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Revista Polis e Psique

versión On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.3 Porto Alegre sep./dic. 2019

 

EDITORIAL

 

Produção de conhecimento, lutas políticas e práticas de cuidado

 

Knowledge production, political struggles and care practices

 

Producción de conocimiento, luchas políticas y prácticas de cuidado

 

 

Henrique Caetano NardiI; Neuza Maria de Fátima GuareschiII; Aline Kelly da SilvaIII; Giovana Barbieri GaleanoIV

IEditor Chefe
IIEditora Gerente
IIIEditora Assistente
IVEditora Assistente

 

 

Os artigos publicados neste terceiro número da Revista Polis e Psique em 2019 problematizam debates teórico-metodológicos em pesquisa, os conceitos de gênero, especialmente centrados na noção de feminino, e as práticas de cuidado.

As discussões teórico-metodológicas sobre as formas de pesquisar são questões frequentemente presentes nos artigos publicados pela Revista. Tais preocupações têm, cada vez mais, direcionado a atenção não apenas para uma democratização do acesso ao conhecimento produzido no âmbito acadêmico, mas, especialmente, para um rompimento com as perspectivas tradicionais no que concerne aos seus aspectos metodológicos e, também, de escrita.

Macedo, Mozzi e Dassoler (2019) problematizam os espaços privilegiados da tarefa associada à produção de conhecimento, tensionando a potência das experiências e escritas tornadas minoritárias. Dentre tais problematizações se situam as apostas éticas, políticas e estéticas que os autores afirmam empreender tendo em vista "performatizar experiências que queremos tornar audíveis com nossos trabalhos, difundi-las a ponto de entrarem no vocabulário compartilhado, na sensação coletiva e serem reconhecidas como produção de conhecimento" (Macedo, Mozzi & Dassoler, 2019, p. 196).

Nos artigos que engendram o debate teórico-metodológico está em questão, também, a processualidade envolvida no percurso de pesquisa e as formas como os conceitos são operacionalizados na leitura das conjunturas histórico-políticas. Note-se, nesse aspecto, que as reflexões sobre a psicologia não se restringem ao domínio particular da disciplina, mas coloca a mesma como produto das demandas que a ela são direcionadas.

Estas discussões colocam em questão aspectos ontológicos e epistemológicos, buscando discutir a relação sujeito-objeto e a natureza da produção de conhecimento científico. A partir da cartografia, da genealogia e da Teoria Ator-Rede, tais produções demarcam rupturas com a universalização do saber e do sujeito, bem como a necessidade de pensar o imbricamento do humano com o não-humano para além de binarismos reducionistas e problematizar agenciamentos e práticas para que um determinado objeto se constitua como tal no campo científico.

O artigo Contribuições da cartografia para a produção de uma ciência nômade, de Maria Luiza Marques Cardoso e Roberta Carvalho Romagnoli, apresenta uma discussão sobre o conceito de dispositivo, articulando-o à cartografia e à investigação no campo de pesquisa. As autoras abordam a importância para as ciências nômades de se evitar a universalização e modelização.

Análise e criação de dispositivos: tarefas para uma Psicologia Social é o título do artigo publicado por Isabela Gama, Roberto Andrade e Danichi Hausen Mizoguchi. Nesse trabalho os autores realizam uma análise genealógica de constituição da Psicologia Social como campo epistemológico, entendendo-o a partir de sua fragmentação e como terreno de disputa conceitual.

Hormônios em ação: articulando conceitos da teoria ator-rede, de Juliana Sampaio, Benedito Medrado e Ricardo Méllo, busca produzir reflexões sobre hormônios, a partir de aproximações teóricas e metodológicas com as produções de autores/as alinhados/as à Teoria Ator-Rede (TAR). Para os autores, a articulação de conceitos e postulados da TAR possibilitam a produção de estudos na Psicologia que ampliem o seu foco e passem a envolver outros atuantes que não sejam humanos.

Políticas Cognitivas: Ontologias da Autoconsciência, de Carlos Baum e Cleci Maraschin, discute proposições acerca de políticas cognitivas. Os autores exploram três políticas diferentes para compor, representar e reconhecer a autoconsciência: 1) uma política de mensuração; 2) uma política de simulação e 3) uma política de metamorfose constituída nas práticas de pesquisa-intervenção.

As concepções epistemológicas e metodológicas voltadas ao descentramento do sujeito e à ruptura com universalismos constituem-se também como ferramentas nas lutas sociais. De modo indissociável de tais concepções, alguns artigos narram jogos de força entre assujeitamentos e insurreições na vida de mulheres em comunidades rurais marcadas por disputas políticas e econômicas, enquanto outros textos voltam-se a problematizar justamente quais são as noções de enfrentamento nas políticas públicas, o corpo feminino como alvo de embates que se dão entre a objetificação e as resistências ao patriarcado e ao sexismo.

Andressa Carvalho e João Paulo Macedo nos apresentam o artigo intitulado Insurreições femininas: resistências de mulheres quebradeiras de coco babaçu. Nessa produção, discute-se os modos de vida e de luta de mulheres quebradeiras de coco piauienses junto ao Movimento Interestadual de Quebradeiras de Coco Babaçu (MIQCB) em três comunidades da zona rural da cidade de Esperantina, no Piauí, utilizando como recursos a intervenção fotográfica e a produção de narrativas de vida.

Patrícia Vitória Pires e Dagmar Elizabeth Estermann Meyer apresentam o artigo Noções de enfrentamento da feminização da aids em políticas públicas. O artigo se desdobra de investigação documental vinculada a uma pesquisa multifocal e interinstitucional, na qual se problematiza políticas de prevenção ao HIV/aids que orientam ações programáticas implementadas no Brasil e no Rio Grande do Sul no período de 2007 a 2016.

Já o artigo de Flávia Câmara, Maria Lúcia Lima e Crissia Cruz intitula-se Mulheres na rua: do "fiu-fiu" ao estupro. Discute-se o assédio em lugares públicos a partir do documentário Femme de la rue. Buscou-se traçar uma linha comum do "fiu-fiu" ao estupro que, embora se configure em graus diferentes de violência contra as mulheres, tem em comum o processo de reificação do corpo feminino, coisificado e fetichizado.

Trata-se, dessa maneira, de tensionamentos que tomam o corpo como alvo de governo, mas também como um corpo combativo aos assujeitamentos, construindo outros modos de relação que escapam à normalização das condutas e aos enquadramentos homogeneizantes. Se o discurso não é simplesmente aquilo que traduz lutas, mas aquilo pelo qual se luta (Foucault, 2012), este conjunto de trabalhos anuncia uma produção situada no campo das lutas travadas em um momento histórico no qual segmentos conservadores acusam escolas e universidades públicas de promoverem uma suposta 'ideologia de gênero'. Logo, as discussões empreendidas aqui compõem recusas à intolerância, aos silenciamentos e aos controles dos corpos, demarcando a necessidade de sustentarmos debates voltados à diversidade de gênero, feminismos, direitos sexuais e reprodutivos etc.

Busca-se, além disso, pensar clínica e cultura na interface com a colonização. Casa-grande, discurso do mestre e senzala: interpretação e colonialidade é o artigo de autoria de Fernando Basso e Amadeu de Oliveira Weinmann. O trabalho analisa a interpretação de Charles Melman sobre a colonização brasileira, apresentando sua leitura psicanalítica da clássica obra de Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala, a partir do conceito lacaniano discurso do mestre. Ao final, relançam a pergunta que orientou a escrita do texto: pode uma interpretação psicanalítica consistir em ato colonizador?

É fundamental atentarmos para os processos de colonização constitutivos da nossa história, dos nossos saberes e teorias, a fim de movermos o pensamento para a descolonização epistêmica e política, tendo a luta como instrumento de transformação que restitui ao colonizado a possibilidade de afirmação de si como sujeito e agente de processos históricos em sua época (Fanon, 1979; Faustino, 2015). Cabe, portanto, jamais apartarmos os processos de constituição do sujeito das condições econômicas, políticas e históricas. Com Fanon, podemos também refletir sobre a ética assumida por nós no exercício da produção de conhecimento. Para o autor, quem narra - e podemos pensar juntamente com ele: quem produz literatura, escrita e pesquisa de combate - faz obra criadora, produzindo um presente não mais encerrado em si mesmo, mas esfacelado, em dispersão e abertura (Fanon, 1979). Para além das questões mencionadas anteriormente, há um conjunto de artigos voltados a pensar as práticas de cuidado e subjetivação nas políticas públicas de saúde e de educação. Tais produções colocam em discussão a empatia como atitude ética na saúde mental, com base em uma concepção Rogeriana, a construção do cuidado e os conceitos de saúde e doença no atendimento a sujeitos com condições crônicas de adoecimento, bem como os sentidos do cuidado em instituições de proteção à infância e adolescência e a importância da supervisão na formação como gesto clínico de cuidado e produção de escuta sensível. A empatia como atitude ética no cuidado em saúde mental é o título do artigo de autoria de Dassayeve Távora Lima, Mariana Tavares Cavalcanti Liberato e Bianca Waylla Ribeiro Dionísio. Nessa escrita as autoras discutem como a compreensão empática, atitude facilitadora do crescimento humano desenvolvida por Carl Rogers, se configura como uma agir ético no cuidado em saúde mental.

Em Prescrição e Cuidado no Contexto da Condição Crônica, Ana Maria Szapiro e Leonardo Pereira de Souza relatam uma investigação realizada com médicos de um serviço especializado no atendimento a pessoas com condições crônicas de adoecimento em um hospital público no Rio de Janeiro. Partindo dos conceitos de Canguilhem sobre saúde e doença, os autores entrevistaram cinco médicos deste serviço especializado de modo a analisar os projetos terapêuticos voltados às condições de cronicidade.

Cecilia Montes Maldonado é a autora do artigo Sentidos del cuidado en las instituciones de protección en Uruguay. O artigo analisa a atribuição de sentido ao cuidado apresentada pelos(as) agentes do sistema uruguaio de proteção social à infância e à adolescência. Trata-se de um trabalho qualitativo realizado a partir de um estudo de caso de tipo descritivo, composto por entrevistas, documentos, observações e registro em diário de campo.

Maria Elizabeth Barros propõe, no artigo Gestos clínicos na supervisão coletiva em práticas de psicologia, o cultivo de uma atenção para a sustentação de gestos clínicos no exercício de supervisão coletiva do Programa de Formação em Investigação e Saúde no Trabalho (PFIST), vinculado ao Núcleo de Estudos em Subjetividade e Políticas (Nepesp) do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo, Brasil.

Apresenta-se, por fim, um relato de experiência a partir do acompanhamento da formação de um grêmio estudantil. Psicologia Social Comunitária na Escola: Grêmio Estudantil e Pertencimento, de autoria de Ana Carolina Maurício e Gabriel Bueno, emergiu de uma atividade de extensão desenvolvida no ensino médio noturno, articulando três temáticas: psicologia social comunitária, espaço escolar e atuação política. Aponta à potência das experiências vividas na constituição do grêmio devido às possibilidades de novas elaborações em relação aos sentidos do que é ser estudante.

Este volume é composto, portanto, por uma multiplicidade de temas, pesquisas, narrativas e posicionamentos ético-políticos frente às questões que nos convocam a pensar o exercício da Psicologia e o comprometimento com a produção de conhecimento situada nas lutas políticas do presente nos diversos contextos brasileiros.

 

Referências

Fanon, Franz. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. (Obra original datada de 1961)        [ Links ]

Faustino, Deivison Mendes (2015). "Por que Fanon, por que agora?": Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. Tese de Doutorado - Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos, São Paulo. Recuperado de https://www.capes.gov.br/images/stories/download/pct/2016/Mencoes-Honrosas/Sociologia-Deivison-Mendes-Faustino.PDF

Foucault, Michel (2012). A ordem do discurso. 22 ª ed. São Paulo: Edições Loyola. (Obra original datada de 1970).         [ Links ]

Macedo, F. S., Mozzi, G. & Dassoler, V. A. Transitar pela fresta: corporalidades e diferenças na escrita acadêmica. Revista Polis e Psique, 9(2),187-204. Recuperado de https://seer.ufrgs.br/PolisePsique/article/view/92296/pdf        [ Links ]

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