SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.9 issue2Alice and the academic writing paradoxesTraveling through the slit: corporalities and differences in academic writing author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2019

 

DOSSIÊ - TEMAS EM DEBATE: RISCOS DA CRIAÇÃO

 

Short Scenes: a escrita acadêmica como combate1

 

Short Scenes: academic writing as a combat

 

Short Scenes: la escrita académica como combate

 

 

Luciano Bedin da Costa; Cristiano Bedin da Costa

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Short Scenes: figuras breves, relativamente independentes entre si, livremente dispostas. Um pequeno jogo de armar, digamos. Será necessário, portanto, que a leitura estabeleça sua própria medida. Enquanto combate, a escrita se revela enquanto um pequeno, íntimo e diariamente renovado compromisso de vida, estando, o escritor, ao lado do lutador que estuda (e, portanto: indaga) o adversário: não antes e nem depois, mas durante a luta. Assumindo Roland Barthes como interlocutor, o que comumente chamamos de escrita acadêmica é entendido como um tipo especial de combate e, como tal, capaz de nos oferecer pistas para pensar a própria escrita e o escrever em meio às solicitações institucionais.

Palavras-chave: Escrita acadêmica; Roland Barthes; Instituições; Combate; Texto


ABSTRACT

Short scenes: brief figures, relatively independent, freely arranged. A little model kit, shall we say. Therefore the reading should establish its own measure. As a combat, writing reveals itself as a small, intimate and daily renewed life commitment. Thus, being the writer as a fighter who studies (and therefore: inquires) the adversary: neither before nor after but during the fight. Assuming Roland Barthes as interlocutor, what we commonly call academic writing is understood as a special type of combat. As such, it is capable of offering us clues to think about writing and the gesture of writing amidst institutional demands.

Keywords: Academic Writing; Roland Barthes; Institutions; Combat; Text.


RESUMEN

Short Scenes: figuras breves, algo independientes unas de las otras, libremente dispuestas. Un pequeño juego para armar, por así decirlo. Por ello, será necesario que la lectura establezca su propia medida. Como combate la escrita se revela un pequeño, íntimo y diariamente renovado compromiso de vida, y el escritor está al lado del luchador que estudia (y así indaga) al adversario: ni antes tampoco después, sino durante la lucha. Al asumir Roland Barthes como interlocutor, lo que comúnmente le nombramos escrita académica pasa a ser entendido como un tipo especial de combate. Así lo siendo, es capaz de ofrecer pistas que ayudan a pensar la escrita y el escribir en medio a las solicitaciones institucionales.

Palabras clave: Escrita académica; Roland Barthes; Instituciones; Combate; Texto


 

 

Short Scenes: figuras breves,
relativamente independentes entre si,
livremente dispostas. Um pequeno jogo de armar, digamos.
Será necessário, portanto, que a leitura
estabeleça sua própria medida.

 

Uma inocência irrealista

Trata-se de uma impressão compartilhada: por nós, é claro, mas sobretudo entre nós e Roland Barthes (ou seja: por nós, a partir de Barthes), especialmente o "último" Barthes, dos cursos e seminários ministrados no Collège de France entre janeiro de 1970 e janeiro de 1980. Nesse Barthes ao redor do qual nos encontramos para escrever (e a partir do qual articulamos nossas idas e vindas, nesse mesmo e noutros tantos corpus), uma constante invocação de perda do sentimento de que a escrita ainda possa estar ligada a um trabalho em seu sentido forte, de modo que a pulsão do escrever (da qual somos ao mesmo tempo vítimas e testemunhas) acaba por se relacionar a uma espécie de inocência irrealista: nela, taticamente, o desejo de escrever torna-se mais importante que o para que escrever. Escreve-se e é tudo, mesmo que isso, por vezes, possa parecer quase nada. Em meio a isso, inocentemente, escrevemos: no limite, pelo elo entre os desejos de vida e criação, já que a escrita, dentre tantas outras coisas, "é uma maneira, simplesmente, de lutar, de dominar o sentimento de morte e de abolição integral (Barthes, 1981/2004b, p.511). Elogio de causas mínimas. A escrita como um pequeno, íntimo e diariamente renovado compromisso de vida; o escritor como um lutador que estuda (e, portanto: indaga) o adversário: não antes e nem depois, mas durante a luta.

 

Pássaros e medusas

Escrever enquanto combate: para tanto, lembrar Deleuze (1993/1997, p.149) e o duplo aspecto inerente a todo esforço cartográfico de tal ordem: ao mesmo tempo em que o combate é exterior, articulado por golpes contra o Outro, também, "mais profundamente, o próprio combatente é o combate, entre suas próprias partes, entre as forças que subjugam ou são subjugadas, entre as potências que exprimem essas relações de força". Histórias de pássaros e medusas: de um lado a força vital e os modos de existência potenciais que a envolvem ou antes a definem. De outro o mundo, seus juízos, seus prazos e seus vereditos. Nesse meio, entre perdas e ganhos, trata-se de estabelecer o trabalho sobre si mesmo como a dimensão mais básica - e mais urgente - de todo ato de criação.

 

Dois textos

Existem ao menos dois textos: o texto que se recebe via leitura e o texto que se realiza via escritura. Por certo, ambos os textos são ativos, e por isso corporais: ler (por suspiros ou arrepios inconfessáveis) é também fazer o nosso corpo trabalhar enquanto avança ou recua ao assumir determinadas posturas. São tais posturas, aliás, que permitem ao texto (ao menos o texto amado) manter-se vivo, encontrar novas paisagens, tornar-se parte do contemporâneo (pelo prazer da leitura, o texto como a tessitura dos dias, das horas, dos anos, do corpo, enfim). Se ativo e passivo não são categorias válidas, é porque o que irá definir a especificidade do texto que se escreve, este tipo específico de texto segundo, é a sua condição manual, e que faz com que ele seja, nesse sentido, mais sensual. Trata-se de um texto prático, evidentemente, mas isso não é tudo: é ele aquele, efetivamente, tocamos. É nesse sentido que sua atividade é outra: pela aceitação de nosso toque, pela aceitação do contágio, pela assepsia tornada vã. Se a leitura aponta o dedo, nos invade e pode mesmo assim sair ilesa, a escritura, ou melhor, a escrileitura - esse prazer de ler convertido em um desejo de escrever - é o próprio encontro, o inevitável testemunho de si naquilo no que se inscreve: ao escrever, "lançam-se germes, podemos considerar que lançamos uma espécie de sementes e que, por conseguinte, somos recolocados na circulação geral das sementes" (Barthes, 1981/2004b, p.511). No limite, escrever não quer dizer outra coisa que não tocar e dar-se ao toque: hoje, amanhã e depois.

 

Desejo

Desejar é tender a, ou seja, modificar-se em intensão: de encontros, de criação, de composição. Desejar é estar aberto ao fazer. Nesse sentido, não apenas desejamos, mas também somos desejados: por autores, por pensamentos, por obras: "O texto que o senhor escreve tem de me dar prova de que ele me deseja. Essa prova existe: é a escritura" (Barthes, 1973/2006, p.11). Pelo desejo, o prazer de ler torna-se prática de escrita, ou seja, testemunha-se uma mudança de intensidade. Pelo desejo, por sua condição necessariamente construtivista, dar a ler = dar a escrever. No que diz respeito ao vínculo entre a escrita e o espaço acadêmico, parece-nos que esse desejo não pode ser outro que não o próprio exercício do pensamento e da correlata construção de novos sentidos. Uma vez desejados (pela pesquisa, pela aula, pelos textos), somos convocados não propriamente a uma prática de compreensão, mas sim de contágio e multiplicação. É o signo daquilo que me toca que então pode se proliferar: por outras aulas, por outras textualidades, por outras maneiras.

 

Tender-para

(...) devo escrever com toda urgência uma carta "importante" - da qual depende o êxito de certa empresa; mas em vez disso escrevo uma carta de amor - que não envio. Abandono alegremente tarefas insípidas, escrúpulos razoáveis, condutas reativas, impostos pelo mundo, em prol de uma tarefa inútil, oriunda de um Dever vivo: o Dever amoroso. Faço discretamente coisas loucas; sou a única testemunha de minha loucura. O que o amor desnuda em mim é a energia. Tudo que faço tem um sentido (posso pois viver, sem gemer), mas esse sentido é uma finalidade inapreensível: nada mais é do que o sentido de minha força (Barthes, 1977/2003, p.17).

Na manhã do dia 01 de dezembro de 1979, Barthes (2005) dava início àquele que viria a ser seu último curso. Na aula inaugural, as condições de preparação do romance são pensadas a partir da constituição de um desejo de escrever (a despeito de toda demanda social ou institucional, no fundo, escreve-se para contentar um desejo, e esse mesmo desejo é o que faz com que todo dever exterior acabe se configurando como um álibi, uma justificativa para sua efetivação). Para Barthes, esse desejo de escrever tem como ponto de partida o prazer experimentado na leitura de certos textos escritos por outros2, de modo que o ato de escrita em si - esse diferencial de intensidade capaz de operar uma mudança de fato na posição de sujeito (converto-me em outro, mudo de lugar, de ângulo, de atitude, de responsabilidade) - pode ser entendido como o testemunho de um querer juntar-se "ativamente ao que é belo" (Barthes, 2003/2005, p.14) e que, no entanto, falta, mesmo sendo necessário. Trata-se da construção de um corpo: em meio ao texto (esse plural de encantos dispersos pelo qual sou atingido via leitura), querer escrever é desejar também entrar no jogo, é desejar deixar marcas, aumentar a zona de contato. Em suma, querer escrever como sinônimo de querer ter algo a oferecer em troca. Nesse sentido, tal como sugere Barthes (2003/2005, p.33), talvez possamos pensar no escrever como pura Tendência, independente de objetos ou gêneros literários a ela vinculados. Trata-se de "escrever, simplesmente, tendo por intermediário escrever umas coisas" (daí o escrever como pura necessidade). Para uma política do Texto (Costa, 2017), voltar-se para essa dimensão na qual os objetos de escrita (a tese, o artigo, o relatório, o diário) funcionam mais como condições de possibilidade que como Razão do escrever, implica na delimitação de um outro corte de análise e defesa: enquanto "os objetos de escrita aparecem, brilham, desaparecem; o que resta, no fundo, é um campo de forças" (Barthes, 2003/2005, p.38). Nesse meio, o que interessa são os afetos que compõem e são constituídos pelo próprio processo de escrever; o que importa, no limite, é a energia que perpassa e permite demarcar uma zona de contágio, de troca (mesmo que silenciosa, por vezes secreta, inconfessável ou talvez imperceptível) entre aqueles e aquelas que por ela circulam. Minha força: ela é isso que circula e que, de algum modo, permite que certas coisas, aqui entre nós, mantenham-se em movimento.

 

O texto, indiretamente ele...

O campo de forças textual é esse espaço (escorregadio, incerto, intensivo) no qual o prazer (de uma leitura, de uma música, de uma imagem, de uma cena), não deixa de intervir de forma um tanto enviesada, levando-me para lá e para cá ao encontro de outras visões e audições. "Estar com quem se ama e pensar em outra coisa" (Barthes, 1973/2006); estar em meio ao que se ama e ser obrigado a levantar a cabeça, a ouvir, a ver e a pensar outras coisas. Trata-se do valor do que, num encontro, age de modo indireto e, portanto, de forma insuspeita. É por isso que o corpo, ao "seguir suas próprias ideias" (Barthes, 1973/2006, p.26), torna-se o próprio testemunho da força desses contágios, já que, independente daquele que diz Eu, pode indicar os sentidos e o potencial criador daquilo que o toca.

 

O atletismo afetivo

Para aqueles que pesquisam e experimentam o escrever e o ensinar, um política do Texto é capaz de instituir um ethos marcado por aquilo que Artaud (1938/1999, p.151) denominava "atletismo afetivo", caracterizado sobretudo pelo estreito vínculo entre o sentir (sofrer a ação), o encarnar e o criar - o que de certo modo quer dizer estar só e comprometido com seus próprios encantos. Pois não há como compartilhar verdadeiramente a força de um afeto a não ser o estendendo, encenando-o para torná-lo tonalidade e ar do mundo através daquilo que se busca criar. Uma aula, um texto, um estudo: não vivê-los a não ser por seus efeitos e por seus golpes na carne; não pensá-los, não dizê-los, não atuá-los, a não ser através de uma prática de testemunho (em um sentido barthesiano, isso quer dizer: garantir que não tenham vivido - com as dores e mortes à vida inerentes - e criado em vão).

 

Um tanto de outro

Daly City, 22 de fevereiro de 1913. Isso foi: Harlem Murphy está com as costas e a parte posterior do joelho direito junto às cordas. (A borda como limite e extensão). Curvado, seu braço direito está entrelaçado com o braço esquerdo de Ad Wolgast, cuja cabeça (aqui apenas um vulto) repousa entre a face e o ombro esquerdo de Murphy. No clinch, todo o visível daquele instante na Coffroth's Arena: enquanto o árbitro, Jim Griffin, move-se em busca de um melhor ângulo, os olhos, todos os incontáveis olhos, sob tantos e escuros chapéus, encaram a pausa, a mútua e possivelmente definitiva trégua, o tácito acordo já sacramentando o resultado de igualdade que acabaria por marcar aquela tarde. Ao menos por um breve instante (justamente este, que hoje vemos na imagem: o instante decisivo, tal como apreendido pelo fotógrafo agora anônimo), nenhum golpe, nenhum avanço e nenhuma manobra individual, nenhuma vontade de vitória e nenhum temor pela derrota. Passados mais de cem anos desde a luta, para além do referente que a envolve, o que a fotografia testemunha é algo desde sempre essencial, isto é, o duplo aspecto de todo combate, simultaneamente exterior e íntimo: em algum ponto, lutar é também acolher, tocar é também ser tocado, reservar-se é também querer desferir. Para o combatente, com efeito, é preciso ser um tanto de outro para poder permanecer em pé e estar, de fato, aqui.

 

 

Um pouco de possível

A escrita acadêmica (ou, simplesmente: isso, esse trabalho do qual, barthesianamente, podemos dizer que define nosso estilo de presença acadêmica nas lutas de nosso tempo) como um espaço de combate: incerto, frágil, modulável, necessariamente vinculado à prática que o institui ou então o encerra. É sem dúvida pela música que podemos compreender melhor a lógica dessas cartografias instáveis, mas é também verdade que, uma vez considerado como divisa e termômetro comuns a todo gesto poético, o corpo, existência tão segura quanto inexata, é aquilo que faz com que o sonoro e o visual possam ser entrelaçados e confundidos. Enquanto prática de combate, a escrita é antes movimento, sendo portanto impensável sem ritmo, sem cor, sem vida. Combater por um pouco de possível, ao modo de um compromisso foucault-baconiano: haverá urgência maior?

 

Retirada

Em entrevista publicada em 1980, um mês após sua morte, Barthes marcava a linguagem como o seu "próprio limite", defendendo a ideia de que o intelectual "não pode atacar diretamente os poderes estabelecidos, mas pode injetar estilos de discursos novos para fazer com que as coisas se mexam". Nesse sentido, a escrita, a docência e a pesquisa compartilhariam essa espécie de compromisso contestador-estilístico, sendo a retirada - por meio de formas de expressão e condutas clandestinas, não dogmáticas (trapaças, talvez) - uma estratégia intolerável a qualquer forma de poder: "Pode-se enfrentar um poder pelo ataque ou pela defesa; mas a retirada é o que há de menos assimilável numa sociedade" (Barthes, 1981/2004b, pp.504-511).

 

Foquismo

No que diz respeito ao escrever, segurança quanto a nosso compromisso: trata-se da arquitetura de pequenas armadilhas, do acionamento de bombas de ar mínimas, mas capazes de atingir, aqui e ali, imagens assentadas de pensamento a respeito daquilo que fazemos ou daquilo com o que podemos contribuir (de modo preciso: a aula, a pesquisa, a formação). Por escrito, o foquismo como ética e estratégia. Por escrito, um estilo de pertencimento e uma declaração sempre renovada de intenções. Se a escrita nos interessa, é porque a docência, em seu sentido forte, nos interessa. No limite, o que está em jogo é sempre uma maneira de lidar com o sentido, de táticas de recuo e abandono a partir dos quais um algo mais, não previsto, possa ter lugar. De certo modo, buscar o que Barthes denominava "fala pacífica": uma relação desarmada com palavras, ideias e gestos, uma trama capaz de arquitetar uma espécie de suspense:

Nos limites mesmo do espaço docente, tal qual é dado, tratar-se-ia de trabalhar para traçar pacientemente uma forma pura, a da flutuação [...] essa flutuação nada destruiria; contentar-se-ia com desorientar a Lei: as necessidades de promoção, as obrigações do ofício [...], os imperativos do saber, o prestígio do método, a crítica ideológica, tudo está aí, mas a flutuar" (Barthes, 1984/2004c, p.411).

Este colocar em suspensão, esta arquitetura de flutuações, distancia a prática docente de todo compromisso revelador, uma vez que sua tarefa não é pensada em termos de dar a ver ou dar a falar aquilo que não tem cara e voz, tornando-o comum: ao contrário, o que está em causa é um esforço de recuo e retração, ou seja, de inexpressão do exprimível, "como se o pensamento também fosse chamado a cavar em si uma região de refluxo, inabitada e inabitável, uma zona de cegueira e de impossibilidade, de interrupção, a fim de que algo pudesse advir" (Pelbart, 2007, p.65). O mesmo diz respeito ao escritor: é preciso que ele se retire, enquanto sujeito, é necessário que ele, em certo sentido, perca seu rosto (o rosto no qual se pode ler as palavras da Lei), num movimento que já não representa omissão ou derrota, mas puro zelo: pacífica, a escrita é também exata, não gregária. Pelo seu livre jogo, torna-se capaz de instaurar um espaço outro, capaz de contestar mítica e realmente os espaços onde vivemos.

 

Escrita acadêmica como tipo bastardo

Em 1960 Roland Barthes publica na revista Argumets o artigo "Escritores e Escreventes", o qual fará parte do livro "Crítica e Verdade", publicado seis anos mais tarde. Provocado por questões como "Quem fala ou quem escreve nisto que se fala ou se escreve?", Barthes caminha para o que chama de "sociologia da palavra" (1966/1970, p. 31), entendendo a palavra como substância capaz de ressoar solicitações sociais diversas, abrigando zonas de captura e também de escape. A interrogação acerca da palavra parece-nos, neste caso, uma interrogação acerca do suposto laissez-faire da palavra, como se esta, uma vez disponível a todos os usuários de uma língua, estivesse desde sempre pronta para ser livremente usada. O princípio da suposta livre economia da palavra é colocado em questão, a começar pela sua destinação. Barthes, ao pensar na transitividade e intransitividade da escrita, estabelece uma espécie de tipologia, distribuindo os textos dentre o que chamou de "escrevências" e "escrituras".

Os escreventes são homens transitivos; eles colocam um fim (testemunhar, explicar, ensinar) para o qual a palavra é apenas um meio; para eles a palavra suporta um fazer, ela não o constitui. Eis, pois, a linguagem reduzida à natureza de um instrumento de comunicação, de um veículo do "pensamento" (...). Pois o que define o escrevente é que seu projeto de comunicação é ingênuo: ele não admite que sua mensagem se volte e se feche sobre si mesma, e que se possa ler nela, um modo diacrítico, outra coisa além do que ela quer dizer (Barthes, 1966/1970, p. 36).

Os textos de "escritura" estariam, em contrapartida, ao lado prazer, do gozo, exercício onde o escritor, enquanto "indutor de ambiguidades" (Barthes, 1966/1970, p. 34), perderia o direito de apreensão de verdades e de doação de sentidos, dado que se situa no hesitante ponto onde ele mesmo e o mundo são postos em abalo. Teríamos, assim, os ditos escritores (ligados ao exercício e prática da literatura, filiados à palavra literária e à deriva do sentido), e os escreventes (sacerdotes funcionais do poder, fazendo com que a palavra, uma vez codificada, possa responder aos desígnios das instituições e do poder que a suscitam). No entanto, haveria um terceiro tipo de escrita que, situada no nem um, nem outro, seria capaz de se mover abertamente entre escritura e escrevência, uma escrita comprometida ao comunicável operando, em dimensões distintas, com o irredutível do escrever enquanto experiência intransitiva.

Queremos escrever alguma coisa, e ao mesmo tempo, escrevemos só. Em suma, nossa época daria luz a um tipo bastardo: o escritor-escrevente. Sua função ela mesma só pode ser paradoxal: ele provoca e conjura ao mesmo tempo; formalmente, sua palavra é livre, subtraída à instituição da linguagem literária, e entretanto, fechada nesta mesma liberdade, ela secreta suas próprias regras, sob forma de uma escritura comum (Barthes, 1966/1970, p. 38).

No que diz respeito à escrita acadêmica parece-nos fazer sentido o tipo bastardo "escritor-escrevente" que, ao escrever, coloca em cena uma escrita ao mesmo tempo situada nos confins de uma ou mais instituições (a começar pela instituição acadêmica), respondendo ao que Barthes (1966/1970, p. 38) chama de "herança longínqua do Maldito", do obscuro próprio da palavra levada a cabo de sua própria expressão. A escrita acadêmica teria, a nosso ver, a função do que Barthes, a partir de Lévi-Strauss, chama de "feiticeira" (aquela que, ao transmutar a palavra, transmuta o sentido das coisas) e de "intelectualidade" (aquela que, sob égide da tradução intelectual, torna visível o que, por destino, estaria destinado ao obscuro). Em se tratando da escrita acadêmica talvez faça sentido o drama imposto pela citação barthesiana supracitada, de que, ao escrevermos (nossas pesquisas, dissertações, artigos e teses) estamos sempre querendo escrever algo (a ilusão necessária de que possuímos um tema, um objeto, um assunto, enfim, uma tese), sabedores de que nos encontramos igualmente sós, solitários em determinados combates com a palavra e com o exercício de produção de um texto.

 

Solicitação forte

Através de Roland Barthes chegamos à ideia do texto enquanto produto de solicitações. "Quisemos aqui que o trabalho de pesquisa fosse, desde o princípio, objeto de uma solicitação forte, formulada fora da instituição e que só podia ser uma solicitação de escritura" (1984/2004c, p. 99). Mesmo entendendo que este "fora da instituição" só poderia ser compreendido enquanto "pedacinho de utopia" (1984/2004c, p. 99), há de compreender o combate por Barthes tramado. Afirmar o desejo de escritura, desta solicitação forte pela palavra, em espaços onde as solicitações institucionais parecem regular a produção dos textos, parece-nos um exercício de resistência. Entretanto, como na cena de luta entre Harlem Murphy e Ad Wolgast, trata-se, não de afirmar uma coisa ou outra (o desejo versus a demanda), mas de suspender o juízo de vitória ou nocaute. Se, com Barthes, estamos a afirmar a solicitação de escritura é para suspender o que, no ofício institucional da escrita (onde se pede ao pesquisador que escreva), não pode jamais ser escrito sem que haja a experiência da própria suspensão. "Talvez já esteja na hora de abalar uma ficção: a ficção que quer que a pesquisa se exponha, mas não se escreva" (Barthes, 1984/2004c, p. 100).

 

A tese da tese

Qual a tese da sua tese? O que você está querendo dizer quando você escreve sua dissertação ou doutorado? Ao instaurar-se em uma "política do Texto" (Costa, 2017), aquele que escreve suspeita que a destinação do seu escrito, assim como seu próprio processo de escrita, são experiências que se dão na polis do sentido, no espaço aberto e ao mesmo tempo recluso onde as disputas inexoravelmente se dão. Uma política do Texto suspeita do estatuto substancial atribuído ao próprio texto, entendendo por Texto o acontecimento que atualiza o encontro de alguém - seja este um leitor ou escritor - com um texto que lhe chega aos olhos, às mãos e, sobretudo, ao corpo (Barthes, 1984/2004c). Pensar o Texto enquanto política retoma a concepção de que todo o texto (dentre este, o texto acadêmico) é fruto de solicitações diversas, e de que, uma vez solicitado, traça-se combates os mais diversos.

Armadilha da enfatuação: passar da contingência de leituras e escritos a que um pesquisador é submetido ao longo de sua escrita à transcendência de um produto unitário o qual chamará de tese. Uma política do Texto admite que a tese da tese não é o desfecho lógico de suas mensagens ou enunciados, mas o conjunto de enunciações sobre as quais um sujeito é capaz de perdê-la [e de reencontrá-la] (Costa, 2017, p. 35).

 

A besta da escrita acadêmica

É provável que, em posição de ataque ou respondendo defensivamente, alguém um dia a tenha enunciado. Escrita acadêmica, expressão capaz de, como no livro de Bukowski, queimar na água e afogar-se na chama: "Não estou dizendo que seja bom / mas é com certeza / mais confortável" (2016, p. 196).

Na universidade ouve-se sistematicamente o rumor de uma besta cujo rosto ninguém conhece. Evocada à meia voz nos corredores, salas de aula, gabinetes e laboratórios, essa estranha criatura que atende por escrita acadêmica agiganta-se a cada gesto de receio diante do que se lê ou do que se escreve. Como em um desajeitado implante, a besta instala-se no corpo daqueles que dela participam, regulando-lhes órgãos, humores e líquidos. Seus batimentos, assim como sua bílis e suas sinapses, passam a ser também expressões dessa alma acovardada e carregada de pudores, sadismos e de meia voltas (Costa, 2017, p. 35).

 

Direito ao contraditório

Com Roland Barthes é possível acionarmos duas dimensões relativas ao que comumente chamamos de escrita acadêmica. Em um primeiro momento, talvez em sua dimensão óbvia, a escrita acadêmica suscite a evaporação do corpo para se tornar a expressão desta grande partícula individual e indivisível a que chamamos de autor/pesquisador. O autor de uma escrita acadêmica, personagem instigado e ao mesmo tempo docilizado pelas instituições que o suportam, instaura-se em combates contraditórios. O contraditório, neste caso, diz respeito ao duplo lugar assumido pela escrita em sua dimensão acadêmica. Se, por um lado, escrevemos sob mirada da "santa trindade escrever-produzir-publicar" (Costa, 2017, p. 17), por outro, somos compelidos a simplesmente escrever, a entrar no jogo intransitivo de uma linguagem que desconhece (ou ao menos ignora) suas mais áridas solicitações.

(...) a escrita, do ponto de vista histórico, é uma atividade continuamente contraditória, articulada em dois postulados: por um lado, é um objeto estritamente mercantil, um instrumento de poder e de segregação, preso à mais crua realidade das sociedades; e, por outro lado, é uma prática de gozo, ligada às profundezas pulsionais do corpo e às produções mais sutis e mais felizes da arte. Essa é a trama do texto escritural (Barthes, 1973/2004a, pp. 175-176).

 

Escrição

A inscrição do corpo na linguagem escrita se dá, segundo Barthes (1973/2004a, p. 174), pelo exercício de certa manualidade, pelo ato muscular de escrever e traçar letras, a que chamou de escrição. Trata-se do gesto pelo qual a mão do escritor segura um instrumento (punção, cálamo, pena...), apoiando-o numa superfície e por ela avançando, pesando ou acariciando (há de considerar, nos tempos atuais, o exercício da escrição tendo as teclas ou a tela de aparelhos digitais como superfícies primordiais). Ainda que dotada de volições, de esforços por vezes bastante precisos e determinados, a escrita (pelo viés da escrição) será sempre um jogo de sombras em relação a um corpo que escapa. Se há o autor (com seus condicionantes sócio-histórico-institucionais), há também a mão - ou o corpo - daquele que escreve, assinatura de um conjunto de gestos capaz de esquecer seu próprio nome ou mesmo qualquer tipo de filiação. Quem, em sua santa ou profana consciência, seria capaz de perceber o gesto de uma mão ou o rastro de um dedo em um arquivo PDF qualquer?

 

Método enquanto prática (de escritura)

Coloco-me realmente na posição de quem faz alguma coisa, e não mais de quem fala alguma coisa: não estudo um produto, endosso uma produção; elimino o discurso sobre o discurso, o mundo já não vem a mim sob a forma de um objeto, mas sob a de uma escritura, quer dizer, de uma prática: passo para outro tipo de saber (o do Amador), e é nisso que sou metódico (Barthes, 1984/2004c, p. 363).

Na leitura que faz de Roland Barthes, Coustille (2017, p. 252) dirá que o bom método é aquele que consegue se fazer esquecer. Não se trata de uma operação a priori à pesquisa, que permitiria ir de um ponto inicial a um ponto final. Tampouco diz respeito ao método cartesiano, este que procuraria estabelecer fundamentos inabaláveis a partir dos quais o raciocínio poderia ser construído. De acordo com Coustille, a ideia barthesiana de um método serviria apenas para impulsionar a pesquisa que, uma vez começada (ao que equivale dizer, "uma vez iniciada sua escrita"), tenderia a colocar sua própria metodologia em desaparecimento.

 

O desastre por vezes é quase tudo que se tem

Na continuidade desta discussão, Barthes apresenta-nos o dilema de uma pesquisa quando esta assume, também como questão, sua própria escrita. O escrever como prática de uma pesquisa desloca o próprio sentido da escrita enquanto exercício de escrevência (voltemos ao tipo bastardo escritor-escrevente). Escrever sobre alguma coisa em uma pesquisa (em uma dissertação ou uma tese) passa a ser escrever alguma coisa com esta pesquisa e apesar desta pesquisa. Juntamente à comunicabilidade de um assunto (a suposta tese da tese) há a escrita da própria incomunicabilidade, a que Maurice Blanchot soube bem nomear enquanto escritura do desastre. "Querer escrever, que absurdo: escrever é a caducância do querer, como a perda do poder, a queda da cadência, o desastre ainda" (Blanchot, 1980/2016, p. 23). O desastre, neste caso, parece não se tratar da insuficiência da comunicabilidade, mas da própria comunicabilidade enquanto exercício irrestrito de um querer. É provável que, mesmo em linhas supostamente incomunicáveis, algo seja posto em comunicabilidade - o leitor, neste sentido, é o operador desta desastrosa transmissão.

(...) o pesquisador fica acuado num dilema, temível: ou falar do Texto segundo o código convencional de escrevência, quer dizer, ficar prisioneiro do "imaginário" do cientista, que se quer, ou, o que é pior, que se crê exterior ao objeto de seu estudo e pretende, com toda inocência, com toda segurança, colocar a sua própria linguagem em posição de exterritorialidade; ou então, ele próprio entrar no jogo do significante, no infinito da enunciação, numa palavra, "escrever" (o que não quer dizer simplesmente "escrever bem"), retirar o "eu", que ele acredita ser, da sua concha imaginária, desse código científico, que protege mas também engana, numa palavra, lançar o sujeito através do branco da página, não para o "exprimir" (nada a ver com a "subjetividade"), mas para dispersá-lo (Barthes, 1984/2004c, 100-101).

 

Uma tese barthesiana?

Levando em consideração as diversas pistas de Barthes acerca da escrita, assim como dos trabalhos acadêmicos e doutorais inacabados, Coustille (2017) anuncia os quatro pontos do que poderíamos chamar de uma "tese barthesiana":

1) ela não tem necessariamente um tema, seu objetivo é fabricar um objeto;

2) ela abandona seu método durante o percurso;

3) ela é desgraciosa, mas procura mesmo assim seduzir;

4) é uma maneira específica de orientar o desejo.

Trata-se de quatro pistas que nos levam a pensar que o "barthesiano" de uma tese talvez não esteja restrito a Roland Barthes e seus estudiosos, mas àqueles que, suspeitando de suas próprias insuficiências, levam suas escritas acadêmicas até o fim.

Enfim, refletir sobre a noção de "tese" com Barthes pode ser também uma forma de encarar a política universitária contemporânea de um ponto de vista pouco usual, graças a noções periféricas de "ciência", de "instituição" e de "pesquisa", todas mobilizadas por Barthes e trabalhadas em direções imprevistas, que nos forçam a interrogar nossas estruturas (Coustille, 2017, p. 249).

 

Notas

1 O convite para escrita deste ensaio surgiu da leitura do artigo Alice e os Paradoxos da Escrita Acadêmica, de Renata Kroeff e Jéssica Prudente, apresentado no evento Temas em Debate, promovido pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS, em dezembro de 2017.

2 Sabemos, claro, que o desejo de escrever não está necessariamente relacionado, de modo direto, ao prazer de leitura. No entanto, mesmo nos casos em que, por exemplo, uma música, um filme ou um incidente cotidiano intervém para a instauração de um querer escrever, parece-nos que um certo ethos literário necessita estar arquitetado para que tais materiais possam ser convertidos em matérias de escrita.

3 Imagem recuperada em 31 maio, 2018, de: https://www.businessinsider.com.au/vintage-boxing-photos-2012-12#adolph-wolgast-fighting-tommy-murphy-in-february-1913-10

 

Referências

Artaud, A (1999). O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Barthes, R (1970). Crítica e Verdade. São Paulo: Editora Perspectiva.         [ Links ]

Barthes, R (2003). Fragmentos de um discurso amoroso. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Barthes, R (2004a). Inéditos vol. 1 - teoria. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Barthes, R (2004b). O grão da voz. Entrevistas 1961-1980. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Barthes, R (2006). O prazer do texto. São Paulo: Perspectiva.         [ Links ]

Barthes, R (2004c). O rumor da língua. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Barthes, R (2005). A preparação do romance II: a obra como vontade. São Paulo: Martins Fontes.         [ Links ]

Blanchot, M (2016). A escritura do desastre. São Paulo: Lumme Editor.         [ Links ]

Bukowski, C (2016). Queimando na água, afogando-se na chama. Porto Alegre: L&PM.         [ Links ]

Costa, L. B (2017). 58 combates para uma política do Texto. São Paulo: Lumme Editor.         [ Links ]

Coustille, C (2017). O que seria uma tese barthesiana. Revista Polis e Psique. 7(1),247-259. Recuperado em 31 maio, 2018, de http://seer.ufrgs.br/index.php/PolisePsique/article/view/72101/pdf        [ Links ]

Deleuze, G (1997). Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Pelbart, P. P. (2007). Excurso sobre o desastre. In: Queiroz, A.; Moraes, F.; Velasco E Cruz, N. (Orgs.). Barthes/Blanchot: um encontro possível. Rio de Janeiro: 7 Letras, p.65-74.         [ Links ]

 

 

Enviado em: 01/06/18
Aceito em: 03/07/18

 

 

Luciano Bedin da Costa: Doutor em Educação e docente da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.
E-mail: bedin.costa@gmail.com
Cristiano Bedin da Costa: Doutor em Educação e docente da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.
E-mail: cristianobedindacosta@hotmail.com

Creative Commons License