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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.3 Porto Alegre Sep./Dec. 2019

 

ARTIGOS

 

Casa-grande, discurso do mestre e senzala: interpretação e colonialidade

 

The master's house, the master's discourse and the barracoon: interpretation and coloniality

 

Casa-grande, discurso del maestro y senzala: interpretación y colonialidad

 

 

Fernando Basso; Amadeu de Oliveira Weinmann

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo analisa a interpretação de Charles Melman sobre a colonização brasileira, apresentando sua leitura psicanalítica da clássica obra de Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala, a partir do conceito lacaniano discurso do mestre. Nesse percurso teórico, introduzimos os principais elementos conceituais que sustentaram a interpretação de Melman sobre a cultura brasileira: verticalização discursiva, sexualidade colonial fundada no sadomasoquismo e proposição de uma psicopatologia da colonização. Posteriormente, discutimos o contraponto realizado por alguns psicanalistas, no que concerne a essa intepretação do Brasil, e contextualizamos as controvérsias entre psicanálise e colonialidade, apontando a declinologia francesa (hipótese do declínio da função paterna) como uma reedição do eurocentrismo colonial. Por fim, relançamos a pergunta que orienta a escrita deste trabalho: pode uma interpretação psicanalítica consistir em um ato de colonialidade?

Palavras-chave: psicanálise; interpretação; colonialidade; cultura brasileira.


ABSTRACT

This paper shows an analysis of Charles Melman's interpretation about Brazilian colonization, presenting his psychoanalytical reading of Gilberto Freyre's book The masters and the slaves, using as lead the Lacanian concept of the master's discourse. During this theoretical path, we introduce the main conceptual elements that sustain Melman's interpretation about Brazilian culture: the verticalization of discourse, colonial sexuality founded on sadomasochism and the proposition of a psychopathology of colonization. Later on, we discuss the counterpoint made by some psychoanalysts, concerning such interpretation about Brazil, as well as we contextualize the controversies between psychoanalysis and coloniality, pointing to the French declinology (the paternal function decline hypothesis) as a new version of colonial eurocentrism. Finally, we ask again the question that guides the writing of this paper: can a psychoanalytical interpretation be a coloniality act?

Keywords: psychoanalysis; interpretation; coloniality; Brazilian culture.


RESUMEN

Este artículo analiza la interpretación de Charles Melman sobre la colonización brasileña, presentando su lectura psicoanalítica de la clásica obra de Gilberto Freyre, Los maestros y los esclavos, a partir del concepto lacaniano discurso del maestro. En este recorrido teórico, introducimos los principales elementos conceptuales que sostuvieron la interpretación de Melman sobre la cultura brasileña: verticalización discursiva, sexualidad colonial fundada en el sadomasoquismo y proposición de una psicopatología de la colonización. En seguida, discutimos el contrapunto realizado por algunos psicoanalistas, en lo que concierne a esa interpretación del Brasil, y contextualizamos las controversias entre psicoanálisis y colonialidad, apuntando a la declinología francesa (hipótesis del declive de la función paterna) como una reedición del eurocentrismo colonial. Por último, relanzamos la pregunta que orienta la escritura de este trabajo: ¿puede una interpretación psicoanalítica consistir en un acto de colonialidad?

Palabras clave: psicoanálisis; interpretación; colonialidad; cultura brasileña.


 

 

Introdução

Em julho de 1989, a Maison de l'Amérique Latine, lugar representativo de diálogos artísticos e debates intelectuais entre distintas comunidades em Paris, sedia o encontro da Associação Freudiana Internacional (AFI) intitulado Um inconsciente pós-colonial, se é que ele existe. O colóquio franco-latinoamericano 134 propunha-se a provocar questionamentos sobre os efeitos da colonização e estimular o intercâmbio entre países com a seguinte pergunta: "[...] existiria uma filosofia latino-americana que viria em retorno fecundar a filosofia europeia?" (Husson, 2000, p. 9). Neste encontro, o psicanalista francês Charles Melman realizou a conferência final, intitulada Casa-grande e senzala, na qual abordava os impactos da colonização na cultura brasileira.

A interpretação de Charles Melman foi um importante disparador do ciclo de estudos sobre a colonização do continente latino-americano, dando o tom dos debates - como se pode observar no livro oriundo desses encontros (Association Freudienne Internationale e Maison de l'Amerique Latine, 2000). O texto teve efeitos significativos no cenário psicanalítico nacional - sejam estes de concordância com o psicanalista lacaniano ou em direção oposta. O presente estudo pretende, primeiramente, apresentar os fundamentos que sustentam a teorização de Melman (1989/2000, 1990/2000) sobre a colonização e a violência na cultura brasileira. A partir disso, o texto se debruça sobre as críticas e ponderações teóricas que a comunidade psicanalítica do país elaborou a propósito da interpretação apresentada por Melman sobre o processo de colonização nacional.

Nesse sentido, importa diferenciar colonialismo e colonialidade. O colonialismo utilizaria a força militar para subjugar uma população e explorar suas riquezas. Já a colonialidade seria compreendida como a dimensão simbólica desse processo, isto é, ela perpetua os discursos sustentados pelos colonizadores para manter a exploração dos povos colonizados (Tonial, Maheirie e Garcia Jr, 2017). Eduardo Restrepo e Axel Rojas (2012) a definem como um fenômeno histórico complexo, que opera pela naturalização das hierarquias de saberes. Tal naturalização subalterniza os conhecimentos, experiências e formas de vida do grupo dominado. Nessa perspectiva, perguntamos: uma interpretação psicanalítica pode consistir em um ato de colonialidade?

 

Discurso do mestre colonial

A partir da experiência clínica com colegas e pacientes brasileiros em distintas formas do tripé analítico (análise, supervisão e estudo), Melman propõe uma escritura singular da cultura brasileira, das consequências culturais da colonização europeia no país e, principalmente, de seu caráter traumático para a estruturação social. Para esse fim, o psicanalista francês toma como interlocutor o sociólogo brasileiro Gilberto Freyre - mais especificamente, Casa-grande e senzala, sua obra mais conhecida, instauradora de discursividade no debate sobre a identidade nacional.

A valorização da miscigenação racial e cultural foi, sem sombra de dúvida, uma das mais importantes contribuições teóricas oferecidas por Freyre (1933/2006). O sociólogo brasileiro assume posicionamento contrário à higienização racial - proposta sustentada por autores como o médico Raimundo Nina Rodrigues (1899/2008), que postulava a miscigenação racial como "um produto desequilibrado e de frágil resistência física e moral" (p. 1161), encontrando no mestiço o representante de patologias como a indolência e a tendência à criminalidade. Gilberto Freyre, ao enfatizar as relações da casa-grande com a senzala, constrói outra vertente interpretativa, pressupondo a mestiçagem como fator favorável da cultura brasileira, o que criaria uma sociedade superior às suas matrizes originais, de índios, brancos e negros (as três raças fundadoras), uma vez que estas se complementariam.

Em sua argumentação, Freyre constrói uma visão do mundo colonial brasileiro que permite desvelar um aterrorizante estupro amoroso, que, nas palavras de Wisnik (2008), "investe-se de um poder catártico e redentor: um trauma ou um carma histórico do qual terá derivado, paradoxalmente, uma humanidade aberta às diferenças" (p. 416, grifo do autor). Portanto, a marca de transmissão de Freyre é uma leitura da cultura brasileira calçada, em sua formação identificatória, em distintos antagonismos - dominação de classe, crueldade sexual e violência social -, sendo a mais determinante e importante a polarização entre o senhor e o escravo.

A partir do panorama traçado por Gilberto Freyre, Charles Melman introduz sua própria leitura dos traços constituintes da sociedade brasileira tomando por base o discurso do mestre. No entanto, é importante ressaltar que Casa-grande e senzala foi traduzido para o francês por Roger Bastide, em 1952, com o sugestivo título Maîtres et esclaves (Amaral, 2017). A evidente inspiração dessa tradução na dialética hegeliana do senhor e do escravo -aliás, presente também na tradução para o inglês e o espanhol - não nos parece indiferente, na leitura que Melman realiza desse clássico da sociologia brasileira.

No discurso do mestre, Jacques Lacan (1969-1970/2008) retoma a dialética do senhor e do escravo, tal como elaborada por Hegel - uma parábola envolvendo uma batalha letal entre duas consciências-de-si de onde uma, vitoriosa, emerge como senhor de outra, derrotada, que escolhe a escravidão à morte, parábola essa utilizada pelo filósofo alemão para desenvolver o tema da interdependência do reconhecimento do sujeito em relação ao Outro.

Na dialética hegeliana do senhor e do escravo, o senhor depende do escravo na medida em que só pode ser reconhecido como tal por este. O escravo, em seu lugar, detém um saber sobre os objetos com os quais trabalha; saber que o senhor não possui, mas do qual depende: o senhor usufrui dos objetos, mas não tem conhecimento de como produzi-los. Portanto, é pelo trabalho que o escravo não só produz um saber sobre a produção, mas, especialmente, sobre a natureza da dominação.

Lacan estabelece o discurso do mestre como modelo fundante da inscrição do sujeito na linguagem, descrito pela intervenção de um significante-mestre (S1) na cadeia de significantes (S2); os demais matemas discursivos, como o discurso da histérica, do universitário e do analista, são derivados de giros entre os elementos do discurso do mestre, enquanto o discurso do capitalista produz-se a partir de uma torção deste. No matema do discurso do mestre, o lugar do agente é ocupado por S1, o significante-mestre, que age como um "significante imperativo que desconhece a verdade de sua determinação, o impossível de sua unidade, sua divisão" (Rabinovich, 2005, p. 216). S2, o saber, ocupa o lugar do outro - trata-se do "escravo", que detém o saber sobre o desejo do mestre e, no entanto, encontra-se aprisionado numa relação de mais-de-gozar. No ensino lacaniano, assim é apresentado o matema do discurso do mestre:

É preciso ressaltar, ainda, que os esquemas quadrípodes de Lacan são apresentados como discursos sem palavras, ou seja, funções dispostas sobre uma estrutura comum que pode ser traduzida pelos seguintes termos:

O discurso do mestre é o avesso do discurso do analista, que opera pela transferência e cujo pivô é o sujeito suposto saber. De acordo com Marco Coutinho Jorge (2002, p. 30), "a sugestão impede a transferência do saber inconsciente". Ao bloquear a produção de saber, o discurso do mestre possui uma função alienadora do significante, a qual o sujeito está assujeitado. O mestre, em seu lugar discursivo, não se preocupa com o saber, desde que o seu poder seja mantido. Essa afirmação contribui para Melman (1989/2000) postular uma escritura vertical de dominação do discurso do mestre no sistema colonial, na qual, em nome dos "[...] supostos representantes do Simbólico, exerce-se uma ação violenta para assegurar a captura, o laço com o Real, ou seja, para permitir o gozo" (p. 17).

Segundo o psicanalista francês, a situação colonial impõe uma verticalização no discurso do mestre, abrindo distância entre S1 e S2, em "um corte absolutamente estranho" (p. 18), que inviabilizaria o giro do discurso, seu movimento linguareiro de transformar sentidos, pela dimensão simbólica da palavra. Essa concepção, que toma como base a violência da relação colonial, aproximar-se-ia, portanto, do pensamento de Freyre (1933/2006), segundo o qual os efeitos do regime colonial influenciaram na formação cultural brasileira, demarcada por relações de poder autoritárias e pela dominação brutal do escravagismo. A partir disso, Melman sugere uma modificação na escritura do laço social colonial, convertendo a barra horizontal em um corte vertical, da seguinte forma:

Em razão da verticalização do discurso do mestre, a colonização agiria no sentido da restrição de possibilidades de ingresso como sujeito na cultura, devido à opressão do sistema patriarcal, determinando ao povo colonizado uma condição mais próxima ao traumático do Real, em que a violência e a dominação cultural não cessam de não se inscrever, numa cadeia de repetição, masoquismo e gozo. Com efeito, quando a inscrição "[...] simbólica é feita por meio da violência, no mesmo movimento [...] entra no registro do traumatismo e não tem mais a ver com o que chamamos de castração simbólica" (Melman, 1989/2000, p. 17).

Ao contrário de uma inscrição na ordem simbólica, por meio da liberdade, do trabalho e da lei como reguladora da horizontalidade nas relações sociais, a ordem colonial vem desconstituir a "[...] propriedade do Simbólico, que é justamente de fazer laço natural com o Real, uma vez que ela desnuda o Simbólico daquilo que é o seu caráter de domínio real, não mais simbólico" (p. 17). Essa disjunção entre o Real e o Simbólico provocaria a mudança na escritura do discurso do mestre, cuja barra vertical iria separar, de um lado, o significante mestre (S1) e o sujeito ($) e, do outro, o saber (S2) e o objeto α.

 

Sexualidade colonial

Casa-grande e senzala é interpretado por Melman como uma narrativa constituída por traços imaginários nessa escritura do fantasma brasileiro, em cuja estrutura discursiva há a predominância da verticalização do poder e a presença do duplo mestre-escravo reconhecido como opostos complementares em uma relação sadomasoquista. Nesta fantasia perversa, o par colonial eliminaria a alteridade, ou seja, o reconhecimento da diferença. Freyre também propõe que a estabilidade cultural do período colonial teria na família patriarcal uma série de espaços ritualísticos de confraternização com os sujeitos da senzala. Isso permitiria que os choques e conflitos criados por tais contrastes fossem amenizados e os antagonismos, equilibrados. A brasilidade se faria reconhecida, consequentemente, como uma cultura original devido à sua mestiçagem, ela "ganha propriedade de um remédio" (Wisnik, 2008, p. 409) e, portanto, a sexualidade é referida como ponto central da origem e sustentação do país: "as uniões mistas tornaram-se a regra" (Freyre, 1933/2006, p. 104). O colonizador português teria conseguido ocupar a terra brasileira por meio de uma prole mestiça, obtendo êxito em seu empreendimento colonial.

A atividade sexual entre senhores patriarcais e escravas, homens brancos e mulheres negras ou índias, é apontada por Freyre como uma dimensão muito poderosa e reconciliadora dos conflitos sociais, pois, nessa lógica interpretativa, o espaço público moldar-se-ia por modelos emprestados da dimensão privada. Ricardo Araújo (1994) assinala que a obra de Freyre se caracteriza por um ethos de hybris - do excesso desmedido, no qual a aristocracia brasileira, ao contrário de se distanciar das classes mais baixas, criou aproximação e mobilidade por meio das relações sexuais.

Na escritura colonial, o outro não é reconhecido em sua alteridade: ele só tem valor social como garantia de gozo e esse gozo "só vale na condição de tratá-lo como puro dejeto" (Melman, 1989/2000, p. 19). Ao contrário da cultura grega da Antiguidade, na qual o sistema escravista liberava o senhor para as atividades da vida pública e o exercício da cidadania, Araújo (1994) salienta que, no modelo brasileiro de casa-grande e senzala, o senhor se volta à endogamia - ele utiliza a escravidão para investir na esfera mais privada do laço social: lucros rápidos e fáceis nos negócios e satisfação ilimitada em sua vida sexual.

O laço cultural do Brasil, de acordo com Melman (1989/2000), teria a consequência dessa proporção sexual pela via da relação sadomasoquista. Segundo Jessé Souza (2000), o componente sadomasoquista seria constitutivo das relações sociais no país, principalmente por causa das inclinações pessoais do patriarca (ou de seus representantes). Eles decidiam, em última instância, sobre a amplitude do sistema familiar e como e a quem seriam destinados os seus privilégios e proteção.

Porém, cabe destacar que este componente de proximidade social entre desiguais, que Freyre enfatiza ao lado da violência e da segregação social, é um elemento instável, particularista e imprevisível: "qualquer efeito duradouro desse elemento integrativo exige a consideração de outras variáveis sociais inexistentes no sistema casa-grande e senzala" (p. 86).

 

Psicopatologia da colonização

Com a verticalização do discurso do mestre, haveria, no sistema colonial, somente um destino: o discurso não poderia movimentar-se aos outros discursos propostos por Lacan. Segundo Melman (1989/2000), o Outro não seria reconhecido como a ordem simbólica, mas como um Outro tirânico, "[...] sempre ameaçador, habitado por forças obscuras que o mestre não conseguiu civilizar. Corro sempre o risco de ser absorvido por ele, de ser engolido na sua goela" (p. 19). Da mesma forma, a falta constitutiva que organiza a articulação entre Real, Simbólico e Imaginário se encontraria decisivamente prejudicada: o objeto faltoso é impossível de ser simbolizado, pois ele não é sentido como "se tivesse sido perdido, mas como se ele tivesse sido roubado" (p. 18).

Para o psicanalista francês, a dominação colonial agiria na cultura brasileira mediante uma relação perversa com o laço social, estabelecendo um ideal fetichista pela "presentificação do objeto a" (p. 18). Assim, o despotismo patriarcal brasileiro seria uma estruturação social com "propensão generalizadamente sádica" (Wisnik, 2008, p. 413). O sujeito colonial agiria como se não soubesse da inadequação radical entre o desejo e a efetividade objetal, criando, por meio do fascínio e da idealização, traços fetichistas que comportariam a busca do "ídolo da ausência" (Lacan, 1956-1957/1998, p. 157), no anseio pelo lugar de exceção, gozador e não submetido à lei simbólica.

O fetiche, em sua enunciação perversa, implica um modo peculiar de subjetivação que, mesmo com o reconhecimento de um saber da verdade, não impede que o sujeito goze como se não o conhecesse. Na sociedade brasileira, é conhecida a afirmação: "todos são iguais perante a lei, mas a lei não é igual diante de todos", transposta numa expressão popular, que enuncia o pensamento oligárquico das elites brasileiras: "aos amigos, tudo; aos indiferentes, nada; aos inimigos, a lei". Nessa perspectiva, ocorreria uma feminização do mestre colonial, pois ela é inevitável para aquele "que escapa à castração" (Melman, 1989/2000, p. 18). Tal sujeito gozaria pela simulação de sua não castração.

O senhor da casa-grande basearia seu poder na posição fálica imaginária, na suposição de "ter o falo", pois esta liderança teria origem na ilusão fetichista de que o traço de exceção está positivado em sua própria imagem. Assim, seu poder enfeitiça (como o fetiche), por meio dessa máscara ilusória que nunca poderá ser questionada. O fascínio fetichista com o ídolo transforma a autoridade em autoritarismo, numa tendência a confundir "[...] o objeto do seu gozo com o objeto a" (Melman, 1989/2000, p. 18). Nesse sentido, a estabilidade social não pode ser adquirida pela comunhão simbólica da lei em uma afetividade fraterna. Segundo Freyre (1933/2006), entre a casa-grande e a senzala existiria uma afetividade perversa que produziria dominadores sádicos e dominados masoquistas, sendo este modelo de regulação perversa que garantiria o equilíbrio das relações sociais no Brasil. A ausência de "[...] solidariedade entre S1 e S2 solicita uma ação, não mais simpática, e sim violenta, para mantê-los" (Melman, 1989/2000, p. 18).

Na conferência O complexo de Colombo, Melman (1990/2000) escreve que o discurso do mestre colonial aprisionaria para sempre os povos colonizados à exposição do conflito dual entre o senhor e o escravo em sua dimensão social, diminuindo suas possibilidades de giro simbólico. Nesta ocasião, questionado sobre como os discursos poderiam se movimentar no laço social, o psicanalista francês é enfático em sua posição: "infelizmente, se essa escrita é exata, ela não permite circular" (p. 33).

Apesar do diagnóstico de perversão do laço social brasileiro, Melman postula a presença de uma posição subjetiva muito singular, nomeada por ele como histeria pseudoparanoica. O lugar da ordem simbólica, em vez de possibilitar o jogo simbólico, que é "mobilizável, que circula, que é um elemento de mediação" (Lacan, 1956-1957/1998, p. 272), se fixa numa relação em que o Outro procuraria agir como um mestre absoluto e, em consequência, produziria uma histeria desafiante e rebelde para qualquer figura de autoridade.

Nesta estrutura histérica, o discurso que possibilitaria o advento da lei e da inscrição simbólica "ameaça tudo que é da ordem da alteridade" (Melman, 1989/2000, p. 19). Ele produziria uma posição histérica marcada por traços como "desconfiança, suscetibilidade, orgulho, inveja, rigidez, além de uma recusa de participar do comércio social" (Melman, 1987, p. 33). Tendo sua realidade discursiva neste Outro tirânico, a histeria seria uma contrapartida nomeada por Melman (1989/2000) não como psicótica, mas uma estrutura que "se confunde com o significante mestre" (p. 18) e, por isso, pseudoparanoica, uma vez que levaria o sujeito a tomar-se como referência nas tramas de seu entorno social, indicando uma hipertrofia no campo do imaginário.

A posição de Melman é explicitamente questionada por psicanalistas como Alfredo Jerusalinsky (1999a, 1999b) e Miriam Chnaiderman (2000, 2005). Em sintonia com a tendência a psicopatologizar a colonização, Jerusalinsky (1999a) questiona se, ao registrar a perda como furto, o escravo não estaria justamente nessa posição da paranoia. Mas a posição paranoica não seria exclusiva do escravo: segundo Jerusalinsky, no discurso do mestre colonial persistiria a ilusão megalômana de que finalmente ele encontrou uma pátria sem regras sociais ou tradições nativas, pois ele próprio teve a coragem de navegar até um continente desconhecido e se expor aos riscos e desafios do trajeto.

O mestre, em seu delírio de autossuficiência, se consideraria o fundador de si mesmo, desbravador e inquieto, reconhecendo a terra invadida como um "espaço sem borda e sem medida" (p. 220), disponível para seu usufruto e dominação econômica. O psicanalista argentino enfatiza que a estrutura colonial está mais próxima da psicose, em que o objeto é forcluído, principalmente devido ao apagamento da função simbólica, realçando a disjunção traumática ocorrida entre o Real e o Simbólico. Essa forclusão do discurso nacional operaria principalmente nos registros passados da cultura nativa, em um processo de eliminação da historicidade dos eventos traumáticos sofridos pelos nativos e também de banalização da violência nos fenômenos cotidianos.

Entretanto, para Jerusalinsky (1999a) é justamente a forclusão - utilizada, teoricamente, para entender o processo transgeracional ocorrido nos povos colonizados - que permitiria às próximas gerações (a partir da terceira) construir um novo lugar simbólico no laço social. Haveria, entre os descendentes do povo colonizado, a inscrição delirante de um novo registro de memória que, na efetividade, não teria ocorrido: seus filhos e netos passariam a reconhecer (a partir de um delírio coletivo) as dificuldades e traumas sofridos pelos índios e escravos, como se fossem construções do imaginário nacional, tornando as mesmas partes integrantes de suas vidas como povo latino.

O que fora esquecido das tradições nativas, devido à violência colonial sofrida, nas próximas gerações retornaria como real; o delírio viria a preencher a lacuna de memória, por meio da alucinação de um "pai real onde falta o simbólico" (Jerusalinsky, 1999a, p. 224). Dessa forma, os costumes antigos da cultura local, que foram apagados pela colonização, seriam retomados pelos descendentes como hábitos cotidianos: "estaríamos diante da produção de novas formas de saber" (Jerusalinsky, 1999b, p. 45). Logo, mesmo não possuindo, historicamente, um significante primordial nacional, o povo colonizado produziria, a posteriori, discursos nacionais mistos entre a experiência local vivida no novo país e as lembranças escutadas na passagem das gerações. A origem do país "que, historicamente, é múltipla, simbolicamente, de novo, passa a ser única" (Jerusalinsky, 1999a, p. 224), por causa deste hibridismo de tradições que, no presente, seriam lembradas como genuínas do povo, mesmo que não tivessem sido escritas anteriormente pela cultura local.

Após fazer ela própria um diagnóstico de melancolia sobre o país -"melancólica a psicanálise ou melancólico nosso destino?" (Chnaiderman, 2000, p. 46) -, Chnaiderman (2005) reconhece que a psicopatologização da cultura não trouxe efeitos de instaurar novas reflexões sobre o laço social brasileiro. Pelo contrário, essas construções psicanalíticas altamente trágicas, devido à impossibilidade de transformação enunciativa do colonizado, evidenciariam o conservadorismo da própria teoria psicanalítica.

Nesse sentido, é preciso prudência ao utilizar as estruturas clínicas que foram formuladas pela transmissão lacaniana, em uma análise do cenário coletivo do país. Corre-se o risco, de acordo com Chnaiderman (2005), da simples transposição clínica sem um contexto social pertinente, provocando o enfraquecimento do ato interpretativo na "inutilidade existente na busca para enquadrar o Brasil em alguma estrutura, como se isso permitisse prever algum futuro, ter uma ilusão de compreensão racional da violência" (p. 79).

 

Contrapontos

A partir da interpretação de Melman, que sinaliza uma desunião entre o Real e o Simbólico no laço social brasileiro e uma constrição à circulação das posições discursivas em decorrência da verticalização do discurso do mestre, surgem reverberações e réplicas. No evento da AFI, o inconsciente pós-colonial pautase pela indeterminação ("se é que ele existe"), argumento aparentemente utilizado para não fechar ideias ou encerrar o debate. Pode-se indagar se essa ausência de determinação não sinalizaria certa ambiguidade da posição discursiva europeia, ao propor interpretações sobre a cultura da América Latina.

Para Emanuel Tadei, as interpretações produzidas no encontro científico da Associação Freudiana Internacional (AFI) resultaram no meio psicanalítico na defesa da existência de um inconsciente dos povos latino-americanos que explicasse os conflitos subjetivos e sintomas sociais. Esse inconsciente pós-colonial da cultura brasileira é, para Tadei (2002, p. 11), "uma psicologização da questão". Em vez de abrir possibilidades enunciativas sobre o país, essas interpretações construiriam explicações para os entraves brasileiros e internalizariam o sentimento de inferioridade por causa do subdesenvolvimento econômico, passando este a ser explicado por fatores psicológicos. Da mesma maneira que a teoria da dependência econômica foi criada no final da década de 60 e início da de 70 do século XX, por Fernando Henrique Cardoso e seus colaboradores da sociologia, a hipótese de um inconsciente pós-colonial explicaria as causas das misérias brasileiras e de seus insolúveis dilemas sociais. Sem possibilidade de mudar os sintomas sociais apresentados, os brasileiros ficariam confinados na posição de vítimas de sua cena originária.

Segundo Mériti de Souza (2002), tais enunciados criam na memória social uma cena de fundação marcada por uma mãe dadivosa e um pai usurpador, deixando os filhos nacionais com falhas na constituição de um ideal de eu, inspirado pela posição simbólica da autoridade paterna. Tais interpretações apagam muitos personagens históricos que fizeram resistência à colonialidade, como, por exemplo, Zumbi dos Palmares e Antônio Conselheiro. Elas acabam por perpetuar a imagem nacional de um "povo sem lei", ao não evidenciar movimentos sociais e culturais que fizeram oposição ao regime autoritário dos colonizadores e buscaram construir uma sociedade com condições mais igualitárias.

Seria a ordem simbólica uma construção europeia? De acordo com Jerusalinsky (1999b), é a cultura do antigo continente europeu, não a brasileira, que tende a se estruturar ao redor de um pai soberano e único, ordenando seus discursos numa suposição universal de saber (sendo o Papa o melhor exemplo dessa prática). Por esse motivo, existiria uma dificuldade de compreensão dos europeus que, embora tenham uma formação psicanalítica, na qual a alteridade é condição fundamental, apresentariam a ideia fixa etnocêntrica de uma "posição discursiva ordenada pela suposição de um pai único" (Jerusalinsky, 1999a, p. 224).

"Pai há um, ou há um pai?", questiona Jerusalinsky (1999a, p. 228). Uma visão é determinar para o cenário mundial que "pai há um", ou seja, apenas um discurso paterno deve ser considerado, eliminando as diferenças de cada cultura. Uma diferente enunciação seria argumentar que "há um pai", existindo uma narrativa singular de cada nação, "uma versão dele, para cada continente de linguagem na sua posição de inconsciente" (p. 230).

Existiria - ou, melhor, resistiria - a repetição do pensamento etnocêntrico colonial, na própria transmissão psicanalítica do velho continente, encarnada na "recusa desse amo europeu de se perceber, ele mesmo, como causador dessa ruína" (Jerusalinsky, 1999a, p. 224), expressando uma compulsão em desvalorizar, ou até mesmo em degradar, diferentes interpretações que não correspondem às "versões já prontas do outro lado do oceano" (p. 224). De acordo com o psicanalista argentino, a cultura brasileira seria marcada pela invenção de diferentes formas de operar na ordem simbólica: "somos politeístas. Graças a Deus. Umbanda, pai-de-santo, mãe meninha, jogadores de búzios, orixás... É por isso que ainda conseguimos rir da piada universal do pai único" (p. 231).

De acordo com Jô Gondar (2012), muitos psicanalistas, sobretudo da tradição francesa, não reconhecem novas possibilidades de agrupamento social mais horizontais e são adeptos do que Alain Eherenberg nomeia declinologia. Para esses autores, a contemporaneidade seria marcada pelo declínio da função paterna e a emergência de coletivos pautados pela horizontalidade testemunharia essa catástrofe. Nesse sentido, a posição declinológica - da qual Charles Melman é um dos expoentes - é conservadora, normativa e nostálgica, consistindo, para Eherenberg (citado em Gondar, 2012, p. 205), "num ritual de celebração do passado e de exorcismo do presente".

Na perspectiva da psicanálise francesa, como escreve Christian Dunker (2015), o sofrimento brasileiro teria origem na falta de inscrições simbólicas no laço social, decorrente de nossa colonização. No cerne dessas interpretações estaria a posição do pai reconhecida numa "confiança na universalidade da forma totemista de articulação entre poder e autoridade" (p. 75). O mito freudiano, elaborado em Totem e tabu, apontaria para a constituição fantasmática do sujeito europeu, mas, na leitura de Dunker, levaria a análise da subjetividade brasileira a um impasse. O perspectivismo animista pesquisado pelo antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, a partir de uma tribo de awaretés, localizada no alto Xingu (MT), seria um exemplo de como o reconhecimento e a nomeação podem ser marcados por um modo de indeterminação e acaso, "por meio dos encontros imprevisíveis na mata e não pela troca regrada entre 'nós' e 'eles', de mulheres e palavras" (p. 316), se distanciando da perspectiva totemista hegemônica na psicanálise. Em contraposição à declinologia francesa, Dunker sustenta: o "déficit paterno é na verdade um déficit do totemismo como esquema explicativo" (p. 404).

 

Intepretação psicanalítica e colonialidade: controvérsias

A intepretação de Melman transpõe, de modo rígido, o discurso do mestre (proposto por Lacan) e seus lugares de senhor e escravo, sem contextualizar os limites epistemológicos e críticas sociológicas que Casa-grande e senzala recebeu, principalmente sobre o mito da democracia racial. As origens da cultura brasileira se inscreveriam, para Melman, pela permanente alienação colonial, isto é, pela predominância do tom traumático sem possibilidade de construção de novos sentidos históricos.

É por meio de uma argumentação declinológica, que a interpretação de Melman sobre a colonização brasileira indica a colonialidade de um saber europeu. De acordo com Mariana Pombo (2018), esta declinologia, presente na teorização de Melman, preconiza a a-historicidade dos conceitos psicanalíticos, principalmente no uso das formulações do registro simbólico. Tais construções teóricas colocam barreiras ao reconhecimento da alteridade de distintas de formação simbólica e à criação de alternativas para lidar com o que surge de novo, seja no campo da clínica ou da cultura contemporânea.

Mediante a verticalização do discurso lacaniano do mestre, o psicanalista francês reafirma o exotismo do povo brasileiro (preso à posição de colonizado) e a invisibilidade da diversidade de elementos simbólicos da cultura brasileira (principalmente dos acontecimentos históricos de resistência à colonialidade europeia). Este fechamento simbólico é oriundo do posicionamento de Melman (2003) de que o exercício da função paterna (seu reconhecimento social) depende, necessariamente, do modelo patriarcal de sociedade:

O lugar do pai só pode depender do patriarcado. Senão, o pai é o bom homem que hoje conhecemos, um cara pobre, até mesmo um cômico. De onde ele pode tirar sua autoridade numa família se não for do valor concedido ao patriarcado? Um pai não pode se autorizar por ele mesmo, só pode se autorizar pelo patriarcado (p. 122).

A indagação que move esta escrita agora é retomada: uma interpretação psicanalítica pode consistir em um ato de colonialidade? Neste trabalho, a resposta é afirmativa. Na história do movimento psicanalítico, a interpretação de Melman não é um caso isolado de colonialidade presente na teoria do inconsciente. Ela atualiza controvérsias ocorridas nos anos 1950, na França, com a publicação da Psicologia da colonização, de Octave Mannoni - onde o autor apontava um complexo de dependência nos povos colonizados (Roudinesco & Plon, 1998). Em resposta a essa tese, a obra Pele negra, máscaras brancas, do psiquiatra Frantz Fanon, publicada em 1952, indica um complexo de superioridade e racista no povo europeu.

Mannoni conceitualizou uma distinção entre a personalidade do povo de Madagascar e a personalidade colonial europeia; a africana sofreria de um complexo de dependência a um sistema religioso conservador e hierárquico, no qual o culto dos antepassados formaria uma espécie de instância moral superior, um supereu rígido que determinaria os hábitos e costumes dos vivos. A europeia, ao contrário, se estruturaria por seu individualismo e emancipação aos hábitos, superstições religiosas e tradições conservadoras (Roudinesco & Plon, 1998).

Em Pele negra, máscaras brancas, Fanon (1952/2008) faz referência ao estudo de Mannoni, porém o acusa de psicologizar a situação colonial e amenizar os conflitos raciais, que estão inseridos em dimensões históricas e especificidades culturais muito mais amplas do que o jogo de mecanismos de defesa projetivos. Essa psicologização da questão racial levaria a obra do psicanalista francês, segundo Fanon, a manter novamente o colonizado na dependência do colonizador. Para ele, o europeu possuiria um "complexo de autoridade", tendo uma imagem narcísica de superioridade frente aos demais povos. Somente a partir dessa demanda teria sido criado o conceito de "negro", por oposição ao "branco". Fanon é enfático ao afirmar: "precisamos ter a coragem de dizer: é o racista que cria o inferiorizado" (p. 90).

Ao interpretar a cultura brasileira, Melman também faz uma psicopatologização da questão - déficit simbólico, perversão no laço social e histeria pseudo-paranóica - e se aproxima da interpretação de Mannoni acerca da cultura de Madagascar, ao atribuir um supereu rígido e um complexo de dependência aos malgaxes. Países distintos, mas se repete a presença da colonialidade europeia na teoria psicanalítica com a aplicação de conceitos psicanalíticos a culturas não europeias, sem considerar as singularidades de seu objeto de estudo.

Um indício de colonialidade no pensamento do psicanalista francês é a posição do escravo em sua interpretação psicanalítica; ele é, somente, objeto de gozo do senhor.

O psicanalista brasileiro M.D. Magno (1980/2008), ao interpretar a cultura nacional, já apontava outra posição para o escravo: "estou dizendo que talvez a sintomática cultural brasileira se decante em húmus africano. Por mais que encontre mil ingredientes, estou perguntando se é válido dizer que o Brasil não é América Latina, que é Améfrica-Africana, a cultura amerfricana (p. 162)". Para Magno, o mestre é aquele que não participa do trabalho, enquanto o escravo trabalha. E, ao trabalhar, o escravo modifica a relação social; portanto, é sujeito.

Segundo a intelectual feminista Lélia Gonzalez (1988/2018), inspirada nas ideias de Magno, no país se deu a predominância de elementos ameríndios e africanos, por isso argumentava por uma brasilidade próxima a Améfrica Ladin e não do continente latino-americano. Os escravos não se enquadravam restritamente como objetos de mercadoria, foram sujeitos instauradores de cultura e discursividades. Todos os brasileiros, segundo a pesquisadora. são ladinoamefricanos e não somente a população negra. A negação da presença afro-ameríndia seria decorrente do racismo estrutural : "enquanto denegação dessa ladinoamefricanidade, o racismo se volta justamente contra aqueles que, do ponto de vista étnico, são os testemunhos vivos da mesma, tentando tirá-los de cena, apagá-los do mapa" (p.336).

Outro exemplo da colonialidade da interpretação de Melman (1989/2000) é sua posição em relação ao movimento antropofágico: "uma manifestação de uma introjeção sem efeito simbólico" (p. 18). A cultura indígena e sua oralidade, bem como sua estrutura horizontal de comunidade, não são reconhecidas pelo psicanalista europeu como elementos culturais, pois as mesmas não seriam oriundas da palavra escrita nem possuiriam um organizador central vertical (significante mestre). Em contrapartida, para o cantor Caetano Veloso (1997) a "cena da deglutição do padre d. Pero Fernandes Sardinha pelos índios passa a ser a cena inaugural da cultura brasileira, o próprio fundamento da nacionalidade" (p. 247). A afirmação do suposto primitivo possibilitaria, para o movimento antropofágico, uma construção brasileira de resistência à ideia de uma história progressista dominante das caravelas portuguesas.

 

Considerações Finais

Este estudo teve como proposta a apresentação e discussão da interpretação de Charles Melman sobre a colonização do Brasil, com o intuito de refletir sobre os efeitos de tal intepretação sobre o movimento psicanalítico do país. O que se destaca como trama repetitiva no texto do psicanalista francês é a atribuição de um déficit simbólico â cultura brasileira; nessa construção teórica, nosso país é reconhecido como uma sociedade na qual o registro da lei - constitutivo do laço social - não operaria, por causa dos traumas do seu passado colonial.

Como observa Isabel Marazina (2005), na análise das culturas que sofrem os efeitos da colonialidade é fundamental "não refazer o percurso colonizador através de um discurso que pode ver carência ali onde se encontra uma diferença e, ao modo do colonizador, se atribuir a faculdade de 'preenchê-la'" (p. 160). Apesar dos traumas sociais do processo colonial e de sua barbárie, distintas formas de construção da cultura deixaram inscrições simbólicas para o povo se reinventar como país, criando possibilidades de retranscrição de sentidos na história brasileira. Nesse sentido, não estamos alinhados com a hipótese de Melman de que a cultura nacional teria quebras em seu registro simbólico, sem possibilidade de giro discursivo.

Longe de uma imagem de país tropical, pacífico e amistoso, o que a história brasileira inscreve até o momento, segundo Lilia Schwarcz e Heloisa Starling (2015), é a construção de uma nação marcada pelo percurso de um povo que acomodou diferentes etnias, em uma hierarquia rígida, condicionada pelos valores de um patriarcado originalmente rural, que impõe a todos um mesmo idioma social. É na constatação de suas contradições sociais e contrastes culturais, que o Brasil faz enigma à concepção psicanalítica de ordem simbólica, com a qual opera Charles Melman.

 

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Enviado em: 13/05/18
Aceito em: 16/09/19

 

 

Amadeu de Oliveira Weinmann é professor Departamento de Psicanálise e Psicopatologia do Instituto de Psicologia / UFRGS e do PPG em Psicanálise: Clínica e Cultura / UFRGS.
E-mail:weinmann.amadeu@gmail.com
Fernando Basso é psicanalista, trabalha em clínica privada, com formação no Centro de Estudos Psicanalíticos de Porto Alegre (CEP de PA), possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (2010). Mestre em Psicanálise: Clínica e Cultura pela UFRGS (2018).
E-mail:psicfernandobasso@gmail.com

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