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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2019

 

DOSSIÊ - TEMAS EM DEBATE: RISCOS DA CRIAÇÃO

 

Alice e os paradoxos da escrita acadêmica

 

Alice and the academic writing paradoxes

 

Alice y los paradójicos de la escritura académica

 

 

Renata Fischer da Silveira Kroeff; Jéssica Prudente

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

O texto aborda a escrita acadêmica como experiência agonística. Utilizamos o recurso da ficção como estratégia para compor uma narrativa que visa a incidir nos modos de produção de verdades, por meio da convocação de afetos que transcendam o conteúdo da escrita. A experiência agonística é discutida pela personagem Alice, por meio da problematização de três paradoxos: o aspecto informativo e experiencial da escrita na constituição das políticas de produção, o engendramento entre virtualidade e atualização nos processos de subjetivação e a presença-ausente do autor na produção de autoria. Uma posição ético-estético-política é tecida a partir da problematização desses elementos, apostando na potência de um texto-experimentação para provocar fissuras nos modos de produção de conhecimento no âmbito acadêmico.

Palavras-chave: escrita acadêmica, ficção, paradoxo, agonística, processos de subjetivação.


ABSTRACT

The text approaches academic writing as an agonistic experience. Fiction discourse is used as a strategy to compose a narrative that aims to delve in truth production modes by means of conjuring affection that transcends the written content. The agonistic experience is discussed by means of three paradoxical problematizations by the character Alice: the informative and personal aspect of writing in constituting production policies, the intertwining between virtuality and the updating of subjectivization processes and the absent-presence of the author on authorship production. An ethical-aesthetical-political approach is woven from the problematization of these elements, leaning on the potency of an experiencing-text to provoke fissures on the production modes of knowledge in the academic scope.

Keywords: academic writing, fiction, paradox, agonistic, subjectivation processes.


RESUMEN

El texto habla de la escritura académica como experiencia agonística. Utilizamos el recurso de la ficción como estrategia para componer una narrativa que busca incidir en los modos de producción de verdades, por medio de la convocatoria de afectos que trasciendan el contenido de la escritura. La experiencia agonística es discutida por el personaje Alice, por medio de la problematización de tres paradojas: el aspecto informativo y experiencial de la escritura en la constitución de las políticas de producción académica, el engendramiento entre virtualidad y actualización en los procesos de subjetivación y la presencia-ausencia del autor en la producción de autoría. Una posición ético-estético-política es tejida a partir de la problematización de estos elementos, apostándose en la potencia de un texto-experimentación para provocar fisuras en los modos de producción de conocimiento en el ámbito académico.

Palabras clave: escritura académica, ficción, paradoja, agonística, procesos de subjetivación.


 

 

Escrever É Preciso?!

Sentada na sacada do seu apartamento apertado, após um dia intenso de trabalho, Alice já não suporta seus monólogos. É um desses dias em que as costas pesam mais que o mundo. Nada lhe agrada: a música da banda preferida, a xícara de chá de hortelã quase frio nas mãos, a vontade de assistir a um filme que há muito tempo estreou, a oportunidade de ler mais um livro recém-chegado pelo correio, o chocolate comprado no bar da esquina; o silêncio. Uma sala com cozinha estilo americano, uma sacada, um respiro. Apartamento pequeno, mas próprio: liberdade do aluguel e contingência de não poder trocar de imóvel facilmente. Aconchego da decoração escolhida e falta de espaço. A mesa de estudos tem vista para a rua; repleta de livros e folhas amassadas, muitas canetas e marcadores de página. Próximo à mesa, um espelho que reflete a imagem do quadro fixado na parede. Alguns móveis e objetos, o necessário para viver.

O relógio parece correr uma maratona; é preciso escrever. Hora de colocar palavras no papel, mesmo daquele jeito, na rotação de quem não lembra a última vez em que dormiu tranquila uma noite inteira. Talvez possa escrever até o sono chegar e a escrita lhe ceder lugar. Senta-se na cadeira em frente à mesa de estudos: uma folha em branco, um lápis e um dicionário de sinônimos. A folha espera pela escrita. Alice hesita. Começar é sempre o mais difícil. Precisa riscar a folha, fixar nela os primeiros traços. Não sabe quais termos utilizar. Pensa no risco: do insucesso, das palavras mal colocadas, do sentimento de inadequação outras vezes já sentido. Um duplo risco. Para a folha em branco, o risco como um traço, uma linha, um rabisco: algo que passa a existir. Para ela, o risco da escolha das palavras, do autojulgamento, do sentimento da escrita estar sempre pela metade. Experiência paradoxal do risco, que tem gosto de aventura e de temor.

Muitas vezes Alice já esteve neste lugar, habitando essa cena na qual se coloca a escrever. Expectativa pelo rabisco produzido pela dança da ponta do lápis sobre a superfície da folha em branco. Exercício que se repete, mas sempre de modo diferente. Um respiro, um suspiro, uma inspiração.

Alice pensa sobre o que quer escrever e sorri. A ansiedade em traçar as primeiras linhas lhe parece uma grande ironia. Sente-se um tanto covarde, exagerada, com sutilezas de infantilidade. No jogo entre esboço e modificação, escrita e reescrita, talvez algo possa permanecer na folha rasurada. É preciso arriscar os primeiros traços. A borracha a postos.

Gostaria de refletir, neste texto, sobre os processos subjetivos que a escrita conjuga e seus efeitos. Não me refiro à literatura de modo geral, e sim a toda a experiência de escrita que vivencio na universidade como contexto de trabalho e de vida.

Não foi um início tão ruim, mas é só um início. Recorda textos escritos no passado. Ao comparar a tessitura de diferentes escritas, percebe como pode ser ampla a pluralidade de composições. Cada texto assume sentidos dependendo do período, das circunstâncias e de como o processo de escrita acontece.

Seu labor cotidiano é constituído por diversos exercícios de escrita: atividades de pesquisa, orientações de teses e dissertações, elaboração de planos de aula, produção de artigos. Um trabalho com palavras. A cada dia, escrever e ler, falar e escutar (Larrosa, 2003).

Em meu trabalho na universidade, há muitos motivos para escrever, e a relação com a escrita costuma provocar diversos afetos. Uma experiência que sempre implica expectativas, deslocamentos e um pouco de solidão.

Escrever pode evocar uma condição de desamparo. Uma ficção. Não há escrita que se realize apartada de processos coletivos: condição e possibilidade. Mas há uma solidão que é sentida no cotidiano e na rotina dos bastidores da escrita, quando é preciso silenciar para dizer. A escrita precisa de momentos de pausa, de represa, de lentidão para ser experiência de encontros e de desvios.

"Navegar é preciso, viver não é preciso." Memórias de Fernando Pessoa (2004) reverberam em relação a precisão. Navegar é preciso, envolve diretrizes e equipamentos - algumas bússolas, em linguagem metafórica. Viver não é preciso, e sim da ordem do intempestivo, pois há carência de exatidão nos rumos da vida. Alice gostaria que sua escrita fosse precisa como um tiro veloz e certeiro, mas ela é vacilante e cheia de hesitações como um ensaio dos primeiros passos de dança ao conhecer um ritmo novo. Com a incerteza dos rumos no início, mas a atenção necessária à realização de um percurso cuidadoso. Uma lembrança dos filósofos Gilles Deleuze e Felix Guattari (1997a) a acompanha: no contexto das ciências nômades (e subversivas) uma "ciência anexata é rigorosa". Há um rigor em não ser exato que constitui a precisão dessa escrita. Uma exigência ao apostar no devir como impulso de criação. Escrever pode ser exato, inexato ou exercício de anexatidão.

A necessidade de escrever produzindo um "rigor flexível" compõe uma possibilidade de duplo sentido para a escrita. Assim como a palavra "risco", ao propiciar a criação do trocadilho, o termo-dispositivo "preciso" constitui um subterfúgio para visibilizar diferentes movimentos que a experiência da escrita acadêmica possibilita contrastar.

Escrever pode ser um risco. Risco é medo. Hesitação. Ameaça. Perigo. Risco é coragem. Audácia. Vontade. Escrita precisa? Talvez um desejo de exatidão ou a afirmação como atividade necessária, independente do querer. Preciso é termo polifônico. Dupla definição. Aponta rigor. Compreende obrigação.

"Risco" e "preciso" se constituem como termos-dispositivos, porque abarcam uma experiência paradoxal. Eles são dois conjuntos heterogêneos compostos na interface entre discursos, instituições, enunciados científicos, proposições filosóficas e morais... enfim, o dito, o não dito e a rede que se pode tecer entre eles (Foucault, 2000).

A vocação das palavras à pluralidade de sentidos proporciona que a escrita possa se constituir como dispositivo de produção de subjetividade. Alice decide abordar a polifonia de sentidos que o exercício de escrever conjuga, explorando a potência da experiência da escrita acadêmica em agenciar paradoxos.

 

Paradoxo da Escrita: Informação e Experiência

Na escrita de um texto acadêmico constituem-se relações entre formas, regras, convenções, protocolos. Há necessidade de circunscrever bem um tema e apresentar proposições consistentes, reconhecidamente científicas e relevantes em um campo de estudos. Com a inquietação de pensar os paradoxos da escrita acadêmica, Alice reflete sobre a característica informacional das publicações científicas.

A escrita de um texto científico envolve efetivar escolhas. Pode demarcar uma certa ordem que estabelece constâncias e estabilidades aos movimentos da vida. Descrições de ideias e de acontecimentos que compreendem produção de mundos.

Uma lembrança lhe visita o pensamento: a participação em um curso destinado a ensinar como escrever artigos científicos. Entre os artifícios: escrever um resumo e uma introdução com um número predefinido de linhas para cada tipo de informação (objetivo, justificativa, método, resultados). Sem muitos rodeios, utilizar exemplos no texto, apresentar resultados por meio de gráficos, construir frases sem utilizar citações diretas, escrever o texto dividido rigidamente em algumas partes: introdução, desenvolvimento, metodologia, resultados e considerações finais. Gradualmente, todos os participantes aprenderam a redigir artigos segundo essa padronização. No contexto acadêmico, muitas vezes, a escrita pode ser cheia de expectativas, mas acanhada em singularidades. Flerta com a monotonia, a ausência de diversidade.

Tradicionalmente, a escrita acadêmica tem características bem estabelecidas. Embora existam muitas formas de escrever um texto, também há a tendência de se escrever sempre de uma mesma maneira. É preciso certo treino até desenvolver a destreza necessária para escrever um texto que seja autoral e que, ao mesmo tempo, se pareça com qualquer outro.

Alice respira fundo. Sente o tensionamento dos músculos do pescoço. Desconforto nas costas. Os ombros pesados. Seu corpo experimenta o efeito de trazer à lembrança uma tradição de escrita tão bem consolidada. Difícil de contornar. Como um muro firme, feito de muitos tijolos, a ciência moderna não deixa apagar suas marcas.

Abordar a escrita acadêmica a partir de suas regularidades reforça o caráter informacional relacionado à capacidade de comunicar proposições de forma assertiva. Em um contexto de produtivismo acadêmico1, é desejável que, além de ser clara, a informação seja divulgada em quantidade. Padronização e velocidade: duas características que muitas vezes caminham de mãos dadas. A experiência da escrita pode ficar um tanto "mecanizada" também pela exigência de produção em série...

Aceleração. Não é importante apenas publicar um bom texto. Uma publicação solitária não confere a qualificação necessária ao Currículo Lattes, assim como sentencia o ditado popular: "uma andorinha não faz verão". O número de textos publicados deve ser o maior possível, no menor tempo necessário. Isso pode fazer com que, no contexto acadêmico, a relação do escritor com as publicações seja, por vezes, semelhante à corrida do coelho que busca uma cenoura sem sucesso, pois ela aparece à sua frente pendurada por uma corda presa à vareta em suas costas. Sensação de luta constante contra o tempo. Grafia que se traça nos atrasos.

Muitas vezes, no contexto acadêmico, é preciso escrever mesmo que o encadeamento das ideias no texto não adquira fluidez sem algum (ou muito) esforço. Faz-se necessário um trabalho árduo para chegar a um bom resultado. É como receita de pão: tem que sovar bem a massa. Sentar em frente a página, mesmo sem saber de antemão tudo o que se quer dizer. Experiência de contratempos. O próprio processo de escrever pode oferecer pistas. Há bússolas, embora o caminho não seja linear. Ele se traça no percurso reservando uma potência de imprevisibilidade. Não depende só de um esforço momentâneo. Às vezes é preciso abandonar a página e ir para o mundo; ruminar ideias e depois voltar. A construção de uma narrativa não acontece somente diante da página e não se encerra longe dela. Experiência entre-tempos cheia de entremeios. Novamente, é como fazer pão: precisa de um bom fermento e tempo para fermentar.

A folha em branco é um ponto de intensidade para pensar os encontros e os desencontros, os mananciais e os desertos, os prazeres e os riscos da escrita como um processo de criação. Alice recorda uma reflexão de Humberto Maturana (2001) a respeito do processo de deriva. Para Maturana, "estar à deriva" aponta a tessitura de um percurso que não se realiza de forma compulsória, o roteiro não é predefinido artificialmente. A deriva compreende uma multiplicidade de fatores que impulsionam o rumo a um próximo porto e, portanto, também não corresponde a uma situação de estar sem rumo ou em estagnação. Quando se está à deriva, o trajeto é constituído de acordo com os encontros, os afetos e as contingências que surgem, a cada momento, no caminho. Assim também parece ser o processo criativo de algumas experiências de escrita.

Às vezes, sinto que escrever é como estar à deriva. Em vez de buscar percorrer o caminho mais objetivo entre ponto de partida e de chegada, busco me lançar à experimentação da escolha das palavras, da composição das frases, do encadeamento das ideias para a formação de um texto que se constitui também como processo de pensamento.

Os espaços vazios na folha em que escreve, a palidez branca da folha, parecem tensionar a espera pelas próximas palavras. Sem saber como prosseguir a escrita, decide ir até a cozinha buscar algo para beber. Talvez algo quente, que traga um pouco de conforto. Sempre é hora para mais um chá! Sente as ideias confusas, embaralhadas. Um baralho! Suas experiências de escrita no contexto acadêmico podem ser comparadas à composição entre cartas de um baralho? A metáfora não lhe agrada. A escrita acadêmica proporciona experiências mais viscerais, menos ordenadas e não geometricamente delimitadas como as dimensões simétricas de uma carta ou sua localização entre outras em um baralho. "A experiência é o que nos passa, o que nos acontece, o que nos toca. Não o que se passa, não o que acontece, ou o que toca" (Larrosa, 2002, p. 21), lembra Alice. Algo passa em Alice, algo lhe toca. Pensa então, em um novelo de lã emaranhado, mas esta imagem também não satisfaz. A lã, mesmo enredada, mantém uma linearidade que lhe é constitutiva. Um princípio, um fim. Bem determinados.

Chegando à cozinha, Alice procura os elementos necessários para fazer o chá. Uma xícara. Uma chaleira. Saquinhos com ervas. É preciso acender o fogo. Em uma gaveta, encontra a caixa de fósforos envolta pelos fios de uma teia de aranha, em processo de formação. "Uma teia!". As lonjuras e as aproximações entre as experiências de escrita na universidade parecem constituir uma espécie de teia, de trama, de rede... Um entrelaçamento que se instala com elasticidade e com pontos de intensidade - alguns nós que essa trama de intenções e práticas sustentam. Com seu chá quente nas mãos, Alice volta para a mesa de trabalho.

Mesmo as formas mais normatizadas de exercício da escrita não constituem modos de sentir? Modos de performar um fazer, uma experiência, um mundo? A escrita é possibilidade de produção de afetos, de experimentações por meio da linguagem, de invenção de novos contornos.

As escritas produzidas no contexto acadêmico tecem teias. Tensionamentos entre texto e autor. Estabilizações e irregularidades que formam zonas de aberturas e fechamentos. A teia é superfície de deslocamentos e capturas. Há flexibilidade. Quando uma forma se estratifica, novos fluxos emergem. O caminho é sinuoso, porque não aceita posições absolutas. Se, por um lado, a experiência de escrita pode privilegiar construções textuais protocolares com limites bem definidos em relação às possibilidades dos modos de expressão, por outro, pode ser um importante campo de produção de afetos e se constituir como potência para deslocamentos dos processos de subjetivação. Como nas lembranças de Alice entre informações e experiências, entre o que acontece e o que nos acontece.

Muitas vezes, sinto que a escrita de um texto me atinge, me emociona, me comove, me move! Cria uma suspensão entre um estar sendo e seus sentires e outros modos de ser e de sentir. Como seria cartografar essas afetações? Compor um mapa. Uma espécie de dicionário afetivo.

Escrever, por mais descritivo e "imparcial" que se pretenda, não deixa de operar aberturas para a invenção de possíveis. As regularidades imbricadas num exercício de escrita bastante normatizado ou não podem potencializar e/ou restringir a criatividade dos modos de expressão, mas nunca anular a capacidade da escrita de produzir desvios, pois escrever pode se constituir como experiência de deslocar-se. Mesmo que a intenção do autor seja a produção de um texto segundo um modelo padrão, rígido e linear, a experiência de escrever é potente de transbordamentos.

A escrita faz algo existir na forma de um registro. Mas narrar uma história não é revivê-la. A ação de escrever sobre algo que se viu ou ouviu é a produção de uma outra experiência singular. Ao constituir uma narrativa, a escrita desestabiliza e acaba produzindo novas estabilizações.

A escrita acadêmica pode ter um caráter descritivo e inventivo; ser o relato de um processo e uma transformação de si: informação e experiência. Alice lembra um pensamento de Michel Foucault: "Só escrevo o que ainda não compreendo. Não escrevo para permanecer o mesmo" (1986, p. 20). Escrever pode ser estratégia para pensar sobre um tema, uma inquietação, afetação. Escrever, ler, apagar, reescrever. Experimentar palavras, mudar proposições, construir outras afirmativas, vislumbrar possibilidades. Uma escrita feita de precipitações e regressos. O cultivo de um encontro consigo no processo de experimentação das palavras.

O autor Jorge Larrosa sugere que uma escrita-experiência requer gestos de interrupção no fluxo de acontecimentos da vida. Algo, por vezes, difícil de ocorrer nos tempos acelerados da escrita acadêmica. É preciso cultivar a sensibilidade, a atenção e a delicadeza para que o escritor se constitua como um território de passagem, no qual os afetos produzidos deixam marcas, vestígios, alguns efeitos (Larrosa, 2016). Gilles Deleuze (1978), certa vez, buscou nos escritos do filósofo Spinoza inspiração para pensar os afetos como movimentos relativos ao devir, que aumentam nossa potência de ação. Um domínio de mudanças de estados e de aberturas para virtualidades de si.

O exercício da escrita é capaz de constituir um território-limite onde o fluxo do pensamento encontra a desaceleração de sua variabilidade, pela concretude que a formulação de um texto impõe. Escrever é sobretudo um processo que convoca o ato de pensar.

A escrita acadêmica é permeada por regras, modelos, julgamentos de valor, enquadramentos; e também por práticas de experimentação, de inventividade, de criação, de aprendizagens. Muitas vezes, esses aspectos se apresentam de forma entrelaçada. Em seu caráter informacional, o texto atualiza representações. Como experiência, é dispositivo de produção de afetos e possibilidade de deslocamento dos processos de subjetivação. Não raramente, a divergência de pontos de vista quanto à valorização desses dois aspectos provoca disputas de caráter epistemológico. Isso faz com que a experiência da escrita no contexto acadêmico constitua um campo político de tensionamentos, no qual emergem diferentes propostas de normatividade. Essas compreensões do exercício de escrever e as políticas de regulação que elas engendram se distanciam e se encontram na experiência de escrita de cada autor. Elas favorecem modos de organização textual. Experiências vão se compondo, transformando o texto em devir. Uma página em branco é intensidade de agenciamentos, espaço de possíveis.

 

Virtualidade e Atualização: a Folha em Branco como Concreção de Moldura e Vazios

Olhando em direção à sacada, Alice observa o vento movimentar as árvores. Alguns galhos parecem querer tocar o chão em um fluxo que prenuncia a chuva que se aproxima. As primeiras gotas alcançam a transparência da janela.

Às vezes um tema me toma. Não consigo não escrever sobre ele. Tenho outros textos para escrever... Os prazos chegando ao seu cume, mas não consigo me concentrar neles. A página em branco me atrai, ferozmente, em outra direção. Para habitá-la a partir de questões que não seguem a urgência das tarefas assumidas e dos ponteiros do relógio marcando o prazo que se encerra. Nestas situações, a escrita tem algo de insistente e indomável! Às vezes preciso escrever e não tem jeito, é truncado, é difícil. Em outras, não consigo não escrever!

Alice sente a brisa suave entrar pela sacada acompanhada pelo cheiro da chuva. Gosta das madrugadas para escrever, principalmente as solitárias. A noite já se estende e ela pode escutar poucos carros passando pela rua. A cidade começa a dormir. O silêncio lhe faz companhia.

Será então que algumas experiências de escrita poderiam ser comparadas à uma chuva de verão? Acontecem bem rápido e de uma vez. Permanecem apenas o tempo da intensidade que faz pausar qualquer outra coisa que está em curso. Sensação inebriante de uma certa suspensão do tempo, entre o vento e a tempestade. Uma escrita que se faz temporal!

Aproveitando a chuva como inspiração, ocorre-lhe que as melhores previsões meteorológicas são aquelas que se limitam aos períodos de tempo mais próximos ao presente. Isso não é um simples acaso. Os processos climáticos não são aleatórios, embora complexos. Cada dia nublado ou ensolarado, os ventos e os furacões, as chuvas e os temporais são condições climáticas que foram produzidas em um determinado lugar e período, a partir de associações entre diversos fatores que não podem ser reduzidas ao acaso.

A etimologia da palavra "aleatório" é interessante. Sugere jogo e perigo. Alea é o prefixo latino para dado ou sorte. Está presente na expressão célebre "alea jacta est"2 - a sorte está lançada. Lembra o caráter de aposta, do contínuo relançar os dados, que perfaz alguns processos de escrita. Uma aposta que não é arbitrária. Em Theatrum Philosophicum, Foucault (1997) propõe que todo momento presente é um golpe de sorte. Um lançar de dados - em ruptura ou repetição - na relação com o passado. Não por um grau de incerteza, pois "o azar do jogo é o próprio jogo como azar; de uma só vez lançam-se tanto os dados como as regras" (p. 79). A escrita, como lançar de dados, é jogo com regras inclusas. Prática de resultados não casuais.

A inspiração sobre um tema, um problema, uma cena, dá impulso. Dá vivacidade e uma certa voracidade à escrita. Não é uma escrita desprovida de intencionalidade ou direção, mas o percurso depende do contexto de emergência, dos sentidos que lhe são atribuídos, do que é potência de vir a ser e do que não se materializa completamente.

Quando escrever se faz temporal e a escrita flui com movimentos vendavais, as forças adquirem certa transparência. A fluidez desvanece a característica de combate da escrita. Uma controvérsia resolvida não tenciona à batalha. A agonística das incertezas é que faz da escrita um combate, que é mais intenso quanto mais forte for a disputa entre possibilidades. Combate que tem vigor pela intensificação da conjunção de carácter condicional "se". Como gesto de atualização, o "se" é cadeia de possibilidades por meio da qual a diferença pode perdurar.

Cecília Meireles brinca com a semelhança entre a conjunção "se" e o pronome "se" em sua poesia Ou isto ou Aquilo. A conjunção é o "se" das possibilidades, que tem caráter condicional (se ele for, se aquilo acontecer). O pronome é o "se" apassivador ("a si"; tornar-se, refletir-se). A brincadeira de Cecília está justamente em usar o pronome lembrando o sentido da conjunção: "Ou se tem chuva ou não se tem sol. Ou se tem sol ou não se tem chuva! Ou se calça a luva e não se põe o anel, Ou se põe o anel e não se calça a luva! Quem sobe nos ares não fica no chão, quem fica no chão não sobe nos ares. Uma grande pena que não se possa estar ao mesmo tempo em dois lugares!". Um virtual se atualiza e a atualização cria novos virtuais. Na experiência da escrita, a folha em branco é elemento que tensiona escolhas colocando a resolução do "se" em suspensão. Ela convoca um plano de com-posição: posições em disputa. A agonística de forças, saberes e discursos não é homogênea, e tanto menos harmônica quanto mais intensa for qualquer hesitação.

Alice olha para o quadro refletido no espelho ao lado da sacada. Novas sensações, afecções e percepções. No quadro, há anos na parede, percebe outros tons e ilusões de movimento que compõe uma narrativa diferente para a cena ali exposta. Antes, uma pintura pálida, melancólica e saudosista. Agora, a força dos traços e a intensidade da imagem tocam-lhe o peito. No passado, uma submissão contemplativa. Naquele momento, fantasia a cena em que a pintura fora realizada. Com o lápis na mão, em vez de um pincel, imagina a folha e seus espaços como a tela à espera das cores. A folha está em branco, mas nunca foi território desabitado. Todo um mundo de elementos compõe com ela a experiência da escrita.

Como na relação entre pintura e tela, a diversidade de elementos que constituem os modos de olhar e de escrever constroem uma moldura para o texto. No interstício entre o artista e o quadro, a moldura não é apenas o contorno, o entorno ou a borda. É toda a condição para a composição que se atualiza a cada momento, a cada novo encontro. Como parte de uma moldura, a folha em branco impõe uma linearidade que a conjugação entre tempos não sustenta. Ela convoca a fabricação de uma sequencialidade, mesmo que o pensamento da escritora não seja um processo linear. Ideias, lembranças e acontecimentos desordenados conformados às linhas que a escrita na folha comporta. Efeito de linearidade produzido. Farsa involuntária: uma narrativa impostora.

Mas a moldura, para além da conformidade de um limite, faz a imagem do quadro vibrar e reverberar. Ela reveste as margens de um quadro e compõe a experiência do olhar apontando um vazio a ser preenchido. Alice lembra que Deleuze e Guattari (1997b) afirmam a necessidade deste vazio citando o pintor chinês Huang Pin-hung: "Uma tela pode ser inteiramente preenchida [...], mas algo só é uma obra de arte se, como diz o pintor chinês, guarda vazios suficientes para permitir que neles saltem cavalos" (p. 215). O vazio é tudo que está e não está no quadro. A cena se move na imaginação de uma testemunha. Toda sensação se constitui e se conserva com o vazio. O fundo colorido do quadro, ou antes colorante, já é força (Deleuze & Guattari, 1997b). O branco da folha presentifica um vazio no qual se compõem possibilidades de afetos e percepções.

Como contexto para a linguagem, a folha em branco participa da deformação de significados e da produção de mundos. As bordas da folha, como moldura, contornam e performam a escrita, propõem restrições e convocam exercícios de liberdade.

Alice interrompe a escrita; o fluxo das ideias se abranda. Sente a angústia de quem percebe aproximar-se do centro de um labirinto sem, contudo, saber onde está, nem para onde ir. Na história de uma outra Alice (Carroll, 1997), um gato sorridente diz que "para quem não sabe aonde ir, qualquer caminho serve". No mundo onde encontrou o gato, essa outra Alice precisou se transformar. Era um lugar onde as regras de tempo e de espaço estavam de cabeça para baixo. Quando comia um bolo mágico, ela crescia rapidamente. Quando bebia uma poção, ela diminuía enormemente. Deleuze (1974) aborda essa história para argumentar que o acontecimento "crescer" faz coexistir duas operações, sendo a dimensão paradoxal do mundo: ser uma coisa e outra ao mesmo tempo. A história da Alice escritora também é cheia de movimentos simultâneos.

A folha é mais do que uma morada para a escrita. É ponto de intensidades. Espaço-tempo habitado por elementos materiais e imateriais. Ela é ficção e superfície de inscrição. Campo de virtualidade, de possíveis e de atualizações. Alice recorda o texto O atual e o virtual, no qual Deleuze (1996) traça relações entre estes três operadores conceituais. Para ele, as atualizações implicam elementos já constituídos e determinações por meio de ordenamentos. Por isso, o atual é composto pelas formas, pelas estabilizações que acontecem no presente. "É o presente que passa, que define o atual" (p. 55). O atual é efeito da duração, da regularidade e da previsibilidade. Essas proposições fazem Alice lembrar de Roland Barthes (2004), "todo o texto é escrito eternamente, aqui e agora" (p. 3).

O possível se assemelha ao atual. Também é um campo que faz operar relações entre formas. Mas um possível pode ou não se atualizar. É efeito de abstrações lógicas submetidas ao atual. Ele está próximo dos acontecimentos do tempo presente como promessa, expectativa ou probabilidade. Se o possível se aproxima do atual, a maior distinção está entre a atualização e a virtualidade. O virtual, como campo de produção de diferença, sobressai a relação entre as forças, antes que qualquer forma possa ser vislumbrada. Ele aponta a dimensão da imprevisibilidade efêmera dos processos de criação, pois aparece "num tempo menor do que aquele que mede o mínimo de movimento numa direção única" (Deleuze, 1996, p. 55).

Escrever pode ser da ordem das durações momentâneas, dos limites imprecisos, das variações sem ordenamentos. Uma folha de papel em branco virtualiza possíveis, agencia forças que movem o texto. As normas e protocolos do trabalho acadêmico exercem uma função de referência que se constitui como condição para a possibilidade de deslocamentos. Há sempre um movimento paradoxal no encontro entre a função de referência e a experiência de desterritorialização, que possibilita inventar outros modos de existência. Assim como a teia que não define de antemão, por seu desenho, o deslocamento da aranha. O plano de formas aponta posições, funções, limites, cria o contorno do território necessário para que a experiência de desterritorialização seja possível (Kastrup & Barros, 2009).

A relação do virtual com o atual é de coexistência e de contínua oscilação. Um estreito circuito conduz, constantemente, de um ao outro. Cada partícula, forma ou singularização cria efêmeros correspondentes. Quais possíveis e atualizações operam nessa escrita?

A escrita como exercício do dizer constitui-se conectada às características locais de seu contexto de emergência. Ela tensiona perspectivas epistemológicas distintas e os modos de pensar que elas agenciam. Essa relação entre epistemologias, contudo, é feita de porosidades, pontos de encontro que são produzidos na experiência particular de cada autor. Acontecem em meio a regularidades e discursos de verdade, mas se singularizam na experiência.

Tais perspectivas epistemológicas operadas na escrita nunca se fazem alheias às práticas dos sujeitos e aos discursos de verdade. Autorias, criações e sujeições emergem em meio ao que pode ser dito e ao que é possível dizer. Desdobram-se em emaranhados discursivos produzidos entre linhas de força, que adquirem maior ou menor visibilidade.

A escrita acadêmica envolve formas: protocolos e modelos rígidos de escrita que se fazem presentes; também envolve forças: movimentos que possibilitam deslocamentos nos modos de ser, pensar e agir. Nos atravessamentos e composições entre as formas e as forças, se originam estilos, tendências, atratividades para a escrita, e se constituem modos de subjetivação. Para mim, não há escrita que se faça sem paixão e tensão.

Na relação entre esses dois planos, de formas e de forças, há tensionamentos entre os elementos que compõem a experiência da escrita acadêmica. Pode-se falar de forças, no plural, sempre em relação, como vetores de criação ou de conservação, forças ativas ou reativas, e as formas são efeitos de um arranjo destas últimas. As forças diferem em termos de quantidade e qualidade: forças ativas, de criação, e forças reativas, de adaptação e regulação (Deleuze, 1965). Vistas a partir dessa perspectiva, formas, portanto, também são forças. Pode-se distinguir o plano de formas como composto pelas linhas molares - ou forças molares -, instituídas, visíveis e possíveis de serem delimitadas como um arranjo reconhecido em um campo de saber-poder. O plano molecular de forças se constitui pelos vetores que não cessam de atravessar e tensionar a ordem e os limites das posições de verdade... Trata-se de uma agonística de forças.

A escrita de Alice indica modos de ver e dizer. Promove visibilidades que permitem fazer existir novas formas de relação com a própria escrita, num movimento recursivo. Escrever sobre a escrita se constitui também como processo de subjetivação que possibilita a própria escrita.

Percebo que só posso tecer o exercício da escrita a partir de determinadas condições físicas, históricas, linguísticas, culturais e de gênero. Tenho um "teto todo meu", parafraseando Virgínia Woolf (2014), que me possibilita escrever. Estou em meio a essas condições, nada começa por mim. Escrevo com sensações. Minhas palavras emergem nessas contingências e só são possíveis através delas. Elas abrem conexões e mundos, e também constrangem, limitam e encerram outras composições no plano finito da linguagem.

A experiência de si com o ambiente agencia o processo de criação. A espessura do traço do lápis sobre a folha, a borracha, a chuva, a teia de aranha, o quadro, o chá, as sensações, as memórias, os gostos. A dor nas costas, as unhas roídas, o suor, o calor. A escrita se tece nessa teia que envolve a produção de um corpo, um espaço, uma experiência de escrever. O corpo é potência de experimentação (Maturana, 2001), mais que limite de experiência.

A folha em branco movimenta a escrita acoplada a todos esses elementos. É campo epistemológico na emergência de um plano de composição. Como tensionamento entre possíveis, atuais e virtuais, ela é limite e, ao mesmo tempo, abertura. Um elemento paradoxal que provoca constrangimentos e desestabilizações de divisas. Moldura que faz operar mais um paradoxo da escrita: o seu caráter de produção de diferença e repetição.

 

A Presença-Ausente do Autor: Paradoxo do Vetor Coletivo-Indivíduo

Alice busca inspiração. O apartamento lhe parece organizado, com pequenas coisas fora do lugar. Sente que escrever pode ser uma experiência singular para cada autor! Surpreende-se ao considerar que, mesmo envolvendo processos tão particulares, um texto ainda pode ser um ponto de encontro entre indivíduos. Um espaço-tempo de conexão entre autores e leitores.

Quando um texto é finalizado, existem marcas de um devir? O que dá visibilidade à autoria? Por vezes, parece que o autor desaparece do texto ou que o texto não mais lhe pertence. Jogadas as palavras no mundo, não são mais suas... talvez nunca tenham sido3.

Alice também é ausência no texto. Está e não está nele. Pensa que o movimento de ausência tem potência, pois convoca um plano comum na experiência de colocar em jogo forças e regularidades que se singularizam. Alice é uma personagem que movimenta ficções, que convida narrador e leitor a se deslocarem. É a professora e suas urgências de produção. É a estudante de doutorado em seus constrangimentos e prazos. É toda e qualquer pessoa que se arrisca nos riscos de uma folha em branco. Ela é uma entre uma multidão de Alices.

Como a escrita agencia essas presenças e ausências? A autoria está presente nos textos, não somente pela assinatura ao final da página. Também pelos movimentos sutis. No nível mais básico, o da palavra, já existe uma assinatura. Ao escolher entre um ou outro termo na produção da sintaxe, deixa-se marcas que foram feitas em nós, por meio de nós, conosco. Por isso, se engana quem acredita na ilusão de que um texto possa ter chance de imparcialidade. A imparcialidade é uma ilusão em qualquer ato de comunicação. Sempre há um lugar de fala. Mas existem frestas a serem abertas à polifonia, inclusive aos saberes "menores".

Deixo marcas de autoria que não são minhas na sintaxe. Não se reduz à escolha de um tempo verbal. Não se trata de escrever em primeira ou terceira pessoa, e sim da produção de condições para que o leitor possa se comunicar com o que escrevo. Comunicar-se por meio da escrita é diferente de se comunicar com ela. Para que a leitura de meus textos seja produtora de encontros, minha autoria precisa compor vazios. Abrir frestas, respiros. Apostar na força de um comum na escrita, que transborda uma noção individualista. Quantos saberes legitimados ou não compõem minhas palavras?

Alice recorda a escrita das linhas anteriores sobre os vazios que a moldura de uma obra precisa sustentar. Esses vazios também estão presentes nesse movimento de presença-ausente da produção de autoria. Uma ausência que possui densidade. Uma presença que se faz sutileza. Mais um paradoxo que é produzido na experiência da escrita: a presença e a ausência do autor em seu texto.

Este é um duplo paradoxo. A presença-ausente também pode ser reeditada com um segundo enfoque. Geralmente, pensa-se a autoria ligada a um agente da criação: o livro ao seu autor, a música ao seu compositor. A modernidade foi a época em que esse movimento de filiação, de amálgama entre o produtor e seu produto teve seu auge. Historicamente, tal pensamento esteve ligado a ideais de liberdade, como se cada indivíduo pudesse ser plenamente autônomo e responsável por suas invenções. De forma um pouco mais ampla, novamente se faz presente a problemática da moldura de cada experiência de escrita.

A autoria também pode ser abordada a partir das condições de produção de um discurso. Com essa proposta, em vez de considerar a autoria um atributo individual, Foucault (2009) se coloca em meio às produções discursivas do seu tempo. Ele argumenta que o que é possível dizer, em cada época, está impregnado de contingências. Quais são as que me atravessam e me produzem?

Alice lembra da expressão zeitgeist, que escutou em uma aula, locução que se refere ao espírito do tempo de cada época que dá forma a um tipo de experiência. Invertendo a lógica tradicional do pensamento, questiona-se sobre a autoria como produção possível em um contexto, marcada por diversas contingências. Não algo puramente individual. O que emerge como uma obra ou um texto é efeito do modo como o sujeito se envolve nas tramas coletivas de enunciações históricas, culturais, linguísticas, geográficas, econômicas entre tantas outras condicionalidades.

Eu sou uma produção, assim como essa escrita, e não há nada de original ou primordial. O que morre na escrita é o indivíduo moderno, inflado no seu ego, que tem na razão a sede de todas as produções. Há uma presença-ausente do autor no texto, que, mesmo ao falar de si, abre para uma experiência humana, demasiada humana. Uma desterritorialização constante que coloca o pensamento em crise, e o Autor, com A maiúsculo, vai desaparecendo. Assim como eu, Alice e autora.

Paradoxo com uma dupla direção vetorial. Um dos vetores da presença-ausente segue a intencionalidade de coletivização do texto. Busca pela invenção de um plano comum para a experiência de leitura, como zona de encontro e virtualidade. O outro problematiza as condições que possibilitam a emergência do texto, relativizando a noção de autoria. Recusa da autoria como atributo individualizante. Uma função autor se atualiza em agenciamentos de formas e forças.

 

Alices e suas Escritas

Alice percebe que o dia invade a noite e que as horas alongam-se para além do previsto. Um piscar de olhos parece separar o momento em que começou a escrever e o agora, quando os primeiros raios de sol tocam o horizonte. Pensa na potência dos encontros produzidos no espaço circunscrito daquelas páginas que habitaram com ela a noite. Exemplo de como a escrita não é apenas uma ferramenta de trabalho. É também companheira de vida, de morte, de devir.

A escrita tem sido uma amiga. Em momentos variados ela me acompanha. Como tecnologia de expressão e produção de afetos, percebo que ela se constitui para mim como exercício de pensamento. Não consigo pensá-la apenas como uma forma de descrever minhas ideias ou devaneios. Sinto que ao escrever não é somente a folha que adquire novos contornos e tessituras. Eu também passo por transformações.

A potência de abrigar efeitos inesperados também dá espaço à angústia. O receio de dar visibilidade para ideias vacilantes pode fortalecer a possibilidade de apego às fórmulas e às normas clássicas de escrita que trazem uma sensação de segurança em meio à hesitação. Mas o encontro entre uma folha ainda desabitada de palavras e a autora que se lança à composição de tonalidades e traços de escrita pode representar a expressão de um sentimento de liberdade. Segurança e risco.

Criar é dar a ver, dar vida a algo que não existia antes e passa a habitar o mundo. Mas criar também não é fazer morrer? A folha em branco é potência de criação, de transformação e de produção de diferença. Mas ela é também campo de tensionamentos e, por isso, contexto para movimentos de vida e de morte em um mesmo ato.

Alice se afasta da mesa de trabalho após horas de concentração. As folhas não estão mais em branco. Ela e a escrita fizeram-se companhia. Um texto feito de sonhos, de teias de aranha, de tempestades. De sensações, de chás e de memórias. De solidão, de afetos, de amizades. De sangue pulsando nas veias, de hesitações e de um pouco de coragem. O que resta dessa experiência? Como um sino, após soar as últimas badaladas, o que ressoa para além dessa noite?

A experiência de Alice com a escrita acadêmica possui elementos do cotidiano de muitos/as estudantes e professores/as. O desafio dessa escrita é efeito de incômodos. Interrogações em relação aos modos de produção de conhecimento no contexto científico. Seu estilo de escrita abarca experiências afetivas, uma vez que convida o leitor a refletir sobre a dimensão do sensível, experimentando mudanças de foco do olhar. É tecida uma postura ético-estético-política que compreende a escrita como um processo multifacetado, que envolve a produção de uma experiência singular, local e inventiva, ao mesmo tempo que compõe um plano comum de experiência, imerso em regularidades, saberes e poderes dos dispositivos acadêmicos.

A história da Alice, da literatura, convocava uma experiência híbrida entre sonho e realidade. Deleuze (1974) se inspira nela para colocar o paradoxo como uma imagem de seus exercícios filosóficos. História e escrita que também são centelha para Alice pensar as agonísticas da escrita acadêmica. A produção de visibilidades em um campo de forças promove a tessitura de um texto-experimentação que engendra aspectos ficcionais à problematização teórica dos paradoxos, que a trama da escrita envolve. Alice interpela a escrita a partir de sua dimensão paradoxal, propondo sua compreensão como informação e experiência, virtualidade e atualização, presença e ausência. A folha espera um novo risco, um novo giro, um novo ponto. Que não será final, mas que se faz necessário.

 

Referências

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Enviado em: 06/05/18
Aceito em: 07/07/18

 

 

Renata Fischer da Silveira Kroeff é mestre e doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmente é professora do curso de Psicologia no Instituto Evangélico Novo Hamburgo (IENH). Integrante do Núcleo de Ecologias e Políticas Cognitivas (UFRGS).
E-mail: kroeff.re@gmail.com
Jéssica Prudente é mestre e doutoranda em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: jessiprud@gmail.com

 

 

1 O produtivismo acadêmico teve origem nos Estados Unidos nos anos 1950 e pressupõe a excessiva valorização quantitativa da produção científico-acadêmica. "Publish or perish", sua expressão mais característica, indica que os professores/pesquisadores universitários devem manter um alto nível de produção acadêmica, seguindo os parâmetros determinados pelos órgãos financiadores, pelas políticas das universidades e pelas exigências do mercado, sob o risco de terem sua carreira profissional prejudicada.
2 A frase é atribuída ao general romano Caio Júlio César, quando decidiu atravessar o rio Rubicão para tomar a cidade de Pompeia que, em 49 a.C., detinha poder sobre Roma. Estratégia de guerra arriscada. Se a investida não obtivesse sucesso, sabia que seu exército padeceria, sendo destruído sem conseguir voltar em segurança à terras romanas.
3 Este exercício de escrita acadêmica contou com a colaboração de colegas que emprestaram suas vozes e olhares atentos participando da leitura prévia do texto e contribuindo para uma produção coletiva de debates que se singularizam nas palavras aqui expressas.

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