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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.3 Porto Alegre Sep./Dec. 2019

 

ARTIGOS

 

Políticas Cognitivas: Ontologias da Autoconsciência

 

Cognitive Politics: Ontologies of self-awareness

 

Políticas cognitivas: Ontologias de la autoconciencia

 

 

Carlos Baum (In memoriam); Cleci MaraschinI

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Neste texto a discussão é feita considerando as proposições a cerca de políticas cognitivas, compreendendo que uma representação pode ser alcançada através de diferentes agenciamentos que distribuem de maneira diversa os atores envolvidos. Exploramos três políticas para compor, representar e reconhecer um processo cognitivo, a autoconsciência. 1) Uma política da mensuração, performada pela psicologia experimental, principalmente através da aplicação de testes psicológicos; 2) uma política da simulação, resultado da atuação das neurociências a partir de processos de imageamento cerebral com tecnologias digitais e 3) uma política da metamorfose constituída nas práticas de pesquisa-intervenção. A metodologia da discussção segue a sugestão de Mol (2002), e investiga as sessões de métodos, materiais e procedimentos de artigos científicos. Essas sessões especificam o tanto quanto possível as práticas de investigação, o que reforça a ideia de que tais práticas permitem os objetos se manifestar e são cruciais para aquilo que pode ser dito deles.

Palavras-chave: Políticas Cognitivas, Consciência de Si, Neuroimagens, Testes psicológicos, Pesquisa-Intervenção


ABSTRACT

In this text the discussion is made considering the propositions about cognitive politics, sugesting that representation can be achieved through different politics that distribute the actors involved in different ways. We explore three different politics for composing, representing, recognizing a cognitive process, self-awareness. 1) A measurement politic, performed by experimental psychology, mainly through the application of psychological tests; 2) a politic of simulation, a result of the neurosciences acting from brain imaging processes with digital technologies and 3) a politic of metamorphosis constituted in the research-intervention practices. The methodology of this analisys follows the suggestion of Mol (2002), and investigates the sessions of methods, materials and procedures in scientific articles. These sessions specify as much as possible the research practices. This reinforces the idea that the practices that allow objects to manifest are crucial to what can be said of them.

Keywords: Cognitive Policies, Self-Awareness, Neuroimaging, Psychological Testing, Intervention-Research


RESUMEN

En este trabajo la discusión se hace teniendo en cuenta las proposiciones acerca de las políticas cognitivas, incluyendo la representación que puede lograrse a través de diferentes políticas que distribuyen de forma diferente a los actores involucrados. Exploramos tres políticas para componer, ejecutar, reconocer un proceso cognitivo, la auto-conciencia. 1) Una política de la medida efectuada por la psicología experimental, principalmente mediante la aplicación de pruebas psicológicas; 2) una política de la simulación, resultado de las acciones de las neurociencias, de los procesos de formación de imágenes del cerebro con la tecnología digital y 3) una política de metamorfosis incorporada en las prácticas de investigación intervención. La metodología de este estudio sigue la sugerencia de Mol (2002), e investiga las sesiones de métodos, materiales y procedimientos en artículos científicos. Estas sesiones especifican tanto como sea posible las prácticas de investigación que refuerza la idea de que las prácticas que permiten a los objetos manifestarse son cruciales para lo que puede decirse de ellos.

Palabras clave: políticas cognitivas, auto-conciencia, neuroimagen, pruebas psicológicas, Investigación-intervención


 

 

Neste artigo discutimos diferentes modos como a autoconsciência é trazida à existência nas práticas de representação das ciências cognitivas. A representação tem sido um dos principais pontos de discussão nos Estudos de Ciência e Tecnologia, que busca situar ilustrações, gráficos e imagens no interior de atividades contingentes, localizadas e orientadas teóricamente. Tal direção toma a representação como prática -como ação de representar - e não o seu produto1 . Isso não significa sugerir que tais produtos sejam incapazes de referir, retratar ou representar algo real. Ao contrário, aponta que seus usos e manipulações estabelecem o que eles fazem, como ganham significado e o que é feito com eles.

A discussão é feita considerando as proposições a cerca de políticas cognitivas (Kastrup, 1999; Gavillon, Baum & Maraschin, 2017) e, portanto, compreendendo que a representação pode ser alcançada através de diferentes modos que distribuem de maneira diversa os atores envolvidos: distribuições entre a superfície de representação e aquele que a representa, entre o sujeito de pesquisa e o objeto representado. Destacando a forma como cada política modifica a composição da realidade com a qual lidamos, que discurso, ação, representação, corpos e tecnologias se entrelaçam na composição do mundo no qual vivemos.

Esse artigo explora três políticas diferentes para compor, representar, reconhecer um processo cognitivo, a autoconsciência. 1) Uma política da mensuração, performada pela psicologia experimental, principalmente através da aplicação de testes psicológicos; 2) uma política da simulação, resultado da atuação das neurociências a partir de processos de imageamento cerebral com tecnologias digitais e 3) uma política da metamorfose constituída nas práticas de pesquisa-intervenção2 . Evitamos qualquer definição abstrata ou teórica de consciência de si, como forma de nos concentramos naquelas definições estabelecidas nos métodos que são alvos de nossa análise, buscando com isso compreender não como cada disciplina define ou conceitua autoconsciência, mas como lida com ela, como a faz existir no circuito de ações efetivadas em cada ciência. A metodologia desse processo segue a sugestão de Mol (2002), e investiga as sessões de métodos, materiais e procedimentos de artigos científicos. Essas sessões são escolhidas por especificarem o tanto quanto possível as práticas de investigação. O que, segundo Mol e Latour, reforça a ideia de que são as práticas que permitem aos objetos se manifestar sendo cruciais para aquilo que pode ser dito deles. Ao dispor a descrição dessas políticas em sucessão, nossa intenção é produzir contrastes que possibilitem evidenciar a forma que determinados atores participam da composição de múltiplas realidades. De modo semelhante às controvérsias propostas por Latour (1987), os contrastes permitem tornar visíveis as associações que performam realidades. Porém, ao contrário das controvérsias, assumimos que os contrastes são produzidos pela própria ação de conhecer do pesquisador.

A discussão contemporânea a respeito de políticas cognitivas (Baum, 2017; Gavillon, Baum & Maraschin, 2017; Baum, Maraschin & Markuart, no prelo), torna possível pensar as relações entre psicologia e neurociências evitando hierarquizá-las. Não se trata de encontrar uma resposta definitiva para esse problema, mas de recolocar o problema de forma a atrair novos interesses. E, principalmente, poder sugerir um modo de argumentação e um espaço de negociação para as relações entre psicologia e neurociência que não seja pautado na busca de uma única verdade ou de um reducionismo de uma à outra.

Psicologia experimental - uma política de mensuração

A tabela 1 foi construída a partir dos dados apresentados em de Vieira et al. (2013). Ela apresenta a diferença de autoconsciência entre um grupo de quarenta mulheres que recebem tratamento para enxaqueca no Hospital de Clínicas de Porto Alegre e um grupo controle composto por 33 mulheres que frequentaram o mesmo hospital para outros atendimentos não relacionados à enxaqueca. A autoconsciência é apresentada como a combinação de dois fatores: 1) a autorreflexão, atividade de avaliação de sentimentos, comportamentos e pensamentos próprios; e 2) o insight, o estado de entendimento interno de sentimentos, comportamentos e pensamentos próprios. Os grupos se diferenciam de acordo com score médio de seus participantes, no caso da autorreflexão 32,64 para o grupo controle e 28,88 para o grupo clínico. Em outras palavras, de acordo com o experimento mulheres com enxaqueca têm uma tendência menor a julgar suas condutas ou atividades mentais. A composição dos números referentes aos fatores, por sua vez, é feita através do preenchimento, por cada uma das 73 mulheres envolvidas, da versão brasileira da Escala da Autorreflexão e Insight (EAI). Um questionário autoaplicável com vinte itens, sendo oito itens referentes à dimensão Insight e 12, à dimensão Autorreflexão. Esses items são mensurados pelos participantes através uma escala Likert de cinco pontos (DaSilveira; DeCastro & Gomes, 2012).

 

 

O que queremos propor e discutir nesta seção é a autoconsciência performada por uma política de mensuração. Como descrição geral, mensurações são obtidas através da atribuição ou associação de números a objetos ou eventos. Essa associação é feita seguindo uma regra específica (Michell, 1999; Humphry, 2013). No caso dos questionários em psicologia o mais recorrente é a cada item do questionário, por exemplo, "Eu não penso muito frequentemente em meus pensamentos" (DaSilveira; DeCastro & Gomes, 2012, p. 160), seja atribuído um número natural entre 1 (discordo plenamente) e 5 (concordo plenamente). Ao término do preenchimento, o pesquisador soma as notas individuais a fim de configurar o escore final de cada indivíduo. No caso da EAI duas notas são obtidas, uma referente a autorreflexão e, outra, ao insight. Através dessa política a autoconsciência assume um formato aritmético e é performada como scores individuais e coletivos suscetíveis de algumas operações matemáticas.

O tipo de atribuição numérica produzida pela EAI difere de outras numerações típicas na prática psicológica, como a medição de frequências, seja de um determinado comportamento em determinada situação ou de sucessos em uma dada tarefa. Isso porque a autoconsciência não se apresenta como unidades discretas no cotidiano do sujeito de pesquisa, passíveis de serem agregadas, como possuir seis maçãs em uma cesta. Poderíamos dizer que a autoconsciência é um objeto materialmente vago, que não possui limites claros e, portanto, não quantificável.

Uma política da mensuração é reconhecível através de metodologias de composição e aplicação de testes psicológicos pois articula objetos que não possuem existência discreta à numerais3 . Essa articulação é possibilitada pela mediação de um ator: a Escala Likert, desenvolvida entre as décadas de 1920 e 1930. A Escala Likert permite a conversão de uma infinidade de respostas qualitativas em unidades numéricas distribuídas linearmente de acordo com sua dispersão estatística em relação a média (desvio padrão). A despeito da simplicidade (que tornava cético de início o próprio Likert) a escala proporciona uma grande consistência, isto é, itens que deveriam variar conjuntamente mantém uma alta correlação, mesmo quando comparados com variações mais complexas de respostas. Em outras palavras, a amplitude da escala é grande o suficiente para distinguir respostas e, simples o suficiente, para produzir análises estatísticas sofisticadas mesmo antes da presença de computadores digitais4 .

A articulação escala-medida reconfigura a existência da autoconsciência e do pesquisador nela interessado e, inserido nessa política, o número resultante dessa articulação possui características híbridas, não sendo nem completamente objetivo, nem completamente subjetivo. Como propõe Latour (2005) todo o processo de cálculo necessita simultaneamente da externalização de alguns elementos e da internalização de outros. Externalização ocorre na ação de atribuir forma (informar), como vimos acima, a Escala Likert faz a mediação desse processo de atribuição de forma aritmética. A internalização, por sua vez, ocorre no mesmo ato. Quando me defronto com a tarefa de atribuir, de um a cinco, o quanto "Eu normalmente estou ciente de meus pensamentos." (DaSilveira; DeCastro & Gomes, 2012, p. 160), preciso estabelecer uma relação comigo mesmo, de forma a atribuir um número. Latour (2005, p. 229) faz um curioso jogo de palavras onde calcular, to account, é considerar, take into account. A atribuição de forma é, com isso, um dos principais processo de tradução5 , uma vez que ele permite o deslocamento daquilo que é traduzido, seja de dentro para fora ou de um local para outro. A autoconsciência que cotidianamente possui uma existência invisível e dispersa em um espaço indiferenciável ganha novos atributos a partir dessa forma aritmética. Como consequência desse processo, quais as características que essa ontologia aritmética da autoconsciência assume?

Se voltamos a Tabela 1, percebemos que o insight (médio) do grupo controle é 21,39. Como referimos acima, esse número não é resultado de uma contagem, mas de uma atribuição. Com isso, 21,39 isolado, não fornece todos os elementos para sua compreensão. O número 21,39 existe e pode ser compreendido apenas em relação a outra composição de números da mesma célula: 929. Essa composição, chamada de variação (range) refere-se ao total de multiplicidade de respostas dos 8 items referentes a essa categoria. Ou seja, entre oito respostas, variando entre um e cinco, ao menos um membro do grupo marcou 9 pontos (sete respostas 1 e uma resposta 2), enquanto ao menos um outro membro marcou 29 pontos, referindo-se a seu próprio insight. A relação entre 21,39 e 9-29 se assemelha a relação entre numerador e denominador. A variação constitui um coletivo, um espaço ou espectro de participação, a média por sua vez consiste em um ponto ideal localizado no centro desse espaço a partir do qual todos os demais scores podem ser situados. O resultado da EAI não produz, portanto, a quantificação da autoconsciência, mas sua ordenação, distribuição ou hierarquização.

Os scores são a materialização de relações através do estabelecimento de proporções e razões. Embora cotidianamente tratemos quantificar e mensurar como sinônimos. Enumerar é apenas uma das formas de estabelecer relações. Podemos distinguir essa atividade quanto exploramos a história da mensuração. Em sua origem conceitual, esse tipo de relação não era estabelecida através de números, mas de notações e analogias geométricas. Por exemplo f:f' (a diferença entre força no tempo um e força no tempo dois) ou ainda f:f' :: a:a', em que a notação "::" significa "é proporcional a". É só no século XVII que a notação algébrica para relações surge, e gradualmente se populariza na física. Contudo, ela funciona como um atalho ou conveniência, não representando uma substituição das relações empíricas entre entidades (Humphry, 2013).

Fora da física, esse atalho algébrico sobre as relações de pertencimento e distribuição produz uma interferência específica, o próprio número passa a possuir uma outra existência. Verran (2013), recorre às categorias semióticas de Pierce para discutir os diferentes modos de existência dos números. O autor descreve os números que possuem função ordinal e não podem ser referidos a nenhuma unidade manipulável ou distinguível empiricamente como ícone. Em um número icônico, a diferença entre valor e categoria não é distinguível, ele expressa apenas uma ordem. As analogias podem ser pensadas como um traço de grafite que é, simultaneamente, uma marca no papel e um linha geométrica; ou ainda em práticas religiosas em que a imagem de uma entidade é tratada como a própria entidade. Em outras palavras, o número não é mais representativo, mas constitutivo de si mesmo (Verran, 2010). Não registra a relação entre unidade e pluralidade, mas entre semelhança e diferença. O numero incorpora a relação. Ele não está em uma relação, ele é relação (Verran, 2013) e seu sentido se encontra na distribuição que ele permite.

Com isso, a autoconciência, em uma política de mensuração assume uma forma numérica, mas só existe em comparação com outras autoconsciências que se concretizaram do mesmo modo. Por assumir um valor ordinal, não podemos produzir outras operações matemáticas sobre ela. Ela não é passível de ser somada ou subtraída e sua relação com a média é apenas situacional, no sentido que permite estabelecer uma posição em relação aos outros; mas não é absoluta, ou seja, a diferença entre um score 22 e 23 não tem nenhum valor em si mesmo para além da posição que eles estabelecem.

Neurociência - Uma política da simulação

A figura 1 foi produzida através da técnica ressonância magnética funcional (fMRI, do inglês Functional Magnetic Ressonance Image) ao rastrear a atividade de um cérebro enquanto o sujeito, que permanece deitado em um scanner, sinaliza - através de movimentos específicos6 , a consciência de que está em um sonho. Os experimentos envolvendo esse tipo de técnica requerem, da parte da equipe de pesquisadores, a normalização e calibração dos aparelhos, bem como o desenvolvimento de tarefas capazes de isolar componentes particulares do processo mental (Beaulieu, 2002). Do lado do sujeito, no caso da pesquisa de Dresden e Cols (2012), a tarefa é realizada a partir de um sonho lúcido na tentativa de isolar a autoconsciência. O design da pesquisa segue o paradigma da subtração (Roepstorff, 2007). Ou seja, o funcionamento cerebral do sujeito é mapeado em três estados diferentes: acordado, acordado de olhos fechados e dormindo em sono REM. Por fim, registra-se o período em que o sujeito deu sinais de estar passando por um sonho lúcido. Como a diferença na experiência entre um sonho comum e um sonho lúcido é a consciência da condição de sonhador e o controle volitivo parcial, considera-se que a diferença entre a atividade do sonho lúcido e a atividade do sono REM7 corresponde a atividade de estar autoconsciente. Em nosso caso, os resultados desses experimentos são predominantemente apresentados como mapas visuais do cérebro em ação, como fotografias do pensamento ou imagens da mente trabalhando (Beaulieu, 2002). Elas, portanto, parecem fornecer provas visuais do substrato material de funções mentais.

 

 

Com isso, se olhamos a imagem acima, sem conhecer o prossesso de sua montagem, temos a impressão de qu expressa a atividade neuronal de um indivíduo. Não é difícil imaginar que técnicas de projeção, seguindo regras geométricas, convertessem neurônios de um corpo humano, com volume tridimensional, para uma superfície bidimensional. Em técnicas de desenho, esse procedimento é realizado tomando um ponto de fuga, que constitui, através das regras de perspectiva, a possibilidade de projeção da imagem sem a perda de suas proporções. Esse ponto é justamente aquilo que permite uma visualização coerente da imagem mas, no entanto, está fora da mesma. O ponto de fuga é produzido em paralelo a outro ponto matemático situado no local do observador. Essa é a política que Law e Benschop (1997), chamam de narrativa euclidiana. Tal distribuição separa sujeito e objeto, o primeiro torna-se um ponto matemático, externo ao objeto, mas a partir do qual toda a compreensão se organiza. O objeto, por sua vez, possui uma existência e continuidade independente do sujeito que observa e aguarda apenas sua representação. Nessa política, soma-se ao processo geométrico, uma narrativa, externa a representação, necessária afim de iluminar as condições, deslocamentos e manipulações do objeto (que poderíamos atribuir a legenda da imagem, por exemplo). Essa política tornaria a representação do cérebro ilustrativa, pois o mundo - o cérebro - e suas narrativas existem de forma independente da representação. They pre-exist their depiction. The stories are as it were out there, in reality. Depictions illustrate that world-a world apart (Law e Benschop, 1997, p. 162). O resultado seria uma reprodução fiel do cérebro que compreende o ponto de vista do observador como um olho que observa através de uma janela imaginária. Essa política pode ser distinguida no Renascimento italiano e em concepções modernas de fotografia.

Entretanto, quando exploramos os processos de produção dessa imagem percebemos que diversas das suposições a respeito da objetividade mecânica, relacionadas com a projeção renascentista ou o realismo fotográfico, não se aplicam às imagens cerebrais. Por exemplo, não podemos nos apoiar em uma cadeia de causalidade física que se estabelece por partículas de luz que após tocar um objeto movem-se para uma chapa fotográfica (Beaulieu e De Rijcke, 2014). Com isso em mente, nos voltamos para os detalhes da técnica de imageamento do cérebro com o objetivo de melhor descrever a política que podemos extrair dessa metodologia.

Como referido anteriormente, a técnica utilizada nesse estudo neurocognitivo é chamada de Ressonância Magnética funcional. Dependente do nível do sangue oxigenado (em inglês Blood Oxygen Level Dependent Functional Magnetic Resonance Imaging ou BOLD-fMRI). Nessa técnica o scanner gera um forte campo magnético capaz de magnetizar protons que giram ao redor de um núcleo causando um alinhamento; uma vez desligado, os prótons "relaxam" voltando a seu estado original. O tempo entre o alinhamento e o relaxamento dos prótons varia de substância para substância e pode ser detectado e mensurado. Os detectores são calibrados para gerar um indicador da quantidade de hemoglobina oxigenada. O princípio subjacente é que quando há um aumento de atividade em uma região do cérebro, o sistema vascular envia uma quantidade maior de sangue para aquela região - o que acarreta no aumento da concentração sangue na mesma. Existe ainda uma segunda vantagem para o uso dessa técnica: As hemoglobinas oxigenadas e desoxigenadas possuem diferentes susceptibilidades magnéticas, tornando possível rastrear pontos de desoxigenação e, por tanto, consumo de energia. (Roepstorff, 2007; Rose, 2013). O consenso é que tanto o acúmulo de sangue quanto o consumo energético são indicativos da atividade cerebral.

A oscilação dos prótons é medida algumas dezenas de vezes por minuto e uma quantidade massiva de dados brutos é processada. Processado, nesse contexto, significa uma sequências ações computacionais, obscurecidas sob programas chamados de scan suits. Os suits de tecnologias incluem imagens digitais, modelos de dados, bancos de dados, monitores de interface e redes eletrônicas que operam sobre esses dados tornando-os comparáveis e integráveis em uma visualização. Dresden et al. (2012), por exemplo, recorreram ao software Brainvisa (brainvisa.info), uma plataforma modular de código aberto para reconstrução de superfície cerebral e compartilhamento de dados. O software conduz dois tipos de operação sobre os dados: a primeira é a eliminação de dados considerados irrelevantes para a compreensão do funcionamento cognitivo. Esse primeiro passo pode ser lido como eliminação de diferenças, uma vez que o tipo de dados que é apagado corresponde principalmente a variações em anatomia e tamanho do cérebro, assim como diferença entre posição dos receptores do scanner, entre scanners diferentes ou, quando necessário, entre sessões de escaneamento. A segunda tarefa é o registro das diferenças que importam. Isso é feito através do estabelecimento de um banco de dados que cataloga, além das posições relativas de avaliação, outros dados do sujeito como lateralidade manual, bilinguismo, sexo. Os algoritmos que manipulam esses dados formam o que Beaulieu e De Rijcke (2014) chamam "encanamento digital" que garantirla que todo o metadado considerado relevante seja catalogado e todas as informações irrelevantes sejam excluídas, sem contudo a interferência subjetiva dos pesquisadores.

A parte final do processamento dos dados é feita através da inserção, comparação e ajuste dos mesmos em um atlas cerebral. Esse atlas é constituído através da padronização de tamanhos relativos de áreas cerebrais e a quantificação e xadrezamento do espaço cerebral. Combinando voxels8 e coordenadas digitais o banco de dados obtido no scanner é assim convertido em coordenadas espaciais pré-fixadas (Beaulieu e De Rijcke, 2014). Em outras palavras, o scanner opera uma série de quantificações, que são armazenadas em bancos de dados, constituindo mapas estatísticos. Como destaca Beaulieu (2002), para diversos neurocientistas esses dados numéricos são os verdadeiros resultados de pesquisa. As informações produzidas a partir de cada indivíduo são então deformadas, esticadas, espremidas ou suavizadas até caberem em um modelo de espaço anatômico padrão pré-estabelecido. Esse processo transforma informações estatísticas em imagens que podem ser exploradas espacialmente.

Ainda não é, contudo, a imagem que vemos acima. Após passar por essa caixa-fechada algorítmica que o encanamento digital representa, o neurocientista pode mais uma vez interagir com a imagem. Baseado nas tarefas executas e na fenomenologia apresentada, o pesquisador constrói um modelo estatístico do experimento. O computador, então, constrói um mapa estatístico paramétrico, ou seja um modelo de inferência a partir de uma distribuição probabilística. Sobrepondo a imagem de um cérebro padrão com uma codificação de cores que descreve o quão bem o modelo se adequa aos dados obtidos. O experimentador trabalha, por fim, para tornar os dados apresentáveis, escolhendo limiares de ativação, ou seja, definindo o quão bem os dados devem ajustar-se ao modelo. A metáfora de Roepstorff (2007, p. 194) é bastante ilustrativa. Ele compara a manipulação dos níveis desses limiares com a elevação e depressão dos níveis de água em um arquipélago. Em um certo nível de água, nada aparece sobre a superfície. Conforme o nível vai diminuindo, ilhas isoladas vão aparecendo; e quando a água retrai, os antes picos isolados tornam-se parte de uma massa de terra contínua. Isso quer dizer que a modelação das mesmas informações podem ser apresentadas de modos bastante diferentes. Um dos critérios para tornar a imagem interessante é buscar um equilíbrio entre nenhuma atividade e atividade em todo o cérebro. Como resume Beaulieu (2002, p. 59), "if these pictures are pictures of anything, they are pictures of numbers". Ou representações coloridas de valores estatísticos.

Dessa forma, a distribuição de papéis entre os atores que produzem essa imagem não é bem descrita pela Narrativa Euclidiana, por isso, propomos que poderia ser melhor compreendida como uma política da simulação. Com isso dizemos que as imagens não são fotografias realistas do cérebro, mas gráficos complexos, resultados de manipulações matemáticas, que podem ser realizados de diversas maneiras. O trabalho dos pesquisadores, portanto, não é o capturar uma boa imagem, mas, mas o de recolher, catalogar e relacionar quantificações para produzir uma boa imagem (Beaulieu, 2002; Roepstorff, 2007). Tal produção considera como esses dados devem agir em conjunto, numa forma que é a do "se... então..." temporal e narrativa, para após definir que tipo de desenvolvimento essa matriz narrativa é capaz de originar (Stengers, 2000). Os casos se definem não pelo controle de variáveis que os colocam em uma situação experimental, mas apenas pelas formalizações das relações que são estabelecidas posteriormente (Stengers, 2011).

Na descrição de Roepstorff (2007) o acúmulo de experiências cria gradativamente uma "semântica" a respeito das regiões do cérebro. A qualidade do argumento científico (e da imagem produzida) é proporcional à capacidade do pesquisador entrelaçar seus dados a essa semântica, ou seja, transformar um padrão de atividades neurais em uma narrativa. A imagem é, portanto, o amálgama dessa narrativa. Do mesmo modo como descreve Stengers (2011), o objetivo da simulação está mais ligado a relacionar uma situação a um campo problemático do que representá-la do modo mais fidedigno possível. A simulação não é relevante para uma universalidade, mas para um modo específico de compreender uma dada situação.

A política da simulação não se difere apenas da Narrativa Euclidiana, diferenciase também da política experimental tradicional, estabelecendo um novo contato entre experimentação, descrição e explicação. A experimentação na física permite a descrição do fenômeno a partir do prévio controle de variáveis, sem necessariamente explicá-lo ou atribuir-lhe sentido. Essa tradição se repete na aplicação dos testes psicológicos, particularmente através da seleção de participantes. No exemplo da sessão anterior, a enxaqueca figura como a variável independente, enquanto o gênero, por exemplo, aparece como variável controlada, ficando de fora do estudo pessoas do gênero masculino. A coloração da superfície de cérebro, por sua vez só é atingida a partir da conexão com um sentido ou narrativa estabelecidos. Não se trata de tornar aquilo que foi visto em conhecimento, mas de tornar um certo conhecimento visualizável. O que parece particular da simulação é que a cada narrativa transforma, recoloca um esquema de relações aos dados originais. Isso não é o mesmo que dizer que as imagens produzidas não são verdadeiras, confiáveis ou relevantes. Mas que é preciso compreender como elas tornaram-se relevantes. Elas não descrevem desinteressadamente uma situação controlada, mas ilustram um problema colocado pelo cientista àquela situação.

Pesquisa-intervenção - um política da metamorfose

As entrevistas de explicitação, cujo objetivo era trazer ao plano consciente experiências cognitivas e gestos atencionais realizados num nível pré-reflexivo, acabaram por produzir falas que ultrapassavam em muito a investigação do funcionamento cognitivo stritu-sensu. A insistência e a força de tais relatos não puderam ser atribuídas a um problema meramente técnico, relativo ao manejo da técnica da entrevista de explicitação. Ao contrário, tais relatos ampliaram o escopo da investigação e revelaram o entrelaçamento do problema do funcionamento da atenção na oficina de cerâmica com aqueles da experiência com a cegueira e dos processos de produção de subjetividade na oficina. (...) Nessa orientação, o exame do funcionamento da atenção incluiu a atenção voltada para o domínio tátil na lida com o barro, a atenção às pessoas que freqüentavam o espaço da oficina e, enfim, a atenção a si mesmo durante o processo de criação. Nesse sentido, ocorreu a modulação do problema, que impôs a investigação não apenas do funcionamento da atenção durante o processo de criação na oficina de cerâmica mas também da forma como a atividade de criação aciona processos de produção de subjetividade através da mobilização de uma certa atenção a si mesmo (Kastrup, 2008a, p. 188-189).

O relato acima é extraído do artigo intitulado "O lado de dentro da experiência: atenção a si mesmo e produção de subjetividade numa oficina de cerâmica para pessoas com deficiência visual adquirida" (Kastrup, 2008a) e refere-se aos desdobramentos de uma pesquisa-intervenção com 17 pessoas cegas e quatro pessoas com baixa visão, homens e mulheres de classes sociais diversas. A pesquisa foi realizada em um centro de referência para questões de deficiência visual, denominado Instituto Benjamin Constant, na cidade do Rio de Janeiro. Com o intuito de pesquisar a atenção de pessoas com deficiência visual, dois procedimentos foram organizados: 1) uma oficina de cerâmica, onde participantes moldavam argila ora em um trabalho coletivo - como moldar máscaras ou bustos - ora em tarefas individuais livres. 2) Em sessão separada das oficinas foi realizada uma entrevista de explicitação, técnica fenomenológica que busca auxiliar o entrevistado a trazer à consciência aspectos da experiência cognitiva e de gestos atencionais que são executados em um nível pré-reflexivo. Na hipótese original, o trabalho com argila permitiria ao oficinante uma aprendizagem do uso da atenção, deslocando-a dos olhos para as pontas dos dedos. A experiência, contudo, tal como narrada no trecho acima, revelou uma operação diferente: o que os entrevistadores constatam é uma atenção, que embora seja de fato aprendida ao longo da oficina, não é focada nos dedos, mas capaz de circular entre os participantes, a argila e, como destaca o título do texto, sobre o próprio participante, enquanto artista. Ou seja, a constituição de uma consciência de si, que não se limitava ao foco da atenção. Uma parte relevante para a compreensão desse processo de pesquisa, em relação aos descritos anteriormente, é que a diferença entre a proposta original e a atenção constituída é tratada como uma intervenção no processo de pesquisa. A aprendizagem da atenção e a constituição de uma nova consciência de si não se dá apenas nos sujeitos de pesquisa (Kastrup, 2008a), mas também nos pesquisadores (Kastrup, 2007). Em outras palavras a intervenção que produz uma nova consciência de si se dá no coletivo que é constituído por pesquisadores videntes, participantes cegos ou com baixa visão, argila, forno, esculturas (Kastrup, 2008b).

Ao longo do texto a autoconsciência é apresentada em relatos tal como:

Eu não percebo o tempo passar. Não tem tempo pra mim. Não tenho a mínima noção do tempo. Eu posso estar há quatro horas com uma peça e achar que estou há dez minutos. Quando eu estou construindo alguma peça, trabalhando com a argila, o tempo pra mim não existe. (...) Se eu estou sentada, eu me curvo e me aproximo. Às vezes, a menos de um palmo da peça, meu rosto fica em cima da peça, e eu tô ali trabalhando e eu tô assim, como se tivesse vendo. E, às vezes, quem tá vendo é só a minha mão (P4 apud Kastrup, 2008a, p. 192).

Desse modo, a autoconsciência assume uma materialidade através de padrões de atividade, verbais e não-verbais, produzidos a partir da interferência, da mediação, do pesquisador; mas também da mediação da argila e dos outros participantes da oficina. A autoconsciência, como atividade, não é revelada como algo que existia anteriormente e no interior do sujeito, mas é narrada como uma construção inventiva composta pela interferência mútua dos atores heterogêneos envolvidos.

A pesquisa-intervenção assume, o que propomos, como uma política da metamorfose, na qual a performance do objeto, em nosso caso a autoconsciência, se dá na composição ou recomposição bem sucedida de uma nova rede de atuação. Consideramos uma composição bem sucedida, quando os atores tornam-se gradualmente disponíveis - ou poderíamos 67 dizer afinados - um para o outro. De modo que ambas as partes tornam-se mais interessantes uma para a outra (Despret, 2004). Como nas palavras de um dos participantes da oficina:

(...) argila, ela tem um poder, sim. (...) Não é uma coisa que você domine ela, ela tenta dominar você de uma maneira. E isso, qualquer pessoa que esteja fazendo um trabalho, se prestar atenção, pode prestar atenção que a argila, ela tem uma ligação com você, ela querendo dominar você por um lado. (...) Quase toda hora (P7 apud Kastrup, 2008a, p. 191).

Resultado dessa rede bem sucedida, são atores mais sensíveis a supresas, mais inventivos9 . Tornam-se parceiros que aprenderam a ser afetados, que se tornaram disponíveis aos acontecimentos, em uma relação que revela perplexidade (Despret, 2004). Pesquisadores e pesquisados aprendem a prestar atenção um no outro, de uma maneira que muda o que ambos podem fazer conjuntamente. Tal como destaca Kastrup (2008a; 2008b) em alguns de seus relatos, não é apenas a atenção a si dos sujeito de pesquisa que se transforma, mas a dos pesquisadores, assim como a estrutura da própria pesquisa que se reconfigura com o estabelecimento de novos vínculos.

A política da metamorfose busca constituir o que Haraway (2008) chama de zonas de contato. A autora se inspira no conceito linguístico conhecido como linguagem de contato usado para referir-se a linguagens improvisadas desenvolvidas por falantes de línguas nativas diferentes que necessitam desenvolver uma comunicação consistente. A ideia de zona de contato busca destacar o caracter interativo e improvisado de alguns encontros. Referimos esse conceito para marcar a diferença entre esse tipo de encontro, daquele promovido por situações experimentais em que as interações possíveis são previstas e controladas.

A partir da zona de contato os participantes, humanos ou não, vão progressivamente constituindo entrelaçamentos em espaços de intersecção. Essas interações sucessivas vão redistribuindo a capacidade de ação dos atores envolvidos. Descrever uma pesquisa como uma zona de contato significa enfatizar as relações produzidas em termos de co-presença, interação e entrelaçamento de práticas e compreensões.

Com a ênfase na metamorfose dos atores que entram em contato, essa política destaca-se, das descritas anteriormente, por não possuir um ator que desempenha o papel de móvel imutável (Latour, 2001). Isto é, não existe a materialização da autoconsciência como signo ou traço que pode ser manipulado, superposto ou combinado com outros signos do mesmo tipo, tal como o número na política experimental ou a imagem nas neurociências. Nessa política, não podemos fazer referência a autoconsciência como unidade fixa. A ausência de um ator que desempenha o papel de móvel imutável impede seu transporte para fora da rede de produção, enquanto as imagens e números circulam em nosso cotidiano permitindo que a autoconsciência interaja em outras redes, como ilustrando uma capa de revista, ou fazendo parte de diferentes tabelas ou gráficos. Em contrapartida, as transformações produzidas pela zona de contato permanecem locais, encarnadas entre os atores humanos, pesquisadores e sujeitos de pesquisa, que participaram dessa rede. Em outras palavras, a autoconsciência produzida pela pesquisa-intervenção permanece incorporada aos participantes sem nenhuma pretensão ou 'capacidade de transportá-la nem no tempo, nem no espaço sem a perda, corrupção ou distorção. Os relatos de pesquisa não desempenham o papel de representar a transformação da autoconsciência, mas de descrever o processo de construção do coletivo, ou seja, da disposição dos vínculos que se efetivaram. Eles não veiculam as características que a consciência de si de cada participante assumiu, mas apontam para a possibilidade de transformação.

Uma política da metamorfose age como uma rede psicogênica (Latour, 2013), uma rede para produção de interioridade, mas que possui materialidades, solidez e rastreabilidade tal qual as redes que produzem objetividade. Na sua esteira, tais redes deixam interioridades a partir de uma certa exterioridade, ao contrário daquelas que geram móveis imutáveis, que criam referências, ou seja, uma certa exterioridade a partir de uma interioridade.

Adotamos o nome de política da metamorfose - ao invés de psicogênica, ou de transformação, pois a pesquisa- intervenção tem como principal alvo a constituição de um tipo de objeto que atende as especificações que Latour (2013) designou de seres de metamorfose. Um tipo de objeto invisível, capaz de "se apossar" de outros seres. Que só pode ser percebido pelas modificações ou transformações que produz em outros atores, que permitem a atores humanos10 fazer coisas que não pensavam serem capazes de fazer. "This is why the word 'metamorphosis' designates at one and the same time what happens to these beings,[and] what happens to humans who turn out to be attached to them" (Latour, 2013, p. 201).

Em outras palavras, a pesquisa-intervenção performa a autoconsciência como um objeto que, apesar de invisível e não material, pode ser rastreado pelas transformações, por permitir ser diferente do que somos, por inventar novos modos de estar com aquilo que nos cerca. Difere, assim, das técnicas anteriores, que se centram na representação do objeto, na produção de uma referência circulante, seja através de um número ou de uma imagem, ou da produção de dados que podem ser traduzidos ou transportados sem transformações. A pesquisa-intervenção não está centrada na produção de dados; mas, ao contrário, em ativar zonas de contato que transformem os objetos em interação, em permitir que esses seres de metamorfose circulem. Nas seções anteriores dividir, colorir, ordenar e calcular eram as ações que constituam e davam forma à autoconsciência à qual os pesquisadores poderiam referir-se. A pesquisa-intervenção só reconhece seu objeto enquanto transformação, processo.

Quando nos referimos a transformação na pesquisa-intervenção, não se trata de alinhar ou comparar dois estados diferentes de um mesmo objeto. Mas a constituição de um novo objeto, uma nova consciência de si através da articulação em outras redes de atores. Ao invés de isolar o sujeito, a pesquisa-intervenção busca oportunidades de narrar diferentes objetos de acordo com diferentes organizações coletivas. O intuito é de acompanhar a consiência de si como um objeto capaz de nos desviar sua trajetória, de inventar, de se tornamos outro.

Constituição de repertório

O principal argumento das análises efetuadas é que mensuração, simulação e metamorfose não correspondem a formas de responder a um mundo povoado com objetos pré-existentes, mas modos de organizar as atividades que trazem à existência aspectos desse mundo. A política da mensuração mobiliza a escala Likert, questionários, um hospital, fichas médicas, pacientes com ou sem enxaqueca, um programa de manipulação estatística e números. A política da simulação por sua vez, convoca um pesado hardware, uma cadeia de softwares, átomos de oxigênio, teorias físicas e biológicas, prótons, hemoglobina, bem como a composição de imagens digitais como forma de apresentação. A política da metamorfose, recorre a entrevistas, argila, pessoas cegas ou com baixa visão, lixas, forno e esculturas. Em cada política os atores são reunidos e seus papéis distribuídos de modo a fazer existir a consciência de uma forma específica. Números, imagem e processos.

A partir dessas diferenças, destacamos que, em conjunto, essas políticas constituem um repertório com o qual podemos pensar, compreender, ordenar e organizar a autoconsciência de diferentes modos, em diferentes momentos, em diferentes situações. Com esse princípio, o importante não é nos empenharmos em desenvolver homogeneizações, mas lançar mão, nos utilizarmos desse repertório de acordo com as questões que se colocam em nosso coletivo. Ou seja, é possível pensar através de medidas e mensurações que nos ajudem a ordenar e distribuir, mas também é possível transformar e reconfigurar a autocosnciência com a qual lidamos, desde que tenhamos a nossa disposição as tecnologias, ou as políticas necessárias para isso.

Com essa proposta, perde o sentido a ideia de uma organização ou regra geral que decida, α priori, qual a relação que esses repertórios vão estabelecer entre si. Cada situação ou cada questão, reencena a negociação necessária para estabelecer que elementos permaneceram no palco e como eles serão distribuídos. Eles podem estar alinhados ou coordenados, mas podem também ser excluídos e confrontados. Não se pode emitir um julgamento de antemão sobre como serão organizados os elementos ou argumento necessário para a solução de um dado problema, ou mesmo onde eles serão encontrados, seja na linguística ou na inteligência artificial, seja na psicologia ou na neurociência. Cada nova relação proposta aumenta o repertório da discussão, amplia os modos de relação possíveis.

É nesse sentido que nos afastamos de propostas de interdisciplinaridade como as de Von Eckardt (2001) que propõe um sistema de atribuição de papéis entre as disciplinas e metodologias de pesquisa, buscando equivaler em relevância as pesquisas que utilizam um ou mais métodos para interrogar a cognição, contando que se entenda por cognição o processamento de informação. Apesar de reconhecer a necessidade de um grau de independência teórica e metodológica, a independência ontológica continua barrada e, no horizonte desse sistema, permanece a necessidade de uma unificação em que os níveis mais baixos explicariam os mais altos por algum mecanismo ainda não descoberto. O sistema de Von Eckardt apoia-se em uma hierarquia pré-definida, onde as ciências biológicas têm um privilégio ontológico sobre as ciências humanas e qualquer coordenação ou alinhamento possível deve partir dessa hierarquia. Embora Von Eckardt (2001) reconheça a diversidade de linguagens para produzir aquilo que acontece em diferentes recortes da cognição, ele destaca a necessidade de gradualmente criarmos metodologias que testem relações mecânicas (de causa-efeito) entre as diferentes disciplinas, sugerindo, portanto, que o nível biológico deve causar explicitamente todas os conceitos mentais, bem como os mentais devem causar os culturais.

A mesma posição é ainda mais evidente na interdisciplinaridade proposta por Bickle (2008)11 . As relações se estabelecem sobre a mesma hierarquia, mas Bickle propõe que as explicações moleculares sobrepõe-se às demais, tornando as ciências humanas, por exemplo, curiosidades com pouco ou nenhum valor de uso. Diferentemente, propomos focar naquilo que cada política produz, a realidade que cada uma delas convoca e os programas de ações que elas sugerem. Ao assim proceder, a hierarquia pré-estabelecida perde valor de uso e as prioridades devem ser estabelecidas a partir dos problemas e respostas que buscamos desenvolver. Isso não impede possíveis alinhamentos, por exemplo, através a tentativa de mapar a atividade neuronal de pessoas cegas em uma oficina de argila; mas torna esse alinhamento, mais um caso ou problema entre outros possíveis de serem interpelados.

No momento em que respostas gerais perderam o sentido, as soluções locais estimulam conexões. Se fomos capazes de eleger e traçar essas políticas é porque elas possuem a capacidade de se difundir, de se propagar, de contaminar outras práticas. Elas constituem manuais, são ensinadas em cursos de graduação e pós-graduação, discutidas em simpósios, seminário e congressos. Elas são divulgadas em diferentes produções científicas, se estendem por uma rede global sem necessariamente serem universais.

As performances e soluções que diferentes políticas sugerem possuem uma escala que não pode ser definida de antemão, mas que pode ser acompanhada na medida que conexões são estabelecidas ou elementos são excluídos. Assim, se a oficina proposta por Kastrup (2008) aparece como uma solução situada em um instituto do Rio de Janeiro, ela pode ser realizada com a argila vinda do Espírito Santo, com ferramentas vinda de casa, técnicas de entrevista trazidas da França. De forma análoga, ao aproximar psicologia e neurociência é preciso acompanhar qual a rede que se desenha para acomodar os objetos que essas ciências trazem à discussão. Existe a possibilidade de estabelecer conexões sem formar um todo homogêneo.

Se as diversas políticas podem compor um repertório para a criação e solução de problemas de relação entre psicologia cognitiva e neurociências cognitivas, consideramos que um repertório amplo permite relações mais complexas, permite variações maiores na composição de problematizações e soluções.

 

Notas

1 Para um resumo, em inglês, das discussões contemporâneas envolvendo a representação nos STS ver Hoeppe, 2015. Para um discussão em português sobre o problema da representação em diversas teorias ver Baum et al. (2017).

2 Neuroimagens e testes psicológicos representam as posições hegemônicas nas respectivas ciências. No entanto, uma investigação criteriosa revela em cada uma dessas ciências uma miríade de práticas que não se sobrepõem completamente. A pesquisa-intervenção desenvolvida sobretudo na psicologia social no Brasil desempenha nesse artigo um dessas posições. Com isso, as políticas aqui formuladas, não representam exaustivamente o modo de operação nem da psicologia, nem das neurociências, servindo apenas como pontos iniciais de reflexão sobre outras formas de relação.

3 A distinção contínuo-discreto, bem como a possibilidade de atribuir numeração à qualidades ou características psicológicas é uma das grandes fontes de controvérsia nos estudos contemporâneos da psicologia. Nessa seção, seguimos os atores que permitem essa enumeração. Para uma posição contrária ver, Maul, 2013.

4 Para um breve histórico do desenvolvimento da Escala Likert veja Young, 2014.

5 Sobre o conceito de tradução ver Latour (2005)

6 Os sinais desse experimento eram mover os olhos, para esquerda, direita, esquerda, direito; esperar dez segundos; repetir o movimento ocular e então apertar as mãos em punho por quanto tempo for possível (Dresden et al., 2012).

7 A despeito de diversas tentativas, não é possível distinguir apenas através de fMRI, ou outra tecnologia de imageamento cerebral, a diferença entre um sono REM com e sem sonho (Langlitz, 2015).

8 Voxel é um neologismo que combina as palavras volume e pixel. Ele se refere a unidades tridimensionais que compõe imagens digitais. De acordo com Rose (2013) em estudos neurocientíficos um voxel possui entre 9 e 16mm quadrados e por volta de 7mm de espessura; o que seria suficiente para conter, em média, 5,5 milhões de neurônios.

9 Vínculos bem sucedidos são a condição para o estabelecimento de qualquer pesquisa (Latour,2001; cap. 2). Todas as políticas produzem os sujeitos aos quais se referem, o que diferencia essa terceira política das anteriores é eleger essa construção como objeto e objetivo.

10 A restrição a humanos é feita aqui apenas em referência ao coletivo alvo da análise. Sugerindo, portanto, que apesar da argila e das ferramentas serem indispensáveis pelo processo de circulação desses seres invisíveis, eles parecem apenas trafegar entre os humanos.

11 Ver Baum (2017) cap. 4.

 

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Enviado em: 09/09/18
Aceito em: 28/12/19

 

 

Cleci Maraschin é professora colaboradora na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, credenciada nos Programas de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional e Informática na Educação.
E-mail: cleci.maraschin@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-0117-6062
Carlos Baum foi professor adjunto da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, ligado ao Programa de Pós-Graducação em Psicologia Social e Institucional.

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