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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.8 no.3 Porto Alegre set./dez. 2018

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.86304 

ARTIGOS

 

Vinculação e Trabalho na Assistência Social: Vivenciando um CRAS

 

Bond and Work in Social Assistance: Experiencing the Social Assistance Reference Center (CRAS)

 

Vinculación y Trabajo em la Assistencia Social: Probando un CRAS

 

 

Abigail Marinho da SilvaI, Júlia Gomes PereiraII, Gilead Marchezi TavaresIII

I Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.

II Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.

III Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil.

 

 


RESUMO

Entendemos que o trabalho do psicólogo no campo da assistência social pode ser concebido como processo político inventivo e dinâmico que não se cristaliza em uma posição cientificista – a fim de meramente classificar e diagnosticar disfuncionalidades. A partir disso, este artigo propõe discutir a atuação profissional do psicólogo no SUAS. Através da extensão universitária em um CRAS do Município de Cariacica/ES – tendo os registros de diário de campo como material de análise –, percebeu-se a potência do trabalho na formação de rede, na formação continuada, que comparecem como modos de resistência capazes de fomentar espaços públicos de luta por direitos. A ideia de vínculo presente na política de assistência social, também foi alvo das análises: diante de um trabalho no qual o objetivo é fortalecer vínculos, vincular-se é algo indispensável. Mesmo diante de um cenário de sucateamento dos serviços socioassistenciais, o maior recurso ainda são os afetos.

Palavras-chave: vínculo; trabalho; assistência social; CRAS.


ABSTRACT

Acknowledging the psychologist work in social assistance context might formulated as a political, inventive and dynamic process that does not set in a scientific position- in order to only classify and diagnose dysfunctionalities. From that, this article proposes to discuss the professional performance of the psychologist in SUAS. Through the university extension program in the CRAS of Cariacica/ES – using the field journal records as analysis material – it was noticed the power of the network activity and the continued academic education potentials, which appear as resistance capable of fomenting public spaces for the struggle for rights. The bond conception that lies in the social assistance policy was also an analysis target: considering a work in which the aim is to strengthen ties bind up becomes indispensable. Faced in a scenario of social assistance services impoverishment the greatest resource is still the affections.

Keywords: bond; work; social assistance; CRAS.


RESUMEN

Entendimos que el trabajo del psicólogo en el campo de la asistencia social puede seer diseñado como um processo politico ocurrente y dinámico que no cristaliza en una posición científica, a fin de hacer clasificación y diagnóstico de la disfuncionalidad. De ahí, este artículo propone discutir la atuación del profesional psicólogo no SUAS. Desde la extensión universitaria en una unidad del CRAS del Municipio de Cariacia/ES – teniendo todos los registros del diario de campo como material de análisis , percibimos la potencia del trabajo en la formación de la red, en la formación de continuidad, que exhiben como modo de resistencia capaz de fomentar espacios públicos de lucha por derechos. La idea de vinculo vigente en la politica de asistencia social, también fue un alvo de analisis: delante de un trabajo cuál el objetivo es fortalecer vínculaciones, tener vínculo com algo es indispensable. Mismo delante de un escenario de servicios dañados socioasistenciais, el mayor recurso aun sea el afecto.

Palabras-clave: enlace; trabajo; assistencia social; CRAS.


 

 

Introdução

As Políticas de Assistência Social, que compõem grande parte da assistência social à criança e ao adolescente no Brasil, até 1988 eram concebidas inclusive perante a Lei como ações isoladas de doação e caridade. No entanto, com a Constituição Federal de 1988, passam a vigorar como Política Pública e, enquanto tal, figuram no campo dos direitos, da universalização dos acessos e da responsabilização estatal. A Lei de Organização da Assistência Social (Lei Federal 8742/93 – LOAS) regulamenta os artigos 203 e 204 da Constituição Federal de 1988, inserindo a assistência social na Política de Seguridade Social não contributiva. A Assistência Social, juntamente com a saúde e a previdência social, tem como proposta a promoção do bem-estar social do brasileiro. Dessa forma, a assistência social é um dever do Estado e um direito de toda pessoa, como membro da sociedade, “quando dela necessitar” (CF 88-Art. 203). Entre as Diretrizes da LOAS, aparece a participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis através da criação dos Conselhos de Assistência Social; e a primazia da condução do Estado na condução da política de assistência social.

Nesse sentido, em setembro de 2004, o Conselho Nacional de Assistência Social aprovou a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), após ampla discussão em encontros, seminários, reuniões, oficinas e palestras em todo território brasileiro, constituindo-se, desse modo, como resultado de trabalho democrático e descentralizado.

Na PNAS, a assistência social define seu público alvo: os cidadãos e os grupos que se encontram em situações de vulnerabilidade e riscos. Segundo as Normas Operacionais Básicas do Sistema Único de Assistência Social (Brasil, 2005), a vulnerabilidade social é decorrente da pobreza, da privação do acesso aos serviços públicos e/ou fragilização de vínculos sociais, sejam eles relacionais ou de pertencimento social, sendo considerada a combinação de diversas características da população (infraestrutura de moradia, renda per capita, anos de escolaridade, presença de crianças, idosos e/ou deficientes) que compõem a Taxa de Vulnerabilidade de determinado território.

Pode-se afirmar que a vulnerabilidade diz respeito mais à condição concreta (nível socioeconômico, classificação racial, diferenciação de gênero etc.) dos sujeitos em relação ao seu contexto de vida, do que a situações provisórias. Os riscos, por sua vez, dizem respeito à dimensão de precarização situacional que pode ser decorrente das condições de vida dos sujeitos ou não (Brasil, 2005).

A PNAS tem como funções: proteção social (básica e especial); defesa dos direitos socioassistenciais e a vigilância social (Brasil, 2005). Esta última, em especial, consiste em desenvolver meios de gestão para conhecer a presença das formas de vulnerabilidade social e riscos da população e do território para se reordenar as políticas sociais, ou seja, a produção de taxas de vulnerabilidade e indicadores de risco.

Como uma política de proteção social, a PNAS tem como princípios a garantia universal dos direitos dos cidadãos, respeitando sua dignidade e igualdade sem qualquer tipo de discriminação, a divulgação dos serviços oferecidos e o atendimento às necessidades sociais mediante sua renda econômica. Seu objetivo principal é a busca pelo protagonismo do cidadão para que possa prover-se de forma própria e sustentável. Para que isso se efetue, a política tem como diretrizes uma organização descentralizada e participativa, gestão nas três esferas de governo, e a centralidade nas famílias no que diz respeito à oferta de seus serviços. Assim, os serviços socioassistenciais são oferecidos pelo governo mediante a matricialidade sociofamiliar, considerando a família como mediador entre os sujeitos e a sociedade (Brasil, 2005).

Desse modo, em consonância com a LOAS, os serviços de Proteção Social Básica passam a ser oferecidos em Centros de Referência da Assistência Social (CRAS). Localizados em áreas consideradas de vulnerabilidade social, esses estabelecimentos devem oferecer grupos, programas, centros de convivência e informação e serviços de convivência e fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.

O Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) pode ser ofertado por outras instâncias (tais como, ONGs, OSCIPs, Projetos Sociais etc.), no entanto, os técnicos do CRAS são responsáveis por acompanhar o trabalho realizado externamente, constituindo-se como referência ao SCFV (Brasil, 2016). Com isso, pode-se dizer que o CRAS se constitui como um equipamento público com diversos serviços, que serão usufruídos segundo a demanda e a necessidade dos usuários.

Os serviços de Proteção Social Especial são divididos em dois níveis de complexidade: os de média complexidade e os de alta complexidade. A Proteção Social Especial está também ligada aos aparelhos do judiciário e ao Ministério Público, que constituem o Sistema de Garantia de Direitos. Os serviços de média complexidade são oferecidos nos Centros de Referência Especializados da Assistência Social (CREAS) e compreendem os serviços aos sujeitos que tiveram seus direitos violados, mas cujos vínculos familiares e comunitários não estão rompidos. Já os de alta complexidade oferecem proteção integral àqueles que passaram por grave violação de direitos e/ou tiveram seus vínculos familiares ou comunitários interrompidos.

Atualmente, o psicólogo é um dos profissionais que compõe o corpo técnico da equipe do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), seja em sua esfera básica ou especial. Sendo assim, esse profissional também é responsável pela garantia dos princípios e diretrizes da PNAS com base em suas normativas. Contudo, a psicologia como ciência e profissão teve sua trajetória marcada pela manutenção de um ideal burguês e caracterizava-se especialmente pelo atendimento clínico individual e pela determinação de modos de vida, na medida em que cabia à profissão a classificação e o diagnóstico de disfuncionalidades (Rodrigues, Guareschi & Cruz, 2013). Posto isto, o referencial histórico da psicologia vai de encontro ao que caracteriza o novo cenário da assistência social no Brasil, uma vez que este preconiza o trabalho do psicólogo em conjunto com os demais profissionais, especialmente com o assistente social, e o veto quanto à realização de psicoterapia. Tal contexto vem fazendo com que a profissão, nos equipamentos da assistência social, seja marcada por inquietações e desafios que exigem a invenção de novos conhecimentos, de novos possíveis dentro da prática profissional. Isso deverá refletir uma postura profissional diferente da que marca historicamente a atuação dos psicólogos.

Entendemos que o trabalho do psicólogo no campo da assistência social, para além da captura de forças normativas e do exercício meramente técnico, pode ser concebido como processo político inventivo e dinâmico que não se cristaliza em uma posição cientificista.

Articular Psicologia e Política produz uma série de outros efeitos, como a clareza de que nossas práticas não são neutras, elas produzem efeitos poderosíssimos no mundo; são, portanto, políticas. Assumir tais questões é estabelecer rupturas com o pensamento hegemônico no ocidente: é romper com as ‘verdades’ que estão no mundo e vê-las como temporárias, mutantes, provisórias, enfim, como produções (Coimbra, 2002, p. 10).

Haja vista que os serviços da Assistência Social operam em função do risco e da vulnerabilidade “decorrentes” da fragilidade dos vínculos familiares e sociais de crianças, adolescentes e famílias pobres, compreendemos ser fundamental a formação crítica dos profissionais, permitida pelo acompanhamento e atuação permanente na formação da rede de atenção à infância, à adolescência e às famílias pobres.

Este artigo propõe discutir a atuação profissional do psicólogo no SUAS a partir da vivência nos trabalhos realizados em um CRAS do Município de Cariacica, região periférica da Grande Vitória/ES.

Desse modo, a experiência que será compartilhada aqui se refere à realização pelo período de 18 meses de um Projeto de Extensão da UFES que teve como objetivo atuar conjuntamente com os trabalhadores do CRAS, buscando uma forma comprometida de vivenciar os fazeres e saberes exercidos nos serviços do SUAS. A tentativa era tornar visíveis técnicas, recursos, estratégias, conhecimentos diversos e processos sociais que favorecem transformações em nível local de situações sociais responsáveis por sofrimentos ético-políticos. A atividade de extensão universitária permitiu analisar a ideia de vínculo presente na política de assistência social, fazendo emergir discursos de verdade que reverberam nos serviços e problematizações dos processos institucionais presentes nas práticas do SUAS.

As atividades de extensão iniciaram-se em 2015 e efetivaram-se com o acompanhamento semanal, por um período de oito horas, da rotina do CRAS. Estudantes do curso de Psicologia da UFES, participantes da Extensão Universitária, atuaram conjuntamente com os técnicos nos diversos trabalhos desenvolvidos no equipamento. As análises desenvolvidas acerca desse período de trocas com o corpo técnico compõem este trabalho, tendo como disparador os registros dos diários de campo dos estudantes.

 

Desenvolvimento

 

Acolher – agenciar – vincular

O “acolhimento” é o primeiro trabalho empreendido pelos técnicos da proteção social básica dentro do equipamento CRAS. Nesse sentido, começaremos por evidenciar as facetas do acolhimento: mera recepção dos usuários, prática de cuidado, estabelecimento de vínculos etc.

A participação no acolhimento dos usuários se fez como a primeira atividade da extensão, ou seja, inaugurou nossa entrada no CRAS. Uma vez na semana, famílias que ainda não possuíam cadastro no CRAS eram agendadas para passarem pelo chamado “acolhimento”. Este tinha uma duração média de trinta minutos e nele eram explicados os serviços oferecidos pelo CRAS.

Ao participar do acolhimento que acontecia no CRAS foi possível analisar uma prática entendida no serviço como técnica e que mais adiante discutiremos como analisadora dos processos institucionais recorrentes que são parte de uma engrenagem produtora de individualização e culpabilização dos sujeitos componentes da rede de atenção social.

As cadeiras ficavam enfileiradas como em uma sala de aula, o técnico que conduzia o acolhimento falava sem pausa dos vários benefícios que o CRAS podia oferecer, usando jargões e palavras muito difíceis de compreender por se tratarem de termos muito específicos [...]. O modo no qual apresentava os benefícios dava a entender que eram uma caridade do governo e não um direito que aquelas pessoas tinham. Também havia a impressão que aquele momento deveria acabar o mais breve possível, pois havia muitas outras coisas mais importantes a fazer (Relato do Diário de Campo).

O CRAS não era apresentado como um espaço a ser ocupado por aquelas famílias. Na lógica mercadológica da qual fazemos parte, os lugares, as coisas e as pessoas são objetos de consumo. O CRAS, assim, era entendido como um lugar (naquele caso específico, uma casa) onde se buscava “benefícios”. Mas, como se poderia então pensar a diretriz da PNAS do fortalecimento de vínculo? A primeira questão levantada junto aos trabalhadores foi como fortalecer vínculos num lugar onde apenas se “consome”?

Entendemos que fortalecimento de vínculos está diretamente ligado com o acolhimento, a vivência e a participação de todos na rede de atenção social. Acolher, nesse contexto, é mais do que apresentar os serviços que existem no CRAS.

Nesse sentido, o acolhimento que ocorria foi um analisador da própria dinâmica instalada no CRAS, em que o primeiro contato do usuário com os serviços constituía-se, exatamente, como um “não acolhimento” ou como um “acolhimento-apresentação”. A prática de não acolher estava presente desde a esfera da recepção dos usuários até a relação estabelecida dentro da própria equipe. Um dos efeitos do não acolhimento era a proliferação de tarefas para os próprios técnicos: os usuários não entendiam nada durante o “acolhimento-apresentação” e quando era o momento de fazer seus cadastros, eles tiravam as dúvidas com os técnicos, que tinham que explicar tudo novamente. Um desconhecimento do CRAS e de seus serviços pelos usuários mostrava-se como um fator a mais na sobrecarga de trabalho dos técnicos. Além disso, ficou evidenciado pelos próprios trabalhadores que o CRAS não estava vivo no território ao qual seus usuários pertenciam, se resumindo apenas a um local físico.

A gestão da proteção social básica, no âmbito do CRAS “responde ao princípio de descentralização do SUAS e tem por objetivo promover a atuação preventiva, disponibilizar serviços próximos do local de moradia das famílias, racionalizar as ofertas e traduzir o referenciamento dos serviços ao CRAS em ação concreta” (Brasil, 2009). Isso só é possível através do diagnóstico socioterritorial, que percebemos não ser realizado, fazendo assim com que o “acolhimento-apresentação” se configurasse como mais uma demanda dos usuários.

Fomos, em conjunto com os técnicos, percebendo que a enorme demanda de trabalho estava relacionada também com o “acolhimento-apresentação” e a falta de momentos de parada para que o cuidado e a escuta pudessem encontrar abrigo entre todos, usuários e trabalhadores. Entendendo a rede de atenção social como um agenciamento entre todos que compõem o território socioassistencial, aos poucos nos dávamos conta de que a vinculação só poderia existir quando um cuidado e uma escuta atenta eram efetivados.

Vinculação, operada pelo cuidado e pela escuta atenta, diz de uma contramão aos processos de individualização que produzem culpabilização. Tais processos são próprios de uma sociedade de consumo, que se ancoram na primazia do indivíduo consumidor. Quando pensamos na vinculação como agenciamento, a individualização abre caminho para a intercessão ou a transversalização dos lugares, pois já não é mais a família, o adolescente, a criança, o técnico etc. e sim, a família-com-a criança-com o técnico-com a comunidade-com o território, ou seja, a rede.

Na esteira do não acolhimento, quanto mais os técnicos percebiam as demandas se acumularem dia a dia, mais apontavam para si a incapacidade de resolvê-las e a falta de recursos aumentavam ainda mais esse sentimento de fracasso diante de todo o trabalho a ser feito. Sem momentos de parada que fossem espaço-tempo de trocas, de escuta, de compartilhamento do trabalho, das angústias, das batalhas e das pequenas vitórias, e por que não chamar de momento de acolhimento do sofrimento dos profissionais diante do não cumprimento de todo o trabalho dele exigido, cada vez mais o trabalho se individualizava e se tornava pessoal. Evidentemente, com o trabalho se tornando pessoal, e com cada um dos trabalhadores vendo que sua demanda era enorme e insolúvel, os culpados passavam a ser investigados para justificar o não cumprimento dessas tarefas. Buscavam-se culpados entre eles mesmos: os técnicos, a coordenador, e também os usuários.

Aqui falamos de práticas e processos institucionais que são construídos historicamente. Essas práticas nos perpassam, pois não há um sujeito proprietário dessas práticas. Seguimos a análise por esse percurso por compreender que não é individualizando uma determinada prática que poderemos problematizá-la (Tavares, Guidoni & Capelini, 2013). Ao percebermos a atualização de práticas do não acolhimento, compreendemos a importância de analisar os processos institucionais que dificultam a composição de uma rede que tem no vínculo sua matéria prima (Araujo, 2015).

 

Resistir-existir

Segundo a PNAS (Brasil, 2005), “a proteção social básica tem como objetivos prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários”. O que chama a atenção é o fortalecimento dos vínculos como um dos objetivos a serem alcançados pelos serviços desenvolvidos nos CRAS, ao passo que durante nossa chegada ao equipamento em Cariacica, vários técnicos da rede socioassistencial haviam sido demitidos.

É uma característica na Grande Vitória a transitoriedade dos profissionais na área da Assistência Social. Justamente um serviço que preconiza a vinculação como forma de prevenção de situações de risco, percebe-se o rompimento rotineiro dos vínculos partindo dessa situação de demissão com a qual nos deparamos durante nossa inserção no CRAS.  Encontramos, em nossa chegada, uma situação que dizia de um momento angustiante, pois havia vinculação dos demitidos não apenas com os usuários, mas também com o corpo técnico restante, que ficaria no CRAS mobilizando meios e formas para atuarem a partir de uma grande defasagem de trabalhadores. O luto permeava o ambiente, e poucos sorrisos eram emitidos durante aqueles primeiros dias no equipamento.

Vínculo foi à palavra do ano. Foi nosso objetivo e também um dos nossos principais objetos de estudo. A sua ausência também foi marcante para as análises e discussões do trabalho desenvolvido na Assistência Social e como ele pode gerir as afetações que emergem no trabalho do campo assistencial. Para tratar, assim, da noção de vínculo que se mostrou tão medular nesse ano, trazemos para nossa discussão uma situação assistida como introdutora dessa temática.

Durante uma reunião do Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos (SCFV) com todos os educadores e a técnica de referência, muitos assuntos foram colocados à mesa para a discussão: a vida familiar das crianças que faziam parte do grupo do SCFV, as dificuldades a serem enfrentadas no que tange às atividades desenvolvidas com os adolescentes, o planejamento das temáticas, dentre outros assuntos. Num dado momento, a educadora cultural apontou o problema da rotatividade dos técnicos e educadores na Assistência Social de Cariacica e que isso dificultava um trabalho mais engajado e com vinculações, tanto com as crianças e os adolescentes quanto com os demais técnicos do CRAS. Pontuado isso, a educadora, assim, afirmou que não criava vínculos com as crianças porque tinha total convicção de que um dia seria remanejada ou demitida. Paradoxalmente, a educadora continuou a fala contando um caso de outro educador que seria realocado de CRAS, mas que as crianças e seus familiares atendidos por ele no SCFV no qual desenvolvia suas atividades lutaram para mantê-lo no mesmo CRAS e tiveram êxito.

Partindo desse relato, muitas questões podem ser frisadas para pensar o vínculo e sua importância como base de ação para as intervenções. É notória a clareza da educadora quanto a um dos principais problemas do campo da Assistência Social, contudo, ao mesmo tempo em que ela afirma uma defesa pessoal de não se vincular aos usuários, ela apresenta um caso onde a vinculação foi chave para a luta dos usuários pela formação da rede, a manutenção dos vínculos. Protege-se da tristeza de um dia ter que se distanciar daquilo que recebeu seu “investimento” afetivo, mas ao mesmo tempo contempla a importância da vinculação de um educador com as crianças e adolescentes do serviço. Numa rede de relações quentes, em que o afeto se dá num espaço público, a esquiva da vinculação a ninguém protege, na verdade vulnerabiliza aquilo que poderia constituir-se como espaço público de luta por direitos.

Desse modo, a provisoriedade dos trabalhadores nos serviços, evidenciada pela precarização dos contratos de trabalho (contratos temporários e flexíveis), é mais um analisador da engrenagem que faz surgir indivíduos e culpabilizações e se inviabiliza a formação de redes quentes.

Defender um trabalho vinculado, ou seja, um trabalho afetivo como articulação para o estabelecimento de relações que produzam práticas de luta por direitos, práticas não tutelares, nas quais os usuários entendem seus direitos e lutam por eles e os técnicos entendem o seu trabalho como produção e transformação de realidades, e práticas de confiança (de com-fiar: fiar junto), produzindo um trabalho em conjunto com o outro pela via do agenciamento, é tarefa ético-política cara, rara e difícil que se dá pelo processo contínuo de formação, aqui pensada como movimento de resistência aos moldes capitalísticos do trabalho.

O vínculo estava de alguma maneira presente no CRAS de Cariacica. Na mesma reunião relatada acima, percebemos como os casos eram discutidos: cada criança e adolescente era chamado pelo nome e suas vidas eram tratadas a partir da perspectiva de cada educador e técnico que de alguma forma estabeleceu contato com aquela criança e adolescente. Isso chama a atenção, pois a proximidade afetiva era experiência compartilhada numa reunião que se fez como processo de formação e de resistência, quando não existe um espaço-tempo de parada “institucionalizado” no CRAS. Naquele espaço-tempo, as vidas eram contadas como uma vida que importa.

 

“... Lá no SCFV”

Como colocado, nossa chegada ao CRAS se deu num período delicado para todos que lá estavam e foi perceptível o incômodo dos trabalhadores com nossa inserção nas atividades do expediente do equipamento. Prontificamo-nos a tudo: estávamos dispostas a fazer o que nos fosse demandado, sem prerrogativas de nosso lugar naquela experiência de extensão; nossas funções se dariam em ato, no encontro com o espaço e com os profissionais daquele CRAS.

Com a correria do trabalho a ser terminado e entregue pelos técnicos que deixariam o CRAS naquele mês de nossa entrada, o único lugar que pôde nos acolher, dadas as circunstâncias da dinâmica do trabalho, foi o SCFV. Contudo, essa situação de “acolhida” das extensionistas ao SCFV se confundia com o único locus que estava aberto para nossa entrada no CRAS. Locus esse muitas vezes entendido como um fora do CRAS, como um serviço separado dos demais oferecidos no equipamento; como um “lá” e não um “aqui”. Em outras palavras, percebemos o SCFV como o que sobra do CRAS, e para lá fomos, haja vista a situação delicada com a qual todos os técnicos se deparavam, bem como esse modo de encarar o SCFV alhures do CRAS. Assim, era notável a separação do CRAS e o SCFV, não apenas durante o desenvolvimento das atividades com os educadores do serviço, mas também nas falas dos demais técnicos quando se referiam ao serviço de uma maneira muito distante, muitos deles afirmando não saber o que se passava entre as quatro paredes que recebiam os grupos de crianças, adolescentes e idosos.

Tal distanciamento fez como mais um analisador das práticas e processos institucionais em curso na assistência social. Afinal, perguntávamos todos nós como um serviço que se propunha a fortalecer vínculos poderia ser tão desvinculado dos demais serviços do CRAS. Mais uma vez comparecia a dita sobrecarga de trabalho dos profissionais. A problemática do deslocamento do SCFV para um fora do equipamento, para um “lá”, não necessita de uma apresentação de culpados, daqueles que o tratam como um serviço desconhecido e aquém do CRAS. Fala da urgência, na verdade, de questionamentos das práticas que permitem esse afastamento do serviço, evidenciando as relações de força, os processos institucionais, permitindo entender como temos nos afetado e os discursos que tem sido (re)produzidos. Assim, não se mostra tão importante o ‘quem’ e sim o ‘o que faz funcionar’, pois o ‘quem’ é circunstancial. Ao se permitir tal análise acusar-se-á a necessidade de análises permanentes do que fazemos funcionar (Machado, 2010).

 

Trabalho desqualificado - a potência do trabalho

A correria na realização das tarefas diárias no trabalho do CRAS era constante e rotineira. Um trabalho que é desvalorizado pela baixa remuneração e pela precariedade do vínculo empregatício, é marcado ainda pela sobrecarga de tarefas.

Como todo trabalho técnico, normativas auxiliam o fazer cotidiano dos profissionais do CRAS e servem de diretriz para o logro dos objetivos da PNAS. As normativas podem “auxiliar”, mas também podem num trabalho precarizado ditar as práticas profissionais.

Ditar práticas está diretamente ligado com o endurecimento das mesmas: ocorre uma reprodução de fazeres, de discursos e de modos de organizar o trabalho. É preciso analisar a função das normativas e suas diretrizes técnicas à luz da análise de implicação. Assim, é urgente compreender a “repetição” das práticas e a “ditadura” das normas sobre o trabalho técnico da Assistência Social e seus efeitos.

A análise de implicação é um exercício de pensamento que permite traçar os percursos das práticas e perceber os afetos que elas podem suscitar. Tal análise auxilia num olhar mais amplo, encarando as circunstâncias como acontecimentos passíveis de transformação – transformação esta possível através do trabalho e do estabelecimento dos vínculos. Assim, a análise de implicação não visa encontrar as causas de algum problema, nem mesmo apontar culpados, mas desnaturalizar e despessoalizar discursos e práticas (Coimbra & Nascimento, 2007).

A desnaturalização e a despessoalização é uma análise que já de início evidencia a provisoriedade das formas – sujeitos, estereótipos, papéis, por exemplo –, trazendo para a luz os processos institucionais produtores de tais formas. A repetição das práticas as coloca em um plano não situado e não localizado. Isto é, a repetição “cabe” em qualquer lugar e para qualquer pessoa; as práticas ditadas que são reproduzidas em qualquer lugar e por qualquer pessoa não considerando a ambiência e a dinâmica local, dizem de um distanciamento subjetivo-afetivo do trabalho e da vida.

A ideia de repetição das práticas é extremamente perigosa para a vida – vida como sinônimo de criação, invenção e produção de novas normativas. O entorpecimento afetivo através das repetições, entendidas aqui como a reprodução mecanizada do trabalho de forma não situada e não localizada das diretrizes normativas do trabalho na Assistência Social, paralisa e mortifica o processo inventivo. Machado (2010) afirma que esse entorpecimento

[...] estanca a vida em seu processo, que a poda em sua expansão, que a paralisa em seus itinerários possíveis. Possíveis que inventamos ao experimentarmos o aumento de nossa potência de ser afetado. [...] entorpece os sentidos, que anestesia a pele que veda seus poros às afecções, que produz formas de vida fatigadas. [... ]“Estar cansado, ser indiferente, é sem dúvida a mesma coisa”. A indiferença é o próprio sentido do cansaço, é a sua verdade cansada (p. 120).

Desse modo, a sobrecarga do trabalho percebido no CRAS se mostra apenas como um analisador do trabalho entorpecido pelas normativas. Tem-se assim um CRAS com profissionais fatigados pela repetição e com os sentidos entorpecidos para criar outras práticas que permitam a vinculação e a formação de uma rede quente.

Analisar as implicações no trabalho na assistência social permite resistir a sua repetição pelas normativas, entendendo-as como produção de um processo institucional em curso e que, por isso, pode enveredar-se por espaços nunca pisados e arados e fazer-se em outros afetos e outras normas construídas coletivamente.

Nossa proposta aqui é mostrar que um trabalho desqualificado, pode ser pensado como um trabalho que não recebeu funções máximas a priori, podendo assim permitir outras qualificações que se darão em ato. As técnicas e ferramentas a serem utilizadas também se constituirão articuladas a esse trabalho antes desqualificado. As ferramentas são consequências e não são elas que ditam o trabalho; é exatamente o contrário: é pela relação com o trabalho que a ferramenta vai se constituindo (Deleuze & Guattari, 2012). Entendemos, então, as normativas como ferramentas de trabalho que auxiliam no manejo da matéria tanto para qualificar tal trabalho, quanto para produzir e criar novas formas. Temos, assim, não um trabalho no CRAS pressuposto pelas normativas (ferramenta), mas um trabalho que supõe e que pode produzir normativas. Aí então nos encontraríamos com a potência do trabalho.

 

Considerações finais

Durante esse tempo de vivências e compartilhamento de experiências dentro do equipamento CRAS, percebemos o sucateamento dos serviços públicos, principalmente os socioassistenciais e o quanto é necessário afirmar a todo o momento a importância desses serviços, que resistem mesmo com a diminuição considerável dos recursos necessários para sua manutenção.

Assim, é importante afirmar que, mesmo diante desse cenário desfavorável, o maior recurso ainda são os afetos. Diante de um trabalho no qual o objetivo é fortalecer vínculos, vincular-se é algo indispensável. Mesmo com a grande demanda dentro do CRAS, a equipe técnica necessita de (re)pensar os rumos do seu trabalho, entendendo que momentos de parada e acolhimento mútuo também se configuram em trabalho.

O trabalho na Assistência Social se realiza com muitos fatores que o enfraquecem: falta de recursos, rotatividade de profissionais, dificuldades de gestão, entre outros. O trabalho aparece sempre como algo a se fazer (como se nenhum trabalho fosse feito), devido a curta permanência dos funcionários, tanto na gestão quanto na ponta. A potência do trabalho está então no agenciamento, na formação de rede, na formação continuada, que comparecem como modos de resistência capazes de fomentar espaços públicos de luta por direitos.

Tudo isso diz da potência do trabalho de abrir outros caminhos para que outros pontos avancem, como por exemplo: um maior contato do equipamento com a comunidade. Pensar junto com quem já esteve nesse trabalho e junto com a equipe que o compõe permite que esse passo seja dado. O trabalho nunca começa do zero e nunca morre, pois ele é experiência viva encarnada num equipamento, num território, numa política de assistência social.

 

 

Referências

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Tavares, G. M., Guidoni, J. P., & Capelini, T. C. (2013). As práticas que compõem a educação integral em Vitória (ES): uma análise da relação infância/pobreza/risco. Interlocuções entre a psicologia e a política nacional de assistência social, 43-58.         [ Links ]

 

 

Data de submissão: 30/08/2018
Data de aceite: 06/09/2018

 

 

I Abigail Marinho da Silva é psicóloga e mestranda do Programa de pós-graduação em Psicologia Institucional, ambas pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: abigailmarinhodasilva@gmail.com

II Júlia Gomes Pereira é psicóloga e mestranda do Programa de pós-graduação em Psicologia Institucional, ambas pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). E-mail: juliaflavia.g@hotmail.com

III Gilead Marchezi Tavares é professora do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo  (UFES) e bolsista FAPES (Edital Pesquisador Capixaba). E-mail: gileadmt.2014@gmail.com

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