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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2019

 

DOSSIÊ - TEMAS EM DEBATE: RISCOS DA CRIAÇÃO

 

A forma da cidade: deslocamento, porosidade e ressonância na escrita

 

The form of the city: displacement, porosity and resonance in writing

 

La forma de la ciudad: desplazamiento, porosidad y resonancia en la escritura

 

 

Claudia Luiza Caimi

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Apresenta-se aqui uma discussão a propósito texto "A polifonia na escrita: rastros, riscos e experiência", o qual estabelece uma íntima relação entre o mapa da cidade e a escrita, entre a linguagem e o pensamento, entre a dimensão política e a estética que percorre um texto. Propomos apresentar, a partir do pensamento de Walter Benjamin, como o pensador/narrador percorre a cidade e a narra. Benjamin nos mostra como a cidade proporciona uma forma de narrativa e de pensamento que expõe o grão da diferença na engrenagem das tensões da vivência do homem moderno, indivíduo-massa habitante do grande espaço urbano, solitário, anônimo, que vive o choque em meio à profusão de automóveis, prédios e avenidas labirínticas. A partir da experiência na cidade, Walter Benjamin propõe uma escrita de montagem documental, que exibe ao invés de demonstrar e renuncia o valor discursivo, dedutivo e demonstrativo da escrita acadêmica em favor de um aspecto mais icônico e mostrativo. A montagem como forma estética e de pensamento permite expor a desterritorialização dos objetos do conhecimento, pois nela as diferenças nunca são absorvidas numa síntese positiva. O intervalo é por excelência, no pensamento benjaminiano, o instrumento epistemológico de desterritorialização disciplinar que permite saber e ver uma política do presente que inscreve os complexos processos memoriais.

Palavras-chave: cidade, experiência, escrita.


ABSTRACT

In this paper we present a discussion about the text "The polyphony in writing: traces, risks and experience", which proposes to establish an intimate relation between the map of the city and writing, between language and thought, between the political and the aesthetics that runs through a text. We propose to present, from the thought of Walter Benjamin, how the thinker/narrator moves around the city and narrates it. Benjamin shows us how the city provides a form of narrative and thought that exposes the difference in the tensions of the experience of the modern man; individual-mass inhabitant of the great urban space, lonely, anonymous, who lives the shock in the context of profusion of automobiles, buildings and labyrinthine avenues. From the experience in the city, Walter Benjamin proposes a writing of documentary assembly, which exhibits instead of demonstrating and renouncing the discursive, deductive and demonstrative value of academic writing in favor of a more iconic and showy aspect. The assembly as aesthetic and thought form allows exposing the deterritorialization of the objects of knowledge, once the differences are never absorbed in a positive synthesis on it. The interval is quintessentially in Benjaminian thought, the epistemological instrument of disciplinary deterritorialization that allows to know and to see a policy of the present that inscribes the complex memory processes.

Keywords: city, writing, experience


RESUMEN

En este artículo se presenta una discusión a propósito del texto "La polifonía en la escritura: rastros, riesgos y experiencia", el cual establece una íntima relación entre el mapa de la ciudad y la escritura, entre el lenguaje y el pensamiento, entre la dimensión política y la estética que recorre un texto. Proponemos presentar, a partir del pensamiento de Walter Benjamin, como el pensador/narrador recorre la ciudad y la narra. Benjamin nos muestra cómo la ciudad proporciona una forma de narrativa y de pensamiento que expone el grano de la diferencia en el engranaje de las tensiones de la vivencia del hombre moderno, individuo-masa habitante del gran espacio urbano, solitario, anónimo, que vive el choque en medio de la profusión de automóviles, edificios y avenidas laberínticas. A partir de la experiencia en la ciudad, Walter Benjamin propone una escritura de montaje documental, que exhibe en lugar de demostrar y renuncia el valor discursivo, deductivo y demostrativo de la escritura académica en favor de un aspecto más icónico y mostrativo.El montaje como forma estética y de pensamiento permite exponer la desterritorialización de los objetos del conocimiento, porque en ella las diferencias nunca son absorbidas en una síntesis positiva. El intervalo es por excelencia, en el pensamiento benjaminiano, el instrumento epistemológico de desterritorialización disciplinaria que permite saber y ver una política del presente que inscribe los complejos procesos memoriales.

Palabras-clave: ciudad, experiencia, escritura.


 

 

Ninguém sabe melhor do que tu, sábio Kublai, que
nunca se deve confundir a cidade com o discurso que a
descreve. No entanto, há uma relação entre ambos.

Ítalo Calvino. As cidades invisíveis.

 

Linguagem, pensamento e escrita

O texto A polifonia na escrita: rastros, riscos e experiência se propõe a uma indistinção entre linguagem e pensamento, entre o mapa da cidade e a escrita, entre a dimensão política e a estética que percorre um texto. A forma da escrita se mostra indissociável do que diz, e mais ainda, do que não diz. Pode-se proferir que propõe uma "dialógica da transmissão", termo usado por Jorge Larrosa (2001) para discutir a questão da transmissão a partir da linguagem entendida como o lugar da pluralidade e da descontinuidade, como a possibilidade de inserir o outro e de estabelecer o desdobramento da diferença.

Nos termos propostos por Larrosa, a "dialógica da transmissão" é pensada como "um acontecimento que produz o intervalo, a diferença, a descontinuidade, a abertura do porvir." (2001, p. 285). Essa forma de temporalidade descontínua não se apreende como totalização ou mesmo como síntese, não tem a ver com processo, progresso ou com qualquer outra ideia de "tempo contínuo dotado de direção e sentido". Antes, é uma forma de transmissão que carrega uma experiência de liberdade da historicidade cronológica e da escrita que se faz a partir da reunião de documentos, da exposição e explicação dos mesmos.

A modalidade de escrita da "dialógica da transmissão", presente no texto em discussão, aproxima-se do ensaio, forma que desenvolve uma ideia, ou conjunto delas, de uma perspectiva mais subjetiva e livre, mas também avizinha-se do que hoje chamamos de montagem ou mosaico, textos que se compõem por uma série de fragmentos. Do ensaio, a "dialógica da transmissão" semeia uma proximidade entre o poético e o didático, expondo ideias, críticas e reflexões éticas e filosóficas; da montagem, lança imagens que se associam, correspondem no limite do não dito. A conjunção dessas modalidades explode em uma forma de escrita entre a filosofia e a literatura, entre o pensamento e a narrativa, entre a reflexão e a poesia. Uma forma de "prosa reflexiva-narrativa-poética"1.

Essa forma de escrita vem se desenvolvendo desde os românticos, ganha força a partir do século dezenove com os poemas em prosa de Baudelaire (forma poética mista que guarda da poesia a alta compreensão do significado e da prosa seu desenho de nitidez e de exposição direta) e com a prosa filosófica de Nietzsche (forma de escrita híbrida, misto de aforismo e ensaio engendrado com a matéria da narrativa e da poesia), entre outros. Mas, sem dúvida, ganhou maturidade expressiva e reflexiva nas Imagens do Pensamento, de Walter Benjamin (1993), livro que oferece uma forma de pensar o real nas suas dimensões empíricas, oníricas e de memória, e que o próprio Benjamin explicita, no fragmento San Giminiano, do livro citado, como uma hermenêutica de enigma, "Achar palavras para aquilo que se tem diante dos olhos - quão difícil pode ser isso! Porém, quando elas chegam, batem contra o real com pequenos martelinhos até que, como uma chapa de cobre, dele tenham extraído a imagem" (1993, p. 203). Neste fragmento - mais um dentre os que narram cidades no livro- a ideia não é uma mera representação, mas um ente em si, que possui uma realidade sensível, apresentando-se no horizonte concreto da facticidade mundana. Adorno resume nestes termos a escrita de Benjamim:

O pensamento adere e se aferra na coisa, como se quisesse transformar-se num tatear, num cheirar, num saborear. Por força de tal sensorialidade de segundo grau, espera penetrar nas artérias de ouro que nenhum processo classificatório alcança, sem, no entanto, entregar-se por isso ao acaso da intuição sensível. A redução da distância para com o objeto funda, ao mesmo tempo, a relação para com uma possível práxis, que mais tarde passa a orientar o pensamento de Benjamin. (1997, p. 236)

Rompendo com a lógica do conceito, Benjamin indicia a emergência de um ethos estético que se manifesta como língua experienciada. Esta, a contrapelo da conceptualidade, desenha Imagens do Pensamento, que não se apresentam como matéria a ser decifrada, tampouco como mera representação do mundo, mas como força que pode produzir estranhamento a partir de sentidos que não se completam, que não se encerram em si mesmos, não totalizam, antes, saltam a partir de seus encontros, de suas montagens. A busca do filósofo/ pesquisador manifesta o movimento pendular entre envolvimento e distância, imunizando o leitor contra a ilusão de verdade a partir das cintilações que cada fragmento(imagem) alude e nega a possibilidade de uma totalidade. Surge daí uma noção de verdade sempre diferida e em construção, suscitada por uma série de associações subjetivas derivadas de impressões sensíveis.

 

Mapa, cidade e escrita

Os blocos de pensamento - imagens - emergem num processo contínuo de tensão e expansão, requerendo e impulsionando uma prosa murmurante, permeada de sequencias entrecortadas, através de uma língua/escrita, articulada por uma experiência em consonância com o tempo e o espaço que o homem moderno habita. Em um texto de 1933, Experiência e pobreza (1987), Benjamin aproxima a arte de narrar com o desenvolvimento técnico, apontando a primeira grande guerra como um momento histórico em que se evidencia, de uma forma terrível e acelerada, que a experiência foi subtraída da humanidade. A morte, que tradicionalmente era o momento de transmitir o legado de experiência anterior e oferecia autoridade ao narrador e sentido ao vivido, na experiência da guerra só produziu mudez. Pode-se dizer que foi emudecido a interioridade - o aspecto humano do homem - que se revela na linguagem, naquilo que ele produz e transmite. Essa pobreza manifesta-se na abolição dos vestígios, rastros, da história e o homem se vê completamente livre do seu passado, vivendo num eterno presente em que o sentido é individualizado e atualizado constantemente na vivência imediata. Neste ensaio, Benjamin situa duas maneiras com as quais a sociedade da época lidou com essa problemática da perda dos rastros. O homem burguês reagiu com uma apropriação pessoal e personalizada redobrada de tudo o que lhe pertence no privado, procurando produzir a ilusão de deixar marcas nos objetos pessoais - tecidos, roupas, estojos, etc. A outra reação, que Benjamin chama de barbárie positiva, tem um caráter realista e de denúncia. Nesta, a pintura de Paul Klee, a ficção e ensaística arquitetônica de Paul Scheerbart, que dá ênfase ao vidro e a proposta arquitetônica da Bauhaus, que dá ênfase ao aço, são exemplos narrativos e artísticos ajustados à desilusão da pobreza de experiência do homem moderno (1987, p. 116-117).

No ensaio O narrador (1985) Benjamin volta a desenvolver o tema, demonstrando que na modernidade a capacidade de trocar experiências está impossibilitada, contrapondo a narrativa tradicional ao romance. O narrador, na condição histórica de produção artesanal, oferece autenticidade, autoridade, longevidade e transmissibilidade às narrativas, características que se diferenciam profundamente na arte produzida na sociedade de massa capitalista. Enquanto a narrativa tradicional está assentada na experiência, própria ou relatada do narrador, integrada a sua vida e repassada ao ouvinte como uma longa formação, vinculada à tradição, o romance isolou-se no indivíduo, buscando o sentido da vida na solidão de um narrador que não consegue exprimir-se exemplarmente, pois se mantém reduzido ao seu pequeno presente.

Benjamin contrapõe a experiência (Erfahrung) à vivência (Erlebnis) para discutir a transmissão do modo de se estar no tempo. O indivíduo moderno só tem a pequena vivência individual, que se resume no agora e não pode ser partilhada porque é só sua, sendo quase incomunicável, enquanto a experiência é supraindividual, perpassada pela tradição, por um passado que não é neutro, mas carregado de memória. O romance perde a possibilidade de transmissão e recepção coletiva que marcam o narrador tradicional incluso em uma ordem produtiva e social na qual o indivíduo se identifica com uma história que alguém começou e que ele continua a contá-la.

O aspecto temporal da experiência é ressaltado por Benjamin na diferenciação entre a narrativa tradicional e o romance. Perde-se uma experiência temporal concreta e gestual de pertencimento; uma temporalidade complexa, marcada pelo compartilhamento da noção de eternidade, de continuidade, por um lado, e, ao mesmo tempo, com o desaparecimento dela, com a noção de finitude. Na experiência temporal coletiva da narrativa, a morte, o choque mais profundo do indivíduo, não é impedimento à experiência narrativa, bem pelo contrário, é condição. Como explica Jeanne Marie Gagnebin "a expressão privilegiada dessa experiência tradicional é a palavra do moribundo, não porque ele teria qualquer saber secreto pessoal a nos revelar, mas muito mais porque, no limiar da morte, ele aproxima, numa repentina intimidade, nosso mundo vivo e familiar deste outro mundo desconhecido e, no entanto, comum a todos" (1994, p. 66). Essa temporalidade de tensão entre a vida e a morte, presente nas narrativas tradicionais é que enfraqueceu, outra temporalidade se impôs, uma temporalidade que se afastou tanto da narrativa tradicional como da epopeia, gênero que conciliava memória e recordação.

No final do texto sobre o narrador, e também nas Teses sobre o conceito de história (2005), Benjamin formula a ideia de uma nova narração, que carrega os traços da modernidade e da tradição perdida, pois reveste o narrador da imagem do Justo anônimo da tradição judaica e do trapeiro da obra de Baudelaire, capazes de recolher o perdido, o esquecido e o que perdeu a significação. E os ensaios de Benjamin sobre Proust (1987) e Kafka (1987) nos dão a medida da possibilidade de um narrador que compõe por fragmentos um passado que age sobre nós, mas que nunca chega a sínteses, só oferece elementos de uma percepção incerta, limitada e insegura. Na narrativa desses autores a falta é algo constitutivo do passado resgatado, sendo a memória sempre uma percepção de perdas, que envolve aspectos dissociativos, fragmentários e incompletos. Em Kafka o cerne da obra está não na superação, substituição de uma tradição esvaziada, mas na persistência de, no avesso desse nada, fazer ressurgir as figuras do esquecimento e do esquecido, incluindo o recalcado no projeto narrativo. Em Proust, a memória involuntária é mais próxima do esquecimento que da memória, ele lembra-se no mais profundo do esquecido, naquilo que já foi perdido.

Luiz Inácio Oliveira Costa, em Do canto e do silêncio das sereias: um ensaio à luz da teoria da narração de Walter Benjamin (2008), diz que o nascimento do romance situa-se na raiz das condições que levaram à crise da arte narrativa tradicional. Neste sentido é interessante ressaltar que essa crise também resulta de uma forma de linguagem totalmente nova, a informação jornalística, diretamente ligada ao desenvolvimento da imprensa no alto capitalismo industrial. Concisa, fragmentaria e estruturada em forma de mosaico, regida pelo princípio da novidade e pela exigência da pronta inteligibilidade, a informação jornalística se oferece ao leitor do século XIX como um bem de consumo facilmente digerível e descartável, e nessa qualidade, aspira tão somente o efêmero e ao imediato, incapaz de perdurar e incorporar-se à experiência daquele que consome, levando o princípio narrativo da continuidade e da transmissão à ruína.

Também o surgimento da arte cinematográfica oferecerá uma nova experiência narrativa na qual a reprodução não carrega o testemunho da história que está gravada na essência do autêntico. O que caracteriza o cinema é sua existência serial, sem um caráter fixo no tempo e no espaço, se conjuga com a possibilidade do aprimoramento da obra de arte por meio de um processo fragmentário de produção. No cinema, as próprias necessidades técnicas operatórias dissociam a representação do intérprete em série de episódios, posteriormente montados e fragmentados. O ator sente-se estranho diante de sua própria imagem que lhe é apresentada pela câmera. Ele não mais representa diante do público, como no teatro, mas diante de um aparato técnico, testando várias possibilidades de representação que são posteriormente combinadas, ficando sujeitas à montagem que oferece uma sequência às imagens descontínuas, paralela à linha de montagem no processo produtivo.

Essa importante transformação na estrutura da experiência linguística, cultural e estética exige a correlata construção de uma outra forma de narratividade que reconhece a legitimidade das formas modernas. A modernidade para Benjamin assume essa dialética de negatividade e positividade, de perda da experiência da tradição e liberação do peso morto das formas linguísticas tradicionais falidas e a irrupção de novas formas de linguagem e escritura baseadas na alegoria, no fragmento, na citação, na montagem, nas formas narrativas abertas e na distorção das formas narrativas recolhidas da tradição.

Essa nova poética da disjunção, da descontinuidade, da perplexidade também revela a vivência do homem moderno, individuo-massa habitante da grande cidade, solitário, anônimo, misturado à multidão, que desaparece em meio a profusão de automóveis, prédios, avenidas labirínticas numa atmosfera de degradação e promiscuidade. Essa experiência moderna de destruição das referências estáveis, da perda da autoridade da palavra vinda do passado, de desconexão com o presente definem uma experiência que concerne em uma radical desorientação e, ao mesmo tempo uma incapacidade de transmitir e narrar.

Neste paradoxo assenta-se a narrativa contemporânea, no mundo vacilante e inóspito experimentado pelo individuo-massa em que a dispersão, os resíduos e fragmentos constituem a comunicação do presente desarticulado com o passado que o precedeu. Essa linguagem que tem dificuldade de comunicar se faz em uma "narrativa-outra", que opera não com totalidades, sentidos, mas com fragmentos perturbadores, resíduos de esquecimentos, descrições sem alvo, que destroem a linearidade tranquila e a composição coerente da totalidade épica. Os fragmentos, detritos e vestígios narrativos são recolhidos, montados, revelando neste processo dispersivo a impossibilidade mesma de uma verdade pretendida na unidade e totalidade de sentido.

Em outras palavras, a experiência narrável é a do homem-poeta que caminha na cidade, percebe a multiplicidade caleidoscópica que o rodeia, se converte no observador e receptor, flâneur, exposto ao vai e vem da cidade e ao choque. Este encontro coloca em discussão a subjetividade como domínio da interioridade, e possui como desdobramento o entendimento do espaço urbano enquanto constituidor da experiência moderna. A exposição ao choque, e não o conforto da intimidade burguesa, diz Benjamin, identifica o homem-poeta moderno com o operário diante da máquina, que repete uma ação sem continuidade, ou com o jogador frente a mesa de azar, na qual a descontinuidade dos segundos, repete, sem assimilação alguma, uma jogada atrás da outra.

Só nessa assimilação da cidade, com o tempo do agora, a experiência readquire sua dimensão histórica, a mais visível era estar associada à tradição e ao transmissível no relato dos narradores orais, porém, para o homem moderno, a experiência se volta à estética. É no texto literário de escritores como Proust, Kafka, Brecht, Döblin que Benjamin evidencia uma experiência que organiza elementos heterogêneos e escava fendas que convertem o abandono do orgânico e da tradição, que é a experiência assimilável e transmissível, em um constructo, um modelo de escrita que pensa fabulando, foca no detalhe, adota um tom de crônica e atenta para o perdido. Essa forma de escrita conquista para o pensamento os territórios do intermediário, do indeterminado, da suspensão e da hesitação. Produz um pensamento pelo desvio, sem pressupor a necessidade de um resultado ao qual levaria uma linha reta. O pensador/narrador anda na cidade, percorre-a e narra, pensa fabulando. A forma da prosa apresenta uma escritura em contanto com o cotidiano, desatenta, apesar de rigorosa, que expõe o grão da diferença na engrenagem das repetições, enredando e separando, alternadamente os fios que formam o tempo.

 

Estética, política e escrita

Uma das afirmações mais conhecidas de Benjamin talvez seja a de que saber orientar-se numa cidade não significa muito, mas perder-se requer instrução. Entre estadas e caminhadas em espaços de exílio, Benjamin toma posição diante do presente ameaçador em que vive, assumindo a posição desterritorializada de uma escrita em desordem. Essa escrita de montagem documental, que exibe, ao invés de demonstrar, renuncia o valor discursivo, dedutivo, demonstrativo em favor de um aspecto mais icônico e mostrativo.

A montagem como forma estética e de pensamento permite expor a desterritorializaçaõ dos objetos do conhecimento, pois nela as diferenças nunca são absorvidas numa síntese positiva. Pelo contrário, o comparativismo rizomático da montagem contamina os temas e a história com elementos sobreviventes que se evidenciam justamente no intervalo, no fatalmente descontínuo. O intervalo, (descontínuo) é por excelência, no pensamento benjaminiano, o instrumento epistemológico de desterritorialização disciplinar que permite saber e ver uma política do presente que inscreve os complexos processos memoriais. A montagem das imagens é uma forma de escrita que fundamenta toda sua eficácia, portanto, na arte da memória.

A memória organiza elementos heterogêneos, detalhes, em um processo de montagem que escava fendas, intervalos, na continuidade histórica para criar circulações - perambulações - que manifestam uma oportunidade de prestar atenção na abertura do tempo, que se mostra como impuro, vazado, múltiplo e residual. Mostrar por montagem, por deslocamentos e recomposição, assinala uma percepção do tempo e do espaço de decomposição própria de um tempo de guerra ou de exceção, que também é de surpresa, fazendo perceber tudo o que atravessa sintomaticamente a ordem dos discursos.

"A montagem enquanto tomada de posição ao mesmo tempo tópica e política, a montagem enquanto recomposição das forças nos ofereceria assim uma imagem do tempo que faz explodir a narrativa da história e a disposição das coisas." (2017, p. 118)

Como alerta Didi-Hubermam, não se expõe a política apenas mostrando os conflitos, os choques e os paradoxos que tramam a história. É o procedimento da tomada de posição na montagem que evidencia a ação política dos fluxos, das singularidades eventuais, das narrativas. É no intervalo desses deslocamentos que o plano político se revela ao expor ao mesmo tempo "seu passado (as origens de sua memória) e seu futuro (as consequências de seu desejo)" (2017, p. 128). Dito de outro modo, a montagem é uma escrita política.

A obra de Benjamin contém um programa político para o estudioso crítico, que contribui criativamente com a formulação de um conceito de memória/escrita capaz de demonstrar que "a tradição dos oprimidos nos ensina que o 'estado de exceção' em que vivemos é na verdade a regra geral" (Benjamin, 2005, p. 86). Benjamin demonstra estar preocupado com uma possível redução da linguagem a um simples meio de transmissão de conteúdo. Caso isso ocorra, ela não poderá ser descoberta em sua verdadeira essência e eficácia. Propõe sair da impotência à vivência de experiências que potencializem ações libertadoras, caso contrário, persistindo uma forma de vida individualizada, desmemoriada, marcada por uma pobreza de experiências que dificulta, ou até mesmo impossibilita a criação de sujeitos históricos, autênticos seres contemporâneos, o projeto redentor (político) não se efetivará.

Diante da realidade apresentada e da conclusão de Benjamin de que o homem moderno vive uma verdadeira dissociação da ação e do pensamento, entre o discurso proferido e a realidade vivida, fica evidente que um estudo sobre a linguagem e suas implicações políticas poderá abrir o leque de discussões sobre os aprisionamentos que a linguagem pode provocar, assim como as condições que ela pode criar para a libertação do homem. Uma significativa compreensão das implicações políticas da linguagem se dá quando analisarmos, no instante histórico em que foram criados, os dispositivos que, através da palavra, têm a capacidade de transmitirem aquilo que é possível de ser comunicado. O inevitável, a partir da exposição dessa ideia, é o fato de que, nessas condições, a compreensão da dimensão política da linguagem/escrita implica na compreensão da dimensão política das vivências e da memória. A experiência do nosso tempo pode surgir desse gesto dissociado que nos faz percorrer os vários sentidos nas bifurcações que os choques cotidianos manifestam e remontá-los a partir de correspondências que nos permitem a abertura aos possíveis laços que a observação/compreensão direta é incapaz de discernir.

 

Notas

1 Expressão usado por João Barrento no prefácio de Ideia da Prosa. Agamben, Giorgio. Ideia da Prosa. Trad. e notas João Barrento. Belo Horizonte: Autêntica editora, 2012. p. 12.

 

Referências

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Enviado em: 30/05/18
Aceito em: 01/06/18

 

 

Claudia Luiza Caimi possui graduação em Letras pela Universidade Regional do Noroeste do Estado do Rio Grande do Sul (1984), mestrado em Lingüística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (1991) e doutorado em Lingüística e Letras pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2001). Atualmente é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Tem experiência na área de Letras, com ênfase em Teoria da Literatura.
E-mail: claudialuizacaimi@yahoo.com.br

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