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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.3 Porto Alegre Sept./Dec. 2018

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.86108 

ARTIGOS

 

Nas Margens: Psicologia, Política de Assistência Social e Territorialidades

 

On The Margins: Psychology, Social Assistance Policy and Territorialities

 

En Los Márgenes: Psicología, Política de Asistencia Social y Territorialidades

 

 

Simone Maria HüningI, Rosângela Jacinto CabralII, Maria Auxiliadora Teixeira RibeiroIII

I Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL, Brasil.

II Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL, Brasil.

III Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL, Brasil.

 

 


RESUMO

Neste artigo colocamos em análise, por um lado, o distanciamento e, por outro, a inserção da psicologia em territórios considerados vulneráveis - base para a organização, no Brasil, dos serviços da Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Temos como objetivo refletir sobre as práticas, os saberes, a formação e as territorialidades constituídas por este campo disciplinar na interface com a PNAS. Para isso, inspiradas pela ideia de narrativa como prática de intercâmbio de experiências de Walter Benjamin, compartilhamos fragmentos de uma experiência de inserção em uma comunidade tida como vulnerável. Assim, afirmamos uma psicologia e uma política de escrita e de produção de conhecimentos que, para além de teorias e técnicas, operam com memórias, lembranças, esquecimentos, não saberes e incertezas. Da potência e da inventividade que caracterizam a própria possibilidade da vida nesses territórios podem, então, emergir narrativas que constituam outras territorialidades, saberes e fazeres para a psicologia.

Palavras-chave: psicologia, territorialidades, política nacional de assistência social.


ABSTRACT

In this article we analyze both the disengagement and the integration of the field of psychology in the vulnerable territories upon which the organization of Brazilian National Social Assistance Policy (NSAP) is based.  Our objective is to reflect upon the practices, know-how, formation, and the territorialities constituted by the interface of this disciplinary field with the NSAP.  Thus, inspired by Walter Benjamin’s idea of narrative as a method of exchange of experience, we share fragments of an experience of insertion in a community considered vulnerable.  In this manner, we affirm a psychology and a policy of the recording and production of knowledge that, beyond theories and techniques, operates on the remembered, the forgotten, the unknown, and the uncertain.  From the strength and resourcefulness that defines the possibility of life in these territories, narratives may emerge that constitute other territorialities, understandings, and tasks for the field of psychology.

Keywords: psychology, territorialities, National Social Assistance Policy.


RESUMEN

En este artículo analizamos tanto el distanciamiento como la inserción de la psicología en territorios considerados vulnerables, los cuales son la base para la organización de los servicios de la Política Nacional de Asistencia Social (PNAS) en Brasil. Nuestro objetivo es reflexionar sobre las prácticas, los saberes, la formación y las territorialidades constituidas por este campo disciplinario en la interfaz con la PNAS. Para ello, inspiradas por la idea de narrativa como práctica de intercambio de experiencias de Walter Benjamin, compartimos fragmentos de una experiencia de inserción en una comunidad considerada vulnerable. Así, afirmamos una psicología y una política de escritura y de producción de conocimientos que, más allá de teorías y técnicas, operan con memorias, recuerdos, olvidos, no saberes e incertidumbres. De la potencia y de la inventiva que caracterizan la propia posibilidad de la vida en esos territorios, pueden emerger narrativas que constituyan otras territorialidades, saberes y quehaceres para la psicología.

Palabras-clave: psicología, territorialidades, Política Nacional de Asistencia Social.


 

 

“O que chamamos de cidade são retalhos, ilhas de riquezas rodeadas por um mar de favelas. (Turchi, 2017, p. 27)

 

O mar ou a margem

O cheiro do sururu sente-se da estrada, um pouco da brisa da lagoa que passa pelos barracos enche a face, uma mistura de ar salgado com mariscos, a vontade é de ficar descalça para sentir o chão, a areia, e as cascas do sururu e massunim que formam um piso na orla lagunar. Eu deveria ter tirado os sapatos... Um lugar esquecido, literalmente à margem da cidade, a orla lagunar de 5 km que corta um de seus mais antigos bairros, é preenchida por barracos. Alguns melhores, outros apenas lonas e papelão. Como essas pessoas conseguem viver? E no meio da lama, da falta de saneamento básico e da negação de sua cidadania, são felizes. Como podem ser felizes? Ou por que a felicidade não seria digna de habitar ali?

Ao longo desse território há mais divisões do que os olhos podem ver: em uma pequena parte da região o marisco predominante é o massunim e, na maior parte, o sururu. A própria lagoa também faz suas divisões territoriais. Na região onde há o massunim existe também uma maior estrutura das casas e, principalmente, de famílias.

Um mundo sem saneamento e sem as condições básicas de vida para a maioria de ‘nós’. Mas ‘nós’ não o habitamos! Raramente tomamos conhecimento de sua existência. Não há coleta de lixo, água encanada, nem banheiros na maior parte das casas. A eletricidade chega de forma clandestina e quando chove o perigo de choque elétrico ou curto circuito é enorme. O perigo da casa cair é maior ainda e quando a lagoa enche e começa a chegar às casas é que tudo realmente começa a desmoronar. Algumas famílias são obrigadas a deixar as residências e vão para escola e abrigos, pelo menos até a lagoa ceder.

Os animais convivem junto com as pessoas. Homens, mulheres, crianças, gatos, cachorros, galinhas, cavalos, vacas: todos em um espaço comum. Alguns moradores trabalham como carroceiros coletando material reciclado ou transportando mudanças nas carroças e, por isso, os animais são mantidos na frente ou atrás das casas, único espaço disponível. Tudo é uma área só: de trabalho, de convivência, de lazer, de lixo e de higiene. A seu modo, esse lugar peculiar tem sua própria harmonia e seu modo de funcionamento. São várias as concepções de família, de infância, de sexualidade, de gênero, de vida que pulsam ali. Compreendê-las, às vezes, é difícil.

 

A Psicologia percorre a (à) margem

É na universidade que nos formamos psicóloga(o)s e pesquisadora(e)s. Cumprimos requisitos estabelecidos por diretrizes curriculares, estudamos epistemologias, teorias e casos, buscamos constituir saberes que problematizam o mundo e, algumas vezes, propõem-se a transformá-lo. Eventualmente, vamos a campo. No mundo protegido da universidade, no qual um pensamento crítico pode ser exercido em sua radicalidade, formulamos visões de mundo e preparamos nossas ferramentas para o trabalho que vai ocorrer lá, ‘no mundo real’. O ‘mundo real’ as questiona, tensiona e recusa, porém poucas vezes vai à universidade. Descalço, ele pode até tentar, mas nem sempre consegue entrar. Às vezes ele bate à porta de nossas salas de aula, com um papel amassado na mão, pedindo dinheiro para um transporte ou um tratamento de saúde. Interrompe nossas aulas. Tentamos que seja breve, pois há conteúdos, teorias, cronogramas pré-estabelecidos que precisamos vencer (?!) e ocupam quase a totalidade do tempo da formação. O 'mundo real'  não está bem vestido e, além disso, temos muita pressa e pouco tempo. Nós, da universidade, nem sempre estamos dispostos a levantar de nossas poltronas e percorrê-lo (Baptista, 2017).

À margem do ‘mundo real’ a psicologia produz verdades sobre outros, numa relação colonialista que facilmente impõe modos de vida, valores e prioridades. Mas é no inóspito ‘mundo real’ que se constituirá o espaço de trabalho de muitos egressos de nossos cursos de psicologia, particularmente na Política Nacional de Assistência Social (PNAS). Os territórios considerados vulneráveis – base para a organização dos serviços da PNAS –, e seus habitantes são exatamente os que constituem os alvos dessa política na qual grande parte da(o)s psicóloga(o)s atuam no Brasil. Nessa zona de encontro ou desencontro entre mundos, não é apenas a psicologia que levanta problemas sobre essas realidades, mas elas que apontam os problemas de um campo de saber constituído no distanciamento daqueles com quem vai trabalhar. Essa inversão nos interessa e é tomada neste artigo com o objetivo de refletirmos sobre a psicologia nesses espaços, sobre as práticas, os saberes, a formação e as territorialidades constituídas por este campo disciplinar na interface com a PNAS. Para isso, levamos uma psicologia que se constitui à margem de contextos socioculturais sobre os quais quer intervir para percorrer espaços marginais. Desse percurso, esperamos que se provoque uma psicologia também marginal, não hegemônica, não prescritiva, menos absoluta e segura de si, que coloque em questão a produção e naturalização de violências.

Utilizamos como disparadores para as reflexões fragmentos de narrativas de experiências registradas a partir da inserção de uma das autoras em uma comunidade considerada vulnerável durante a realização de um estágio curricular em psicologia1. Tais narrativas versam sobre pessoas, vivências e afetos. Falam sobre o que não é dito oficialmente em relação ao território percorrido ou aquilo que é eclipsado, nos discursos locais (midiáticos ou estatais), por enunciados sobre criminalidade e marginalidade na região. Trazem, sobretudo, inquietações e sentimentos produzidos nos encontros e passagens de quem leva a psicologia para transitar por caminhos pouco iluminados, tanto pelas luzes da cidade quanto pelas luzes do conhecimento.

Nos percursos permeados por vínculos e afetos, pelo acompanhamento de práticas de resistência à violência, de arte, trabalho e também de criminalidade, reconfiguraram-se noções de território, das pessoas e suas vidas. Afirmando uma política de escrita e de produção de conhecimentos conectada com a vida cotidiana, este texto compartilha experiências localizadas e singulares, mas consideradas como potentes para pensarmos a relação da psicologia com esses territórios. Tem também o intuito de que não passem em branco para nós tantas mortes e vidas. Vidas tiradas violentamente (pela polícia ou pelo narcotráfico) que não podem ser reivindicadas, vidas que precisaram fugir para outros territórios, vidas que ainda têm esperança e as vidas que nos fazem extremamente impotentes com nossos saberes psi. Por isso, buscamos aqui narrá-las de uma maneira que se diferencia daquelas que são usualmente expressas pelos saberes acadêmicos, pelos meios de comunicação e pelo Estado. São vidas tomadas aqui a partir de experiências de afetação que nos causaram, para além de como são traduzidas pelas estatísticas, pela criminalização de sua cor e sua condição de pobreza.

Nesta reflexão, falamos da cidade e seus territórios como espaços onde e com os quais compomos nossas práticas profissionais, incorporando à escrita acadêmica o sensível e o afeto (Baptista, 2017). Entendemos que a produção de territorialidades relaciona-se, dentre outras coisas, à produção de lembranças, memórias e esquecimentos (Silva, 2018). Assim também compõem-se nossas práticas profissionais: mais do que com um arsenal teórico e técnico, operamos com memórias, lembranças e esquecimentos, com aquilo que pode ou não ser dito e com modos de dizer e escrever.

Nesse texto, como propõe Benjamin (2006), executamos um trabalho de catadoras, que buscam nos restos e escombros do progresso elementos para contar outras histórias, permitindo o aparecimento daquela(e)s que foram subjugada(o)s pelas narrativas históricas ou científicas oficiais. Na cidade, esses restos e escombros são as vidas e espaços que não cabem nos projetos idealizados de urbanidade. Trabalhadora(e)s informais, pessoas desempregadas, moradoras de periferias, favelas, áreas de risco…

Atentas a isso que a cidade produz como sobra, buscamos "inventar estratégias que nos permitam desenterrar essas vidas, sem cairmos na tentação da colonização, da recodificação ou ainda, da vitimização e romantização dos infames e dos vencidos" (Scisleski & Hüning, 2018, p. 63). Trazemos para o campo discursivo acadêmico aquilo que no cotidiano da cidade, da produção do conhecimento e como alvo da política de assistência social costuma apresentar-se como o desvio, o inadequado, o resto, a partir das afetações que provocam em nós – também sujeitos de uma experiência de encontro com vidas infames e territórios marginais2.

 

Marginalizando a Psicologia

Aprendemos a fomentar a formação acadêmica com modalidades de pesquisas que prezam, prioritariamente, por regras e linguagens próprias de uma concepção de ciência tributária da Modernidade. A despeito da importância desses trabalhos, nesse imperativo de ordenação dos saberes, desprezamos a vida em sua espontaneidade, a experiência, a diversidade das formas de conhecimentos e suas expressões. Grande parte do distanciamento entre os mundos da psicologia e da política de assistência social, e das dificuldades diante dos cenários que se apresentam, decorre da limitação de uma interlocução em termos da experiência que possa ser comunicada por outras linguagens.

Buscando contrapormo-nos a essa política epistemológica, e inspiradas por Walter Benjamin (1987a), apostamos aqui numa escrita que se sustenta no compartilhamento de fragmentos de situações vivenciadas ao se percorrer parte da cidade, especificamente um território pauperizado e localmente identificado pela criminalidade. Benjamin (1987a) fala da narrativa como uma prática de intercâmbio de experiências, de si e dos outros. Para o autor, narrativas não supõem explicações, mas permitem que quem lê acompanhe quem narra, produzindo afetos e pensamentos. O narrador retira da experiência o que é dito, deixando a(o) leitor(a) livre para interpretar a história. Assim, quem narra não está preocupada(o) em transmitir o fato em si, como informação ou relatório, mas mergulha em afetações para que desta forma seja impressa sua marca à narração.

Neste trabalho, registramos histórias, experiências e afetos para compor, junto aos discursos acadêmicos, a sinalização da "não unidade da vida, as infâmias, infelicidades e desgraças produzidas pelo conhecimento e pelo progresso" (Scisleski & Hüning, 2018, p. 73). Necessária, portanto, uma forma de escrita aberta e que não se imponha como verdade, mas como potência de transformação do nosso presente e de nossos saberes. A partir dos fragmentos que seguem, desenvolvemos reflexões sobre a interface das práticas, dos saberes e da formação em psicologia com a PNAS e territorialidades.

 

Fragmentos

 

A escola

As crianças e adolescentes das comunidades em torno da orla lagunar frequentemente têm problemas para se deslocar para a escola, por residirem em um lugar onde quem domina são diferentes facções criminosas. Quem mora no território ‘x’ e estuda no território ‘y’ não pode ir até lá. Quando vão, são hostilizados ou sofrem violências, seja no caminho ou no próprio ambiente escolar. Estudantes que moram à margem da lagoa não se misturam com os que moram na região mais ampla que compõe o bairro. O cuidado em deixar a bolsa na sala de aula e a precaução com o celular são constantes, mesmo por parte da própria equipe escolar.

Essas crianças e adolescentes relatam dor, vergonha e raiva por, em diversos ambientes da cidade, reduzirem-nas aos aspectos negativos dos territórios em que vivem. Em uma roda de conversa com algumas crianças e adolescentes pedi para encenarem uma situação de preconceito ou discriminação. Deixei ao seu critério que escolhessem e, para minha surpresa, escolheram a situação que viviam na escola. Foi uma encenação cheia de afetações. As expressões, os gestos, as palavras: "o neguinho da favela; eles acham que a gente é marginal só porque a gente mora aqui; a gente brigava, partia pra cima no começo, mas agora a gente tenta não ligar, né, porque aí pensam que a gente briga porque é da favela mesmo". É uma região que possui um índice de evasão escolar alarmante. A justificativa amplamente propagada diz que é porque são marginais e não querem estudar.

Fiquei feliz por se abrirem e compartilharem comigo esse momento. Ao mesmo tempo, fiquei desconcertada e não sabia como reagir ao que foi dito. Foi doloroso ouvir isso de crianças e adolescentes que já possuem discernimento para entender que esse preconceito é devido ao local onde residem. Busquei em tudo o que aprendi na universidade, mas nada me preparou para esse imediatismo, esse improviso e para essa dor.

 

O futuro e o trabalho

Em uma conversa com um adolescente que estava prestes a completar dezoito anos e havia se alistado no exército, ele diz: "vou fazer de tudo pra não ficar no exército, eu não posso ser chamado pra servir, porque os caras vão me matar eu morando aqui, eles vão achar que eu tô cabuetando, e qualquer coisa que acontecer aqui vai sobrar pra mim". Esse mesmo adolescente diz querer ser policial, mas sabe que, seja no exército ou na polícia, o território em que mora não permite que quem vive ali tenha essas ocupações.

Nas rodas de conversa, em diálogos com outros adolescentes com quem tive contato – concluintes do ensino médio –, perguntei-lhes sobre o que pensavam fazer após concluir essa fase escolar. Chamou-me a atenção quando disseram em uníssono: "trabalhar né?!". E me olharam como se eu tivesse perguntado a coisa mais óbvia. O trabalhar é a pesca e a mariscagem do sururu. Ainda assim, perguntei novamente o porquê e um deles disse: "a gente não pode se dar ao luxo de ficar só estudando, a gente já vai pra escola, isso não é coisa pra gente, a gente tem que trabalhar". Diante disso, eu trouxe exemplos dos modos de assistência estudantil na Universidade, como bolsas de auxílio e residência universitária, para que pudessem considerar também o estudo. Ainda assim, pareceu uma realidade impossível. Ao final acabei realmente me sentindo privilegiada por ter o luxo de ficar só estudando.

 

A morte

“Corpo de homem é encontrado com marcas de tiros na lagoa”; “Corpo é encontrado boiando na lagoa”; “Corpo é encontrado às margens da lagoa”. A região é local de constantes depósitos e ‘desovas’ de corpos cujos assassinatos não são solucionados ou são tratados como resposta ao tráfico e conflitos locais entre bandidos. Durante minha permanência de cinco meses nesse território, um homem de vinte anos foi assassinado e outro de dezoito anos fugiu para não ser morto. Esses episódios ocorreram logo na minha chegada e nunca mais tive notícias desse rapaz. Outro homem de vinte e dois anos sofreu uma tentativa de assassinato e acabou com o movimento de um dos braços limitado. Lidar com a morte nesse ambiente foi um dos acontecimentos mais difíceis por que passei.

Algumas ações policiais aconteciam com frequência. Em alguns momentos tínhamos que sair da região rapidamente devido à repressão policial. Em outros, escutamos tiros ao longe e precisávamos sair subitamente. Era um misto de revolta, raiva e tristeza. Esses episódios revelaram minha impotência. Aceitar que não podia fazer nada foi muito duro. Por um tempo, os mortos desse território me acompanharam aonde quer que fosse. Nunca sabia o que iria encontrar no dia seguinte. Ou se iríamos encontrar quem quer que fosse... Muitas vezes, sair dali não me separava mais daquela realidade e, mesmo saindo, ainda estava com ela no pensamento.

Tudo era muito novo e diferente. Sentir a cidade, a dor e enxergá-la de outras formas, ouvir o vazio das vozes que já foram e não mais habitam ali. Um turbilhão de afetos que passa a dar lugar ao incômodo. Tentar lidar com isso como profissional foi uma das experiências mais pesadas que tive. Definitivamente a Universidade não havia me preparado para as ruas e o inesperado de lidar com essas mortes, essas vidas e esses modos de habitar a cidade.

Naquele lugar sempre me senti aconchegada e bem-vinda. O cheiro da lagoa era muito acolhedor e, a todo momento, as pessoas foram muito receptivas.  Todos na região respeitavam a equipe do serviço do qual fiz parte. Mudavam quando conversávamos com eles: evitavam gírias, palavrões, e se estivessem fazendo uso de álcool ou outras drogas geralmente paravam e aguardavam sairmos das proximidades. Nos momentos de conversa, íamos aos poucos nos aproximando, ganhando sua confiança e criando um vínculo de modo recíproco. Por isso, quando algumas pessoas foram mortas, foi doloroso.

Um dia conversamos e planejamos com um jovem ações a longo prazo a serem realizadas no local. No dia seguinte soubemos que ele fora assassinado. Projetos ficaram no meio do caminho. Lamentos de doenças passaram a não ter relevância depois que a vida se foi, pois o corpo queixoso já não estava mais ali. Promessas ficaram para trás dando lugar ao silêncio. Ao final do dia eram sempre eles que ficavam ali.

 

Violências contra as mulheres

São muito comuns situações de violência contra as mulheres. A submissão à traição conjugal e espancamentos eram por elas justificadas pelo fato de o homem ser o provedor da família e por não terem para onde ir com as crianças. Em um atendimento a uma senhora hipertensa, junto com a técnica de enfermagem, ouvia o relato da senhora que era agredida há anos pelo companheiro, mas nunca o deixou porque não tinha para onde ir. Ela mostrou vários hematomas, inclusive do dia anterior em que ele havia chegado embriagado e lhe agredido, mas dizia: "é assim mesmo, a gente vai vivendo, já ‘tô’ acostumada, minha filha". Ela referia a isso como motivo para sua pressão ter subido e ainda se encontrar elevada. Parecia tão natural quanto dizer que o céu é azul. O caso dela não era o único.

Em uma das rodas de conversa, quando falava sobre relacionamentos, um menino de doze anos disse: "ah, mas se minha mulher me trair eu bato nela, a mulher tem que trabalhar em casa pra servir o marido e cuidar dos filhos". Quando questionado sobre a posição da mulher, ele falou: "mas minha mãe e irmã ‘vive’ assim, por que minha mulher não seria também?". E essa questão foi tão difícil de ouvir quanto de responder.

 

Encontros da Psicologia em territórios de vida e de morte

A despeito da idealização dos modos de vida, da organização do espaço e dos valores que possamos considerar melhores ou mais adequados, a vida se apresenta de modo particular nesses territórios, em toda a sua complexidade. Ao definir como público alvo de suas ações, famílias e grupos sociais considerados em situação de vulnerabilidade, a PNAS estabelece um vínculo indissociável com a noção de território, não apenas pelo local onde se estruturam os serviços, mas porque a própria vulnerabilidade só pode existir se contextualizada e localizada geograficamente. A vulnerabilidade é, portanto, territorializada (Hüning & Scisleski, 2018).

No contexto das cidades contemporâneas, a fragmentação dualista dos espaços desenha, por um lado, aquelas que são áreas consideradas desenvolvidas e de segurança e, por outro, áreas segregadas, de medo e perigo (Koonings & Kruijt, 2007). Compreendemos que esses territórios não se constituem ao mero acaso, mas decorrem de formas desiguais de investimento e governo das cidades. Os territórios vulneráveis tendem a ser empurrados para as margens e limites da cidade. Esses espaços periféricos – quando não geograficamente, pelo menos simbolicamente – tornam-se zonas de invisibilidade e pouca circulação por quem ali não reside. É prioritariamente nesses espaços que se desenvolve o trabalho da psicologia na PNAS.

Na experiência que aqui compartilhamos, encontramo-nos com um território sobre o qual incide, de forma violenta, um discurso totalizante de desqualificação e criminalização. Essa forma de objetivação do território e das pessoas induz a uma relação entre as políticas públicas e esses sujeitos que retira, ou no mínimo reduz, o direito à autonomia de escolhas que essas pessoas têm sobre suas próprias vidas. Muitas vezes, retira também o direito à própria existência. É como corpo, morte, carência, perigo que essas pessoas são produzidas e, comumente, acessadas pelo Estado.

A isso se relaciona nossa surpresa inicial de que nesses territórios possa haver felicidade. Tal surpresa anda muito próxima da ideia de que esses não são habitados por humanos. Ali se apresenta a condição do que Agamben (2002) chamou de vida nua: esses sujeitos-mortos-vivos têm suas vidas precarizadas não apenas pelas condições sócio-econômicas que os constituem, mas também pela perpetuação de uma lógica de desinvestimento nessas vidas e fabricação de morte, que pode acontecer de forma mais ou menos sutil inclusive pelas políticas ou pelos saberes que afirmam assisti-los. Racialização e preconceitos perpassam a construção do território, as formas de circulação das pessoas e as políticas públicas ali executadas. A polícia que deveria proteger pode matar, a escola que deveria educar pode segregar, a política pública que deve promover autonomia pode estigmatizar.

É nesse ponto que consideramos fundamental colocar em questão o encontro da psicologia com a vida e a morte, situações que podem ser inusitadas para nós, mas não para aqueles que vivem  nos territórios de intervenção da PNAS. Surpresas, desencantos, angústias, impotências produzem-se em meio à sensibilidade para com a condição humana nesses espaços, mas não estão imunes aos valores de uma psicologia salvacionista, herdeira de uma lógica colonialista que busca civilizar e educar. Nosso aparato psicológico para a intervenção psicossocial não é inocente na produção da vida ou da morte nesses territórios. Pelo afastamento total ou pela aproximação arbitrária e prescritiva, pelo desconhecimento de sua especificidade ou por nos permitirmos afetar por ela, participamos ativamente da construção ou do enfrentamento dos preconceitos, das vulnerabilidades ou potencialidades, da patologização ou da saúde...

Assim, voltamos à questão das distâncias e dos encontros. Se nos constituímos, como profissionais, tão distantes dessa realidade, como podemos trabalhar quando nos deparamos aí com a produção cotidiana e intensa da vida e da morte? Antes ainda, como nos preparamos para o encontro com essas pessoas e esses territórios?

Experiências e afetos como os compartilhados aqui acontecem cotidianamente quando profissionais formada(o)s mais ou menos às margens do ‘mundo real’ percorrem seus espaços. A beira da lagoa multiplica-se no país, às vezes como beira-mar, beira do rio, beira do asfalto, beira da cidade… Nas beiras, as vivências – de quem lá habita e também de quem por lá passa – constituem territorialidades que ultrapassam os espaços geográficos e os discursos dizíveis. Territorialidades que contemplam a vida e suas dinâmicas, os modos como os espaços subjetivam, impõem barreiras ou produzem potências.

O acompanhamento de experiências de inserção nesses territórios para realização de atividades acadêmicas (visitas técnicas, estágios, atividades de extensão, entre outras) tem nos sinalizado o quanto nossos currículos pouco dialogam com essas realidades. Conflitos de ordem moral, sentimentos de impotência profissional, medos e dilemas éticos permeiam esses encontros e precisam ser debatidos durante a formação e a inserção profissional. Precisamos produzir uma psicologia local que dialogue com as territorialidades que nos circundam e em que se vai atuar. Acreditamos que uma das formas de se efetivar essa proposta é atentarmos para as situações singulares dos encontros da psicologia, produzidos por pessoas que se afetam  – e não por saberes assépticos  – e que dialogam com esses espaços e pessoas marginalizadas.

 

É preciso não saber

Defendemos aqui que a potência do trabalho da psicologia na PNAS reside em permitir-se não saber e suportar conviver com a incerteza e a impredizibilidade. Tal postura contraria as perspectivas hegemônicas da ciência que sustentaram em sua expertise a autoridade para explicar e propor soluções aos problemas que toma como objetos. Ao passo que nosso saber tem focado na vulnerabilidade do outro, não saber e não ter o que dizer constitui-se como condição para a aprendizagem de algo novo, que pode emergir da potência e da inventividade que caracteriza a própria possibilidade da vida nesses territórios. Vulneráveis, então, tornam-se nossas certezas e saberes.

A incerteza da ação que buscamos desenvolver para promover mudanças em uma dada situação refuta os pressupostos cartesianos, nos quais a ação é tida como racional, planejada, consciente, sem levar em conta as condições de incerteza nas quais nossas ações se desenvolvem, nem a não clareza de seus desdobramentos. Essa concepção racionalizada da ação humana resulta da centralidade da consciência, da concepção representacionista do conhecimento e de um modelo de regras, enquanto a incerteza e indeterminação afetam nossos objetivos iniciais, os planos prévios que desenhamos, as características das situações e os efeitos de nossas ações (Ibañez, 2001).

A impredizibilidade está situada na impossibilidade de dizer algo sobre as situações inusitadas de um cotidiano em que não convivemos, como na falha dos planos que formulamos, ou pelos efeitos que não podem ser antecipados e que muitas vezes ocorrem tempos depois. Particularmente quando tratamos desses espaços, compartilhamos com a proposta de Ibañez (2001) a ideia de que precisamos evitar a rigidez de planejamentos meticulosos e que a flexibilidade e imprecisão dos planos de ação constituem a melhor forma para lidar com a irredutível incerteza.

A crítica a um fazer da psicologia aprisionado na racionalidade, impregnada de certezas, não é recente, como nos fala Shotter (2012), mencionando que Willam James em 18903, em Princípios de Psicologia, criticou a psicologia tradicional por tentar trabalhar apenas em termos de imagens definidas de coisas, sem levar em conta sentimentos muitas vezes tão vagos que somos incapazes de nomeá-los, mas que podem servir para nos guiar nos possíveis próximos passos que podemos dar em nossas ações práticas.

Outros autores são trazidos por Shotter (2012) para sustentar as argumentações sobre a necessidade de superar os princípios cartesianos para um prática implicada e localizada, nos nossos termos, situando a dificuldade para tal, com o que descreveu Richard Bernstein (1983)4 ao chamar de "ansiedade cartesiana" - o medo de que, se não tivermos certeza absoluta, não temos nenhum conhecimento (Shotter, 2012, p. 3).

O rompimento com essa racionalidade de controle e domínio absoluto do conhecimento sobre a realidade permite que no lugar das certezas possam emergir narrativas que constituam outras territorialidades e fazeres. Como afirma Silva (2018), podemos, assumindo outra postura ética, estética, política e metodológica, fazer dos chamados territórios vulneráveis "desarticuladores de verdades" (p. 29). Assim, podemos provocar a emergência do não saber e não dizer, quando fomentamos que a psicologia percorra margens não com o intuito de consertá-las, mas permitindo-se, efetivamente, conhecer e afetar-se pelo que e por quem aí encontra. Trata-se da produção de outra política de conhecimento que se desloca da certeza, das verdades, dos grandes acontecimentos para as narrativas periféricas e marginais. Essa aposta nos encoraja a uma escrita também contra-hegemônica, investida não de certezas, mas de um atrevimento de narrar na academia a vivência que escapa à teoria ou à teorização. Se o que perpassa o problema da vulnerabilização dos territórios urbanos é também um problema de memória (Silva, 2018), compartilhar essas narrativas é uma forma de intervenção ético-política que pode compor os fazeres da psicologia.

Neste sentido, insistimos em um fazer sensível às diferenças entre territorialidades e as experiências tantas vezes invisibilizadas. Ao admitir que não temos modelos para nossas práticas em territórios tão diversos, aprendemos que precisamos construir novos conhecimentos e formas de trabalho. Desse modo, deixar-se afetar é reconhecer o estatuto de sujeito de nós mesmos e das pessoas com quem trabalhamos, cujas trajetórias de vida podem ser marcadas de diferentes formas pelo encontro conosco e com o Estado. Essa relação permite a ressignificação desses espaços e dessas vidas, ressituando as ações das políticas públicas para que possam atuar de forma implicada com o saber local, para além da vulnerabilização, da estigmatização ou da criminalização de seus modos de vida.

Ao narrar experiências de encontro com pessoas habitantes das beiras das cidades, afirmamos o reconhecimento de sua e de nossa humanidade aí onde os saberes hegemônicos demarcaram, por um lado, o problema social e, por outro, o messiânico conhecimento técnico. Propomos, assim, um enfrentamento às psicologias que se constituem como um saber eminentemente aliado a uma proposta de governo neoliberal. Inscrever fragmentos de narrativas no cotidiano da formação e do trabalho da psicologia na interface com a PNAS é, a um só tempo, uma estratégia de recusa aos modelos e verdades universais e uma afirmação de outra política de produção de conhecimentos e intervenções que se vinculem, de modo não colonizador, a pessoas e territórios que nosso projeto de urbanização e progresso colocou às margens.

 

 

Referências

Agamben, G (2002). Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG. (Originalmente publicado em 1995).         [ Links ]

Baptista, L. A. D. S., & Silva, R. L. (2017). A cidade dos anjos do improrrogável. Revista Polis e Psique, 7(1), 49-73.         [ Links ]

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Data de submissão: 22/08/2018
Data de aceite: 06/09/2018

 

 

1 O texto transitará entre a primeira pessoa do singular e a primeira do plural, de modo a circunscrever registros da experiência singular da estagiária no território em questão e a produção derivada da interlocução dessa com as demais autoras que acompanharam o processo do estágio e de elaboração das reflexões aqui apresentadas. Os registros não são trazidos como diários de campo, pois, embora em primeira pessoa, a redação aqui apresentada resulta do trabalho conjunto das três autoras.

2 As imagens de infames e vencidos são retomadas respectivamente dos trabalhos de (Foucault, 2003) e (Benjamin, 1987b) e colocadas em discussão por Scisleski e Hüning (2018) para refletir sobre como o conhecimento acadêmico pode se aproximar dessas vidas desqualificadas pelo progresso e pelos saberes.

3 James, W. (1890). Principles of Psychology, vols. 1 & 2. London: Macmillan.

4 Bernstein, R. J. (1983). Beyond Objectivism and Relativism: Science, Hermeneutics, and Praxis. Philadelphia: University of Pennsylvania Press.

 

 

I Simone Maria Hüning é docente e pesquisadora dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Também é líder do Grupo de Pesquisa Processos Culturais, Políticas e Modos de Subjetivação e Bolsista Produtividade Nível 2 do CNPq. E-mail: simone.huning@ip.ufal.br

II Rosângela Jacinto Cabral é Graduada em Psicologia e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia, ambos na da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: rosycabrall@hotmail.com

III Maria Auxiliadora Teixeira Ribeiro é Docente e Pesquisadora dos Cursos de Graduação e Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL). E-mail: maria.ribeiro@ip.ufal.br

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