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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2019

 

DOSSIÊ - TEMAS EM DEBATE: RISCOS DA CRIAÇÃO

 

A polifonia na escrita: rastros, riscos e experiência

 

The polyphony in writing: traces, risks and experience

 

La polifonía en la escritura: rastros, riesgos y experiencia

 

 

Fernanda Goulart Martins

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

O texto propõe uma experimentação metodológica, com o intuito de colocar em operação a narrativa ficcional em forma de contos, utilizando o cenário urbano e o estilo literário para dar visibilidade ao engendramento de linhas e forças que compõem tanto um texto, quanto um mapa ou um desenho de trajetos na cidade. Trata-se da aposta em tocar um campo de virtualidade que desenha fluxos visíveis e invisíveis no espaço urbano, por meio do relato de percursos e personagens, da exploração de ritmos e da explicitação de ressonâncias. Nas bordas da escrita acadêmica, o texto busca produzir a transgressão das generalidades que estabelecem a lei do conceito e, com base na filosofia da diferença, compartilha a tentativa de abrir espaço na página escrita para o que dizem os sons, cores, histórias, rastros e riscos, organizados em verbetes-experiência, que desobedecem a ordem alfabética e provocam a reflexão acerca da descrição de conceitos na construção de conhecimento.

Palavras-chave: psicologia social; narrativa ficcional; escrita acadêmica; experimentação metodológica.


ABSTRACT

The text proposes a methodological experimentation, with the intention of creating a fictional narrative, using the urban scenario and the literary style to give visibility to the engenderment of lines and forces that compose a text, a map or a drawing of paths in the city. It has the intention to enter in a field of virtuality that draws visible and invisible streams in the urban space, through the reporting of paths and characters, the exploration of rhythms and the explanation of resonances. At the edges of academic writing, the text seeks to produce the transgression of generalities that establish the law of concept and, based on the philosophy of difference, shares the attempt to open space on the page written for what sounds, colors, stories and traces say, organized in dictionary entries, that disobey the alphabetical order and provoke the reflection about the description of concepts in the construction of knowledge.

Keywords: social psychology; fictional narrative; academic writing; methodological experimentation.


RESUMEN

El texto propone una experimentación metodológica, con el propósito de poner en operación la narrativa ficcional en forma de cuentos, utilizando el escenario urbano y el estilo literario para dar visibilidad al engendramiento de líneas y fuerzas que componen tanto un texto, como un mapa o un mapa diseño de trayectos en la ciudad. Se trata de una apuesta en tocar un campo de virtualidad que dibuja flujos visibles y invisibles en el espacio urbano, a través del relato de recorridos y personajes, de la exploración de ritmos y de la explicitación de resonancias. En los bordes de la escritura académica, el texto busca producir la transgresión de las generalidades que establecen la ley del concepto y, con base en la filosofía de la diferencia, comparte el intento de abrir espacio en la página escrita para lo que dicen los sonidos, colores, historias, rastros y riesgos, organizados en vocablo-experiencia, que desobedecen el orden alfabético y provocan la reflexión acerca de la descripción de conceptos en la construcción de conocimiento.

Palabras clave: psicología social; narrativa ficcional; escritura académica; experimentación metodológica.


 

 

Traços

Que realidade pode ser criada ou abrigada na superfície da página? Que cidade pode ser concebida pelo desenho de um mapa? Quem conta sobre o que não opera no traço que desenha letras e vias sinalizadas por placas?

A tesoura recorta um retângulo na folha para abrir uma janela. Visitar ideias sem se prender nelas pode levar à construção das bases de um artigo inteiro.

 

M de mapa

Abre o semáforo para pedestres e Maiara ainda não se anima a seguir andando. Ocupa-se com a curiosidade a respeito dos vendedores ambulantes que partem do outro lado da rua em direção aos carros. Naqueles cinquenta segundos, cabem muitas histórias.

É uma manhã daquelas em que sai fumaça pela boca. As cores da estação são um presente para afastar o mau humor dos dias de isolamento forçado. Ela caminha desapressada. Por alguma razão nem tão desconhecida, hoje cantarola Almir Sater, em pensamento: Ando devagar porque já tive pressa e levo esse sorriso porque já chorei demais...

Quarenta segundos para atravessar. Levanta o olhar e os ombros, como se pudesse segurar o cachecol tencionando as costas. Detêm-se sobre um homem que se aproxima lentamente. A pele e as órbitas ao redor dos olhos bem avermelhadas. Pode ser que esteja vindo do médico ou do laboratório de exames. Quem foi levá-lo? Ah, sim, tem uma moça que o auxilia pelo braço.

Vinte e oito segundos. Pai e filho de bicicleta. Só podem ser pai e filho, são muito parecidos. O menino não desgruda o olho do pai, que segura a bicicleta menor pelo guidom. Bem, se não for o pai, agora já é. Vinte segundos e a presença de alguém que para ao seu lado coloca o corpo em alerta. É melhor não olhar, a distância não é segura. Sente um perfume familiar. Olha por cima e para o horizonte, como se buscasse algum endereço (tática mais antiga que andar para frente). Uma menina corre do lado de lá para o lado de cá da rua. Nove segundos.

Maiara tem a impressão de que conhece o homem do outro lado da rua. Cabelo grisalho, bem penteado para trás, oferecendo aos motoristas seu produto. Antes de atravessar, ela confere se o telefone ainda está no bolso do casaco.

Cinco segundos e a curiosidade avança. Três segundos. Será que as pessoas compram isso? Dois, um: VERDE para os carros! Atravessa decidida em passos corridos.

O homem parado sobre o meio fio expõe o produto diante do corpo (ou vitrine?). Ela se aproxima:

- Alguém compra mapas hoje em dia?

O homem não responde. Aponta para o círculo vermelho que aparece entre ruas desenhadas na capa: o Mapa do Tesouro, sim. Direciona os olhos a ela sem quase mexer a cabeça e sorri com o canto da boca.

- Ah bom, então eu quero comprar!

Com o mapa debaixo do braço e as mãos abrigadas dentro dos bolsos do casaco, ela caminha. Já pensou em encomendar mapa astral, já ouviu falar em mapa estratégico, já precisou fazer mapas conceituais, mas não sabe bem o que esperar da folha gigante dobrada e embalada que acabou de comprar e leva junto ao corpo. É simpática a aposta em algum tesouro.

 

E de escrita

Escrever é mapear. Quem é que abre um texto buscando tesouros?

 

P de página

Página em branco é ilusão.

Espaço que abriga pensamentos caminhantes, congela sentimentos empacotados em palavras ou desenhos; ou nada posto. Textura lisa que abriga histórias e mentiras. Prepara-se terreno para a construção de um mundo de muros, pontes, paredes, passarelas, sem topógrafos. Escreve-se sobre a ruga, a cicatriz, a superfície desnivelada. Que graça teria uma superfície sem montanhas, rochedos, buracos?

Inspiração é costear abismos, achar bordas, construir portas; às vezes alongá-las para percorrer corredores.

Promete-se discrição ao encontrar os muros. Silenciamento insano, ruídos que expressam acontecimentos cotidianos e fingem vir de outro lugar. As palavras colocadas em sequência diluem algumas barreiras (ou as constroem?); desvelam caminhos, constroem outras fronteiras.

Caminhos que serão sempre outros, quando a tinta fresca secar na folha em branco. O mesmo trajeto, desenhado na folha de papel, cria aberturas para repetições infindáveis, possibilidades de performar caminhos outros.

Apagar é limitar acontecimentos à vida privada.

Apagador de antigamente borrava textos, esburacava folhas de papel, hoje é mais fácil mudar de ideia no espaço não compartilhável, assim como deslocar uma parede de gesso para criar um espaço a mais ou a menos ou rearranjar os móveis, parece mais simples do que remodelar ruas, modificar suas direções, remontar paredes de um edifício, deslocar histórias rebocadas em uma casa tombada. Histórias só duram até que sejam deletadas. Espaços íntimos da vida privada. Supostamente privada - privada de vida privada; privada do verbo privar de alguma coisa; privada de vaso sanitário: onde as palavras deletadas se misturam aos dejetos corporais e se perdem ao dar descarga. De quê?

O espaço feito de branco e preto é encontro em desnível.

A ausência de contraste com outras cores impede ou potencializa os tropeços? Um homem cego, por exemplo, tem a necessidade do desnível que separa a rua do meio fio. Segue uma norma padronizada para que a altura que permite acesso a um cadeirante não se torne obstáculo para uma pessoa cega. Mapa que lança o corpo para fora da folha, palavra que lança o texto para a rua. Há tanto chão para caminhar.

Escrita é convite.

Chama para mergulhar nas fendas abertas ou encontradas, nas obras dos que construíram em terreno desnivelado, tiveram histórias para contar e contaram. É caminhar com atenção desperta às nuances, ao invisível. Ou andar desatenta e esbarrar nos transeuntes, tropeçar nos buracos, como os encontros que se dão algumas vezes com pensadoras/es que já disseram o que planejávamos dizer ou com quem discorda das escolhas que fizemos, entre olhar para a rua à frente ou mergulhar os olhos nas últimas atualizações no celular. É ler um mundo e construir nele novas cidades de papel, feitas da colheita de trajetos existenciais em devir.

Leitura é aceite.

Participar daquilo que não se mostra nas linhas de um mapa das ruas da cidade. É sensibilizar o corpo ao que no (con)texto aparece, conta, vive, proíbe fazer; é sentir o que recusa, encontra, desencontra na cidade superficial da folha. No término de um argumento, outro; no término de uma frase, a próxima; na superfície, outros planos. No mundo da leitora, outros mundos. Para a escritora, novo plano de encontro.

Ponto é ligação.

Ponto de encontro, ponto (parada) de ônibus. Espaço próprio de pausa, instante em que se convoca algo, em que se chama alguém. Pausa para tensionamento, hora do milagre que só acontece quando se para. Kandinsky propõe o ponto como a união ultima do silêncio e da palavra. Seguindo o método proposto pelo autor, procede-se em seguida isolando-o do círculo restrito da sua ação habitual. Ei-lo vivendo como ser autônomo. O ponto agora nasce no mundo da pintura: libertado, convive com o plano. Pode fazer nascer efeitos artísticos, que implicam sempre modificações de ressonância.

Ponto no plano faz música: ressonância, intensidade, ritmo.

Em diferentes planos, ressoam ao mesmo tempo diferentes modos de viver. A superfície cidade - do concreto, da montanha ou da página - faz deles visíveis ou sonoros. Ainda é possível a criação de duplo som por uma só forma, diz Kandinsky. Quem escuta?

 

E de encontro

A narradora organiza pensamentos dispersos para levá-los em formato legível ao encontro marcado. Uma colega aceitou o convite de compartilhar com ela a criação de um percurso de escrita. A página dessa vez não chega em branco e o local de encontro é mais barulhento do que se esperava. Parece que a necessidade de gritar as próprias ideias para que sejam ouvidas do outro lado da pequena mesa de dois lugares é que dá origem, ali, a um corpo pesquisador. Falar e escrever como ato de resistência.

Três páginas escritas são debatidas e ganham riscos, notas, desvios. O estilo ganha lugar no centro da discussão. Autores nos fazem visita de médico; chegam, nos examinam, receitam e se vão.

Fica a construção de uma experiência. A conversa, assim como a escrita, toma diferentes formas. Diante da feitura do café passado sobre a mesa, a conversa é espera. O fio de água tingida de marrom escuro exala notas amargas e carameladas, demorando-se a terminar de cair. Estranho é saber que depois será necessário bebe-lo depressa para que não esfrie. As ideias agregadas ao texto vêm em volume alto, euforia. Críticas surgem faladas em baixo volume, dosadas amigavelmente. Não é necessária a diplomacia nesse caso. Conversas paralelas entram e saem de foco, mais saem do que entram. Fica a música.

Compreende-se que o texto, assim como a conversa, produz-se como experiência. É sempre uma ficção: nunca existiu antes, existe depois do encontro com alguém, com a pagina, com a ideia, com a imagem. Arranca o sujeito de si mesmo, provoca deslocamento na escrita, na fala, no caminhar, na criação da obra.

Nasce a ideia da produção de um dicionário. Verbetes-experiência que percorrem a cidade em cenas. Pontes que levem ao plano coletivo.

Elas caminham em direção ao caixa, atravessam a porta e preparam a despedida revendo os principais pontos que conduzirão a escrita. Ouvem a despedida de três amigas que aguardam condução. O passo de uma delas, o barulho e o susto que se leva ao ver alguém caindo no chão. A primeira interlocutora já dissera sobre os tropeços e quedas na rua. A calçada sempre conta, com seus buracos, os desastres que assiste diariamente.

 

A de aposta

A pesquisadora busca na arte a experiência de perguntar com o corpo. Assim como se vê o encontro de tantos elementos e formas na espacialidade bidimensional dos quadros, tapumes, mapas e desenhos, encontros e separações são produzidos no território tridimensional das cidades. O corpo se sente impelido de encontrar as narrativas que ela produz, as histórias que nela se produzem, as capturas e recusas que nas narrativas se expressam.

Procura-se rastros, traços que desenham o plano invisível dos mapas. São articulados com que artifícios? Para que?

Se de um ponto começa o quadro, e do fruir do quadro começa um mundo, talvez de uma cena seja possível criar o encontro com a singularidade de uma história. A ideia é percorrer um campo de virtualidade que abrigue as linhas de uma cidade que no mapa não se vê. Um percurso sinuoso, que requer atenção sensível ao que na cidade conta, ao que nela vive, ao que nela se proíbe viver e fazer; ao que na cidade encontra e desencontra.

A pesquisadora recorre à página. Quer fazer dela lugar de pensamentos formalizados, de algum tipo de mapa desenhado. De qualquer forma, qualquer mapa ou texto será feito de pontos fixos que movem o pensamento de quem lê. Sobre a superfície, os elementos estão sempre parados, mas carregam a potência de movimentar mundos. Ela busca responder às próprias perguntas desenhando traços, linhas, escolhendo cores que movimentam o olhar e induzem a voz a dizer. Busca respostas que talvez induzam o corpo a calar.

Página não tem alto-falantes, mas pode emitir sons, desde que se tenha durado tempo suficiente diante da cor, que se frua signos e contrastes que pousam sobre ela. Letras arranjadas, assim como linhas, pontos, outras formas, organizam o espaço plano e produzem efeitos transbordantes. Constroem os espaços-corpo para que possam toca-los, movem emoções, ajudam a fabricar pensamentos.

Daí, nasce a aposta: quer-se conceber que o espaço das páginas seja suficiente para o desenho de rastros. Escritores, artistas, aprendizes, cientistas e todas aquelas pessoas que já se viram com uma caneta na mão ou um teclado diante de si, apostam na competência da superfície plana em abrigar o infinito. O desenho de uma cidade inteira, a descrição de um personagem, a apresentação de uma obra; a página pode ser lugar de lista de palavras, de cópia, plágio, mentira, notas musicais distribuídas em cinco linhas e travessões. Personagens de diferentes momentos da história se encontram, conversam, discordam, leitores estranham, lugares se encontram ou desencontram no espaço-página.

 

F de folha

Ele chega com seu violão e uma sacola plástica, redonda de tão cheia. Na calçada, instala seu banquinho, prende o pandeiro no pé direito, tira o violão remendado com fita crepe da capa e se prepara para o show. O cartaz apoiado no chão convida ouvintes a contribuírem com seu talento e a caixinha de papelão recortada na tampa com estilete espera moedas e cédulas. O centro de Porto Alegre amanhece.

Zé da folha abre a sacola plástica, tira um galho de dentro dela, e destaca uma folha para começar a tocar. Os lábios apertados seguram vitalidade úmida que canta e verdeja. Homem, violão, pandeiro e folha fazem-se música.

De longe, um menino ouve. A noite foi de luta (ou de saudade?) no desencontro com a pedra e o sono não resolveu nem descansou. O dia que acolhe Zé expulsa o jovem garoto de olhos desconfiados e mãos trêmulas. A música embala a rua em rítmica constante, ressona misto de coragem e solidão. Ele aperta os olhos procurando foco e vê: homem, pé insistente, violão e um outro som qualquer. É bom levantar do chão e dar uma olhada.

O som que sai da boca de quem toca vem de uma folha verde e, dentro da sacola, muitas delas. O menino observa cada detalhe: seu corpo também quer a satisfação de fazer esse som, de tocar a vontade de quem passa na rua. Olha a sacola de folhas, aguarda o momento em que o número de passantes e de ouvintes diminui e, sem titubear, lança a própria mão do bolso, pega a sacola de folhas e sai correndo.

Passos velozes conduzem a ruas desconhecidas, mas sempre lotadas. À procura de privacidade e proteção, ele se aproxima da esquina, senta-se no meio fio, e começa a colocar folhas na boca, brigar com ruídos. Ele está em busca da sensação de ter uma folha, para falar por ele, fazer todo mundo dançar, e obedecer na hora certa. Por que com ele não funciona?

 

M de música

O som do centro de Porto Alegre constrói a atmosfera urbana, mas não aparece no mapa da cidade. Se junto das ruas e esquinas se abrisse no mapa um hiperlink com partituras, que música estaria nelas? Quem saberia lê-la?

A música não precisa de experts para ser sentida, basta que o corpo ande suficientemente disponível para que seu movimento seja responsivo; basta que se dure ali por alguns instantes para que o batimento do coração se aproxime do pulso da rua.

 

C de café

Os passos lentos marcam qualquer caminho na calçada vazia. A pergunta sobre a tal importância da experiência urbana ressona: Por que cidade e subjetividade? O corpo pede um café, e ela entra na padaria da esquina para satisfazer o breve desejo. Concentrada no calor que transforma a boca, a garganta e o esôfago, coloca-se na intimidade da experiência, tão interna, de ter um café só para si. Sente a presença de pessoas que levam à mesa xícaras cheias e pedaços de pão; às vezes, fatias de bolo. Preparam-se os pensamentos para o dia que chega. Mais um gole de café.

Sai da padaria em busca de sol. Seu caminho costeia portas, prédios, grades, mas os passos falam sozinhos. Ninguém na rua a caminhar. Uma mulher que vem na sua direção olha de relance, como fez também ela, e entra na padaria. Em minutos, será feita do mesmo café que sustenta seu corpo acordado, café que faz a cidade despertar. Um menino, sentado no chão com as costas apoiadas na parede da casa de alguém, estende o braço e pede dinheiro. Não tenho. À esquerda, carros passam na pressa de chegar. Dinheiro transformado em carro, dirigido por alguém que não quer a rua, busca outro lugar. Mas ela quer estar aqui.

O barulho dos passos dentro do corpo, o rosnar do motor dentro dos carros, os pensamentos do menino em cima do skate, o homem que bebe seu café; e ela que quer a rua de dentro do bairro mora nos pensamentos alimentados pelo prazer de sentir gosto de café.

Uma outra mulher que agora sai de algum prédio deve ficar mais tranquila em vê-la ali também. Por ingenuidade, poderia considerar que sua presença não seria notada por quem atravessa a porta da padaria e a encontra do lado de fora. Fora que está dentro do bairro, da cidade, do quintal de alguém, não importa mais. Todas parecem sentir mais segurança ao sair de um espaço menos público do que a rua se, sobre a calçada, houver alguém. E ali está, outra mulher.

Uma sabe que a outra sabe que elas compartilham do mesmo gosto amargo, da mesma expectativa de que o café desperte. São feitas da mesma história que um dia lhes contaram sobre as paredes da casa de alguém e a rua de todos e todas. Ou será que as paredes lhes mostraram enquanto andavam sem rumo certo?

 

R de retroescavadeira

Mais de dois anos de espera, menos de cinco visitas recebidas. Enquanto o tempo passa, Tom Thomas escreve textos criticando quem só pensa em conseguir calçar tênis novos para legitimar o direito de andar nas ruas. Cumpre a medida socioeducativa na FASE porque foi pego roubando um automóvel (não perdia a oportunidade de dirigir quando via algum motorista marcando bobeira por aí). Dia desses, ele abraçou uma outra oportunidade. Era uma rebelião na casa. Ouviu o som da chave adentrando a fechadura da porta do cômodo, entendeu a ordem de fuga, mas decidiu permanecer quieto ali. Por bom comportamento, recebeu recompensa: a antecipação da audiência.

A bagagem que traz são 18 anos de vida, construídos na zona sul de Porto Alegre, junto à mãe, que nunca apareceu para uma visita. Já sabe que para a casa dela não poderá voltar. Na audiência, o pai, o irmão mais velho e a irmã de Tom Thomas marcam presença e deixam claro que vieram para acolhê-lo. Com breves abraços, o jovem se despede de alguns funcionários e amigos.

Uma das professoras da Casa se aproxima. Sorri a liberdade daquele adeus. Traz consigo a lembrança do que diziam as palavras escritas em redações do jovem infrator. Quer chamá-lo para participar de uma pesquisa, mas o corpo desconcertado não acha o modo de chegar e dizer. Sabe que ele nunca pisou fora do bairro onde pela vida toda morou. Uma visão singular. Ela toma coragem: lança um convite para uma caminhada com um grupo de estudantes por Porto Alegre, para que ele fotografe e conte a cidade que vê. É que ela participa de um grupo de estudos e pesquisa junto aos colegas de graduação em psicologia de um centro universitário ali da Zona Sul. Ele topa de imediato.

No término do cumprimento da medida, o jovem embarca de carona no carro do irmão e vai morar no extremo norte da cidade. Leva naquela mudança a certeza de que vai para o lugar certo. Lamenta tanto a história de quem insiste em voltar para o lugar de onde veio. Um amigo, que compartilhara com ele boa parte do tempo na Casa, tinha acabado de receber extinção da medida e foi morto com 30 tiros ao visitar a família no bairro em que tinha morado durante a infância e adolescência.

Disponibiliza-se em encontrar os estudantes no domingo à tarde, no parque Germânia. Caminhado pelo parque, fala sobre a ideia de participar da pesquisa e do desejo de que, por meio dela, mais pessoas pudessem conhecer, no futuro, a história de alguém que quis sair do crime depois de ter cumprido a medida socioeducativa.

Hoje, seu cotidiano é feito de longos percursos de ônibus, mas ao parque ele foi de carona com o irmão. Trabalha de segunda a sexta, das 8h ao meio dia; às segundas e terças-feiras, almoça sempre no centro com seu pai e depois vai até o local de trabalho dele, perto da Rua Osvaldo Aranha, para dar uma mão nos serviços gerais, que há mais de 30 anos sustenta a família toda. À noite, estuda no bairro onde mora, terminando a etapa final do EJA. Faz o trajeto de um local a outro de ônibus, mas gosta mesmo é de andar de carro. Combinaram o próximo encontro: acompanhá-lo no trajeto de casa até o trabalho, na próxima segunda-feira.

Sete horas da manhã da primeira semana de julho. Um estudante de psicologia o espera em frente ao prédio para um percurso de fotos e companhia. No ônibus, Tom Thomas não olha para as janelas, e sequer vira o rosto para o lado de fora. O som do motor que move a grande caixa de metal sobre o asfalto toma conta da cena e só perde protagonismo diante do enfático "Não tem o que fotografar no ônibus". Ele gosta mesmo é de dirigir.

Congeladas às 8h da manhã, no centro de Porto Alegre, as imagens narram um espaço quase vazio. Cenas que esperam. As fotografias mostram esse espaço onde se guarda o que dorme, empacotado e debaixo de lonas, como se fosse ainda noite na cidade. Em quase todas, Tom Thomas centraliza o carro da polícia. Desenho nítido, o contorno claro e explícito, a fronteira exata: a Brigada Militar. Marca da exigência pelo cumprimento de um tipo de ordem, de um tipo de civilidade. No último clique, uma retroescavadeira, que carrega ou derruba tijolos de concreto (não se vê a direção do movimento, ali no tempo contido do piscar do obturador). Uma construção ou destruição, em pleno centro, aparentemente deserto.

O próximo encontro foi marcado. Um novo trajeto, novas fotos. Ficou com ele a incumbência de sugerir o lugar para onde iriam juntos; ele, estudante e funcionário; eles, estudantes universitários, para a próxima conversa. Daí, disse ele, tem que ser de carro, porque não gosto de ônibus. Peço para meu irmão.

Na espera de um contato que não veio, chegam notícias trazidas pelo pai de Tom Thomas: na zona norte de Porto Alegre, o jovem foi baleado e faleceu. Polícia quando não protege ameaça; retroescavadeira quando não ergue destrói.

 

N de norte

Andar pela cidade consultando o mapa aberto entre as mãos é turismo. E caminhar com uma câmera de celular em mãos, pronta para o disparo de cliques? Pesquisa, gente séria; ou diversão. Espionagem. Perigo de assalto à luz do dia?

Maria segue o passo-a-passo da seta apontada pelo aplicativo de mapas no celular. Gosta de caminhar divagando entre esquinas, semáforos e placas, mas só quando não tem pressa para chegar ao destino final. Há alguns anos, já não procura mais endereços. Ela tecla, clica buscar e segue a cor azul que grifa na tela do telefone o caminho certo a seguir.

Atravessa a faixa de pedestres em frente ao prédio onde mora, carregando na mão esquerda mapa, carteira e chave; a mão direita leva o celular. Traça um caminho, mas não se importa com ele; quer chegar.

A calçada acolhe seus passos, prédios fazem sombra, buzinas às vezes param, noutras aceleram o pensamento. Nada é visto. O chão onde ela pisa não se faz campo, porque não há espaço para o nascimento de impasses discursivos. Olhar para as pedras, buracos, muros, porosidades e placas parece implicar uma atitude crítica, no sentido abordado por Foucault (1978), de "virtude em geral".

O chão onde ela pisa é falado, é vivido e governa. O telefone que ela carrega fala, instrui, governa. Foucault ensina que o foco da crítica é essencialmente o feixe de relações que amarra o poder, a verdade e o sujeito. A cidade narra e é narrada, opera exercício de poder, produz verdades.

A seta desenhada naquele telefone que a mão direita segura mostra o caminho. Algum lugar da nuvem registra. Ela segue andando. Cada habitante ou nômade produz o caminho e o espaço que seu modo de vida puder operar. O que na cidade pode acolher ou matar?

 

A de arte

Foucault diz que a inservidão voluntária é arte. Uma indocilidade reflexiva. Por ser arte, a crítica não será um ato único. Como acompanhar os próprios passos aguçando a atenção, vislumbrando possibilidades de sentir diferentes e repetitivos estilos de narrativa? Como tocá-los?

 

P de página (ou de ponto?)

Por diferentes formas arranjadas em um campo de possibilidades, o que na página for manifestado modificará o corpo que a ocupa; ressoará nos sentidos de quem com ela se depara. Em branco, é superfície e presencia a espera sem fim ou se surpreende com a gotícula de tinta tensionada no espaço e no tempo que a risca. Não calcula riscos.

Sente a precisão do ponto que chega no branco e o vetor da linha atualizando ponte. Porta virtualidade. Atualiza ponto fechado e linha caminhante.

É sucessão de presentes: destino. Repetição em diferença de nível, como explica Deleuze sobre as "ligações não localizáveis, ações à distância, sistemas de retomada, de ressonância e de ecos, de acasos objetivos, de sinais e signos, de papéis que transcendem as situações espaciais e as sucessões temporais" (2006, p. 128). O que toca a página e depois parte dela para tocar outros corpos são essas ligações não localizáveis, que produzem reverberação. Nos presentes que se sucedem para a expressão de um destino, a vivência da mesma coisa, da mesma história, "apenas com uma diferença de nível: aqui mais ou menos descontraído, ali mais ou menos contraído. Eis por que o destino se concilia tão mal com o determinismo, mas tão bem com a liberdade: a liberdade é de escolher o nível".

A tinta atualiza histórias ressoantes. Corpos dramatizam na superfície pálida e o tempo se contrai em sucessão. Corpos duram diante da ideia que se atualiza.

A superfície abriga o primeiro ponto. O pensamento de Kandinsky (1992) cria formas de isolá-lo do círculo de ação habitual, dar a ele ordem abstrata, não materializada: união última do silêncio e da palavra. Faz ressonância a estabilidade, a forma, o lugar no plano.

A superfície abriga linha, elementos distintos, cores idênticas, níveis diversos. A dramatização no quadro é drama precipitado no corpo. Deleuze explica que o que dramatiza é o inconsciente (2004, p. 159).

As ressonâncias constroem cidades que não estão no mapa. Enquanto linhas na página desenham seus efeitos, o corpo pesquisador procura durar nas forças que engendram a forma. Se a página for superfície, como tocar o campo de forças que engendram linhas de um mapa? Se as ruas forem o plano, como chegar nas reverberações que ressoam muros, pontes, passarelas operantes nas relações, mas invisíveis na foto do cartão postal? Experimenta-se falar de histórias: contemplar fatos ocorridos, ficcionar cenas, tocar um campo de virtualidade que desenha fluxos visíveis ou invisíveis no espaço urbano.

Procurando acompanhar Deleuze, na proposição de que o encontro com a repetição seja como o encontro com uma singularidade não substituível, a proposta metodológica que pede passagem no texto implica pensar, como propõe Deleuze, sobre a troca como critério da generalidade, e o roubo e o dom como critérios da repetição. Diante disso, o olhar sobre as narrativas produz também alguma transgressão das generalidades que estabelecem a lei do conceito, a regra que governa a vida, a grade visível e a barreira invisível, para que se manifeste a singularidade nas repetições e na produção de diferença. A ficção misturada com cenários já vistos e histórias vividas, a métrica do dicionário em verbetes junto da inobediência à ordem alfabética e a tentativa de abrir espaço na página escrita para o que dizem os sons, cores, histórias, rastros e riscos dão forma à aposta em uma experimentação metodológica. É só o início da saga por escritas possíveis em um campo de virtualidade que engendra a diferença.

 

Referências

Butler, J. (2008). Qué es la critica? Un ensayo sobre la virtud de Foucault. In: Producción cultural y prácticas instituyentes. Líneas de ruptura en la crítica institucional (pp. 141-167). Madrid: Editorial Traficantes de Sueños, Colección Mapas.         [ Links ]

Dorfles, G. (1959). Il divenire delle arti. Torino: Editora G. Einaudi.         [ Links ]

Deleuze, G. (2006). Diferença e Repetição. São Paulo: Graal.         [ Links ]

Deleuze, G. (2004). A ilha deserta e outros textos. Trad. Hélio Rebello Cardoso Júnior. São Paulo: Iluminuras.         [ Links ]

Deleuze, G., Parnet, C. (1998). Diálogos. Trad. Eloisa A. Ribeiro. São Paulo: Editora Escuta.         [ Links ]

Deleuze, G. (2013). Conversações. 3a Ed. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

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Foucault, M. (1978).         [ Links ] O que é a crítica? Conferência.

Foucault, M. (2000). Ditos e Escritos II. Editora Forense Universitária.         [ Links ]

Guattari, F. (2012). Caosmose: um novo paradigma estético. Tradução de Ana de Oliveira e Lúcia Cláudia Leão. São Paulo: Editora 34, 2ª ed.         [ Links ]

Kandinsky, W. (1992). Ponto e linha sobre plano. Lisboa. 12ª edição. Edições 70.         [ Links ]

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Pelbart, P. P. (2013). O avesso do niilismo: cartografias do esgotamento. São Paulo: N-1 Edições.         [ Links ]

 

 

Enviado em: 11/07/18
Aceito em: 20/08/18

 

 

Fernanda Goulart Martins é doutoranda e mestre em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
E-mail:fernandamartinsfm@hotmail.com

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