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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2019

 

ARTIGOS

 

Gestão Autônoma da Medicação: saberes e visibilidades de usuários de saúde mental em universidades no interior do RS

 

Autonomous Medication Management: knowledge and visibilities of mental health users at universities in the countryside of RS/Brazil

 

Gestión Autónoma de la Medicación: saberes y visibilidades de usuarios de la salud mental en universidades en el interior del RS/Brasil

 

 

Leonardo Lima de Senna; Marcos Adegas de Azambuja

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo abordou os efeitos de uma pesquisa da estratégia da Gestão Autônoma da Medicação em usuárias(os) da saúde mental que passam a ocupar o lugar de palestrantes em ambientes acadêmicos no interior do RS. Por objetivo geral pretendeu analisar como se constituíram esses investimentos e visibilidades no saber das(os) usuárias(os) para frequentarem essas universidades. Também intentou-se descrever as relações de saber e poder e os limites da prática de autonomia nas salas de aula. Por uma abordagem de inspiração foucaultiana, mapeou-se o campo estratégico produzido pela pesquisa e os enunciados 'saber no corpo' e 'autonomia' pela experiência de seis participações dessas pessoas como palestrantes. Discute-se a produção de um corpo que encontra outras possibilidades além da relação com o medicamento e a loucura, assim como um processo de autonomia temporária no jogo de forças da ação de uns sobre os outros.

Palavras-chave: saúde mental; gam; usuários; autonomia


ABSTRACT

This apper deals with the effects of a research on the strategy of Autonomous Medication Management in mental health users who are now taking the place of lecturers in academic settings in the countrtyside of the district of RS, Brazil. The purpose of the general objective was to analyze how these investments and visibilities were constituted in the knowledge of the users to attend these universities. We also attempted to describe the relations of knowledge and power and the limits of the practice of autonomy in classrooms. Through a Foucauldian-inspired approach, the strategic field produced by the research and the statements 'knowing in the body' and 'autonomy' were mapped by the experience of six participation of these people as lecturers. It discusses the production of a body that finds other possibilities beyond the relation with medicine and madness, as well as a process of temporary autonomy in the role of forces of the action of one on the other.

Keywords: mental health; gam; users; autonomy


RESUMEN

Este artículo abordó los efectos de una investigación de la estrategia de la Gestión Autónoma de la Medicación en usuarias(os) de la salud mental que pasan a ocupar el lugar de oradores en ambientes académicos en una ciudad interiorana del RS, Brasil. Por objetivo general pretendió analizar cómo se constituyeron esas inversiones y visibilidades en el saber de las usuarias(os) para frecuentar esas universidades. También se intentó describir las relaciones de saber y poder y los límites de la práctica de autonomía en las aulas. Por un enfoque de inspiración foucaultiana, se mapeó el campo estratégico producido por la investigación y los enunciados 'saber en el cuerpo' y 'autonomía' por la experiencia de seis participaciones de esas personas como oradores. Se discute la producción de un cuerpo que encuentra otras posibilidades además de la relación con el medicamento y la locura, así como un proceso de autonomía temporal en el juego de fuerzas de la acción de unos sobre otros.

Palabras clave: salud mental; gam usuarios; autonomía


 

 

Introdução

Todo mundo fede igual aqui.

Essa frase emana de um usuário da saúde mental, mas, ao contrário do que poderíamos imaginar, não é proferida em um hospício, nem em um centro de tratamento, muito menos de alguém em surto ou crise. Ela ecoa em uma sala de aula, em uma disciplina na universidade, para acadêmicos de um curso de psicologia, que permanecem imóveis e em silêncio, como quem assiste algo inédito, sem poder perder um instante. Ele, a convite de um estudante, é um dos nossos 'palestrantes' da roda de conversa sobre saúde mental. Ele vinha nos falando de sua experiência com o Guia da Gestão Autônoma da Medicação (GGAM) e a frase "Eu sou uma pessoa, não uma doença" (Campos, Passos, Leal, Palombini e Serpa, 2012, p. 18) foi a forma de provocação desse encontro.

Não sei, eu queria entender, por que será que vocês estão quietos? Será que é por que vocês estão com vergonha, ou por que não conseguem se colocar no lugar da gente, da doença, de quem sofre? (Usuário-Palestrante).

Os convidados já haviam contado de suas vidas, lançado a questão para debate e agora as indagações exerciam tal força no ambiente que se tornou insustentável manter o silêncio daqueles que se colocavam supostamente neutros, impassíveis de afetação, senhores de si, observadores, avaliadores e prescritores do objeto doença. Assim, dobrados sobre nós mesmos, a doença não estava mais apenas lá. Em relação a essa dobra acompanhamos o sentido propositivo de Deleuze (2005) em que, a subjetivação, a relação consigo, vai se metamorfoseando enquanto está em contato com as relações de saber e poder e que a relação consigo não para de renascer em outros lugares e de outras formas, assim como a fórmula mais geral da relação consigo é: "o afeto de si para consigo, ou a força dobrada, vergada. A subjetivação se faz por dobra" (p. 111). Todos somos pessoas, todos sofremos e a partir disso foi possível começarmos uma conversa.

Entendemos que o exposto acima condensa fortes pontos de inflexão sobre as formas como estamos produzindo socialmente as relações com as pessoas que, de alguma maneira, passam pelo crivo da categoria loucura. A inserção delas em um espaço privilegiado de produção de conhecimento, o interesse em suas experiências enquanto saber legítimo em relação ao sofrimento psíquico, aos serviços de saúde, aos medicamentos, etc, tornando-as visíveis e audíveis para um público que, em sua maioria, é composto por futuros e/ou atuais profissionais envolvidos com a saúde mental, é a temática que compõe esse texto.

A cena que descrevemos faz parte de uma série de convites que usuária(o)s da saúde mental receberam para participar de aulas e palestras em universidades - o que se poderia considerar como um dos efeitos da etapa regional de uma pesquisa multicêntrica, a qual acompanha o percurso de efetivação do Guia GAM (GGAM) nos serviços de saúde de três macrorregiões do Rio Grande do Sul (RS), desde 2015. A

chegada dessas pessoas ao meio acadêmico não se dá de forma aleatória, mas há um campo estratégico que se desenvolve em torno de pesquisadoras(es), que vão ocupando os serviços da saúde mental em uma cidade no interior do RS, por um viés crítico às formas de cuidado e políticas públicas nessa área. Parte-se da força de contágio na perspectiva de Deleuze (1988), pela qual, antes do que propor uma imitação do ou identificação ao GGAM, há uma fazer junto, emissão de signos a se desenvolver no heterogêneo, no híbrido, no campo de criação da estratégia GAM e dela advém discursos e práticas que se aproximam das propostas de luta antimanicomial e Reforma Psiquiátrica sobre inclusão e problematização social da loucura. A seguir passaremos pelas linhas gerais que oferecem corpo teórico e prático para o trabalho com a GAM.

A GAM surge no Quebec, Canadá, e chega ao Brasil, em 2009, passando por um processo de tradução e adaptação ao contexto de nosso país pelo empenho de pesquisadoras(es), acadêmicas(os), trabalhadoras(es) e usuárias(os) da saúde mental (Campos et al., 2012). Tem como ponto de partida o "(...) reconhecimento de que cada usuário tem uma experiência singular ao usar psicofármacos e de que importa aumentar o poder de negociação desse usuário com os profissionais da saúde" (Campos, Passos e Palombini, 2014, p. 07). Assim como, trabalha com a ideia de visibilidade à pluralidade de posições e escolhas em face da medicação. Esse reconhecimento do saber da(o) usuária(o) ultrapassa psicofármacos e negociação com profissionais, já que enunciados de autonomia, cogestão, cidadania, entre outros, são, ao mesmo tempo, princípios básicos e indispensáveis para circularem nas ações desta estratégia, tornando cada vez mais recorrente investimentos e valorizações em outros saberes, o que nos permite entender algumas das condições de possibilidades para a ocorrência dos convites e participação de usuárias(os) em âmbito universitário.

Existem muitos estudos que mostram o campo de discussão que envolve a(s) loucura(s), o (a)normal, os estigmas e preconceitos, as pessoas diagnosticadas com grave sofrimento mental, que passaram por internações psiquiátricas e confinamentos, vulnerabilidades e que sofreram várias formas de violências ao longo de suas vidas (Amarante, 2000; Canguilhem, 2009; Foucault, 1972, 2000 a, 2010; Goffman, 1982; Lancetti, 2013; Silveira & Palombini, 2016).

Além disso, pensar nessas questões nos remete a Michel Foucault (1972) e o trabalho que elaborou com a História da Loucura na Idade Clássica, onde mostra que o objeto loucura não é natural, como se estivesse esperando para ser descoberto, descrito e analisado, mas sim uma criação histórico social. Na era clássica a loucura é entendida em uma experiência global do desatino e é bem assimilada em suas formas singulares na Idade Média e na Renascença. No século XV, ocorreram práticas localizadas, inicialmente na Espanha e depois na Itália, onde foram abertos os primeiros estabelecimentos reservados aos loucos, sendo que "a loucura era experimentada em estado livre (...) e é para cada um uma experiência cotidiana que se procura mais exaltar do que dominar" (Foucault, 2000a, p. 78). Na metade do século XVII, ocorre uma brusca mudança, esse mundo da loucura se torna o mundo da exclusão. O próprio internamento dos loucos e malfeitores em meados do século XVII, obedecia ainda a essa prática. Ademais, o esquema do internamento também era utilizado, mas no sentido de "distribuir os indivíduos um ao lado dos outros, isolá-los, individualizá-los, vigiá-los (...) e fixar assim um espaço permanentemente controlado tanto quanto possível, de todos os fenômenos" (p.89). Já no século XVIII não há nada de comum entre essa manifestação e a liberdade na qual ela aparecia durante a Renascença. E é a partir desse século e início do século XIX, com o desenvolvimento do asilo e da noção de alienismo, sendo esse último construído a partir da influência de Philippe Pinel, que desenvolve o tratamento moral caracterizado pelo isolamento e pela constituição de uma ordem e/ou autoridade asilar. De acordo com esse tratamento, o isolamento era necessário com o intuito de retirar o alienado das suas sensações habituais e percepções que haviam gerado a doença. Com isso o asilo passa a ser um importante local de tratamento onde se buscava tornar o louco um sujeito produtivo e disciplinado. Para Goffman (1974) as instituições totais têm essa característica de universalidade do tratamento, de padronização e homogeneização das condutas, a fim de "curar" e tornar os pacientes adaptados ao convívio social. Desse modo, a loucura assume, aos poucos, a conotação de doença mental, já que é a partir desse momento, nesse novo mundo asilar, onde a moral castiga, que pela primeira vez, no mundo ocidental, a loucura vai receber status, estrutura e significação psicológicos, já que tornou-se algo concernente à alma humana, e inscreve-se na dimensão da interioridade (Foucault, 2000a).

A Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) acompanha esses movimentos críticos e o campo da saúde mental vem olhando para os sujeitos de forma mais integral e ampliada, resistindo a reduzi-los ao que se identifica neles como doença. Com a Constituição de 1988, no Brasil, verifica-se que as questões que dizem respeito à saúde estão muito atreladas à cidadania. Junto a isso, o Sistema Único de Saúde (SUS) surge com base em princípios políticos de solidariedade social, asseguração da participação da população, universalidade ao acesso em saúde, equidade e integralidade da atenção. A Saúde Mental também entra nesta esteira política (Reforma Psiquiátrica - Lei número 10.216) com os movimentos da luta antimanicomial e da desinstitucionalização (Amarante, 2000; Basaglia, 1985), trabalhando com a questão da loucura e da diferença, quebrando com estereótipos e discriminações e, assim, construindo sujeitos cidadãos. As mudanças do modelo hospitalocêntrico para um modelo de saúde mental comunitária, que possibilitou a ampliação do campo da clínica, qualificando a atenção como psicossocial, redefinindo o sentido de saúde na fronteira entre o individual e o coletivo (Onocko-Campos, 2001), indicando uma inseparabilidade entre atenção e gestão, é o que equivale afirmar a indissociabilidade entre clínica e política (Passos & Benevides, 2001). A questão que instiga esse texto em nossa prática de pesquisa - na confluência desses movimentos de resistência com relação a algumas práticas em saúde mental e associadas à estratégia da GAM - é a forma como investimos no saber e na visibilidade de usuárias(os) para que ocupassem, mesmo que temporariamente, espaços de debates acadêmicos. Para tanto, nos perguntamos: Quem pode ir à universidade? O "louco" vai à universidade? E ocupar quais espaços? Por que e para que estamos interessados no saber da(o)s usuária(o)s? Essas são perguntas que incomodam e desestabilizam, nos forçam a pensar e problematizar também as nossas práticas nessas relações. Nessa experiência ocupamos posições sociais diferentes das díades usuário-profissional e professor-aluno, adentramos em um território de poder e saber bem demarcado: a universidade. Desse modo, como Marques, Palombini, Passos e Campos (2013), apostamos que mudar de lugar muda o lugar, ao produzir desestabilização dos lugares de acadêmica(o), pesquisador(a), profissional, usuária(o), etc.

Sendo assim, o objetivo geral deste artigo é analisar como se constituíram esses investimentos e visibilidades no saber das(os) usuárias(os) que receberam convites para frequentarem a universidade. Como objetivos específicos pretende descrever as relações de saber e poder no ambiente acadêmico das salas de aula, além de discutir os limites da prática de autonomia nesses espaços.

 

Metodologia

Este artigo é fruto da experiência de desdobramentos de dois projetos de extensão vinculados a uma pesquisa multicêntrica, a qual envolveu gestores, profissionais, acadêmicos e usuária(o)s que implementaram ou tiveram interesse em iniciar o uso da estratégia GAM nos serviços de saúde de três macrorregiões do Rio Grande do Sul. A partir da perspectiva das abordagens avaliativas de quarta geração, tal como as descrevem autores como Guba & Lincoln (1989) e Furtado (2006), busca-se contemplar tanto as questões do avaliador-pesquisador quanto as dos grupos diretamente implicados no serviço. Em cada macrorregião, buscava-se avaliar os efeitos da estratégia GAM junto às equipes dos serviços e seus gestores, bem como junto a(o)s usuária(o)s participantes, por meio da metodologia de rodas de conversa (Método Paideia). De acordo com o método, procura-se organizar espaços coletivos (rodas) como potenciais espaços concretos (lugar e tempo) para discussão e relação entre sujeitos envolvidos no projeto, com discussão sobre o exercício de poder e saber, bem como deliberação sobre a ação e sua avaliação posterior, essas rodas devem estimular e facilitar a participação de vários agentes e não apenas aqueles com função de direção institucional ou responsáveis pela investigação (Furlan & Campos, 2014). Para fins deste trabalho foi realizado um recorte em relação a etapa da macrorregião referente à 4ª CRS e acompanhou-se, a partir do desenvolvimento dos projetos de extensão, ocorridos no segundo semestre de 2017, usuária(o)s da saúde mental que receberam convites para realizarem palestras em universidades no interior do RS, até o final do primeiro semestre de 2018.

Para este artigo, foram considerados 6 convites recebidos por essas pessoas. As participações nas aulas duravam em média 3 horas e contava com a participação de 2 a 4 usuária(o)s em cada encontro, que se revezavam entre ela(e)s dependendo da disponibilidade de cada um. Utilizamos como procedimento para a produção dos dados o diário de campo, pois, através da aproximação crítica durante os encontros, pode-se produzir reflexões acerca da implicação dos envolvimentos com a experiência, para posterior análise desse material. A(o)s usuária(o)s também foram convidados a produzirem suas anotações e impressões dessas experiências em seus diários. Após a conclusão desses convites nos reunimos para discutir sobre essas experiências e trabalhar esses conteúdos relacionando-os em suas dissonâncias e confluências com práticas discursivas e não discursivas em relação ao ambiente acadêmico e a estratégia GAM, configurando nossa escolha de pesquisa como participativa e pensada no sentido de valorizar o saber da(o) usuária(o).

Para a análise dos materiais deste artigo, optou-se pela perspectiva arqueogenealógica de Michel Foucault. A opção teórica se equilibra na necessidade de relacionar o aspecto teórico ao metodológico no entendimento de que o discurso produz determinados sujeitos em determinadas condições, considerando, para além de técnicas e procedimentos de pesquisa, o aspecto ético-político na construção do campo de estudos e dos pesquisadores envolvidos. A proposta de Foucault, na companhia de Deleuze, em localizar a teoria como caixa de ferramentas - Os intelectuais e o poder (1979) - completamente atrelada ao posicionamento político do pesquisador e favoreceu a constituição das problematizações e o pensamento crítico exercido. Cabe ressaltar que a escolha pela arqueogenealogia não é, portanto, encarada como conceito, mas sim como uma perspectiva de trabalho que nos permite articular as produções, formações e práticas discursivas e não discursivas que envolvem o campo de trabalho, saúde mental-universidade.

Nesse sentido, primeiramente, discutiremos o campo estratégico da pesquisa que permitiram eliciar os convites às(aos) usuárias(os) palestrantes. Depois, analisaremos os investimentos e visibilidades no saber dessa(e)s usuária(o)s, descrevendo as relações de saber e poder constituídas no ambiente acadêmico das salas de aula por meio do mapeamento dos enunciados saber no corpo e autonomia.

 

Um campo estratégico de pesquisa

Diante do que foi exposto até aqui, discutiremos que os convites são efeito de um campo estratégico iniciado no Canadá e fomentado pela interlocução dos grupos de pesquisa brasileiros; pelo compartilhamento de espaços de pesquisa onde foram considerados sujeitos ativos; pelo exercício de valorização da experiência do usuário com o uso dos medicamentos psiquiátricos, pelos procedimentos de desestabilização e esquemas de transformação nas posições de saber-poder durante as pesquisas e pela visibilidade oportunizada durante os projetos de extensão.

Os investimentos nesses saberes foram constituídos em espaços compartilhados no CAPS e nas reuniões e decisões das pautas para direcionar os rumos da pesquisa. Em um primeiro momento, essa valorização do saber da(o)s usuária(o)s tornava ainda mais claro a assimetria entre as ações dos pesquisadores e as que eram permitidas, liberadas e concedidas para aqueles. Diante disso, a operação de valorização do saber e as estratégias de deslocamento hierárquico, vinculado ao jogo de forças estabelecido nesses espaços, foi o exercício contra hegemônico e de desestabilização da posição do pesquisador comumente visto pela lente da ciência moderna. Além disso, estávamos desvinculados da noção de neutralidade e afinados com políticas de pesquisas participativas onde se pesquisa com as pessoas e não sobre elas.

Isso nos oportunizou condições de construir um campo de pesquisa vinculado aos preceitos básicos da estratégia GAM e experimentarmos a cogestão, além de articulá-la de outra forma. O GGAM, quando trata da cogestão, essa está vinculada à "aposta no valor das conversas para decidir juntos - médico e usuário - o melhor plano de tratamento" (Campos et al., 2014, p.11). Na nossa experiência de pesquisa o enunciado cogestão não dizia apenas de uma corresponsabilidade do cuidado em saúde mental, ou da relação entre médico e usuária(o), ou sua relação com a equipe de saúde, mas também de um processo de compartilhamento de saberes e experiências na tentativa de tomar decisões, onde a voz da(o) usuária(o) tivesse tanta força quanto a do pesquisador no universo da pesquisa. Essa mudança de lugar modificou as relações estabelecidas, não estávamos propondo formas de tratamento, pelo contrário, estávamos desenvolvendo um espaço para troca de experiência, onde a expertise da(o) usuária(o) se fazia valer exatamente por estar ocupando esse papel na sociedade. Certamente sabíamos que essa relação de forças já iniciava desigual por ser construída historicamente e se dar no âmbito acadêmico, lugar de exercício hegemônico de saber do professor, do pesquisador. Nossa resistência em assegurar esse espaço se organizou por termos claro que, ali onde tem saber, inevitavelmente tem poder e se não rebatêssemos essa relação de saber-poder, por vezes cristalizada, estaríamos contribuindo com a manutenção do rebaixamento do louco, na hierarquização dos saberes e desvinculados da proposta participativa e das ações com potencial desintitucionalizante que acompanham a estratégia GAM.

Além disso, os projetos de extensão oportunizaram suporte temporal e espacial para os convites, já que a partir desse momento foi intensificada a valorização nessas experiências e consequentemente a(o)s usuária(o)s iam se tornando cada vez mais visíveis nesses espaços.

Uma das estratégias estabelecidas se referia ao modo de conduzir as inscrições para participar da Qualificação-GAM. Os convites foram disparados para os serviços de saúde e assistência da região da 4ª CRS e englobava trabalhadores, residentes e usuários da saúde mental. As vagas foram oferecidas para garantir o máximo de equiparidade, de modo que a inscrição do profissional estava atrelada a da(o) usuária(o). Parece-nos que as relações de saber-poder se movimentaram, mesmo que temporariamente, quando foi decidido utilizar essa estratégia de oferta de vagas. Foucault (1979) indica que não devemos procurar quem tem o poder, nem quem tem o direito de saber, ou é mantido à força na ignorância, pelo contrário, podemos procurar as modificações nos jogos de poder que as correlações de forças implicam. Entendemos, por conseguinte, que já estava posto de antemão relações de saber-poder, a qual poderia continuar a ser exercida sem tensionamento, no caso de manter rígidos os papéis de profissional e usuária(o), de aplicar técnicas de saber e estratégias de poder, ou seja, o exercício do poder é um modo de ação de alguns sobre os outros. Nesse caso, podemos lançar em análise a ação do profissional sobre a ação da(o) usuária(o) e esclarecer que esse exercício de poder opera sobre o campo de possibilidades em que se encontrem sujeitos ativos, 'livres', no sentido que esses sujeitos tinham a possibilidade de diversas reações e condutas, podendo negar o pedido do profissional, aceitar porque também seria vantajoso para si, ou aceitar por estar sujeitado ao desejo do profissional e a partir do modo como foi construída essa relação profissional-usuária(o).

Nesse sentido, na maioria dos casos, pudemos acompanhar esquemas de transformação nas relações de saber-poder (Foucault, 1988). Os profissionais entendiam que a proposta da GAM se organiza de forma a tentar diluir as hierarquias, de distribuir as (cor)responsabilidades e de aumentar as possibilidades de trocas de saber e exercício de poder entre os participantes. Por outro lado, acompanhamos um caso de uma residente, alocada em um hospital psiquiátrico da cidade, que não pode fazer sua inscrição, pois se deparou com a impossibilidade de decisão dos pacientes internados naquele local. Entendemos, por consequência, que ali, nessa operação, não se configurava uma relação de poder, já que o paciente não estava numa posição de "sujeito livre", mas sim, em determinações saturadas. Estava numa instituição psiquiátrica, com a mesma vestimenta dos outros pacientes, submetido a atividades determinadas, aos horários pré-configurados, ou seja, não poderia se deslocar livremente, entrar e sair da instituição, como fazem a(o)s usuária(o)s que frequentam o CAPS, não tinha diante de si um repertório de possibilidades ou estava no limite de decidir, estava submetido às decisões da equipe médica. E essa estava apoiada em dois elementos essenciais para esse tipo de instituição, as regras (implícitas e explícitas) e os mecanismos estruturais e de procedimentos que garantem os atos, as tarefas, os modos de fazer e principalmente a manutenção e conservação da instituição.

As condições expostas acima fomentaram as estratégias para a construção do campo de pesquisa e por consequência para que investimentos e visibilidades nos saberes da(o)s usuária(o)s se materializassem em convites para frequentarem a universidade como palestrantes.

 

Investimentos e visibilidades no saber da(o)s usuária(o)s da saúde mental

No contexto dos encontros na universidade, um acadêmico pediu a palavra e perguntou como é que vinha sendo para a(o)s usuária(o)s ocupar esses lugares da faculdade, universidade, como é que ela(e)s estavam se sentindo ao entrar em uma sala de aula, o que que ela(e)s enxergavam de diferente ou de similar com o espaço que frequentam dentro do serviço e como é que estava sendo essa experiência.

No começo a gente fica meio... claro... antes de chegar no local, no caso, a gente fica meio receoso, sabe, de como o cara vai falar, como vai agir, como vai ser, né. A pessoa que vai num lugar assim, pensa bem, nós somos quatro usuários. Aí a maioria é estudante e torna difícil pra gente falar a público. A gente fica "bah, como vai ser, como não vai ser". Mas é gratificante pra gente saber que a gente, no caso, eu e meus colegas, temos a capacidade de passar alguma coisa pra vocês. (Usuário-Palestrante).

Essa(e)s usuária(o)s não estavam acostumada(o)s com o ambiente acadêmico e muita(o)s avançaram pouco na escolarização tradicional. Soma-se a isso a exclusão da loucura, além da exclusão social e econômica onde a loucura pobre que não encontra lugar. Ademais, ela(e)s não acreditavam, no princípio, que teriam algo para contribuir nesses espaços, já que ainda é bastante recorrente o peso de conviverem com o rebaixamento de suas opiniões, com a desqualificação de suas experiências, etc. Nesse sentido, essa noção de si, se formula a partir de uma organização histórico-social e é necessário lembrar que "antes do século XVII, jamais um médico teve a ideia de saber o que era dito (como era dito, por que era dito) nessa palavra que fazia a diferença" (Foucault, 2014, p.11) e quando era ouvida mantinha-se excluída ou investida pela razão, ou seja, era através de suas palavras que se reconhecia a loucura em cada frase. Com o exercício do pensamento racional foram criadas distâncias entre aqueles que sabem (o pesquisador, o acadêmico, o médico) e os que não sabem (a(o)s usuária(o)s da saúde mental, os loucos). A exemplo de espaços onde são visíveis essas relações, ainda hoje temos os processos de internação em instituições psiquiátricas, nas quais se conserva estratégias de silenciamento da loucura, seja com a administração de medicamentos psiquiátricos, seja com técnicas de contenção corporal, de desqualificação do conteúdo emergente da voz dos pacientes, mas também capta-se tais conteúdos para fazer passar pelo crivo da razão, o que oportuniza que o discurso médico psiquiátrico se utilize dessa palavra do "louco" e produza sujeitos forjados pelo saber médico. E fora das grades da instituição psiquiátrica, ao ultrapassarem os muros do CAPS, quando se aproximam da universidade, mais precisamente quando adentram nas salas de aula, como foram valorizadas e investidas essas vozes e esses saberes?

Tomados por alguns enunciados que emergem do GGAM, aprendemos a "confiar que toda expressão de vivência ou sentimento é digna de ser ouvida e valorizada" (Campos et al., 2014, p. 24). Encorajamos, em cada espaço que convivemos, que se pudesse falar daquilo que a experiência com a GAM estava fazendo aparecer, permitimo-nos vibrar em outras frequências. Sempre que apareciam discussões sobre saúde mental nas disciplinas oferecidas na graduação e pós-graduação, o tema da GAM era incluído, reorganizávamos os espaços das salas de aulas e a(o)s usuária(o)s eram chamadas para compor esses espaços conosco. Nesse sentido, o campo discursivo criado pela estratégia GAM é investido por propostas de um fazer em grupo, propõem-se que a(o) usuária(o) deve ser valorizada(o), que assim como "O que importa, afinal, para avançar e aprofundar a GAM, é incorporar e viver na prática os princípios e valores que orientam a Gestão Autônoma da Medicação". (p. 09). Ressaltando como princípios básicos a autonomia e a cogestão, enunciados apresentados logo no início deste texto e fortemente empregados na experiência que apresentaremos adiante.

Portanto, como nos interessa analisar os investimentos nesses saberes, e tendo claro que estamos implicados nessas relações de saber-poder, resta-nos interrogar os discursos em sua integração estratégica, ou seja, que conjuntura e que correlação de forças torna necessária sua utilização em tal ou qual episódio dos diversos confrontos produzidos; e em sua produtividade tática, que efeitos recíprocos de poder e saber proporcionam.

 

O corpo experiente

Nossos investimentos começaram por "valorizar a experiência singular que cada usuário tem ao usar psicofármacos" (Campos et al., 2014, p. 07), pelo saber da natureza no corpo, desse requinte de detalhes relativos aos benefícios e também ao efeitos colaterais dos medicamentos. Diante de nós se construía um espaço de trocas, aprendizados e de relação com o saber do outro.

Eu, como usuária de medicamentos, eu me sinto assim. Embora eu não quisesse me sentir assim, eu me sinto assim. Porque na verdade eu não sou uma pessoa em tratamento. Eu não sou uma pessoa... eu não sou uma doença. Eu sou uma cobaia da indústria farmacêutica. Porque com base no que um medicamento faz em mim que ela (a médica) vai mexendo, mexendo . . . mexendo, até acertar o remédio. Eu tenho coleção de bula de remédio. Gosto, tá? (Usuária-Palestrante).

É necessário para essa discussão chegarmos mais perto de algumas condições que nos suscitaram colocar o enunciado "saber no corpo" como uma função imanente aos sujeitos. Que corpo é esse que produz e se submete a extração de um saber? Apenas dizer que há, nessas pessoas, um saber no corpo por fazerem uso de medicamentos psiquiátricos, não é suficiente para produzir esse saber e por consequência produzir conhecimento, é necessário procedimentos de averiguações, de constatações, de valorização e validação, isso tudo nos diria e solicitaria a conduta da ciência moderna. No entanto, não exigimos essas condições para considerar válidos esses saberes, não colocamos em funcionamento regras específicas para escolher quem poderia ou teria de fato o "saber no corpo", pelo contrário, entendemos esse corpo para além de pele, ossos e neurônios. Se assim fizéssemos estaríamos partindo de um dos conceitos de corpo, de um corpo capturado que já havia se tornado conceito pela ciência, mas o que nos interessava era a constituição de saberes pré-conceituais, a partir de experiências únicas ao se relacionarem com essas drogas. Sendo ainda mais precisos: "o saber das pessoas, e que não se configura como um saber comum (...), mas um saber particular, regional, local, um saber diferencial incapaz de unanimidade (...), que se performatiza nisto que estamos chamando de saber no corpo". (Foucault, 1979, p.170). E o que poderia ser um saber mais particular e local do que isso? Ademais, ao usarem essa classe de medicamentos e anunciarem isso em público, associado ao fato de serem usuária(o)s de CAPS, carregarem uma marca, o diagnóstico, isso ultrapassava a experiência do corpo biológico, e se associava à vivência de estigmas e preconceitos no corpo do socius e enfrentamentos constantes pelo direito de estar nos lugares, frequentar espaços, enfim, no corpo político praticando a cidadania. No entanto, mesmo valorizando essas experiências únicas, esse conjunto de elementos biológicos, sociais e políticos, somado a nossa implicação nessa relação, têm força imediata, já que poderíamos também estar contribuindo para categorizar o indivíduo, marcá-lo com sua própria individualidade, ligá-lo à sua própria identidade, à sua doença. Essas ações estão intimamente ligadas as formas de poder que funcionam tornando-os "sujeitos a alguém pelo controle e dependência, ou preso a sua própria identidade por uma consciência ou autoconhecimento". (Foucault, 2009, p 235).

Dessa forma, a partir do discurso sobre a experiência e o saber no corpo que a(o)s usuária(o)s-palestrantes iniciavam suas falas, elas buscavam algo próprio, que teoricamente apenas elas tinham vivenciado, colocavam-se com propriedade para falar dos tipos de medicamentos, da posologia, das formas de administração, dos efeitos colaterais e a relação de conhecimento desses medicamentos em suas vidas.

Eu tomo remédio desde os meus 25 anos. Eu já passei por muitos psicólogos aqui na cidade, psiquiatras, neurologistas, e todo mundo sabe que qualquer médico que tu vai, é clínico geral, qualquer um que tu conversa, te dá remédio, tá. Então eu tenho um leque assim bem grande de remédio que eu já usei. Se for me dizer os nomes... se pegar o guia GAM e for olhando, eu posso contar nos dedos o que eu não tomei. Eu sei praticamente o que tudo faz no corpo. O que quando botou na boca já sentiu! (Usuária-Palestrante).

Para pensarmos nossa implicação nessas relações de saber-poder, tentávamos oportunizar que as palestras fossem conduzidas pela(o)s usuária(o)s, que pudessem se apropriar do espaço, que exercessem seus relatos ativamente nas salas de aula, que estabelecessem com os participantes uma posição de apropriação de seus saberes. Todavia, sabíamos que uma relação de poder implica que aquele sobre o qual se estabelece tal relação precisa reconhecer-se como sujeito ativo até o fim do processo e que se estabeleça diante dessa relação de poder um conjunto de ações, de respostas e de possibilidades inventivas (Foucault, 2009). Nosso cuidado, com os espaços receptivos das salas de aula, o convite para compartilharem seus saberes com os estudantes pode ser visto como uma tática inventiva dentro desse campo de possibilidades que circula na universidade. Todavia, nossa tensão também era não disciplinar esses corpos, já que o aparato institucional da escola, dos hospitais, da universidade pode servir também para produzir corpos dóceis, a partir de regras, posicionamentos dos corpos, limitação do tempo e do espaço. Além disso, o exercício de ações sobre ações, vinculado às relações que se constituíam, tornava-se claro que se buscava linhas que atravessassem esse campo de possibilidades (que fala dos limites do que pode um(a) usuária(o) da saúde mental) para que nos encontrássemos na intersecção entre seus desejos de apresentar os efeitos da estratégia GAM em suas vidas e nossa vontade de saber, constituindo aí efeitos recíprocos de poder e saber.

Por pesquisarmos os possíveis efeitos da estratégia GAM, estávamos interessados em ver as mudanças que ocorreram na vida dessas pessoas. Percebemos que passar por esse processo com a GAM estava mudando também as relações consigo, as estabelecidas com seus pares, com familiares, com a equipe do serviço de saúde, conosco, com a cidade. Além disso, os relatos que acompanhamos sobre como operaram as negociações com médicos, a mudança no exercício da fala (para muitos reduzida), propostas de escritas de livros, viagens para o exterior, e a apropriação de termos como autonomia, protagonismo e empoderamento (os efeitos das palavras) oportunizaram que se intensificassem esses investimentos para além do corpo experiente, pois estávamos vendo se forjar caminhos que oportunizavam o exercício da cidadania e da autonomia.

 

Autonomias temporárias, saberes em movimento

Antes desse evento da GAM não era possível sair. Jamais ia imaginar que um usuário ia falar pra... os estudantes, na universidade. Era tudo (...) muito pouco, né, ninguém tinha autonomia pra nada. Depois que se começou a estudar o livro GAM começou a aparecer as oportunidades pra gente falar. Isso é muito recente ainda. Mas já tá fazendo efeito. (Usuária-Palestrante).

O princípio de autonomia proposto pelo GGAM (Campos et al., 2014) acompanha o movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira e não pensa a autonomia como independência ou individualismo, pelo contrário, esse movimento significa estar em relação com os outros, e não sozinho. "Para viver a autonomia, as pessoas têm que compartilhar, umas com as outras, o que pensam e o que sentem, ao invés de se fecharem em suas ideias e posições". (Campos et al., 2014, p. 10). O enunciado da autonomia, assim como o da cogestão são os norteadores para quem inicia o trabalho com a GAM. Ao longo GGAM (Campos et al., 2014), a autonomia diz da necessidade da(o)s usuária(o)s serem considerada(o)s protagonistas e corresponsáveis pelo tratamento que seguem, principalmente pela decisão de usar ou não os medicamentos. Nessa esteira, Zambillo e Palombini (2017), nos trouxeram notícias sobre as discussões contemporâneas desse conceito ao passarem por Kant (2011), Nietzsche (1999), pela psicanálise (Foucault, 2000 b; Poli, 2006), pela ética Principialista, por Maturana e Varela (2004), ao se aproximarem da autonomia também nas Reformas Brasileiras (Sanitária e Psiquiátrica), até encontrarem referências à Kinoshita (2001), o qual considera como autônomo aquele que estabelece maior número de relações em rede, ou seja, quanto maior for sua rede, mais autônomo é o sujeito, e que "se seguirmos na lógica de uma autonomia que se faz fazendo, é impossível, para nós, propormos a dis-cussão a respeito da autonomia do outro, do usuário". (p. 85).

Nesse sentido, estamos exercitando a autonomia na instituição universidade, onde as enunciações ditas pelo professor têm especificações e condições linguísticas diferentes daquelas ditas pela(o)s usuária(o)s. Logo, o sentido das enunciações depende também do não discursivo, do ato e da figura do professor, do acadêmico, da(o) usuária(o).

Por que que nós somos diferentes de vocês todos aí que são... uns são estudantes, outros são formados já? O que que nós temos de diferença de vocês? Acho que nada. Só o estudo, a profissão, mas somos... se belisquem pra ver se não somos iguais. Sentimos dores. Nós todos sentimos dores. (Usuário-Palestrante).

No trecho acima o usuário-palestrante está nos indagando sobre nossas diferenças. Ele reconhece e consegue nos dizer que essas existem sim, mas no sentido de formação acadêmica, quando se reconhece como usuário da saúde mental e distingue quem é estudante, quem é profissional, quem é professor. O sistema de diferenciações que permite agir sobre a ação dos outros (Foucault, 2009), são, ao mesmo tempo condição e efeito, ou seja, condição porque somos atravessados o tempo todo por variedades econômicas, de lugar nos processos de produção, diversidades linguísticas ou culturais, etc. Isso tornou-se evidente nas relações dentro da universidade, ao passo que também se tornou efeito. Dada a correlação de forças nesses espaços era necessária a integração desses discursos, pois não entendíamos essas relações como forças imóveis e rígidas, pelo contrário, sabíamos que a presença da(o)s usuária(o)s nas salas de aula, ocupando a posição de saber e não como espécimes da loucura (para ser dissecado teoricamente em diagnósticos, sintomas e atos falhos), era já um efeito sobre nós mesmos, sobre como procedemos com os esquemas de transformação dessas relações e como estávamos experimentando esses processos de autonomia.

Trata-se de pensar a autonomia, de percebemos que se exerce, dados os conjuntos das possibilidades locais, jogos de distribuição de poderes e apropriação de saberes. Existiam limites nesse local, barreiras institucionais. Estávamos também em relações de poder, e o exercício de poder "incita, induz, desvia, facilita ou torna mais difícil (...) amplia ou limita, torna mais ou menos provável; mas é sempre uma maneira de agir sobre um ou vários sujeitos ativos". (Foucault, 2009, p. 243). Essa(e)s usuária(o)s, por mais que ocupem a posição de saber como palestrantes, ainda assim, essa é temporária, pois não conseguem corresponder às exigências da academia, não decidem o tempo de uso daquele ambiente, como será conduzida a aula, todavia, sugerem atividades, propõem discussões, provocam e pedem respostas aos acadêmicos. Quando colocamos em questão nossa implicação nessa experiência, percebemos que mesmo tensionando essas relações não conseguimos nos desvincular totalmente da ação de "conduzir os outros e de nossa maneira de se comportar num campo mais ou menos aberto de possibilidades." (p.243.) Tentamos, nesse sentido, integrar as diferentes possibilidades de saberes que emergem do acadêmico, do professor, da(o) usuária(o) da saúde mental, buscamos rupturas, brechas nessas relações. Nos deparamos, portanto, com saberes em movimento, saberes que se constituíram no corpo e se tornaram visíveis, saberes também formados a partir do contato entre as pessoas, em ambientes de trocas de experiências como no CAPS e na universidade, investidos e transformados em apropriações de saberes.

Eu entrei no Guia esse ano. Eu já tinha feito, desde que tava no CAPS, eu fiz tudo que era oficina que tinha lá dentro: eu tinha feito culinária, pintura, leitura, eu tinha feito tudo. E hoje eu digo de coração aberto que a oficina que mais me interessa e que eu não abandono por nada e quero ir até o fim e continuar é a oficina do guia GAM. Ela não é uma oficina de esclarecimento. Ela é uma oficina de construção, pra qualquer ser humano. (Usuária-Palestrante).

 

Encaminhamentos Finais

Desse modo, faz-se necessário recapitularmos que iniciamos essa discussão a partir da construção do campo de pesquisa e como foram constituídas as condições locais para a inserção da(o)s usuária(o)s da saúde mental como palestrantes da GAM na universidade. Logo depois tratamos dos investimentos nos saberes dessa(e)s usuária(o)s, acompanhamos um percurso de desqualificação de seus saberes no século XVIII e como a razão criou distâncias entre os que sabem e os que não sabem. Logo após adentramos nas salas de aula e nos deparamos com um "corpo experiente" e sua utilização para a produção de conhecimento e exercício do saber no conjunto indissociável do biológico-social-político, assim como interrogamos os discursos em sua integração estratégica e produtividade tática ao passo que discutimos a autonomia, a qual se forjou temporária nesses espaços por estar submetida por jogos de forças e relações de saber-poder dentro da instituição universidade. Mesmo assim constatamos que os saberes da(o)s usuária(o)s da saúde mental estão em movimento e se constituíram ao entrar em contato com o uso frequente de medicamentos psiquiátricos, além disso, a experiência nos grupos GAM e a potência de apropriação de saberes locais participando de pesquisas, reuniões e eventos, ofereceram novos campos de possibilidades para que esses sujeitos se forjassem para além do estigma da loucura, ou seja, esses sujeitos da saúde mental se constituem como pessoas, e não como doenças.

Portanto, estávamos inseridos nesse processo e acompanhando o desenrolar dessa experiência, quando um usuário nos lançou a questão sobre nossas diferenças, concluindo que elas existem sim, mas quando retornou ao argumento sobre a experiência no corpo não escapamos da constatação de que sentimos dores, todos sentimos dores. Assim, ele nos fez reconhecer nossa condição humana, lembrar que também temos experiência nos nossos corpos, mas as intelectualizamos e construímos teorias e saberes psicossomáticos para explicar e mascarar nossas dores, nossos sofrimentos, nossas doenças.

Ironia dessa experiência: no final dos discursos, mais cedo ou mais tarde "todo mundo vai feder igual aqui".

 

Referências

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Enviado em: 18/09/18
Aceito em: 09/05/19

 

 

Leonardo Lima de Senna é graduando em Psicologia na Universidade Federal de Santa Maria. Atualmente acompanha, como Bolsista Sênior FIPE, os trabalhos voltados à Gestão Autônoma da Medicação (GAM) no estado do Rio Grande do Sul. Desempenha atividades na área de Psicologia, principalmente nos seguintes temas: saúde mental e políticas públicas.
E-mail:leonardosenna.psi@gmail.com
Marcos Adegas de Azambuja possui graduação, mestrado e doutorado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), com período de doutorado sanduíche na London School of Economics (LSE). Atualmente é professor adjunto da Universidade Federal de Santa Maria.
E-mail:marcos.azambuja@ufsm.br

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