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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.3 Porto Alegre Sept./Dec. 2018

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.86213 

ARTIGOS

 

Políticas de assistência social: entre a produção/governo da vida

 

Social assistance policies: between the production/government of life

 

Políticas de asistencia social: entre a producción/gobierno de la vida

 

 

Letícia Lorenzoni LastaI, Neuza Maria de Fátima GuareschiII

I Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC), Santa Cruz do Sul, RS, Brasil.

II Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil.

 

 


RESUMO

O artigo tem por objetivo mostrar como a vida humana, em tempos de neoliberalismo, se tornou recurso importante que afeta os interesses e interfere na eficiência das instituições sociais. Para isso, realiza-se uma análise das classificações em diferentes níveis de complexidade do Sistema Único de Assistência Social (proteção social básica, proteção social média e alta complexidade) descritas na Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (2014). Tendo isto em vista, fundamentamo-nos no conceito de classes interativas de Ian Hacking e na noção de governamento dos estudos foucaultianos para apontarmos como o processo de produção de sujeitos e o governo da vida humana têm sido atravessados pelas políticas socioassistenciais do presente. Para tal, organizamos esta discussão em três pontos: introduzindo a discussão; políticas de assistência social e a produção das classes interativas; e o governo da vida.

Palavras-chave: vida humana; assistência social; produção de sujeitos; classes interativas.


ABSTRACT

This paper aims to show how human life, in neoliberal times, has become an important resource that both affects the interests of and interferes with the effectiveness of social institutions. In order to do that, we have performed an analysis of the classifications of different levels of complexity of the Unified Social Assistance System (basic social protection, medium social protection, and high complexity) as described in the National Categorization of Social Assistance Services (2014). The analysis has been supported by the concept of interactive kinds by Ian Hacking, and the notion of government from the Foucauldian studies to point out how the process of production of subjects and the government of human life have been crossed by the present social assistance policies. With this purpose, we have structured this discussion on three points: introduction of the discussion; social assistance policies and the production of the interactive kinds; and the government of life.

Keywords: human life; social assistance; production of subjects; interactive classes.


RESUMEN

El artículo tiene por objetivo mostrar como la vida humana, en tiempos de neoliberalismo, se ha tornado recurso importante que afecta los intereses e interfiere en la eficiencia de las instituciones sociales. Para eso, se realiza un análisis de las clasificaciones en diferentes niveles de complejidad del Sistema Único de Asistencia Social (protección social básica, protección social media y alta complejidad) descritas en la  Tipificación Nacional de Servicios Socio-asistenciales (2014). Teniendo eso en vista, nos hemos fundamentado en el concepto de clases interactivas de Ian Hacking y en la noción de gubernamentalidad de los estudios foucaultianos  para poder apuntar como el proceso de producción de sujetos y el gobierno de la vida humana han sido atravesados por las políticas socio-asistenciales del presente. Así, organizamos esta discusión en tres puntos: introducción a la discusión; políticas de asistencia social y la producción de las clases interactivas; y el gobierno de la vida.

Palabras-clave: vida humana; asistencia social; producción de sujetos; clases interactivas.


 

 

Introduzindo a Discussão1

A Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais (Brasil, 2014), traz duas resoluções importantes para a gestão do Sistema Único de Assistência Social no país (resolução nº109, de 11 de novembro de 2009, que aprova a tipificação nacional de serviços socioassistenciais, organizados por níveis de complexidade; resolução nº 13, de 13 de maio de 2014, que inclui assistência à faixa etária de 18 a 59 anos no serviço de convivência e fortalecimento de vínculos). Trata da organização e padronização dos serviços de assistência social em todo o território nacional.

O documento descreve como devem ser e o que devem conter de informações as fichas de serviços socioassistenciais (nome do serviço, descrição, usuários, objetivos, provisões, aquisições dos usuários, condições e formas de acesso, unidade, período de funcionamento, abrangência, articulação em rede, impacto social esperado, regulamentações) e ainda explica o que são, para que servem e como se organizam os serviços oferecidos na proteção social básica e na proteção social especial (média e alta complexidade). Dentro disso, refere que os serviços da rede de proteção estão organizados da seguinte forma:

I) Serviço de proteção social básica – a) Serviço de proteção e atendimento integral à família (PAIF), b) serviço de convivência e fortalecimento de vínculos, c) serviço de proteção social básica no domicílio para pessoas com deficiência e idosos; II) Serviços de proteção social especial de média complexidade – a) Serviço de proteção e atendimento especializado a famílias e indivíduos (PAEFI), b) serviço especializado em abordagem social; c) serviço de proteção social a adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de liberdade assistida (LA) e de prestação de serviços à comunidade (PSC); d) serviços de proteção social especial para pessoas com deficiência, idosas e suas famílias; e) serviço especializado para pessoas em situação de rua; III) Serviços de proteção social especial alta complexidade – a) serviço de acolhimento institucional nas seguintes modalidades: abrigo institucional, casa-lar, casa de passagem, residência inclusiva; b) serviço de acolhimento em república; c) serviço de acolhimento em família acolhedora; d) serviço de proteção em situações de calamidades públicas e de emergências (Brasil, 2014, p. 5 - 6).

Ao falar-se em Assistência Social, pode-se gerar uma série de discussões que militam em sua defesa e/ou repúdio, pois se trata de um campo de tensão. A tensão se estabelece a partir do momento em que a sociedade resolve investir em uma dada/datada população, ou seja, investir em um “outro” que é produzido pelos discursos da inclusão social e da proteção social. Esses discursos repousam na questão dos direitos humanos e sociais, na superação das desigualdades sociais, na democratização e igualdade de acesso e oportunidades e no reconhecimento da “dimensão ética de incluir ‘os invisíveis’, os transformados em casos individuais, enquanto de fato são parte de uma situação social coletiva; as diferenças e os diferentes, as disparidades e as desigualdades” (Brasil, 2004, p. 10, [grifo nosso]), buscando “tornar todos iguais perante a lei sem distinção” (Brasil, 2001, p. 5, [grifo nosso]).

A assistência social é política pública e dever do Estado a quem dela necessitar. Tal configuração torna-se um desafio em termos de estratégias de governo. Essas estratégias conformam um campo de ações que articula o jurídico/social, tendo como foco a população, o território, a segurança. Tal população, ao ser foco de investimento de um poder sobre a vida – biopoder – quanto campo de produção de conhecimento acerca de um modo de vida e suas particularidades, acaba por viabilizar que vidas infames, ou seja, existências infames sem notoriedade aparente ou algumas vidas em meio a multidão de outras (Lobo, 2008), sejam vistas, faladas, conhecidas e administradas.

Desse modo, a pobreza é tornada pública. Vidas infames passam a ser vitalizadas em sua potência política, econômica e social. Produz-se uma população de assistidos sociais e tutelados pelo social-assistencial e suas metamorfoses – o sujeito de direitos. Um campo de necessidades é produzido, a Assistência ao social.

Para Donzelot (1994), a entrada em cena do social como um problema específico liga-se ao fato político da democracia e, assim, à sobrevivência do projeto republicano. Podemos dizer que o social, como espaço problemático, implica determinados modos de intervenção. Isso nos permite compreender o social como o pano de fundo na criação de diferentes equipamentos institucionais que se prestam a assistir à população pobre no Brasil e a responder a uma dada configuração do social.

Desse modo, “o social nasce com um regime de flutuações (...)” (Deleuze, 1986, p. 8), que “se apresenta como um híbrido forjado na intersecção do político e econômico (...)”. Por essa razão, o social aparece como um sistema de regulações compatíveis com os princípios de liberdade e igualdade” (Silva, 2005, p. 24).

 

Políticas de assistência social e a produção das classes interativas

O biopoder tende a expandir a lógica biopolítica a todas as esferas sociais. (...). Na sociedade do conhecimento e na dinâmica do mercado neoliberal, a vida humana se tornou o recurso mais importante, e sua potência constitui o diferencial de uma instituição (Ruiz, 2007, p. 272, [grifo nosso]). 

A epígrafe acima traz algo fundamental para a racionalidade neoliberal, a vida humana. Esta se tornou, na contemporaneidade, o recurso mais importante, e sua potencialização tem sido o diferencial das instituições, sejam estas estatais ou não. Como já sinalizado, as políticas de assistência social, direcionam suas ações, em nome de uma dada/datada proteção e inclusão social, pois percebem a potência existente na vida humana, infame ou não. Elas passam a ser utilizadas por diferentes equipamentos para maior eficiência e eficácia no controle das condutas de todos e de cada um.

Castor Ruiz (2007), no texto Paradoxos do biopoder: a redução da vida humana a mera vida natural, traz uma discussão pertinente sobre a relação entre a vida humana e os dispositivos de poder. A partir do que o autor trata sobre os dispositivos de poder e como estes passam a perceber potência na vida humana para qualificar sua eficiência, passamos a compreender que, no contexto das Políticas de Assistência Social no Brasil, a vida humana passa a ser tomada enquanto objeto que afeta os interesses e interfere na eficiência das instituições sociais público/privadas e, portanto, no mercado econômico.

Proliferam em nosso país os discursos acerca do bem comum, da erradicação da pobreza, da diminuição das desigualdades sociais, da participação social, da proteção e inclusão social, e, em prol da vida humana, esse discurso é legitimado. Todavia, sabe-se que, na lógica neoliberal, esses discursos não proliferam pelo bem de todos, tampouco pela emancipação de todos, mas sim pela preservação do mercado e pela eficiência e eficácia das instituições frente a esse empreendimento. “O discurso, por mais que na aparência seja pouca coisa, as proibições que recaem sobre ele revelam logo, muito rapidamente, sua vinculação com o desejo e com o poder” (Eizirik, 2002, p. 31).

Portanto, trata-se da “temível materialidade do discurso” (Eizirik, 2002, p. 36), ou seja, o discurso que forma sujeitos e objetos sob a insígnia do bem de todos, no contexto deste texto, não diz de uma vida humana melhor com a participação de todos, mas da eficiência aos fins da Assistência Social na atualidade. Tal finalidade trata de manter o Estado e o mercado se preservando e crescendo em potência. Daí a vida humana ser tomada como instrumento útil que se ajusta a táticas e estratégias de governo eficientes. Ela integra, de modo potente, o governo pelo mercado, no qual riscos e vulnerabilidades são gerenciados, vidas são controladas e conduzidas em nome do bem comum e de todos.

Ruiz (2007) diz que a relação entre direito e vida se torna contraditória. O direito protege a vida, prescrevendo o que não pode ser feito contra ela. Todavia, afora as limitações impostas pelo direito, a vida encontra-se exposta a qualquer instrumentalização legal. A lei, se atentarmos ao contexto da Assistência Social, torna-se uma cobertura legitimadora de muitas formas, táticas e estratégias utilitaristas da vida.

Desse modo, fora dos limites definidos pela legalidade, todas as formas de instrumentalização são permitidas. A lei compreende a vida humana sob a forma da proteção, do cuidado e da inclusão, mas concomitantemente estabelece um espaço externo à lei, em que a vida pode ser reduzida à lógica instrumental do biopoder (Ruiz, 2007). Com isso, compreendemos que há um limite na vida a ser protegida, incluída e assegurada pela Assistência Social no Brasil, ao tempo em que essa mesma vida passa a ser instrumentalizada por vias legais e de acesso a direitos sociais. Portanto, “o direito, na lógica instrumental do biopoder, é o limite convencional em que se regula a exploração utilitarista da vida” (Ruiz, 2007, p. 274).

A partir disso, a vida humana, o sujeito de direitos das Políticas de Assistência Social, é um recurso tensionado “pelo biopoder [que] tende a expandir a lógica biopolítica a todas as esferas sociais” (Ruiz, 2007, p. 272) para maximizar o aproveitamento institucional das potencialidades individuais e/ou coletivas ao máximo, e tudo isso é empreendido com o consentimento da lei brasileira. Aqui parece residir uma grande contradição, pois as Políticas de Assistência Social reconhecem e defendem formalmente a dignidade humana, o protagonismo social, a igualdade de acesso... “Ainda que a lógica de suas estruturas reduza [a vida humana] constantemente à mera zoe [vida natural/essencializada]” (Ruiz, 2007, p. 275).

Assistir o social, na lógica das Políticas de Assistência no Brasil, é difundir um determinado discurso no tecido social, produzindo realidades por meio de determinados saberes e práticas. Essas produções fazem proliferar maneiras de os indivíduos e suas famílias experimentarem a realidade e os conduzem a determinadas formas de viver, pensar, comportar-se. Com isso, os discursos tensionados pela Assistência Social em nosso país produzem realidades e subjetividades. Trata-se “da produção de modos de existência, ou seja, práticas que permitem ver, falar e viver de determinadas formas” (Hillesheim, 2008, p. 37).

Entendemos o processo de produção de sujeitos da Assistência Social como datado e atravessado pelas condições históricas e políticas do nosso tempo. Isso pressupõe pensar tanto “todos os que dela necessitam” quanto as instituições vinculadas à assistência social como construções sociais, o que significa que são frutos de ações humanas e, por isso, contingentes e passíveis de transformação (Hacking, 2001). Daí ser fundamental pensar sobre a produção de sujeitos no contexto de práticas tangenciadas pelas Políticas de Assistência Social.

Para tal empreendimento, buscamos inspiração no conceito de classes interativas de Ian Hacking (2001). Ele define como classes interativas os objetos que, ao serem classificados, sofrem modificações resultantes da própria ação de estarem classificados sob determinado traço. Fazemos isso para pensar esses modos de existência que se produzem a partir das Políticas de Assistência como efeito operativo de classificações e categorias sociais interativas.

Cabe dizer que a discussão proposta por Ian Hacking não se faz contrária à perspectiva foucaultiana, pois Michel Foucault, ao longo de seus trabalhos, revela não uma linearidade dos discursos, mas descontinuidades que conformam e legitimam formas de existência, que passam a ser classificadas como adequadas ou não em relação a um determinado regime de verdade. Portanto, atentamos para:

A relevância de Foucault e de Hacking para uma reflexão sobre as práticas contemporâneas, posto que ambos, em suas discussões, afrouxam as amarras de um pensamento calcado em pressupostos positivistas que reivindicam o estatuto de uma cientificidade absoluta. A atualidade crítica desses autores explicita os efeitos que se dão, simultaneamente, nas subjetividades individuais e no corpo social, por meio dos processos de classificação e de categorização de pessoas, enfatizando a artificialização presente nesses procedimentos cotidianos, tomados freqüentemente como naturais (Maraschin & Scisleski, 2008, p. 46).

Ian Hacking (2001), em seu livro La construccion social de qué? refere que o conceito de classes interativas se articula com a noção de matriz, pois esta possibilita entender a construção de classificações e categorias sociais como efeitos da operatividade de redes sociotécnicas. Segundo esse autor, o que tomamos como algo naturalizado poderia ter acontecido de outro modo, caso as configurações constitutivas fossem outras. Para pensar as vias pelas quais os objetos e os sentidos se constituem, deve-se considerar que matriz significa que “as idéias não existem no vazio. Habitam um marco social. Vamos chamá-lo a matriz no interior da qual se forma uma idéia, um conceito, uma classe” (Hacking, 2001, p. 33).

Ao atentarmos para as classificações da Assistência Social – proteção social básica, proteção social média e alta complexidade –, percebemos que a necessidade desses serviços se dá em níveis classificatórios, portanto, as necessidades e seus níveis e intensidades de pobreza, vulnerabilidade, risco são marcados de modo diferenciado. Anoção de que a lei garante Assistência Social a quem dela necessitar pressupõe que existem condicionalidades para que esta ocorra. Tendo isso em vista, a Assistência Social em nosso país não é para todos, e sim para todos que necessitarem dela.

Portanto, está implícito no contexto das Políticas de Assistência, digamos, uma matriz da necessidade e da condicionalidade (pobreza, miséria, risco social, vulnerabilidade social) que, enquanto uma ideia, classe ou conceito, estabelece categorias, classificações – dentre elas, a da proteção social como básica, média e alta complexidade. A assistência social como categoria inventada nem sempre existiu da forma como existe hoje. Assim, a produção de sujeitos da Assistência Social não é a mesma – vamos da pobreza enquanto dom, graça divina ou castigo, para assistidos sociais de direito prescrito em lei. Vê-se que a matriz e as classificações referentes à Assistência Social passaram por modificações ao longo do tempo.

Maraschin e Scisleski (2008) sugerem que as classificações, em sua matriz, adquirem importância no social. A aquisição de determinadas categorizações possibilita acesso aos distintos elementos sociotécnicos que compõem a matriz. Em outras palavras, as categorias “o pobre”, “o necessitado”, “o excluído”, “o desprotegido”, “o sujeito de direitos”, “o cidadão”, “o beneficiário”, “o usuário”, “o assistido social”, “o protegido social”, “o incluído social”, dentre tantas outras que proliferam no contexto das Políticas de Assistência Social, não se referem apenas a um título, mas ao acesso a uma rede sociotécnica correspondente. Essa rede sociotécnica, nas palavras de Foucault (1993), seria uma economia política da verdade, ou seja, “a verdade” centrada na forma do discurso científico e nas instituições que o produzem, bem como sua submissão a uma constante incitação econômica e política. Dito de outra forma, “existem regimes de verdade que regulamentam a produção e disseminação dos discursos” (Eizirik, 2002, p. 38).

Para Maraschin e Scisleski (2008), quando as possibilidades de classificação em diferentes matrizes são muito restritas, existe um efeito que pode parecer paradoxal, ou seja, “a categoria” – o pobre, por exemplo – acaba se transformando em uma chave para acessar programas governamentais; em casos específicos, ainda temos, por exemplo, “o beneficiário do BPC”, “o beneficiário do Bolsa Família” ou, ainda, as medidas judiciais que outorgam o acesso a medicação, hospitalização, etc., caso estas sejam uma necessidade da população. Para as autoras, as classificações não se referem a um sujeito individual, mas a uma categoria de pessoas – ao mecanismo dessa classificação e à matriz dentro da qual funciona esse mecanismo. Assim, por exemplo, “o pobre”, “o beneficiário”, não é somente uma classe de pessoas, é uma classificação social, legal e política utilizada e potencializada por instituições e serviços.

“Certamente as categorias ou classes produzem efeitos subjetivos” (Maraschin & Scisleski, 2008, p. 42), pois, como argumenta Hacking (2001), as pessoas aprendem as características que necessitam desenvolver para adaptar-se e adequar-se a determinadas classes que lhes são favoráveis, evitando e/ou resistindo às desfavoráveis. Para Hacking (2001, p. 33), “pode ter sentido dizer que os próprios indivíduos e suas experiências são construídos dentro de matrizes” (Hacking, 2001, p. 33). Com isso, pode-se cogitar que “existem categorias que não são indiferentes às matrizes classificatórias, categorias essas que agem diante das classificações, denominando-as de classes interativas” (Maraschin & Scisleski, 2008, p. 42).

Assim, “o pobre”, “o beneficiário” e sua experiência de si são transformados quando classificados, categorizados, por exemplo, nas políticas de assistência social, em necessidade básica, necessidade média complexidade, necessidade alta complexidade. Para Maraschin e Scisleski (2008, p.42), “o que está aqui em jogo não é apenas o processo de classificação, mas a aparente inevitabilidade desse processo”. Nesse procedimento, “as próprias pessoas ficam afetadas pela classificação e o mesmo indivíduo é socialmente construído como certa classe de pessoa” (Hacking, 2001, p. 34), podendo ou não reagir a ela.

Cabe salientar que, para Hacking (2001), seu conceito de interatividadenão qualifica as pessoas classificadas em determinada categoria (uma vez que qualquer ser vivo é interativo), mas qualifica classes, ou seja, as classes é que podem influenciar aquilo que classificam. Essa constatação possibilita compreender que existem categorias que não são indiferentes às matrizes classificatórias, categorias essas que agem diante das classificações, denominando-as de classes interativas (Hacking, 2001). Assim, as classes – “o pobre”, “o necessitado”, “o excluído”, “o desprotegido”, “o sujeito de direitos”, “o cidadão”, “o beneficiário”, “o usuário”, “o assistido social”, “o protegido social”, “o incluído social” – e suas classificações – necessidade básica, necessidade média complexidade, necessidade alta complexidade – podem ser tomadas enquanto classes interativas.

Nessa argumentação de Hacking (2001), podem-se levantar alguns pontos interessantes, tais como: “o pobre”, “o beneficiário”, como indivíduo, pode desconhecer como é classificado e nem mesmo reagir a tal classificação, pois as classificações não são necessariamente pessoais, mas coletivas. A interatividade, portanto, as classes interativas, “ocorre[m] na matriz mais ampla de instituições e práticas que rodeiam essas classificações” (Hacking, 2001, p. 173).

A partir disso, podemos pensar que as classificações, portanto, as classes interativas, repercutem não somente nas pessoas, mas também nas instituições e práticas. A matriz no interior da qual se dá essa ideia classificatória “o pobre”, a necessidade básica, a necessidade média complexidade, a necessidade alta complexidade, por exemplo, trata dos indivíduos que “cabem” nessa ideia da interação, ou seja, entre a ideia e a pessoa, das múltiplas práticas sociais e institucionais que essas interações implicam.

Desse modo, a matriz no interior da qual se gesta a ideia do “pobre”, do “assistido social” e suas necessidades, trata dos indivíduos que “cabem” nessa ideia, e só “cabem” nessa ideia porque estão sob vigilância socioassistencial e, portanto, não são potencialmente perigosos, pois pertencem a uma rede sociotécnica que busca conhecê-los, esquadrinhá-los, normatizá-los. Do surgimento da ideia de pobreza enquanto dom, graça e castigo para a ideia da assistência a quem dela necessitar, houve transformações nos elementos e na operatividade da matriz geradora. Ao tempo que reúne certas características para produzir um objeto específico, a rede sociotécnica constrói sua própria legitimidade por meio de instituições e de práticas de transformação de si. Uma vez que se criam categorias, tais como “os assistidos sociais”, a lógica posta nessa classe concerne a práticas e a formas de produzir Assistência Social e de governar a alma e a conduta das pessoas.

Assim, “no âmbito (...) do cotidiano, deparamo-nos com a operatividade de matrizes que agregam saberes, práticas e instituições que produzem, legitimam ou interditam formas de existência e subjetividades” (Maraschin & Scisleski, 2008, p. 44). No contexto das Políticas de Assistência Social, recorremos a Maraschin e Scisleski (2008, p. 44) para dizer que:

A equivalência entre probabilidade-determinismo e sujeito espaço-vital são operações que acarretam normatização e individualismo. Além disso, devemos acrescentar o caráter autoprodutivo da criação de classes. O sujeito que classifica se torna também refém de suas categorizações e, para permanecer em alguma delas (as mais convenientes), necessita inventar diferentes mecanismos de restrições, regulando passagens e impedimentos, isto é, toda uma legalidade regulatória de fronteiras e de passagens que garanta a conservação da distinção entre as classes.

Compreendemos que tanto a “história das descontinuidades” proposta por Michel Foucault, a qual descortina certa produção discursiva que se constitui, sobretudo, em práticas, quanto a noção de classes interativas proposta por Ian Hacking nos permitem perceber como tais sujeitos proliferam nas teias discursivas ou matrizes da Assistência Social. Queremos marcar que tal produção não se dá inocentemente, mas nas tramas de uma dada intencionalidade, ou seja, nas tramas de dadas condições de possibilidade, ou ainda, nas tramas de um marco social, matrizes. Isso trata das Políticas de Assistência e da produção de sujeitos, portanto, trata da produção de classes interativas que funcionam tanto como experiência de si quanto para o governo de todos e de cada um.

No contexto neoliberal, o governo opera pela proteção e inclusão social. Sendo assim, não só a vida humana passa a ser regulada de modo utilitário, como o governo utilitário da vida passa a se dar a partir de inúmeras normatizações, matrizes. Estas, enquanto tecnologias voltadas para o autogoverno, produzem a própria experiência de si que localiza, a partir do delineamento de verdades com relação à subjetividade, práticas reguladoras da conduta de todos e cada um.

Sendo assim, “a própria experiência de si não é senão o resultado de um complexo processo histórico de fabricação no qual se entrecruzam os discursos que definem a verdade do sujeito, as práticas que regulam seu comportamento e as formas de subjetividade nas quais se constitui sua própria interioridade” (Larrosa, 1994, p. 43). Por isso que, a nosso ver, a produção de sujeitos nessa seara de efetivação de direitos sociais se faz em terreno móvel e híbrido, pois se, “sob a lógica liberal cada um é [era], ao mesmo tempo, réu e juiz, ovelha e pastor, sob a lógica neoliberal há um deslocamento: cada um é, simultaneamente, alvo (das múltiplas interpelações) e “experto” (supostamente sabedor do que lhe convém) ” (Veiga-Neto, 2000, p. 202). Assim, as práticas de governo da vida humana, nesse cenário, tendem a potencializar suas ações.

 

O governo da vida

As discussões desenvolvidas neste capítulo buscaram apontar como a vida humana se tornou recurso importante na atualidade. Desse modo, mostramos que as políticas de assistência social como uma política de proteção e inclusão social, combinada ao pensamento político contemporâneo de garantir a “todos” acesso a bens e serviços e, a partir dessa proteção/inclusão, afiançar mais autonomia, mais liberdade, acabam por governar e conduzir as camadas mais “pobres/miseráveis/vulneráveis” da população brasileira.

Uma das principais regras do jogo neoliberal é a participação de todos, a inclusão de todos, a proteção de todos. Não se permite que ninguém fique fora ou deixe de integrar esse jogo, e todos devem ser e estar incluídos e amparados pelas redes de proteção social. Lopes (2009, p. 110, [grifo nosso]) aponta que as três condições para a participação de todos são: “(...) primeiro, ser educado em direção a entrar no jogo; segundo, permanecer no jogo (permanecer incluído); terceiro, desejar permanecer no jogo”.

A referida autora mostra que o provimento, por parte do Estado, de condições mínimas de vida se associa a condições de consumo, ou seja, o provimento das condições de consumo não está na contramão das políticas de mercado. Portanto, a participação de todos, a inclusão de todos, a proteção social de todos passou a ser uma das estratégias do Estado para manter o controle e é o que coloca o Estado como parceiro do mercado e “mantém a inclusão [e a proteção] como um imperativo do próprio neoliberalismo” (Lopes, 2009, p. 129).

Apesar da condição de ser educado em direção a entrar no jogo, a permanecer no jogo (permanecer incluído) e a desejar permanecer no jogo, deparamo-nos com a noção de insegurança – o risco de não participar minimamente do jogo. Assim, articulada à inclusão de todos, à proteção social, à governamentalidade, está a seguridade. Estas parecem tratar das formas contemporâneas de economia subjetiva.

A produção da insegurança nas subjetividades contemporâneas é tão eficaz quanto a inclusão e a proteção frente aos que serão alvo de governo, do controle do risco e da vigilância social. Castel (2005) já dizia que o sentimento de insegurança é produzido segundo uma expectativa socialmente construída de proteções e das capacidades efetivas desta sociedade em praticá-las; no contexto das políticas de assistência, a produção da insegurança nas subjetividades contemporâneas acaba por ser eficaz.

Estas (inclusão e proteção social), por vezes, operam uma inclusão excludente2 e, ousamos dizer, fazem funcionar uma proteção/tutelada3, que gera efeitos semelhantes a campos de concentração4. Endurecemos os mecanismos de controle e segurança para evitar os riscos e os perigos da exclusão e da desproteção e desembocamos em intervenções fatalistas e totalitárias de certo higienismo e estigmatização de grupos, além daqueles que, via políticas públicas de assistência social, encaminhamos para os chamados serviços de proteção social especial – alta complexidade, ou seja,serviço de acolhimento institucional, serviço de acolhimento em repúblicas, serviço de acolhimento em família acolhedora, serviço de proteção em situações de calamidades públicas e de emergências (Brasil, 2014, grifo nosso), o que sinaliza a marca da disciplina e o bloqueio dos corpos no tempo presente.

A Assistência Social enquanto proteção social não se constitui em prol da autonomia e desenvolvimento humano e social, nem pela erradicação da pobreza e diminuição das desigualdades sociais. Percebeu-se, na administração da miséria e do infortúnio, uma atividade potencialmente lucrativa, vantajosa, agora não mais para os “benfeitores” e os “corações piedosos”, mas para o mercado neoliberal.

Em outras palavras, “(...) [as Políticas de Assistência Social] agora articula[m] sua exigência sobre o Estado em nome do social: a nação governada nos interesses da proteção social, da justiça social, dos direitos sociais e da solidariedade social” (Miller & Rose, 2012, p. 107-108); com isso, a “segurança contra o risco [é] socializada” (Miller & Rose, 2012, p. 123), assim como a proteção social é institucionalizada, pois as instituições passam a comprometer-se também com o governo e o controle da conduta pelo mercado. A partir disso,

[A] compreensão que temos de nós mesmos como pessoas capazes de efetuar escolhas livres e autônomas é, ela própria, uma construção que nos permite ser governados, tanto individual quanto coletivamente. De acordo com Foucault, a arte do governo, a governamentalidade nos atinge a todos, de forma que não somos os formuladores e realizadores autônomos de projetos individuais (...). (Marshall, 1994, p. 22, [grifos nossos]).

Assim, temos em operação o controle do risco e a vigilância social, que são acionados permanentemente, a fim de acompanhar os comportamentos das famílias e indivíduos assistidos, e com isso, táticas e estratégias utilitaristas da vida humana produzem seus efeitos de governo da vida social. Desse modo, as noções de proteção e inclusão social cunhadas por tais políticas acabam por serem capilarizadas pelo mercado.

 

 

Referências

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Data de submissão: 27/08/2018
Data de aceite: 06/09/2018

 

 

1 A discussão realizada neste artigo articula-se a tese de doutorado intitulada Políticas de Assistência Social no Brasil: o governo da vida pela proteção e inclusão social apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS no ano de 2015. Recuperado de https://www.lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/141505/000993098.pdf?sequence=1&isAllowed=y

2 Tomamos esse termo emprestado de Veiga-Neto (2001) para sinalizar que todos na contemporaneidade são chamados a ocupar seu lugar no social, todavia, isso por si só não garante a inclusão.

3 Tomamos emprestado o sentido atribuído por Veiga-Neto e Lopes (2012, p. 62 grifo nosso): tutela enquanto “uma racionalidade determinada por aqueles que a colocam em movimento. Mas os tutelados não precisam participar ativamente de tal racionalidade; no fundo, nem mesmo se espera que eles conheçam as razões que movem seus tuteladores e os saberes sobre os quais se apoiam”.

4 Acompanhamos Passetti (2011, p. 46) quando diz que os campos de concentração “funcionavam para governar vidas provisórias, extraindo delas produtividades, conivências, traições e obediências alheias a uma ética de condutas”.

 

 

I Letícia Lorenzoni Lasta é psicóloga, mestre em Educação pela Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). Doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é professora do Departamento de Psicologia da Universidade de Santa Cruz do Sul (UNISC). E-mail: lelilasta@gmail.com

II Neuza Maria de Fátima Guareschi é docente e pesquisadora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Coordena o Grupo de Pesquisa Estudos Culturais e Modos de Subjetivação e do Núcleo E-politcs - Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação. E-mail: nmguares@gmail.com

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