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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2019

 

RESENHAS

 

Os silêncios das traduções e das prisões

 

The silences of the translations and of the prisons

 

Los silencios de las traducciones y de las prisiones

 

 

Érika Cecília Soares Oliveira

Universidade Federal de Alagoas (UFAL), Maceió, AL, Brasil

 

 

Foi lançado em 2018 pela editora Boitempo o livro da professora e ativista norte-americana Angela Davis intitulado A liberdade é uma luta constante, com organização do ativista de direitos humanos e escritor Frank Barat. Há cinco anos escrevi uma resenha do primeiro livro lançado no Brasil de outra teórica feminista, mulher negra também, bell hooks. Ela havia escrito o livro Ensinando a transgredir na década de 1990 e o mesmo recebia tradução em nosso país quase 20 anos depois (Oliveira, 2014). Naquela época eu chamava atenção para o fato de que hooks dizia que recebia críticas por sua escrita não ser exclusivamente acadêmica e convidava leitoras(es) para conhecerem seu livro e tirarem as próprias conclusões sobre a importância dessa autora para nós. Passados esses anos, noto que teria sido importante ter me demorado mais para refletir sobre as políticas de tradução em nosso país. No prefácio à edição brasileira do livro de Davis, Angela Figueiredo amplia o conceito de geopolítica do conhecimento. Ela vai além da ideia que define a geopolítica como o conhecimento que é produzido no centro e nas periferias do sistema-mundo colonial-moderno. Ao ampliar, Figueiredo (2018) detém-se no fato de que existe também uma política de tradução em nosso país que decide o que será traduzido e quais pessoas poderão trazer contribuições intelectuais para dentro das universidades e também para fora delas. Não é à toa que Angela Davis é traduzida pela primeira vez em 2016 somente. Nas palavras de Figueiredo (2018, p. 7): "O ato da tradução reflete, assim, as estruturas hierárquicas existentes na colonialidade do poder e do saber, presentes na geopolítica do conhecimento dentro e fora do território nacional".

Em 2004, Cláudia de Lima e Costa escrevia uma homenagem à teórica feminista chicana Gloria Anzaldúa que havia morrido naquele mesmo ano. Abrindo a discussão com o título O silêncio da tradução que inspira o título da resenha que ora apresento, Costa (2004) mostrava o quanto parecia irônico que Anzaldúa ainda não tivesse sido traduzida no Brasil mesmo tendo influenciado autores pós-estruturalistas cujas obras são traduzidas vorazmente pelas editoras brasileiras. Lá se vão mais de 15 anos do texto de Costa (2004) e ainda não temos nenhum livro traduzido dessa autora. Deste modo:

Tal silêncio nos faz refletir sobre a geopolítica da tradução e os sistemas de exclusão que, em suas múltiplas interseções com os outros eixos da diferença - gênero, raça, classe, orientação sexual, etc. -, selecionam os textos que receberão visto de entrada e aqueles que permanecerão do outro lado da fronteira, desqualificados (COSTA, 2004, p. 14).

Esta desqualificação é sentida no modo como a academia brasileira vai incorporando novos conceitos tal como acontece, atualmente, com aquele desenvolvido por Achille Mbembe, nomeado por "necropolítica" e cujos livros estão começando a serem traduzidos nos últimos anos. Temos ouvido muito falar sobre ele, suas discussões têm despertado cada vez mais interesse entre nós e é inegável a importância da obra do autor camaronês para enegrecer as epistemes e cosmovisões tão pálidas das universidades ocidentalizadas e denunciar o racismo impregnado nelas e na sociedade, de modo geral. E se o trago aqui é apenas para mostrar que um conceito e um autor podem ganhar maior visibilidade e outros não, a depender dos marcadores que os constituem. No caso, a intersecção: mulher + negra revela uma política de apagamento, ainda que mulheres negras estejam sendo cada vez mais sendo lidas na universidade. Tal como aponta Bordo (2000), autoras feministas são tomadas como teóricas que discutem especificidades que dizem respeito somente às mulheres e não à cultura de modo geral, ao passo que teóricos homens são tidos como aqueles que problematizam a cultura de modo universal. Precisamos estranhar essa lógica e jogar luzes sobre os efeitos que ela geram em nós e em nossas práticas como docentes e pesquisadoras(es).

Removida de sua cadeira de professora no Departamento de Filosofia da Universidade da Califórnia devido ao seu ativismo e filiação ao Partido Comunista em 1969, um ano depois Angela Davis torna-se uma das dez pessoas mais procuradas pelo FBI, tendo sido classificada, à época, pelo presidente Richard Nixon, como uma terrorista. Seu julgamento ficou conhecimento internacionalmente e o contexto no qual aconteceu pode ser acompanhado no documentário Libertem Angela Davis lançado no Brasil em 2012. Nas últimas décadas, Angela Davis tem lecionado em universidades dos estados americanos e também na Europa, África, Caribe e antiga União Soviética (Davis; Denti, 2003). Defensora do abolicionismo penal, Davis acredita que devemos almejar uma sociedade que não necessite de prisões.

O livro A liberdade é uma luta constante traz sete artigos, que reúnem entrevistas e discursos proferidos pela intelectual em diferentes contextos nos anos de 2013 a 2015 e que tomam o assassinato de jovens negros por policiais como um eixo de análise para se pensar no extermínio estatal e paramilitar que se volta, há décadas, contra negras e negros. A morte de um jovem de 18 anos, Michael Brown, em Ferguson, Alabama, é mencionada em vários trechos do livro. Muito mais que pensar exclusivamente na punição dos responsáveis pelo brutal assassinato deste jovem - e de tantos outros - Davis convida a refletir sobre a violência estrutural do Estado. Neste momento em que no Brasil vivenciamos uma dose significativa de tensionamentos produzidos na esfera governamental, em que se promete, cotidianamente, armar a população e deixar que policiais atirem em nome de uma suposta legítima defesa, em que cortes orçamentários se voltam para áreas importantes como educação, saúde, assistência, previdência e se deseja investir em pacotes anticrimes, as reflexões produzidas por Davis são caras à psicologia social. Elas permitem que pensemos no impacto do racismo na vida de milhares de brasileiras(os). Segundo ela: "[...] o desenvolvimento de novas formas de pensar sobre o racismo exige que nós tenhamos não só uma compreensão das estruturas econômicas, sociais e ideológicas, mas também das estruturas psíquicas coletivas" (Davis, 2018, p. 87).

Elas permitem também que reflitamos sobre nossa realidade social nos convocando ao exercício proposto pela autora de que necessitamos analisar o contexto local em articulação com o cenário global, com referenciais internacionais a fim de estabelecermos conexões, já que nada acontece isoladamente. A tônica do livro, pois, repousa na discussão sobre os movimentos negros de luta pela liberdade e a sistemática violência sofrida por essa população, não apenas nos Estados Unidos, mas também em outros países. A escravidão, segundo Davis (2018), continua a persistir por meio do racismo que estrutura a sociedade e é preciso que identifiquemos sua origem nos ataques genocidas sofridos pelos primeiros povos que aqui se encontravam. A violência da colonização europeia bem como o tráfico de pessoas é algo que África, Ásia, Oriente Médio e Américas têm em comum. Para ela, não teriam sido necessárias lutas por direitos civis se a abolição tivesse, de fato, acontecido no século XIX.

A violência policial e o encarceramento em massa de pessoas negras seriam dois paradigmas que poderiam servir como fio condutor para se pensar nas práticas de extermínio e lucratividade de governos interessados em produzir a morte social deste segmento e arregimentar políticas de extermínio socialmente aceitas em nome de uma pretensa segurança. Isso porque o racismo implica num grau significativo de criminalização das pessoas negras(os), de estereotipias que costumam desenhá-las como perigosas e, portanto, colocam suas vidas como afrontosas para a sociedade.

Davis (2018) aborda a importância dos movimentos de direitos civis nos Estados Unidos para a erradicação do racismo nas leis e a dissolução do vigoroso aparato de segregação, mas chama a atenção para o fato de que a liberdade é algo que vai além da luta por direitos civis e é justamente ela que une minorias em escala planetária. Para isso, o movimento negro também deve estar preocupado com lutas que envolvem gênero, sexualidades, nacionalidade, capacidade, dentre tantas outras. Ela problematiza, deste modo, a ideia de que os movimentos pelos direitos civis deveria ser entendidos sinônimo de movimentos pela liberdade, uma vez que essa associação daria a ideia de que a única forma de alcançar a liberdade seria pela conquista dos direitos civis.

Gostaria de destacar alguns eixos contidos nos discursos da autora que considero de extrema relevância para pensarmos a realidade brasileira: a importância da interseccionalidade das lutas e dos movimentos, o complexo industrial prisional e o papel que mulheres negras e as coletividades, de modo geral, tiveram nessas lutas.

O primeiro eixo, das lutas interseccionais e do exercício de interseccionalidade é um convite de Angela Davis para abandonarmos as estreitas visões identitárias a fim de aprendermos como classe, raça, gênero, sexualidades, nacionalidades, constituem-se de modo entrelaçado, devendo ser analisados por meio de suas inter-relações e nunca tomados isoladamente. Liberar-se do pensamento identitário cristalizado implica em conseguir encorajar pessoas a abraçarem lutas como se essas lutas fossem também delas. Implica em fazer associações com ideias e acontecimentos tal como o fato de que talvez não seja possível dissociar a polícia reprimindo protestos em Ferguson e pedindo justiça pela morte de jovens negros e a política e Exército israelense reprimindo protestos na Palestina ocupada. Essas coisas acontecem de modo articulado, é o que defende a autora. É preciso pensar em criar "portas e janelas", segundo ela, para que pessoas comuns que acreditam na justiça possam se engajar no movimento de solidariedade à causa palestina. Finalizando esse eixo: "Nossas histórias nunca transcorrem isoladamente. Não podemos contar de fato aquelas que consideramos ser nossas histórias sem conhecer as outras narrativas" (Davis, 2018, p. 124). Tal como pontua a autora, acredito que este tenha sido o papel dos feminismos, sobretudo aqueles feitos por mulheres negras, terceiromundistas, operárias, lésbicas, que chamavam a atenção para o fato de que o gênero não poderia ser pensado isoladamente. Estas feministas ensinaram-nos a desconfiar de universais, ensinaram-nos também a compreender, tal como explicita Angela Davis, os feminismos como uma abordagem teórica, metodológica, epistemológica e política preocupada em produzir solidariedades e derrubar fronteiras.

Outro eixo de grande importância para pensarmos nossa sociedade, sobretudo no momento específico de intensa militarização policial e defesa do porte de armas para toda(o) e qualquer cidadã(ão) que queira sentir-se "protegido" diz respeito ao complexo industrial prisional e a lucratividade que a punição gera, ou seja, como encarcerar pessoas pobres e negras tornou-se um negócio extremamente rentável. Se Mbembe (2017) já dizia em Políticas de inimizade que o racismo é o motor do capitalismo, fica fácil estabelecer a conexão quando Angela Davis afirma que as prisões encarnam o racismo e pensar nas cifras geradas dessas perversas articulações. Em recente reportagem publicada no periódico El País discutia-se o decreto do atual presidente que permitiria a utilização de fuzis de assalto pela população. A matéria enfatizava que a empresa de armas Taurus, que detém o monopólio da fabricação e comércio de armas no país seria a grande beneficiária do decreto presidencial, uma vez que aumentara o número de pessoas interessadas em comprar armas. Na exposição Assentamento de Rosana Paulino, na Pinacoteca de São Paulo de 2018 uma cena ilustra isso que Davis está dizendo: ao chão, pedaços de galhos e braços de madeira de pessoas negras, dispostos uns sobre os outros, formavam aquilo que viria a ser uma fogueira caso alguém acendesse um fósforo. A fórmula cárcere, armas, extermínios participam de uma perversa lógica capitalista e, portanto, lucrativa; ela é o fósforo aceso que permite que as chamas devorem tais corpos, transformando-os em silenciosas cinzas.

Angela Davis defende o abolicionismo penal, ainda que saiba o quão difícil é trazer esse assunto para as pessoas que sentem que a prisão é algo que as deixa mais seguras para viverem em sociedade. Contudo, a autora mostra que a prisão impede que algumas perguntas importantes sejam feitas tais como: por que uma pessoa é má?, em que consiste sua maldade?, por que há um número desproporcional de pessoas negras na prisão e por que a taxa de analfabetismo é tão grande? O que está por trás dessas questões é o fato de que a prisão é uma instituição que acaba por solidificar a negação do Estado em combater problemas sociais, tomando como seu alvo fácil a população negra, historicamente apartada de bens simbólicos e materiais.

Um último eixo que gostaria de trazer nesse espaço diz respeito à importância de que as lutas por libertação, os movimentos que reivindicam direitos para as minorias devem sempre ser pensados numa perspectiva coletiva e não individualizada, tal como insiste em querer construir o capitalismo. Assim, pensar as lutas e reivindicações em torno da liberdade de pessoas negras implica em pensar em quantas pessoas comuns estiveram envolvidas nelas. Isso envolve o que Davis chama de necessidade de conhecermos o sujeito coletivo da história. Durante um tempo significativo, a liberdade para o povo negro equivalia à liberdade do homem negro e, de acordo com ela, ao observar Malcolm X e outras personalidades, isso fica bem visível. Ainda que reconheça a extrema importância de líderes como Malcolm X e Martin Luther King Jr., ela destaca que os regimes de segregação racial não foram desmantelados por líderes, presidentes, legisladores, mas por pessoas comuns que se posicionaram criticamente diante da realidade. A respeito disso ela traz a recusa de mulheres negras - lavadeiras, cozinheiras, arrumadeiras - em Montgmomery, Alabama, na década de 1950, em usar os ônibus para irem ao trabalho uma vez que tinham que dar os seus assentos para pessoas brancas. O boicote só foi bem sucedido porque elas recusarem-se a pegar o ônibus enquanto isso não se modificasse e, sem isso, provavelmente, Luther King não se tornaria uma figura proeminente. Ao analisar movimentos contemporâneos que não possuem lideranças, ela chama a atenção para o fato de que não devemos reproduzir o passado e acreditar que a liderança é uma prerrogativa masculina.

Neste sentido, e isso serve para nós e para as lutas e ocupação das ruas que estamos organizando neste momento politico tão delicado para o Brasil, a autora afirma que, independente de quem esteja no poder, não devemos confiar em governos para realizarmos o trabalho que somente os movimentos de massa podem fazer. Aqui termino com um trecho do livro para pensarmos nas manifestações dos últimos meses, em que temos saído às ruas reivindicando que a educação não seja tão atacada como vem sendo pelo governo ultradireitista que assumiu em 2019 e, não por acaso, temos gritado que o atual presidente tem dado dinheiro para a milícia e se recusado a investir em educação. Pois, parafraseando Angela Davis, é impossível libertarmo-nos sem termos acesso à educação:

Enquanto isso, as corporações lucram, e as comunidades pobres padecem! A educação pública padece! A educação pública padece porque não é lucrativa, segundo parâmetros corporativos. A saúde pública padece. Se a punição pode ser lucrativa, então a assistência à saúde também deve ser lucrativa. Isso é completamente ultrajante! É ultrajante (Davis, 2018, p. 102).

 

Referências

Bordo, S. (2000). A feminista como o Outro. Estudos Feministas, Florianópolis, 8,10-29.         [ Links ]

Costa, C. de L.(2004). O silêncio da tradução. Estudos Feministas, Florianópolis, 12(1):13-14.         [ Links ]

Davis, A. (2018). A liberdade é uma luta constante. São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

Davis, A., Dent, G. (2003). A prisão como fronteira: uma conversa sobre gênero, globalização e punição. Estudos Feministas, Florianópolis, 11(2),523-531.         [ Links ]

El País. (2019). Bolsonaro recua e proíbe porte de fuzis, mas Taurus, tem razões para comemorar. Acessado em 22 de maio de 2019.         [ Links ]

Figueiredo, A. (2005). Prefácio à edição brasileira. In: Davis, A. A liberdade é uma luta constante (pp. 7-11). São Paulo: Boitempo.         [ Links ]

Oliveira, É. C. S. (2014). De mãos dadas com hooks. Estudos Feministas, Florianópolis, 22(3):987-1014.         [ Links ]

Mbembe, A. (2017). Políticas de inimizade. Lisboa: Antígona.         [ Links ]

 

 

Enviado em: 27/05/19
Aceito em: 30/05/19

 

 

Érika Cecília Soares Oliveira é professora Adjunta no Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Alagoas (UFAL) - Campus A. C. Simões.
Email: erika.oliveira@ip.ufal.br.

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