cenário, é difícil, para o autor, considerar a existência de uma biopolítica consolidada, o que não exclui que havia tendências em curso que buscavam dar conta de uma série de problemas que envolviam a gestão da população e sua adequação a um incipiente regime de produção, não mais calcado no trabalho escravo, mas no trabalho assalariado. Entretanto, será a partir, principalmente do Estado Novo, que o país será pressionado pela necessidade de modernização, articulando-se internamente e se constituindo como Estado Nação. Portanto, mediante uma série de mecanismos e ações, se pode dizer que, especialmente a partir dos anos 1930, há

a existência efetiva de um corpo-espécie da população, pelo menos a preocupação em constituí-lo como tal, ou seja, de produzi-lo como objeto de uma governamentalidade biopolítica, através da criação de laços orgânicos entre os coletivos que o constituem (trabalhadores - rurais e urbanos -, jovens, mulheres, imigrantes, etc.) e de sua unificação numa nacionalidade comum; elas deixam antever, ainda, uma preocupação com a regulamentação do modo de vida dessa população [...], no sentido da maximização do que Foucault chamava de forças estatais [...] (Gadelha, 2009, p. 194, grifos do autor).

Portanto, é só a partir dos anos 1930 que o Estado brasileiro passa a intervir na questão social, visto que, até então, a assistência ficava a cargo da Igreja Católica. Desse modo, a Constituição de 1934, além de buscar regular as relações entre capital e trabalho, mediante medidas de proteção ao trabalhador, assim como assegurando direito à educação primária integral e gratuita, o amparo aos desvalidos, à maternidade e à infância. Assim, em 1938, dá-se a criação do Conselho Nacional de Serviço Social (CNSS), que é considerado a primeira regulamentação da assistência social no Brasil. Já na Constituição de 1937, novos direitos são introduzidos, especialmente na área da educação e com foco nas classes sociais menos favorecidas. Mais adiante, em 1942, é criada a Legião Brasileira de Assistência (LBA), a qual acabou por instituir o primeiro-damismo (termo cunhado pelo fato de que às esposas dos políticos em cargos executivos cabia assumir a gestão da assistência social), bem como a profissionalização das mulheres nessa área, mediante o surgimento dos cursos de Serviço Social. Na Constituição de 1946, outros direitos sociais e instituições foram sendo criados, principalmente referentes ao trabalho (previdência com contribuição dos trabalhadores, licença gestante, etc.), sendo que, nos anos do regime militar, foram promulgadas duas Constituições (1967 e 1969), caracterizadas, por um lado, pelo cerceamento de direitos políticos e, por outro, por preservação das conquistas sociais, especialmente nas questões trabalhistas (Cruz & Guareschi, 2009).

Será a partir do movimento de redemocratização do país, que culmina com a instalação de uma Assembleia Nacional Constituinte e a nova carta constitucional de 1988, que ocorre uma mudança na concepção de assistência social. A Constituição de 1988 é considerada um marco para a transformação da assistência social, deslocando-a de uma noção de caridade para a ideia de direito social, “apontando para seu caráter de política pública de proteção social articulada a outras políticas voltadas à garantia de direitos e de condições dignas de vida” (Cruz & Guareschi, 2009, p. 27). Nesse cenário, em 1993 é aprovada a Lei Orgânica da Assistência Social - lei 8.742 (LOAS), em 2004, elaborado o Plano Nacional de Assistência Social (PNAS) e, em 2005, aprovado a regulação do Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

Cabe sinalizar que o Estado, ao garantir o direito a assistência social e criar os aparatos institucionais para atingir tal intento, tinha um interesse estratégico, ou seja, “trata-se de nos afastarmos do entendimento humanitário muitas vezes atribuído ao campo dos direitos humanos e compreender que eles foram – e ainda são – utilizados como mecanismos desenvolvidos pelos Estados modernos com o intuito de impor uma regulação sobre a vida de todos e de cada um” (Lockmann, 2013, p. 125). Com isso, compreendemos que, a partir do momento em que se percebeu que a população (a vida, os hábitos, os comportamentos, os territórios) poderia ter grande utilidade para o Estado, este começa a preocupar-se com a sua manutenção e desenvolvimento.

Dito isso, Lockmann (2010) entende a política de assistência social como uma estratégia biopolítica da governamentalidade, a partir do que Foucault trata no Curso do Collège de France (1977-1978) Segurança, Território e População acerca dos deslocamentos das artes de governar iniciando pelas práticas pastorais, passando pela emergência da razão de Estado e chegando às formas contemporâneas de governamentalidade (liberalismo e neoliberalismo). Tendo em vista essa discussão, a autora sugere que há vinculação entre inclusão social, proteção social, risco, seguridade e governamentalidade.

Partindo disso, também entendemos a política de assistência social como estratégia biopolítica de governamentalidade que, ao perceber sujeitos ou grupos “em situações de vulnerabilidade e riscos” (Brasil, 2004), torna essa população passível da ação governamental, portanto, governável. Rose (1999) aponta duas características marcantes para que se possa governar uma população, o conhecimento e a estatística. Ou seja, é preciso identificar certas características e processos próprios dessa população tornando-os conhecidos, bem como, calcularem-se os riscos e os acidentes a que essa população está exposta. Com isso, por meio destes (o conhecimento e a estatística), passa a ser possível intervir mediante diferentes estratégias que objetivam gerenciar os riscos produzidos pela miséria, pela fome, pelo desemprego, dentre outros, e garantir a seguridade, a proteção social, a inclusão social e a educação.

Portanto, as Políticas de Assistência Social relacionam-se “com aquilo que Michel Foucault denominou biopolítica da espécie humana, ou seja, uma tecnologia de gerenciamento do risco social que se utiliza de diferentes estratégias” (Lockmann, 2010, p. 11, grifos da autora). Para a autora, tais políticas passam a atuar no sentido de gerenciamento e defesa da ordem pública, mediante a redução dos riscos de mortalidade e um investimento maciço na vida.

Miller e Rose (2012) apontam que, em meados dos 1980, o vocabulário revivido do neoliberalismo passa a utilizar a linguagem da autonomia, da liberdade e da escolha como forma de legitimação e de ação do próprio poder político. Na medida em que as políticas de assistência social reafirmam o imperativo da autonomia, esta autonomia não é o nome que damos às experiências de liberdade dos sujeitos, mas se constitui como uma forma de condução de condutas (Rose, 2011). Desse modo, trata-se de entender que “nossa própria ideia de sujeito humano como individuado, capaz de escolhas, com aptidões de autorreflexão e em busca de autonomia, é um resultado de práticas de subjetivação” (Miller & Rose, 2012, p. 17).

Dessa maneira, a partir do que Miller e Rose (2012) entendem por democracias liberais, assistimos ao nascimento de uma ética do indivíduo, radicada da lógica da responsabilização, autonomia e liberdade. Com isso, vivemos não apenas um governo de sociedade, que acaba por fragmentar o social (em grupos distintos a partir de suas necessidades, valores, hábitos e riscos...) para melhor governar e conduzir condutas, mas também constituímos um governo dos sujeitos. Assim, ao tomarmos as políticas de assistência social com estratégia biopolítica estamos considerando também que

o governo dos sujeitos é um governo de sociedade levado as últimas consequências, a ponto de fragmentar tão minuciosamente o social que, além de agir sobre grupos específicos considerados de risco, atua sobre cada sujeito particular, responsabilizando-o sobre o gerenciamento de suas condições de vida  (Lockmann, 2013, p. 137).

Em outras palavras, a assistência social como política social combinada ao pensamento político contemporâneo de garantir a todos o acesso a bens e serviços e, a partir disso, afiançar mais autonomia, mais liberdade, acaba por governar e conduzir camadas mais vulneráveis da população brasileira a entrarem nas redes produtivas e de consumo. Nessa perspectiva, é interessante assinalar que a cartilha organizada pelo Ministério de Desenvolvimento Social, denominada SUAS: modos de usar (2017), coloca como objetivo fortalecer a participação e o protagonismo dos usuários nas decisões que garantam a execução e o efetivo controle da Política da Assistência Social1, ou seja, a ênfase dada é na constituição de usuários ativos, participativos e autônomos. Portanto, como apontam Miller e Rose (2012), trata-se de, mediante a concepção de que os seres humanos devam ser ativos em seu próprio governo, de “(...) um novo relacionamento entre estratégias para o governo dos outros e técnicas para o governo do eu (...)” (p. 109).

 

A educacionalização do social: investimentos em capital humano e inclusão produtiva

Lockmann (2016), ao discutir os campos da educação e da assistência social, a partir das implicações que a articulação entre eles gera sobre o papel da escola na nossa sociedade, propõe pensar o que nomeia como uma educacionalização do social, caracterizada por uma obsessão contemporânea pela educação, ou seja, os modos pelos quais a educação é convocada, constantemente, para solucionar uma diversidade de problemas sociais vinculados a áreas bastante variadas. Dessa maneira, “a educação, como estratégia de governamento, é insistentemente convocada por políticas, programas e discursos públicos para solucionar as mazelas sociais” (p. 59).

A utilização da expressão educacionalização do social é, segundo a autora, ainda pouco empregada no Brasil, mas é bastante discutida, no âmbito da Europa e da América do Norte, por Smeyers e Depaepe  os quais apontam que o conceito surgiu no fim da década de 1950, a partir do sociólogo Janpeter Kob, sendo posteriormente desenvolvido por vários outros autores, como Ulrich Herrmenn, James Marshall, Thomas S. Popkewitz, Maarten Simons e Jan Masschelein, entre outros. Para Smeyers e Depaepe, tal conceito pretende discutir a tendência global de tomar a educação como fundamental na resolução dos problemas humanos. (Smeyers & Depaepel, 2008 citado por Lockmann, 2016).

A partir de sua análise sobre as políticas públicas de assistência social, a autora argumenta que é possível ressaltar duas (re)configurações da instituição escolar: primeiro, uma multidimensionalidade de funções que são atribuídas à escola contemporânea, expandindo consideravelmente suas responsabilidades e, segundo, a própria redefinição dos conhecimentos escolares, privilegiando aprendizagens que são consideradas relevantes no sentido de que cada um possa governar a própria vida. Além disso, destaca que, se por um lado, o fenômeno de educacionalização do social coloca a educação como ponto central na solução de problemas variados, por outro, são as Políticas de Assistência Social que, no Brasil, operam fortemente com tal lógica, constituindo a escola como um lugar privilegiado de resolução dos problemas sociais.

Ao atentarmos para os entrelaçamentos entre as Políticas de Assistência Social e a Educação percebe-se que a ampliação de acesso a bens serviços para viabilizar o aumento das capacidades de seu desenvolvimento humano e social não se dão ao acaso, mas são fruto de uma construção histórica e social potente para o governo da vida. Dessa forma, quando a Política Nacional de Assistência Social diz da “dimensão ética de incluir os invisíveis”, que “a assistência social é um direito à proteção aliada ao desenvolvimento social e não tuteladora ou assistencialista”, bem como, que tem “uma visão social capaz de entender que a população tem suas necessidades, mas também possibilidades ou capacidades que devem e pode ser desenvolvidas”, e, ainda que “a proteção social em suas ações visa a desenvolver suas capacidades e talentos para a convivência social, protagonismo e autonomia, e que programas e projetos de preparação para o trabalho e de inclusão produtiva devem ser ofertados de modo articulado e em rede” (Brasil, 2004, pp. 10-11 e 16), fica evidente que tal política se coloca como aliada ao desenvolvimento humano e social, que esse desenvolvimento depende das capacidades de acesso e que a dimensão ética de incluir os ditos invisíveis é determinante para a autonomia do cidadão e famílias.

Outro aspecto a ser ressaltado é que ao desenvolverem-se as capacidades e talentos para a convivência social, estão se desenvolvendo as capacidades e habilidades para o exercício do protagonismo e da cidadania, e desse modo, se identificando forças, e não fragilidades. Portanto, pode-se dizer que, com isso, viabiliza-se não só a inclusão social, mas a inclusão social produtiva.

Lockmann (2013) discute o discurso da autonomia posto por tal política e indica que há “um movimento de convocação e convencimento para que cada sujeito realize investimentos em si mesmo, na sua formação, nas suas habilidades e competências” (pp. 137-138). Assim, o sujeito autônomo e protagonista passa a ser compreendido como um empresário de si e a fazer determinado número de despesas de investimento na perspectiva de aperfeiçoar-se cada vez mais (Foucault, 2008a).

Foucault (2008a) chama atenção para a redefinição do Homo oeconomicus como empreendedor de si mesmo, pois as habilidades, as competências, os conhecimentos, que antes não eram considerados no âmbito econômico, na mentalidade neoliberal, passam a ser tidos como elementos da economia, evidenciando-se como uma forma de capital que necessita de investimentos para gerar uma renda, um lucro no sentido monetário no futuro. Portanto, o

empresário de si, o indivíduo [passa a ter] que submeter sua propriedade [seu capital humano, ou seja, habilidades, competências, conhecimentos] às normas estabelecidas pelo mercado e deve pensar-se a si mesmo como um empreendimento: é necessário investir em sua formação, em suas relações – seu networking –, cotar o mercado – não só buscar emprego! –, desenvolver suas capacidades e agregar valor à carreira” (López-Ruiz, 2007, p. 69, grifos do autor).

Ainda para Foucault (2008a), a renda é o rendimento de um capital. Portanto, como assinala Lockmann (2013), na medida em que o capital é o próprio sujeito, ele mesmo se constitui como fonte de renda. Como consequência disso, as Políticas de Assistência Social são também condicionadas a determinados investimentos em capital humano, tendo em vista garantir uma renda futura e a independização dos usuários dos programas sociais.

Para Miller e Rose (2012), o empreendedorismo econômico coloca os sujeitos como agentes ativos, e o empreendedorismo ativo deve suplantar a passividade e a dependência da solidariedade, na medida em que os indivíduos são encorajados a lutar para aperfeiçoar (protagonizar) sua própria vida e a de sua família. Assim,

o vocabulário do empreendedorismo une a retórica política e os programas regulatórios às capacidades de autodireção das pessoas. [...] o empreendedorismo forja uma ligação entre as formas pelas quais somos governados pelos outros e as formas pelas quais deveríamos nos governar. O empreendedorismo, neste sentido, refere-se a uma série de regras para a conduta da existência diária de uma pessoa: energia, iniciativa, ambição, cálculo e responsabilidade pessoal. O self empreendedor fará da sua vida um empreendimento, procurando maximizar seu próprio capital humano, projetando seu futuro e buscando se moldar a fim de se tornar aquilo que deseja ser. O self empreendedor é, portanto, um ser tanto ativo como calculador, um self que calcula sobre si próprio e que age sobre si mesmo a fim de se aprimorar. O empreendedorismo, em outras palavras, designa uma forma de governo que é intrinsecamente ética: o bom governo deve ser baseado nas maneiras pelas quais as pessoas governam sobre si próprias (Rose, 2011, p. 215, grifos do autor).

As questões apontadas acima conduzem os indivíduos a uma posição de permanente atividade e de responsabilidade pela sua condição de vida e pela de sua família. Essa regra liga-se ao vocabulário do empreendedorismo, uma vez que a permanente atividade sobre si mesmo é a condição para o funcionamento do empreendedorismo como uma das formas de ser e existir na atualidade. Frente a esses discursos de intensificação do sujeito, a inclusão passa por modificações, e a própria ideia de inclusão vem a ser também intensificada. A inclusão social, nesse contexto, passa a ser denominada uma inclusão produtiva.

  Lockmann (2013, p. 152) diz que a “inclusão produtiva é um tipo específico de inclusão que requer um investimento constante sobre o sujeito, justamente por ser ele o próprio responsável, não só por se incluir nos jogos de mercado, mas também por se manter incluído”. Na atualidade, não se trata só de estar excluído/incluído em discursos, em ações governamentais e/ou não-governamentais, em políticas públicas... Estar incluído é tornar-se ativo, produtivo, por meio de investimentos em seu capital humano, de tal forma que este viabilize a entrada e permanência no jogo.

Portanto, do solo da autonomia, do protagonismo, ou seja, do empreendedorismo, emerge a inclusão produtiva. “Tal noção constitui-se a partir da vinculação, articulação e sobreposição dos discursos da inclusão e da individuação, ou mais sucintamente, de um regime do self” (Lockmann, 2013, p. 154). Portanto, a inclusão produtiva trata “de constituir uma trama social na qual as unidades de base teriam precisamente a forma da empresa, porque o que é a propriedade privada, senão uma empresa?” (Foucault, 2008a, p. 203).

 

Políticas de assistência social e educação: a cartilha SUAS: modos de usar

No Brasil, de acordo com Ecker (2016), foi a inserção da educação como um direito social, na Constituição de 1988, que permitiu uma maior aproximação da educação com o campo da assistência social. Com o intuito de garantir ao país um espaço no mundo globalizado, a produção de um sujeito da educação relacionava-se à criação de políticas públicas que operassem tanto sobre a oferta quanto sobre a proteção de determinados direitos. Nessa lógica, constrói-se uma conexão entre educação, cidadania e trabalho.

Assim, a Constituição de 1988 vincula o direito à educação à produção de um sujeito cidadão e qualificado para o trabalho. Tal conexão é explicitada mediante a necessidade de uma formação comum indispensável para os estudantes brasileiros, no sentido de possibilitar-lhes o exercício da cidadania. Por outro lado, aparece também um estreito vínculo entre ações educativas como meio de capacitação para o trabalho. O trabalho é, portanto, uma noção central na produção do direito à educação.

Ainda para o autor, é preciso ter claro que a ideia da educação como um direito de todos nas Constituições brasileiras é anterior à inserção da assistência social como uma seção específica, o que só ocorreu na Carta de 1988. Antes disso, as políticas de educação já atuavam, de forma independente, por meio de uma série de ações e programas do Ministério da Educação. Porém, a inovação da Constituição de 1988 é “a inserção pela primeira vez da educação integrada à noção de Direito Social e a assistência como uma Seção específica” (Ecker, 2016, p. 91). Embora não exista na Seção IV da Assistência Social uma referência direta à educação, pode-se pensar que tal aproximação se dá a partir das ideias de inclusão e promoção social.

A LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social, 1993), está fundamentada em princípios e diretrizes que regem a assistência social no País. Na presente discussão, ressaltamos o segundo princípio, que diz respeito à universalização dos direitos sociais, a fim de tornar o destinatário da ação assistencial alcançável pelas demais políticas públicas. Tal assinalamento é necessário visto que, no âmbito dos direitos sociais, a educação (juntamente com a saúde, alimentação, moradia, previdência social, entre outros direitos específicos) ocupa um lugar importante. Assim, a política de assistência social, é muitas vezes entendida como porta de entrada para as outras políticas, na medida em que se vincula à proteção social e só pode ser efetivada mediante a garantia de acesso às demais políticas públicas.

A LOAS organiza a assistência em dois níveis de proteção: proteção social básica e proteção social especial, sendo ofertadas pelos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) e Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), respectivamente. Assim, o artigo 6º dispõe em seus dois parágrafos que: 1º) o Cras é a unidade pública municipal, de base territorial, localizada em áreas com maiores índices de vulnerabilidade e risco social, destinada à articulação dos serviços socioassistenciais no seu território de abrangência e à prestação de serviços, programas e projetos socioassistenciais de proteção social básica às famílias e 2º) o Creas é a unidade pública de abrangência e gestão municipal, estadual ou regional, destinada à prestação de serviços a indivíduos e famílias que se encontram em situação de risco pessoal ou social, por violação de direitos ou contingência, que demandam intervenções especializadas da proteção social especial. Além de detalhar a organização e a gestão no capítulo III, detalhando as ações relativas à União, aos Estados e aos municípios, consideramos importante focar no capítulo IV, o qual é intitulado Dos Benefícios, dos Serviços, dos Programas e dos Projetos de Assistência Social e se divide em 5 seções (I - Do Benefício de Prestação Continuada; II - Dos Benefícios Eventuais; III - Dos Serviços; IV - Dos Programas de Assistência Social; V - Dos Projetos de Enfrentamento da Pobreza). Para pensarmos especificamente o enlace entre a assistência social e a educação, detemo-nos nesta última, a qual é composta pelos artigos 25 (Os projetos de enfrentamento da pobreza compreendem a instituição de investimento econômico-social nos grupos populares, buscando subsidiar, financeira e tecnicamente, iniciativas que lhes garantam meios, capacidade produtiva e de gestão para melhoria das condições gerais de subsistência, elevação do padrão da qualidade de vida, a preservação do meio-ambiente e sua organização social) e 26 (O incentivo a projetos de enfrentamento da pobreza assentar-se-á em mecanismos de articulação e de participação de diferentes áreas governamentais e em sistema de cooperação entre organismos governamentais, não governamentais e da sociedade civil).

Nessa direção, de enfrentamento à pobreza, foram ofertados uma série de programas e benefícios que dizem respeito à transferência de renda, associando diretamente a assistência social e a educação a partir do que se denomina condicionalidades, tais como o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, o Programa Bolsa Família, o Bolsa Escola, o Programa Brasil Carinhoso, entre outros. Carnelossi (2016), ao discutir as condicionalidades do Programa Bolsa Família, pontua que

a reconfiguração das políticas sociais na contemporaneidade ataca os princípios universais das políticas sociais tradicionais (guiadas pela lógica do Welfare State), passando a selecionar grupos e segmentos em função de características e/ou méritos, em detrimento da universalização dos direitos sociais (p. 126).

Segundo a autora, essa nova configuração das políticas sociais é determinada pelo modelo de um Workfare State, e não mais por políticas sociais universais e incondicionais.  Este termo (da junção das palavras work/trabalho e welfare/bem-estar) surgiu nos anos 1960, nos Estados Unidos, sendo usado para se referir o bem-estar em troca do trabalho. Citando Peck, Carnelossi (2016) assinala que a ideia de um Workfare State se materializa por políticas sociais que ativem o mérito dos sujeitos, os quais devem se colocar dentro de uma lógica concorrencial, “concebidas para incutir nos seus destinatários o hábito do trabalho assalariado, da busca resignada por empregos, além da submissão à disciplina dos rotineiros treinamentos profissionais exigidos por um mercado de trabalho inconstante” (p. 126). Tem-se, a partir disso, uma racionalidade de retribuição das políticas sociais, expressas em medidas que condicionam os benefícios sociais ao comportamento dos usuários. Nessa perspectiva, ressaltamos que as condicionalidades dos diferentes programas da assistência social colocam a permanência da criança e do adolescente na escola, bem como a frequência escolar, como uma exigência para a sua manutenção como beneficiário. Tais condicionalidades, para Ecker (2016), explicitam os modos pelos quais os discursos do Estado incidem sobre os sujeitos e grupos tidos como vulneráveis ou em situação de risco social, colocando na educação a possibilidade de superação dessa condição.

A partir disso, podemos dizer que os discursos postos pelas políticas de assistência social ratificam uma das principais regras do jogo neoliberal, ou seja, a participação de todos no jogo neoliberal. Para Foucault (2008a, p. 277) a economia neoliberal,

[...] é essencialmente um jogo, que se desenvolve entre parceiros, que a sociedade inteira deve ser permeada por esse jogo econômico e que o Estado tem por função essencial definir as regras econômicas do jogo e garantir que sejam efetivamente bem aplicadas
[...] uma regra, de certo modo suplementar e incondicional no jogo, a saber de que deve ser impossível que um dos parceiros do jogo econômico perca tudo e, por causa disso, não possa mais continuar a jogar.

As ideias do autor referentes à economia como um jogo e de que o único ponto de contato entre o econômico e o social é que nenhum jogador seja excluído, fazem com que tenhamos regras a esse jogo social neoliberal. A partir disso, a regra é a da não exclusão, e no contexto das Políticas de Assistência Social, a redistribuição de renda mínima e regulação social.

Lopes (2010, p.110) aponta que as três condições para a participação de todos são “ser educado em direção a entrar no jogo; permanecer no jogo (permanecer incluído) e desejar permanecer no jogo”. Com isso, a autora sinaliza que o provimento estatal de condições mínimas de vida se associa a condições de consumo, a qual não está na contramão das políticas de mercado. A partir dessas condições, podemos pensar que, no âmbito do SUAS, são produzidos materiais, como é o caso da cartilha SUAS: modos de usar, que têm por objetivos educar os usuários no sentido de acesso à Política Nacional de Assistência Social e ao SUAS. Desta forma, não se permite que ninguém fique fora do jogo, pois todos são educados a incluir-se nas redes de consumo.

A cartilha SUAS: modos de usar tem por objetivo “(...) informar, mobilizar e incentivar a participação dos usuários na Política de Assistência Social e no SUAS”. (Ministério do Desenvolvimento Social, 2017, p. 13). Tendo em vista o caráter condicional da Política de Assistência Social, a cartilha busca educar a população quanto às suas possibilidades de acesso e participação, explicitando que, para que ocorra o acesso a tais bens, serviços e direitos, o cidadão deve estar “passando por momentos de dificuldades ou por algumas situações que podem estar relacionadas à pobreza, à falta de acesso a serviços públicos, à problemas familiares e discriminação” (Ministério do Desenvolvimento Social, 2017, p. 15).

Tal documento “foi especialmente feita para você, usuário do Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Aqui você encontrará informações sobre os seus direitos e como você pode participar da construção da Política de Assistência Social no país” (Ministério do Desenvolvimento Social, 2017, p. 14). De modo geral, a referida cartilha explica o que é o SUAS, quem é o seu usuário, os direitos que podem ser acessados pelo SUAS, aponta a importância da participação popular na construção desta política, orienta em relação às instituições, bens e serviços que podem ser acessados pelos SUAS, bem como ensina ao usuário sobre os benefícios e benefícios eventuais, definindo o que é o cadastro único e estabelecendo as documentações necessários para o acesso aos mesmos.

Neste contexto, “essa resolução garante a você o direito de acompanhar e de conhecer a política mais de perto, além de contribuir para a sua melhoria. Lembre-se, você é o protagonista da Política de Assistência Social e, por isso, precisa conhecer o SUAS e participar das decisões que garantam serviços de qualidade para toda a população” (Ministério do Desenvolvimento Social, 2017, 14). Destacamos ainda que a cartilha, ao educar os usuários da assistência social, também regula as práticas ofertadas no âmbito da própria política. Assim, há reiterados chamamentos na direção de um controle e avaliação dos usuários em relação aos serviços, programas, projetos, benefício, mobilizando-os para “a articulação de políticas de atendimento, a integração entre serviços e benefícios, a qualidade do atendimento, a qualidade da infraestrutura disponível nas unidades do SUAS, entre outros” (p. 19), para “defesa e garantia de seus direitos” (p. 19), de modo “a ajudar a construir a política de assistência social de várias maneiras” (p. 18). Assim, pode-se dizer que, na medida em que os usuários são educados no que se refere a seus direitos e incitados a participar ativamente na defesa e garantia dos mesmos, há uma fiscalização do sistema como um todo, seja no sentido dos serviços e programas ofertados, quanto das práticas dos profissionais que atuam na assistência social. Ou seja, é a própria educação dos usuários que possibilita um aperfeiçoamento do que se entende por regulação social. Portanto, a cartilha preocupa-se não apenas em orientar sobre direitos e acessos a serviços, programas, projetos e benefícios da assistência social, mas também em colocá-los como um partícipes da própria construção da política pública, mediante a participação em “diferentes espaços de organização e de representação de usuário” (p. 16).

A partir disso, podemos compreender a cartilha SUAS: modos de fazer como um artefato que pretende, mediante estratégias educativas, governar os usuários (e os profissionais da assistência social) na direção de uma política de assistência social que investe na inclusão de sujeitos e grupos tidos como passíveis de exclusão do jogo neoliberal. Entretanto, como não é permitido a ninguém ficar de fora (Lopes, 2010), tais sujeitos são convocados a reivindicar direitos, não se colocando, assim, na posição de sujeitos de caridade, mas de cidadãos autônomos e corresponsáveis pela própria efetivação da política.

Este deslocamento de sujeito de caridade para sujeito se inscreve na lógica da inclusão produtiva, como discutido anteriormente. Conforme Rose (2011), não se trata de um apoio financeiro que se dá mediante a concessão de benefícios como uma questão de direito, mas subsídios repassados a clientes através de uma relação contratual. Desse modo, o que se espera é que os sujeitos invistam maciçamente em seus capitais humanos, sejam estes inatos ou adquiridos. A racionalidade neoliberal não distingue a perda ou redução de capital humano por falta de investimento, visto que entende que, para todos, “[o pobre, o preguiçoso, o vadio, o criminoso, o desempregado, etc.], independentemente da situação que os levaram a assumir tal posição social, são oferecidas possibilidades paliativas de remediar e corrigir suas condições de vida” (Lockmann, 2013, p. 148).

Portanto, o Estado pode até oferecer a ajuda “a quem dela necessitar” (Brasil, 1988), mas será o sujeito que vai ter que se responsabilizar por sua saída da condição de pobreza, miséria, vulnerabilidade, risco, sendo que isso só irá acontecer, de acordo com Lockmann (2013), na medida de seu investimento em seu capital humano, tornando-se um empreendedor de si mesmo (Lockmann, 2013).

 

Considerações finais

A partir da compreensão das políticas de assistência social como estratégia biopolítica buscamos apontar os entrelaçamentos entre a educação e assistência social na composição do que se tem entendido como educacionalização do social. Dentro disso, contextualizamos como tal política nos últimos anos tem operado pelo bem do mercado neoliberal, bem como, com vias a um investimento em capital humano e à inclusão dos sujeitos na cadeia produtiva e de consumo.

 Ao tomar a Cartilha: SUAS modos de usar (2017) como materialidade de análise, não pretendemos avaliá-la enquanto boa ou ruim, mas sim pontuar aspectos pertinentes a um determinado modo de gerir a pobreza, sobretudo problematizando a racionalidade neoliberal que coloca o sujeito como sendo seu próprio capital, e como tal, fonte de sua própria renda. Neste contexto, os entrelaçamentos entre educação e assistência social não se relacionam somente com mais autonomia e protagonismo social, mas, pela análise empreendida aqui, sob o discurso da inclusão e proteção social, todos são capitalizados pelo bem do mercado. Dito isso,

[A] compreensão que temos de nós mesmos como pessoas capazes de efetuar escolhas livres e autônomas é, ela própria, uma construção que nos permite ser governados, tanto individual quanto coletivamente. De acordo com Foucault, a arte do governo, a governamentalidade nos atinge a todos, de forma que não somos os formuladores e realizadores autônomos de projetos individuais (...) (Marshall, 1994, p. 22, grifos nossos).

Nessa perspectiva, a desnaturalização da aliança entre educação e assistência social permite o exercício de um posicionamento ético ante nossas práticas, enquanto pesquisadoras no âmbito das políticas públicas sociais, bem como nos possibilita uma reflexão que conjuga a responsabilidade crítica com o nosso próprio fazer. Parece-nos que esse exercício talvez possa potencializar produções coletivas que passem a tensionar determinados estatutos de verdade no âmbito da educação e da assistência social.

 

 

Referências

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Data de submissão: 14/08/2018
Data de aceite: 06/09/2018

 

 

1 A partir daqui os trechos retirados dos documentos das políticas públicas estão grifados em itálico.

 

 

I Betina Hillesheim é psicóloga, doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), docente e pesquisadora do departamento de Psicologia e do PPGEdu da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Além de bolsista produtividade em pesquisa do CNPq. E-mail: betinahillesheim@gmail.com

II Letícia Lorenzoni Lasta é psicóloga, mestre em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é professora do Departamento de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). E-mail: lelilasta@gmail.com

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