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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2019

 

RESENHAS

 

Resenha do livro Tem saída? Ensaios críticos sobre o Brasil

 

Review about the booki is there a way out? Critical essays on Brazil

 

La resina del libro ¿Tiene salida? Ensayos críticos sobre el Brasil

 

 

Marília Verissimo VeroneseI; Julice SalvagniII

IUniversidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), São Leopoldo, RS, Brasil
IIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

A resenha analisa o livro Tem Saída? Ensaios críticos sobre o Brasil, organizado e escrito por mulheres. A capacidade imaginativa de um grupo heterogêneo de mulheres feministas é posta a serviço da análise de cenários e de propostas de superação das crises historicamente enfrentadas no país.

Palavras chave: Interseccionalidade; Crise política; Brasil; Feminismo.


ABSTRACT

The review analyzes the book Is there a way out? Critical essays on Brazil, organized and written by women. The imaginative capacity of a heterogeneous group of feminist women is put at the service of the analysis of scenarios and proposals to overcome the crises historically faced in the country.

Keywords: Intersectionality; Political crisis; Brazil; Feminism.


RESUMEN

La reseña analiza el libro ¿Tiene salida? Ensayos críticos sobre Brasil, organizado y escrito por mujeres. La capacidad imaginativa de un grupo heterogéneo de mujeres feministas es puesta al servicio del análisis de escenarios y de propuestas de superación de las crisis históricamente enfrentadas en el país.

Palabras clave: Interseccionalidad; Crisis política; Brasil; El feminismo.


 

 

Introdução

O livro Tem Saída? é uma obra plural, escrita a muitas mãos. Tais mãos são femininas, de mulheres que, a partir desse aspecto comum, elas desdobram-se em grande multiplicidade: de origem de classe, raça-etnia, idade, área de atuação, visão de mundo e cultura política. O perfil das autoras é diverso; diplomata, acadêmicas, ativistas, militantes. Algumas tiveram infância pobre e periférica. O livro é um bom exemplo do que acontece quando mulheres, seja qual for sua origem de classe, têm acesso à educação e passam pelo gargalo do acesso aos altos níveis de ensino. O que elas podem produzir de excelência em termos de conhecimento, imaginação criativa, artes e práticas sociais inclusivas, está expresso nessa obra.

É, por conseguinte, um livro profundamente político, no sentido de pensar o bem comum em uma sociedade desigual. Algumas autoras chamam o processo de deposição da presidenta Dilma Roussef de impeachment, outras de golpe. As compreensões são livres e não seguem parâmetro único. Apresentar o pensamento de um grupo plural e polifônico de mulheres já é uma ação política, pois o pensar de alternativas se deu majoritariamente por via masculina, até então.

As organizadoras parecem não ter buscado uma unidade, mas sim uma diversidade de pontos de vista. O livro tem uma breve introdução e posteriormente é dividido em cinco partes temáticas e 26 capítulos entre elas distribuídos.

 

A prefiguração como saída democrática

Na introdução da obra, Winnie Bueno, Joanna Burigo e Rosana Pinheiro- Machado analisam a crise atual como um momento crítico de rupturas, mas que marca também as continuidades para as populações subalternizadas, jamais incluídas na ideia de um contrato social democrático. Propõem a incorporação de diversas vozes ao debate público para enfrentar a crise atual, entendida como continuação de crises enraizadas nas estruturas desde sempre antidemocráticas do Brasil; a proposta geral é a da "radicalização do projeto democrático desde a base" (p. 13). Os múltiplos modos de pensar essa radicalização são concebidos através do "motor de transformação social" no qual a obra aposta: as vozes das mulheres que dela participaram.

 

Globalização, neoliberalismo e governabilidade

O cenário da globalização neoliberal é lido desde diferentes pontos de partida. O primeiro capítulo coube à cientista política Flavia Biroli, intitulado "O fim da Nova República e o casamento infeliz entre neoliberalismo e conservadorismo moral". Ela apresenta uma síntese do ciclo vivido pelo país entre 1988 e 2016. O pacto social contido na "constituição cidadã" e a ruptura institucional recente são os marcos temporais que utiliza. Analisa os limites da democracia durante o período, restrita em termos de ampliação do processo democrático. Aborda o "ciclo dentro do ciclo" (p. 21), o período do PT no governo federal, pontuando a relação do governo com as bases sociais e a limitada permeabilidade do Estado aos setores populares. Conclui que o golpe se atualiza no "casamento infeliz" entre configurações neoliberais antidemocráticas com o recrudescimento de padrões de conservadorismo moral.

O segundo capítulo, "Projetos sem Sujeito e Sujeitos sem Projeto", escrito por Tatiana Roque, é uma análise crítica sobre os últimos 15 anos no Brasil. O texto destaca a relação entre a subjetividade e a economia política, no surgimento de novos atores sociais com novas expectativas, porém ainda incapazes de expressá-las em demandas próprias bem elaboradas, tudo num contexto marcado por políticas e produções subjetivas neoliberais.

Marcia Tiburi assina o terceiro texto, e ele é claramente o de uma filósofa, preocupada em pensar o presente do país através de elementos como a temporalidade, a (des)esperança, a ética e a escuta como ato político. Sua escrita destaca a dimensão trágica da situação, sem ceder ao desespero, mas procurando a saída na escuta como ato político: escuta das demandas, dos sinais, das possibilidades.

Na sequência, Luciana Genro escreve um texto em que busca pensar a transição de uma sociedade capitalista neoliberal, de característica especulativa e parasitária (rentismo, dívida pública crescente) para uma sociedade "livre da exploração e da opressão" (p. 50). Analisa a versão marxiana do programa de transição, procurando traduzi-la para o ambiente social contemporâneo, concluindo que tudo depende da organização e ação popular.

O capítulo de Adriana Abdenur, pesquisadora das relações internacionais, aborda a multipolarização do sistema internacional hoje, o assimétrico jogo de poder da instável geopolítica global. Ela utiliza-se do exemplo empírico da Nova Rota da Seda (NRS), uma plataforma de "abertura de mercados e fluxos de investimentos" (p. 60), liderada pela China como mais um impulso à globalização. Argumenta que a estratégia brasileira no plano internacional deve orientar-se por perspectiva universalista, ao invés de apostar em um único parceiro estratégico.

 

Impeachment e resistência

Nessa seção, o processo de deposição da primeira presidenta mulher do Brasil é o foco da análise. Helcimara Telles, cientista política, abre a seção remetendo ao processo eleitoral de 2014 e as mudanças no perfil do legislativo federal que trouxe, além da instabilidade provocada pelo grupo derrotado, logo após o resultado do pleito. Segue avaliando a desigual cobertura midiática do processo de impedimento e pondera que a "ausência de política" foi a produtora da crise.

Sâmia Bomfim, vereadora de São Paulo, continua a seção com seu texto "Uma saída radical para tempos dramáticos". Apostando na radicalidade de um processo revolucionário levado a cabo por múltiplos atores, baseia-se fortemente nas elaborações de Plínio de Arruda Sampaio Jr. relativas à "reversão neocolonial" (p. 83). Ativista de Junho de 2013, afirma que a narrativa do "lulismo" (p. 82) é a de quem não fez parte do movimento, culpando-o equivocadamente pelo ascenso conservador. Ela conclui exortando à construção do único "estado de exceção" (já que nunca efetivado): o da ousadia e radicalidade da via revolucionária que superaria as opressões.

O próximo texto causa uma emoção especial: é talvez o último publicado pela vereadora carioca Marielle Franco, socióloga e mestra em gestão pública. Marielle transformou-se em símbolo das lutas por justiça ao ser executada, junto com o motorista Anderson Gomes, no dia 14 de março de 2018. Ela escreveu sobre os movimentos pós-golpe pelo olhar de uma feminista, negra e favelada. Ressaltou as desigualdades existentes entre as próprias mulheres - todas enfrentam o machismo institucional da formação social brasileira, mas algumas enfrentam ainda o racismo, a ausência do Estado como garantidor de direitos, a moradia periférica, o trabalho mal remunerado. Contudo, essas mulheres são descritas como ativas em espaços culturais, políticos e laborais da cidade, tendo potencial criativo de resistência.

O próximo texto parte do seriado Game of Thrones, produzido pelo canal HBO, para trabalhar o tema da política e das resistências. Fhoutine Marie, jornalista e cientista política, utiliza a série, cujo enredo apresenta disputas por poder e golpes sucessivos, para analisar o momento do país. Os personagens enfrentam antagonismos e lutas e a autora traça analogias com os processos ocorridos no Brasil. A recusa da política institucional acabou levando a uma "guinada violenta à direita" (p. 99) e à eleição de políticos com perfil de "gestor" privado. Diante desse cenário, que leva as esquerdas a conclamarem "união", a autora a reflete se, como o "povo livre" do seriado, também não poderíamos pensar em "alianças entre unidades autônomas na forma de federação" (p.101).

 

Democracia, nação e interseccionalidade

A seção analisa a democracia sob a perspectiva da interseccionalidade das opressões. Qualquer proposição de avanço democrático não pode prescindir da visão interseccional, afirma-se.

Tatiana Vargas Maia analisa a construção da identidade nacional brasileira, erigida sob o falacioso conceito de "democracia racial", mostrando que tal formação deu-se no âmbito de violentas exclusões e distanciamento social entre negros e brancos. O resultado foi uma sociedade de classes na qual raça e gênero são os marcadores sociais que impõem as piores condições de vida e menores oportunidades à população negra, especialmente às mulheres.

Laura Sito, no texto seguinte, aborda em específico a condição da mulher negra, colocando-a como agente estratégico de transformação do instituído, justamente porque a mais prejudicada pela falsa ideia de "democracia racial". Baseando-se em Angela Davis, lembra que a classe informa a raça e vice-versa, assim como gênero e raça são as maneiras como a classe é vivenciada.

Luka Franca busca alternativas aos projetos societários da direita política, cuja hegemonia agudizou-se após 2016, quando se acelerou a retirada de direitos sociais. Se para a direita do espectro político é bastante clara a posição em relação ao gênero e à raça, para a esquerda ainda há ambiguidades, com tendência de centrar-se na questão classe social, menosprezando o que chamaria de demandas "identitárias". Não há como equacionar os direitos no campo da classe sem resposta programática consistente ao genocídio da juventude negra e ao feminicídio de mulheres negras e LGBTQs, afirma a autora.

Suelen Goncalves foca a análise no problema do encarceramento crescente. Calcada em Angela Davis, afirma que se o encarceramento continuar concebido como a forma de "justiça" predominante, a injustiça concreta não se resolverá. Qualquer proposta nova de institucionalidade precisa debater esse tema.

Juliana Borges aposta na retomada e ressignificação do conceito de democracia, para ela tão em disputa quanto qualquer categoria da linguagem. A democracia sob a ordem política neoliberal só precisa atender ao 1% mais rico, relegando os 99% à crescente violação de direitos fundamentais. As alternativas a essa ordem necrófila passam pela incorporação do pensamento feminista negro ao debate, a luta pela descolonização dos corpos e a consideração da imprescindibilidade da liberdade.

 

Corpo, vida e morte

Nessa parte o corpo passa ao centro do debate que as autoras estabelecem. Fernanda Martins pensa o corpo através do conceito de "corporeidades críticas" (p. 150). A vivência dessa corporeidade faz a crítica à naturalização das vidas "descorporificadas", tidas como "baixas" inevitáveis ou acidentais (negros, pobres, indígenas, moradores de rua etc.). A autora clama pelo "olhar feminista desessencializante" e pela "insurgência como energia potencial".

Daniela Mussi, na sequência, trata do feminicídio. Parte de pesquisa de Hall e colaboradores (1978) sobre o assalto violento (mugging) e os efeitos da espetacularização desses eventos no imaginário da população inglesa. Jovem de origem periférica, etnicamente distinto do caucasiano, o mugger era o personagem eleito para canalizar as frustrações sociais. A sociedade inglesa exigia um "consenso autoritário" (p. 157) para reprimir os subalternos insatisfeitos. Em seguida, a autora relembra o caso da violonista Mayara Amaral, assassinada em 2017. A mídia, ao reproduzir o discurso de um dos assassinos como forma de divulgação do caso, motivou um desabafo público da irmã da vítima. Daniela analisa o texto, ligando o feminicídio ao mugging enquanto eventos produtores de consensos conservadores.

Linna Ramos disserta sobre a "Crise Política e as Esquerdas" olhando o Brasil a "partir da composição de raça" (p.165). A autora traça um panorama das disparidades de acesso a direitos entre mulheres negras e o resto da população. O sofrimento decorrente é invisibilizado, numa mitificação da mulher negra forte, que tudo suporta - como suportou a escravidão, os maus-tratos, o estupro, o trabalho duro. Mas ao levar consigo, historicamente, a somatória das desumanizações, ela torna-se agente estratégico central na luta contra a opressão: quando as mulheres negras forem livres, todos serão.

Adriana Facina escreve sobre as "Políticas culturais em tempos de crise". A criminalização da pobreza e das sociabilidades populares é modo de controle da ordem burguesa. Em períodos de crise, quando o Estado "gere" a instabilidade através de políticas neoliberais, essa prática tem levado ao genocídio da juventude negra favelada. Ameaçados por uma série de perigos, de morte, prisão ou impossibilidade de viver de sua arte, aqueles que produzem cultura nas favelas precisam de inventividade para seguir em frente. Essa potência criativa muito pode ensinar; fortalecer esses agentes, compartilhando de sua arte, pode fazer-nos mais próximos da festa e do bem viver, distanciando-nos dos cortejos fúnebres do extermínio da juventude.

Violência no Rio de Janeiro e a atitude da "grande mídia" é o tema de Laura Astrolábio. Propugna que, apesar da novidade da chamada "mídia alternativa", quem tem poder de entrar na casa das massas trabalhadoras no Brasil é a mídia que possui as concessões públicas, nunca reavaliadas, apesar do baixo grau de responsabilidade social demonstrado. Quando a mídia tratou o racismo institucional a sério? Essa mídia que temos, que usa o privilégio da concessão pública, é chamada a responsabilizar-se por seus atos? Laura, através dos questionamentos, tece uma aguda crítica ao setor.

Fechando a seção, a historiadora Suzane Jardim escreve sobre "A reconstrução do mínimo: falsa ordem democrática e extermínio". Abre o texto mencionando que pensou em recusar o convite de compor a obra. Primeiro, por não vir da "intelectualidade feminina brasileira convocada a pensar a reconstrução da democracia nacional" (p. 192). Segundo, por não achar que ela valesse a pena ser reconstruída. A autora vai construindo a narrativa mesclando suas experiências pessoais com análises da realidade brasileira. Assim como para Helen Wood a democracia é incompatível com o capitalismo, para Suzane ela é incompatível com uma sociedade racista e punitivista. Recorre ao homo sacer de Giorgio Agamben para expressar como é viver em comunidades onde as leis protetivas do Estado não valem.

 

Crise, imaginação, sentido e saídas

Catarina Brandão abre a última parte escrevendo sobre "O longo caminho de volta" que precisam fazer as organizações de esquerda, até suas bases populares, das quais se afastaram ao ascender ao poder do Estado. Utiliza Deleuze com as definições de minorias e maiorias, para mostrar o quanto as minorias - mulheres, LBTQs, crianças, negros, imigrantes - foram "abandonadas" no meio do caminho, e o quanto isso as pode aproximar da direita política.

Jussilene Santana pergunta "Onde foi parar sua imaginação?", ao escrever sobre a relação da arte com a política. Critica as políticas do Estado para o setor nos últimos 30 anos. Propõe cooperativas de teatro, pequenas empresas, grupos que atuem fora da dependência do Estado e do Mercado. Confia que a arte pode mudar uma cultura política, mas apenas se for deixada livre para vir ao socorro da imaginação, ao mimetizar realidades e deixá-las para as pessoas (re) construírem.

Na sequência da última parte, duas entrevistas. A primeira é concedida por Manuela D'ávila, à Joanna Burigo, sobre a crise mundial das esquerdas, que não consegue se impor como alternativa credível, diante da crise do capitalismo. Os múltiplos atores sociais hoje atuando na sociedade, como seria possível aglutiná-los para a resistência, com demandas tão distintas? Manuela pontua que, como as mulheres são as mais afetadas pelo desmonte de políticas públicas de saúde e educação, já que ficam com as tarefas de cuidado, devem estar na pauta da esquerda contemporânea.

Helena Vieira, ativista transfeminista, escritora e dramaturga, respondendo sobre a crise de sentido e a saída à esquerda, dá uma aula de história política para a entrevistadora Rosana Pinheiro-Machado ao analisar o trabalhismo de Brizola, a fundação e enraizamento social do PT, a trajetória da esquerda desde os anos 80. Fala também sobre o presente, a importância das políticas públicas locais, da retomada da economia solidária e do tema da "gestão" como pauta relevante.

No penúltimo capítulo, Rosana Pinheiro-Machado imagina novas saídas. Aborda a necessidade de superar a ficção do "progresso", reatualizada como "desenvolvimento". Sugere a recuperação dos saberes tradicionais e populares como modo de democratizar a proposição de soluções. Ela destaca três campos sociais: comunidades indígenas e quilombolas, ocupações estudantis e de moradia, informalidade urbana. Esses atores sociais já desenvolvem, criativamente, nas piores condições, saídas para seus dilemas. Se fossem apoiados e ouvidos, poderiam contribuir com um projeto de esquerda que pudesse "reconstruir um país em frangalhos" (p. 237).

Fechando o livro, Avelin Buniacá Kambivá, socióloga e professora, fala da capacidade de organização da mulher indígena frente à hegemonia do homem branco que representa um paradigma oposto ao das etnias tradicionais. São figuras como ruralistas latifundiários, madeireiros, garimpeiros, engenheiros das grandes obras etc. Ela propõe o enfrentamento da violência em todas as esferas da vida, o aumento da participação, o direito à terra, à saúde e educação, o empoderamento econômico, a valorização dos saberes tradicionais e um maior diálogo intergeracional.

 

Comentários finais

Pensando nas eventuais "ausências" do livro, do que poderia ser acrescentado numa nova edição, cremos que a experiência das mulheres trans deveria compor um capítulo específico. A única pessoa transgênera a participar do livro, na entrevista, fala mais sobre as alternativas políticas que imagina do que sobre a experiência em si. Também foi uma voz ausente o chamado putafeminismo, o ativismo feminista das trabalhadoras sexuais.

Outro ponto importante seria o da violência obstétrica e do ativismo das mulheres mães, que envolve também os direitos reprodutivos e as formas de criar os filhos sem violência, politizando a necessidade de haver recursos para tanto, pois se trata da educação da humanidade do futuro; responsabilidade de toda a sociedade, recai quase exclusivamente sobre os ombros das mulheres. Enquanto a OMS recomenda de 10 a 15% de partos cesáreos (percentual em que essa cirurgia salva vidas de mulheres e bebês, baixando a taxa de mortalidade materno-infantil), o Brasil tem índices de 56% no sistema público e perto de 90% no setor privado. Isso é basicamente um crime contra a segurança, a saúde e a vida das mulheres, como afirma a antropóloga Robbie Floyd Davis (2017). O tema precisa ser trazido à discussão das novas propostas para combater a misoginia nos sistemas de saúde no país.

Não pudemos, também, deixar de observar que muitos autores de referência, citados nos capítulos, são homens: Marx, Foucault, Deleuze, Marcuse, Benjamim, Faoro, Proudhon, Weber, Sousa Santos, Mbembe, Adorno, O'Donnel, Agamben (erroneamente grafado como "Agaben" nas páginas 148 e 153), Gramsci, Polanyi, Bakhtin, Derrida, Sampaio Júnior etc. Logicamente, as mulheres e as feministas também são amplamente citadas pelas autoras; alguns artigos, inclusive, as citam majoritariamente. Considerando o livro como um todo, porém, há um sinal de que os modelos teóricos a partir dos quais lemos o mundo ainda hoje, foram predominantemente elaborados por homens. Que lugar têm as mulheres nas elaborações em que nos apoiamos para pensá-las? A obra aqui comentada pode contribuir muito para elucidar essas questões e avançar nas proposições teórico- analíticas elaboradas por mulheres, para um futuro das ciências sociais e do ativismo político que seja realmente representativo dos sexos e gêneros, das cores e etnias.

 

Referências

Buenno, W., Burigo, J., Pinheiro-Machado, R.,& Solano, E. (org). (2017). Tem Saída? Ensaios        [ Links ]

Davis, R. F. (2017). Ways of Knowing about Birth: Mothers, Midwives, Medicine, and Birth Activism. Long Grove: Waveland Press.         [ Links ]

 

 

Enviado em: 13/07/18
Aceito em: 28/10/18

 

 

Marília Veríssimo Veronese é doutora em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Professora no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos).
E-mail: mariliav@unisinos.br
Julice Salvagni é doutora em Sociologia pela UFRGS. Professora do Departamento de Ciências Administrativas da UFRGS.
E-mail: julicesalvagni@gmail.com

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