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Revista Polis e Psique

versión On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.1 Porto Alegre ene./abr. 2019

 

ARTIGOS

 

Profanar a utopia: dos cenários sociais em lusco-fusco

 

Desecrate the utopia: of social scenarios in the twilight

 

Profanar la utopía: de los escenários sociales en el crepúsculo

 

 

Édio RaniereI; Laís Vargas RammII

IUniversidade Federal de Pelotas (UFPel), Pelotas, RS, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

O presente trabalho problematiza a noção clássica de utopia, perfurando-a com o conceito de profanação, tal qual proposto por Giorgio Agamben (2007). Trata-se de um ensaio teórico onde se busca restituir a utopia - sacralizada como projeto, meta a ser atingida - ao uso comum. O estudo proposto se depara com algumas questões: haveria na utopia abrigo para um exercício ético capaz de potencializar processos de singularização? Tal experiência, uma vez disparada, colocaria em questão algumas das linhas de força que compõem os modos de subjetivação hegemônicos no contemporâneo?

Palavras-chave: utopia; profanação; resistência.


ABSTRACT

The present work problematizes the classical notion of utopia, piercing it with the concept of profanation, as proposed by Giorgio Agamben (2007). It is a theoretical essay that seeks to restore the utopia - sacred as a project, a goal to be achieved - to common use. The proposed study faces some questions: would there be in the utopia shelter for an ethical exercise capable of enhancing processes of singularization? Had this experience, once triggered, questioned some of the lines of force that compose the hegemonic modes of subjectivation in the contemporary?

Keywords: utopia; desecration; resistance.


RESUMEN

En este trabajo se analiza la noción clásica de utopía, perforandola con el concepto de profanación, tal como propuesto por Giorgio Agamben (2007). Se trata de un ensayo teórico donde se busca restaurar la utopía - sacralizada como proyecto, meta que debe alcanzarse - al uso común. El estudio propuesto se enfrenta a algunas preguntas: ¿habría en la utopía refugio para un ejercicio ético capaz de potenciar los procesos de singularización? Esta experiencia, una vez disparada, pondría en cuestión algunas de las líneas de fuerza que componen los modos de subjetivación hegemónicos en el contemporáneo?

Palabras-clave: utopia, profanación, resistência.


 

 

O conceito de utopia remete, primeiramente, à uma ficção escrita em 1516 por Thomas Morus. A qual completou quinhentos anos, portanto, em 2016. Nesta obra Morus (2005) descreve uma ilha habitada por uma sociedade justa. A composição apresenta o personagem Rafael como narrador das maravilhas de Utopia: igualdade entre os homens e ausência de propriedade privada. Esta "bela" invenção - a palavra utopia - significava não lugar ou lugar nenhum, a partir do grego onde tópos é lugar e o prefixo u é empregado com significado negativo, indicando, portanto, um lugar inexistente (CHAUÍ, 2008). O gênero da obra pode ser definido como político-literário (COLOMBO, 2013). No entanto, ainda que a obra seja ficcional, este não é ponto chave da questão. A narrativa surge, independente de se tratar de um relato ou de uma criação literária, em um determinado contexto histórico da realeza inglesa, capaz de gerar um certo tipo de insatisfação, e ao mesmo tempo o desejo, a utopia, a criação. Não se trata, portanto, apenas daquilo que viria repetidamente a ser chamado de imaginário, como sinônimo de utopia, mas de algo mais tangível e situado em um campo ético-político. "Assim sendo, sabemos que a utopia de Morus, ao contrário do que se pensa de costume, estava carregada de história e de realidade humana, e estava destinada a tornar-se realidade, mesmo que de forma diferente." (COLOMBO, 2013, p.57)

Jacoby (2001) argumenta semelhantemente, no que se refere à relação entre realidade e ficção, ao afirmar que a antropologia é, tal qual a literatura, um ato de interpretação e imaginação, uma vez que ao estruturar descrições, ambas ficcionam. Para o autor, portanto, a diferença entre representação ficcional e representação factual não chega a ser fundamental. Também das diferentes psicologias, bem como as demais ciências humanas, se pode aproximar esta ideia de Jacoby (2001), uma vez que compreender, no caso da psicologia social, por exemplo, os modos de subjetivação, os processos relacionais e a formação do desejo no campo social seria, em rigor, também uma construção ficcional, a partir de um paradigma não representacionista. A produção de conhecimento é um ato de criação, que articula saberes, e, mesmo quando se pretende descritiva, demanda daqueles que se propõem a ela, a criação de "roteiros", a assunção de paradigmas.

O pensamento utópico, iniciado em Morus, e observado em outras obras literárias ao longo da história, no século XIX encontra-se mais evidentemente nos socialistas utópicos, como Saint Simon, Charles Fourier e Robert Owen. Embora Marx e Engels, no século XX, ao retomar o pensamento do socialismo utópico o critiquem por considerá-lo descritivo de uma sociedade ideal e pouco capaz de oferecer elementos para a transformação real, o marxismo de forma geral acaba sendo considerado como uma utopia. Isto pode ser explicado porque a utopia, por definição, trata de uma sociedade que se opõe à existente, o que também é abordado em Marx, apesar de o autor considerar que o socialismo do qual trata é científico, em oposição ao utópico (CHAUÍ, 2008).

Teixeira (2015) afirma que a utopia se diferencia do marxismo ao atuar pelas beiradas, ou seja, ela tem, na perspectiva do autor, na cultura, através do acesso aos seus mais variados elementos, sua abordagem mais eficaz. A utopia trataria assim mais de meios do que das especificidades de um fim, enquanto o marxismo tem etapas mais bem delimitadas, para um fim específico. Para Teixeira (2015), a universidade é um âmbito fértil para a ação das utopias, através do diálogo entre diferentes ideologias, tornando possível a criação de novos modelos sociais e institucionais.

Pensar, assim como Teixeira (2015), no acesso a produções culturais como um mecanismo de ação construtiva da utopia é algo paradoxal, uma vez que a cultura se produz também no seio da massificação, e daquilo que se opõe aos sonhos diurnos (BLOCH,2006), embora possa também produzir resistências. Didi-Huberman (2011) ao analisar as obras do cineasta Pasolini, bem como aquilo que escreveram seus comentadores, aponta que a profecia deste era de que a cultura não deveria ser vista como aquilo que nos protege da barbárie, mas que ela é algo do qual devemos nos proteger, já que ela tornou-se, por si mesma, um instrumento da barbárie generalizada, citando literalmente o termo utilizado pelo autor. A cultura seria, segundo essas análises construída em um meio mercantil e fadada a fomentar o fascismo, situando na Itália o olhar de Pasolini.

A relação da utopia com a universidade, também apontada por Teixeira (2015), talvez não seja tão pacífica como se poderia conceber, ainda que seja sim estreita. A problemática está no fato de a ciência e a produção de conhecimento, de uma forma geral, serem orientadas majoritariamente a manter as estruturas sociais instituídas. E para manter o presente tal como ele é, em sua ética e política, a imaginação utópica encontra poucas brechas. Ao mesmo tempo, Jacoby escreve que:

Sem intelectuais ou com intelectuais reformados a utopia pode desaparecer. Com utopia, refiro-me aqui não só a uma visão de uma sociedade futura, mas a uma visão pura e simples, uma capacidade, talvez uma disposição para usar conceitos expansivos para enxergar a realidade e suas possibilidades. (...) (JACOBY, 2001, P.141)

A fim de "mapear" diferentes formas de ficcionar utopias, seguimos na seara do pensamento de Jacoby (2001), para o qual ela se trata de algo mais amplo do que o conjunto de ideias e a força que impele a ação da chamada esquerda política, representada por coletivos e partidos norteados pela filosofia política do socialismo, por exemplo, ou outras que se opõem ao regime liberal, e mesmo algo mais amplo do que a capacidade humana de projetar o futuro. A utopia está presente em diversas esferas da vida e da condição humana, e existem diversas definições possíveis. Relacionando o conceito de utopia com as práticas coletivas, ou, como discutiremos mais adiante, com a ideia de profanação, é preciso certa disposição para ver que ela está para além dos intelectuais ou daqueles que fazem política explicitamente, mas se apresenta, por vezes discreta, como potência transformadora nos pequenos grupos sociais e na sociedade como um todo.

O que aqui nos interessa compreender é em que medida a utopia atua na produção de si, na subjetividade, no desejo e na ação dos sujeitos no campo social, que na sua singularidade é política. No entanto, não é possível desvincular esta utopia que aqui discutimos dos usos históricos do termo utopia e as aplicações do conceito em uma perspectiva relacionada às esferas econômica e política, por entender que não há ação individual no mundo, e sim a construção de modos de subjetivação relacionados ao sistema econômico, ao sistema de valores, aos dispositivos de poder (FOUCAULT, 2006) de cada sociedade. Não se pode pensar, portanto, em utopia enquanto criação de novas realidades (seja na arte, na economia ou na política), sem situá-la enquanto elemento significado e ressignificado ao longo do tempo pela sociedade.

Para pensar a partir desta perspectiva, nos remetemos à Guattari e Rolnik (2013) que afirmam que a subjetividade é majoritariamente constituída para manutenção das estruturas hegemônicas e do sistema de valores capitalísticos. Essa produção de subjetividade é política, no sentido de que ela não acontece ao acaso, mas a fim de perpetuar o sistema político-econômico a partir do desejo massificado. Para Guattari e Rolnik (2013), as forças sociais que administram o capitalismo compreenderam magistralmente a importância da subjetividade, sendo que talvez ela seja hoje o maior produto, aquele que mais lucro gera. Ao contrário destas forças reacionárias, os setores que se pretendem à emancipação social, na análise dos autores, ainda não compreenderam a função da subjetividade, por se ocuparem demasiadamente de dogmatismos políticos. E é justamente na subjetividade que os autores enxergam uma importante potência para transformações maiores da sociedade: Para Guattari e Rolnik (2013) essa subjetividade potencialmente transformadora se constitui a partir de processos de singularização, e produz diferenciações da subjetividade individualizada que se faz nas capturas do capitalismo.

(...) uma maneira de recusar todos esses modos;- de encodificação preestabelecidos, todos esses modos de manipulação e de telecomando, recusá-Ios para construir, de certa forma, modos de sensibilidade, modos de relação com o outro, modos de produção, modos de criatividade que produzam uma subjetividade singular.Uma singularização existencial que coincida com um desejo, com um gosto de viver; com uma vontade de construir o mundo no qual nos encontramos, com a instauração de dispositivos para mudar os tipos de sociedade, os tipos de valores que não são os nossos. (..) (p.22, 23)

A partir do conceito de subjetividade de Guattari e Rolnik (2013), seria possível pensar então na utopia como algo que se dá através de processos de singularização? Ou, em outras palavras, processos de diferenciação, no meio social, que se diferem da subjetivação maquínica individualizante, acontecendo no coletivo e para o coletivo? Em uma perspectiva rizomática1, a utopia não apenas aconteceria por meio de processos de singularização, como também os produziria, também permitindo a invenção de novas formas de viver e se relacionar.

Assim, trata-se aqui de construir um mapa sobre o conceito de utopia levando em consideração posições divergentes, por vezes até mesmo dicotômicas diante do conceito. Trata-se mais de explicitar do que apaziguar tais tensões. Buscamos por um mapa suficientemente flexível a ponto de suportar paradoxos como a) utopia enquanto pensamento/imagem; b) utopia enquanto projetos políticos para construção de futuros melhores; c) utopia enquanto ação de sujeitos no campo social; d) Utopia enquanto frágil singularização, produção de subjetividades que resistem aos modelos de comportamento oferecidos pelo grande mercado de identidades.

Ainda que situemos a utopia como um fenômeno mais amplo do que o marxismo, é fundamental perceber que não é preciso negar as contribuições de Marx para construir uma compreensão das utopias. O contrário é demonstrado nos conceitos de Ernst Bloch (2006), filósofo de referência no tema da utopia. Bloch considera-se, em toda a sua obra, um marxista, embora sua contribuição principal seja explorar dimensões não consideradas por um marxismo mais clássico (BRASIL, 2009).

Dessa forma, compreendemos que para discutir um conceito que, conforme citado anteriormente, foi amplamente utilizado por correntes sociológicas consideradas "progressistas", principalmente nas tradições socialistas e marxistas que concebem as transformações sociais a partir de uma perspectiva etapista, além da sua presença em obras literárias, conforme também citado anteriormente, parece-nos que seria equivocado negar as contribuições de autores de uma perspectiva que poderia ser identificada didaticamente como dialética. Articular ideias de pensadores pós-estruturalistas às desses autores clássicos a respeito do pensamento utópico, como o filósofo Ernst Bloch, por exemplo, é uma tentativa de criar problemas que se referem à participação da utopia na produção de subjetividade do contemporâneo, também como possibilidade de resistência. As articulações conceituais entre diferentes perspectivas epistemológicas são utilizadas, portanto, como forma de potencializar o conceito de utopia, e tomá-lo como ferramenta, uma vez que entendemos que, não somente nos tempos de Morus ou nos séculos anteriores, mas também no contemporâneo, ele ainda tem ressonância e atua em processos de singularização.

Na obra de Bloch, o pensar a partir do materialismo dialético ganha novas perspectivas, através de uma ontologia que se embasa na processualidade do ser, a ontologia do ainda não. Nesse sentido, olhar para o futuro é ver o que nele há de abertura (SANTOS, 2011).

Na sua obra Princípio Esperança, Bloch (2006) distingue as utopias abstratas das concretas. As primeiras não têm possibilidade de realização, e as segundas orientam para a ação, e tem possibilidades reais. Em relação às utopias abstratas, ele não as coloca como completamente destituídas de mérito, uma vez que impulsionam o desejo de transformar, e são, como ele as chama, honestas. Mas é nas utopias concretas, produzidas por sonhos diurnos conscientes, que ele vê possibilidades reais e maduras de criação para um futuro em aberto.

Em Bloch (2006) às utopias abstratas falta dialética, tanto em seu percurso quanto em sua vitória ou concretização, uma vez que não reconhecem que mesmo quando a configuração futura desejada é alcançada, há um perigo, uma linha descendente, sempre havendo risco de retrocesso, e sempre havendo também possibilidades futuras de construção, avanço. A utopia concreta, portanto, é aquela que se constitui e se sabe processual, que traz consigo o reconhecimento dos roteiros (BLOCH, 2006) que tornam possível sua emergência, ou seja, as condições sociais que permitem sua inscrição na realidade. Ou seja, por mais conteúdo imaginativo que, na perspectiva de Bloch (2006) chega a apresentar elementos de delírio, tamanha a capacidade de invenção, e até antecipação - a utopia sempre se ancora na confluência histórica que acontece no presente.

Ainda pensando no fato de a utopia ser um fenômeno mais amplo do que as ideias das diferentes esquerdas (coletivos políticos, organizações partidárias, etc) políticas, observamos que ela está também presente no sistema de valores e nos convites ao consumo inerentes ao sistema capitalista. A diferença política entre as utopias sociais de criação e construção de novas formas de viver no mundo e das utopias da vida diária, inerentes ao modo de viver nesta cultura e neste sistema econômico, é que a utopia capitalista é majoritariamente individual e está relacionada ao consumo. Ou, melhor dizendo, talvez o consumo seja a mais facilmente identificável das utopias, de não lugares, ou ainda, de situações imaginadas e almejadas. Quanto mais se consome, maior é a gama de necessidades criadas. Mais tecnologias se criam, e mais sonhos se constroem, sonhos de possuir, de ser proprietário de objetos e bens. O indivíduo, que no capitalismo se constituiu a partir do consumo, talvez possa ser situado enquanto uma utopia da sociedade do capital, uma vez que se pressupõe um eu autônomo, empreendedor de si, que se pode constituir independente do fluxo que arrasta os sujeitos para habitar os espaços subjetivos já socialmente esperados. As utopias de consumo e propriedade atuam promovendo separações no mundo, e destituem as possibilidades de construção comum.

Neste sentido, Agamben (2007), conversando com Benjamin, compreende o capitalismo como uma religião, uma vez que promove separações, sendo que a condição básica para a existência das religiões seria esta, o que pode ser compreendido através da própria etimologia da palavra:

Pode-se definir como religião aquilo que subtrai coisas, lugares, animais ou pessoas ao uso comum e as transfere para uma esfera separada. Não só não há religião sem separação, como toda separação contém ou conserva em si um núcleo genuinamente religioso (...)

O termo religio, segundo uma etimologia ao mesmo tempo insípida e inexata, não deriva de religare (o que liga e une o humano e o divino), mas de relegere, que indica a atitude de escrúpulo e de atenção que deve caracterizar as relações com os deuses, a inquieta hesitação (o "reler") perante as formas - e as fórmulas - que se devem observar a fim de respeitar a separação entre o sagrado e o profano. Religio não é o que une homens e deuses, mas aquilo que cuida para que se mantenham distintos.(...) (AGAMBEN, 2007, p. 58 e 59).

Neste contexto, a relação do sujeito com o mundo acaba, de certa forma, capturada, ou constituída por uma espécie de sacralização dos objetos. Os quais serão retirados do espaço comum, pertencente a todos, e colocados em lugares separados: no sagrado da vida privada, individual ou familiar. Assim, seria possível tensionar as utopias hegemônicas da subjetivação que envolvem o sistema capitalista como tecnologias de convocação ao consumo, ao enriquecimento meritocrático, ao empreendimento de si, a produção de um tipo de autonomia voltada às aspirações individuais.

Até aqui, discutimos alguns usos históricos do conceito de utopia, bem como sua relação com o desejo de transformação da sociedade e as ações movidas por ele. Estamos pensando a utopia enquanto possibilidade de ação coletiva a partir da diferença, criando novas formas de uso que se diferenciam da sacralização do capital e dos modos de subjetivação nele engendrados.

 

Uma Profanação Do Conceito De Utopia

Para Agamben (2007) profanar é devolver ao uso comum aquilo que por alguma razão fora sacralizado, separado. Como pensar, portanto, no seio da sociedade de classes, no seio do capitalismo enquanto religião - uma religião cheia de fundamentalismos - formas de profanação? Como pensar em uso comum, em dessacralização, em uma sociedade que tem na propriedade privada seu deus? Se de um lado, o capitalismo é uma religião improfanável, como aponta o autor, que atinge os maiores níveis de separação e se opõe à comunhão e às formas coletivas de uso, de outro, ele se utiliza de forma magistral do mecanismo da profanação: a criação e evocação de meios puros, que são aqueles comportamentos que não são voltados diretamente para a sua finalidade, mas acontecem em um tempo efêmero.

Nesse sentido haveria uma relação entre a utopia e o ato profanatorio? Profanar poderia ser um vestir-se de utopias? Ou seja ao restituir o sagrado ao uso comum, ao criar com ele outros usos, diferentes dos hegemonicamente esperados estaríamos abrindo condições de possibilidade para imaginação utópica? Da mesma forma, ao produzir imagens utópicas estaríamos, de alguma forma, devolvendo o até então sacralizado à possibilidade de uso de todos? Se a utopia se relaciona com uma ética, é no presente que ela se faz concreta, uma ética que não acontece somente pelos horizontes, mas também pela evocação dos meios, que transformam o presente e não apenas servem a proposições futuras. Pensando na imagem que aqui aludimos, de vestir-se de utopias, podemos citar como exemplo o Manto de apresentação, de Arthur Bispo do Rosário. Trata-se de uma importante obra para a arte contemporânea.

Bispo deseja com sua obra chegar ao divino, mas não é nesta finalidade que a obra se faz: é no meio. O manto é um meio à medida que se borda no presente, como uma cartografia do mundo através da veste. Nas costas do manto, bispo escreve nomes de diversas pessoas, o que demonstra que mesmo uma utopia que se constrói - e se usa - no corpo de um homem, não acontece na esfera individual, mas se dá a partir da coexistência. Talvez o sagrado presente no manto seja, para pensarmos a partir de Agamben (2007) mais relacionado etimologicamente à religare (o que une o humano ao divino) do que a relegere (o que torna clara a separação entre os dois). Arthur Bispo do Rosário, em sua utopia delirante (Bispo, sendo considerado louco e internado como paciente psiquiátrico nos remete a Bloch (2006) que anuncia que um "leve delírio que às vezes ameaça melhoradores do mundo" [p.31] é observado desde as primeiras utopias registradas), construiu sua obra a partir da tentativa de se aproximar de Deus, relacionar-se com ele, podendo-se supor, portanto, que ele, ironicamente, profanou o sagrado, devolvendo-o possibilidades de uso em seu próprio corpo, e, portanto, vestindo-se da própria utopia.

Ao mesmo tempo que o primeiro significado da palavra utopia é "nenhum lugar", ela está em toda parte, "em parte alguma, em toda parte", como aponta Coelho (1985). O capitalismo, por sua vez, enquanto sistema econômico que funciona como religião improfanável, também é invadido, ora ou outra, por profanações através das utopias que o desafiam à finitude e apontam sua limitação histórico- temporal. Souza (2007) diz que função da utopia é não nos deixar presos na obscuridade do instante. Se existe apenas o presente imediato, com suas injustiças sociais, a utopia vem para mostrar algum horizonte, um sol que principia nascer no fim da madrugada. E embora aqui pensemos na utopia enquanto profanação da obscuridade do presente, enquanto profanação do capitalismo improfanável, ela também está nos lugares mais sacros do mundo. Seja no anseio de superação da sociedade de classes, na sua forma mais tradicional e menos inventiva,que desconsidera o desejo e a subjetividade e seja no sagrado da religião, através, por exemplo, dos dogmas cristãos, sempre ressignificados na sociedade neoliberal. A utopia está nos lugares mais dogmáticos e nos mais profanos.

Para que se possa escapar da obscuridade do instante, no entanto, é necessário enxergar essa obscuridade, esse escuro. E isto só se faz possível àqueles que se desviam das inúmeras luzes do presente, que chegam a cegar, como exemplo disso poderíamos pensar nos apelos de consumo da sociedade capitalista. Agamben (2009) diz que podem ser chamados contemporâneos somente os que conseguem ver este escuro do presente, através de algum distanciamento das luzes, para então vislumbrar uma luz e fazer uso dela. Para ele, os contemporâneos são somente aqueles que percebem no presente (no atual e moderno), as marcas daquilo que é arcaico. Neste sentido:

[...]Arcaico significa: próximo da arké, da origem. Mas a origem não está situada apenas num passado cronológico: ela é contemporânea ao devir histórico e não cessa de operar neste, como o embrião continua a agir nos tecidos do organismo maduro, e a criança na vida psíquica do adulto. A distância - e ao mesmo tempo a proximidade - que define a contemporaneidade tem seu fundamento na sua proximidade com a origem, que em nenhum ponto pulsa com mais força do que no presente [..] (AGAMBEN, 2009, p. 69).

Desse modo, ao problematizar a utopia como um modo de profanar e ao mesmo tempo tomar a profanação como uma ação utópica, acreditamos encontrar condições de possibilidade para profanar a própria utopia. Exercício que nos parece importante, no sentido de provocar a utopia à uma relação com a obscuridade do instante, evitando, assim, que ela caia na invisibilidade do futuro inatingível, onde nem mesmo com as mais poderosas lentes poderia ser vista, usada ou experienciada. Profanar a utopia restituindo-a às possibilidades de uso, sobretudo de uso coletivo, para além dos círculos de intelectuais, de poetas, da produção literária, ou mesmo dos espaços políticos de militância, ainda insuficientemente profanos. Esta ideia de profanação da utopia pode servir como uma ferramenta não apenas conceitual, mas também como uma aposta nos processos coletivos de criação artística e política que disparam novas produções de sentido, através, por exemplo, da tomada coletiva de decisões, que desacomoda a lógica hierárquica e disciplinar que organiza a sociedade. Um movimento que não é nem instante, nem distante a ponto de deprimir. É sim, criação. É transformação de um presente que não se esgota em si.

 

Profanar a Utopia: aberturas para a imagem

Didi-Hubermman (2008) disserta, a partir da obra de Pasolini, acerca do desaparecimento dos vaga-lumes. Os pequenos insetos de luz parecem não mais encontrar espaço em meio aos projetores de uma era em que os indivíduos se colocam em vitrines de exposição, ao mesmo tempo em que ninguém se vê. Tudo gira em torno das grandes luzes do consumo. As intermitências e os lugares de lusco-fusco são cada vez mais raros. No entanto, argumenta o autor, que os vagalumes não desapareceram completamente, mas nosso olhar não mais está focado neles. Acostumados e com o olhar viciado em estar onde a claridade das luzes se faz protagonista, encontramos dificuldades em procurar pelos vaga-lumes, já que para isto seria preciso encontrar lugares-refúgio de escuridão, já que é só nas trevas que os vaga-lumes podem brilhar. Não é possível, nesse sentido, como aponta Didi-Hubermman (2008), tentar estudar os vagalumes apontando para eles uma grande luz para vê-los melhor, tampouco espetá-los, depois de mortos, para estudar seu corpo, já não mais luminoso.

Para compreender os vaga-lumes é preciso se dispor a estar nos lugares de escuridão, onde suas frágeis, singulares e nada espetaculares vidas acontecem. É preciso colocar-se na condição de contemporâneo, tal como definida por Agamben (2009). Para relacionar-se com os vaga-lumes, encontrando-os, é necessário não desesperar, no sentido político daquele que nada espera, diante da escuridão, e diante da modesta luminosidade dos vaga- lumes, já que conforme argumenta Didi-Hubermman (2008), é preciso cerca de cinco mil vaga-lumes para compor uma luz equivalente à de uma vela. Ou seja, é a partir do encontro que os vaga-lumes tornam mais forte e mais perceptível sua luz. E eles de fato se encontram, se procuram. Inclusive o acasalamento dos vaga-lumes é a bonita visão de uma dança. Na cidade, no entanto, cada vez mais populosa, tecnológica e cheia de apelos industriais, de lazer, cultura e consumo, que evoluem freneticamente no tempo, se já é difícil ver um vaga-lume solitário, mais ainda é ver mais deles, suas danças e sua coletividade que torna menos impossível identificar vultos na escuridão.

O primeiro significado da palavra utopia remete-se a uma ilha, a ilha de Utopia. No sentido de pensar encontros com os vaga-lumes, seria então necessário procurar ilhas? Mais do que procurar, seria necessário sonhar com ilhas? Vislumbrá-las seria o sentido de utopia? As utopias poderiam sim ser as pequenas ilhas onde há ainda escuridões, para que os pequenos vaga-lumes possam construir seus lusco- fuscos, longe dos out doors de propaganda e dos projetores. No entanto, pensá-las assim as distancia das possibilidades de criação dos sujeitos, que vivem no presente, condicionados ao seu ritmo e ficcionados a partir dos modelos de amor, trabalho, consumo e subsistência nele engendrados. Na ilha cabem poucos, não podem nela habitar toda a humanidade, ela é demasiado distante. Pode ser que nela se encontrem mais vaga-lumes e é sim válida a experiência de visitá-la para contemplar sua dança, mas há de ser possível encontrar vaga-lumes (e utopias) também nos espaços da cidade.

É importante salientar, ainda sobre os vaga-lumes, que a questão fundamental ainda é nossa disposição ao encontro com eles. Não basta, por exemplo, estar no campo, onde suas vidas ainda não foram tão ceifadas, para encontrá-los e mais do que isso, enxergar sua beleza. É preciso cultivar no olhar o viés que se direciona aos vaga- lumes. É com esse olhar que se torna possível enxergar as utopias, que timidamente se apresentam nos espaços sociais, nas comunidades. Nestes espaços coletivos em que por vezes não chegam a conseguir a somar cinco mil para formar a luz de uma vela, mas que está certamente naquilo que há de potente nos grupos.

Didi-Hubermman (2008) situa a imaginação no campo político. Para ele, a "política, em um momento ou outro, se acompanha da faculdade de imaginar" (p.61). Pensar a política nesta perspectiva nos auxilia a compreender as utopias, uma vez que não é possível alimentar utopias sem que se possa conceber cenários diferentes dos que se apresentam de forma imediata no presente. A imaginação, neste sentido, não é aquela que distancia da realidade, mas a que permite sua invenção, que só pode acontecer a partir da compreensão das relações contemporâneas.

Bauman (2010) nos ajuda a pensar na liquidez de como se organiza o consumo e as relações humanas no contexto do capitalismo que ele chama de parasitário. Quando tudo é descartável e programado para acabar rápido, não há espaço para utopias. Nem para o fracasso que elas representam no que se refere aos seus projetos, nem para a falta do gozo imediato que o capitalismo contemporâneo impõe. Não há espaço para um gozo que não vem ainda, ou que talvez não venha, ou talvez nem seja gozo efetivamente. A utopia é uma demora insuportável à liquidez desse tempo, um ainda não que só pode ser aceito através de um tipo de profanação.

Para explicar essa profanação, Agamben (2007) escreve:

Profanar não significa simplesmente abolir e cancelar as separações, mas aprender a fazer delas um uso novo, a brincar com elas. A sociedade sem classes não é uma sociedade que aboliu e perdeu toda memória das diferenças de classe, mas uma sociedade que soube desativar seus dispositivos, a fim de tornar possível um novo uso, para transformá-las em meios puros. (p.67)

Se a utopia, no entanto, é ao mesmo tempo horizonte para aqueles que sonham, e profanação, através dos meios puros, para que os sonhadores não percam a inventividade do uso, de que forma lemos este paradoxo? Historicamente muitas utopias se relacionam à destituição da propriedade privada e, portanto, da divisão dos sujeitos em classes. A superação do sagrado das classes, através da desativação das suas separações, é em Agamben (2007), uma forma de profanação, ao mesmo tempo que é o horizonte das utopias sociais ao longo da história. Talvez a profanação seja a forma de presentificar a utopia, destituindo verdadeiramente as separações de classe, através do lento desmanchar dos seus dispositivos2 - um processo vagaroso, e utópico, uma vez que escapa o presente, a obscuridade do instante, e a liquidez do capitalismo deste tempo.

O horizonte é uma das formas possíveis de pensar a utopia, mas não a única. Contrapondo-se a ele está a imagem. Didi-Hubermman (2008) esclarece: "Ora, imagem não é horizonte. A imagem nos oferece algo próximo a lampejos (lucciole), o horizonte nos promete a grande e longínqua luz (luce)" (p.85). No entanto, imagem e horizonte não estão dicotomicamente separados. Pelo contrário, eles se misturam e se complementam. A imagem conseguimos ver mais de perto, com maior riqueza de sutilezas, ao mesmo tempo que é efêmera, aparece e desaparece, e é substituída no tempo, enquanto o horizonte parece se relacionar mais com uma solução messiânica para os problemas do presente. A imagem nos ajuda a destituir os totalitarismos da fixação em um horizonte, ao mesmo tempo que ela atua na perspectiva pela qual olhamos o horizonte, ela desvia dele o foco, e de forma pouco perceptível a olho nu, talvez ela também o modifique pouco a pouco.

A ideia de horizonte é responsável por boa parte das críticas contemporâneas ao que chamamos de utopia, mas talvez a relação do horizonte com a imagem possa dar vazão de forma mais potente à utopia enquanto criação de paisagens, que, poderíamos dizer, são imagens sociais. A imagem e o horizonte, que não deixam de estar em constante inter-relação, ajudam, ambos, a caminhar em algum sentido. O horizonte, sem a imagem, no entanto, pode ser paralisador, por ser demasiado distante. A imagem é capaz de subverter a homogeneidade do horizonte.

Cioran (2011), ao mesmo tempo em que faz uma crítica ao mecanismo das utopias, apontando-as como conservadoras do que é homogêneo e hostis ao que é disforme e irregular, traz como seu grande mérito o fato de problematizar os efeitos que causa a propriedade privada, tanto em pequenos quanto em grandes proprietários, corrompendo-os. Tendo suas propriedades ameaçadas, eles são sacudidos, tem seu sono perturbado, e só assim, passam a ter condições para o "despertar metafísico", segundo a perspectiva do autor. Ou seja, apesar de, para Cioran (2011), a utopia ter como característica esta rigidez que chega a ser conservadora, e de no futuro que ela desenha o autor não encontra potencialidades revolucionárias, ele enxerga seu mérito na denúncia à propriedade que ela faz no presente. A utopia pode ser pensada, portanto, a partir de Cioran (2011) como um meio, não um fim, assim como a profanação, já que é na sua crítica presente à propriedade que ela encontra formas de constituir processos de singularização.

Agamben (2007) fala do corpo como sendo palco das maiores separações, dos não usos comuns. Como exemplo disso, ele cita as fezes, já que o ato de defecar sofre uma série de proibições e sanções morais. Como seria profanar as fezes? Questiona ele. Não seria nem a vivência perversa da defecação, tampouco seria tratá-la como algo simplesmente natural. Profanar as fezes seria fazer delas um novo uso, alcançando "arqueologicamente a defecação como campo de tensões polares entre natureza e cultura, privado e público, singular e comum" (p.67). Sobre essa profanação, Agamben (2007) ainda conclui que a invenção dessas novas formas de uso só pode ser feita coletivamente.

Essa relação do corpo com a separação, apontada por Agamben (2007), parece fundamental para pensar no caráter potencialmente coletivo, e ao mesmo tempo singular, das utopias e das profanações, uma vez que constituir-se enquanto indivíduo3 faz parte da seara dos modos de subjetivação da religião capitalista. Dessa forma, mover-se em algum sentido, seja profanando elementos do presente, ou construindo um futuro diferente pela utopia, de modo coletivo, cria uma certa fissura nas separações do sistema.

Por fim, conforme aponta Agamben (2007), qualquer improfanável surge de uma intenção verdadeiramente profanatória. Talvez este deva ser o maior cuidado a tomar com as utopias, não deixar que elas percam sua relação direta com a profanação, com o uso comum, com os agenciamentos coletivos da enunciação, se quisermos citar Deleuze (2000). Elas oferecem sim componentes importantes para a sociedade, através da reação a um presente difícil de suportar, mas, citando Naffah Neto, "convém, pois, abandonar as representações utópicas sempre que elas possam significar um desalento para o nosso desejo, um limite para o nosso entusiasmo" (1997, p.114).

Pensando-se, portanto, em uma ideia de utopia que não se constitui limite para o entusiasmo, e a partir das considerações discutidas até aqui, parece pertinente sintetizar nossa compreensão do conceito de utopia em algumas características. Não porque nossa discussão necessite nos levar a um fim qualquer, uma vez que ela, antes de tudo, é um meio, talvez um meio puro, que nenhuma verdade produz e nenhum futuro prevê. Mas porque nos meios, não há inícios e fins que não se delimitam linearmente no tempo e na estética, aqui em nosso caso, da escrita, mas há possibilidades de leitura que se ordenam e desordenam, se subvertem. Talvez se pudesse começar a leitura do texto pela enumeração de características, esta tentativa de inventar uma conclusão, para por fim concluir que sua explicação anterior não simplifica, mas complexifica, não explica, mas dispara questionamentos. Também ao começar do começo, a partir da estrutura linear do texto, percebemos que um conjunto de características não nomeia ou define uma suposta utopia essencial, mas é uma - e apenas mais uma - ficção escrita daquilo que ela está, ou processualmente é, na subjetividade. Vamos à ficção de síntese:

1. A utopia, apesar de significar etimologicamente "nenhum lugar" está em todos os lugares, e participa da vida humana de forma muito significativa. Ela ajuda a manter os pilares do sistema econômico vigente e também mantém os dogmas religiosos, através de ideias como o paraíso, para exemplificar a partir do cristianismo, além de atuar nas artes e de transformar as relações políticas na sociedade.

2. A utopia é um atravessamento no tempo. Ela aponta possibilidades para além do presente, sem deixar de atuar na criação do aqui e agora, e , sem deixar de retornar à origem. A utopia, conforme aqui buscamos cartografar não seria uma nostalgia do passado e uma tentativa de retornar a ele, tampouco a vivência antecipada do futuro, mas é uma conjugação entre os tempos. Ela se relaciona com a percepção de que o tempo não é estático, e de que retornos ao que é passado acontecem, bem como o futuro pode ser esculpido no agora.

3. A utopia é imagem. E sendo imagem, é também imaginação, estando relacionada com a capacidade de vislumbrar o devir. A imagem da utopia pode ser traduzida também como sonho, não só as manifestações do inconsciente produzidas no sono, mas, sobretudo, os sonhos diurnos para usar o termo de Ernst Bloch (2006), significando a capacidade concreta de aspirar tempos de mais justiça.

4. A utopia que aqui se intentou mapear encontra solo fértil em espaços coletivos. As utopias individuais são típicas do modelo econômico e cultural do presente mais imediato, mas a transformação dele, que acontece também no presente, se dá no plano coletivo e assim possibilita outros processos de singularização.

5. A utopia potencialmente transformadora é mais discreta do que alegórica, mais vaga- lume do que projetor. Ela requer um olhar atento, não está presente nos meios de comunicação mais hegemônicos, tampouco se aproxima de ser um produto comercial. A utopia está entre a madrugada que acaba e o dia que desponta nascer, ela tem cores de lusco-fusco em seu momento imagético mais poético. Ela, no entanto, não existe sem a treva. Como os vaga-lumes, seu brilho é mais intenso nos momentos de maior escuridão, cuja cor vai se transformando com o sol que se aproxima.

 

Notas

1 O rizoma é uma estrutura que não tem origens ou hierarquias definidas, mas se constitui na multiplicidade. "[...] oposto aos decalques, o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre desmontável conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas[...]" (Deleuze & Guattari, 2011, p. 43).

2 Aqui compreendemos dispositivo conforme o conceito proposto por Agamben (2009), sendo ele próprio a rede que estabelece relação com um conjunto heterogêneo de elementos, estando inscrito em uma relação de poder, e sendo resultado do cruzamento de relações de poder e saber.

3 "(...) O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e criação, na qual o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um processo que eu chamaria de singularização. (...)" (GUATTARI & ROLNIK, 2013, p. 42)

 

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Enviado em: 16/11/16
Aceito em: 01/03/18

 

 

Édio Raniere é doutor em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é professor do curso de Psicologia na Universidade Federal de Pelotas (UFPel).
E-mail: edioraniere@gmail.com
Laís Vargas Ramm é mestranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: laisramm@gmail.com

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