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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.spe Porto Alegre  2019

 

ARTIGOS

 

Entre a Problematização da Ética e a Ética da Problematização

 

Between the Problematization of Ethics and the Ethics of Problematization

 

Entre la Problematización de la Ética y la Ética de la Problematización

 

 

Adriano Ruschel Marinho

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Converter a ética em tema de reflexão significa um desafio histórico e recorrente da filosofia. O campo da pesquisa não foge ao crivo da problematização ética, embora pouco avance além do termo de consentimento livre e esclarecido para a submissão do projeto ao comitê de ética em pesquisa. Resulta disso a tendência em enquadrar a ética como disciplina de metodologia científica. Em contraponto, aqui se propõe substituir a problematização da ética em pesquisa pela ética da problematização em pesquisa. Trata-se não só de assumir a obrigação de prever implicações éticas a cada fase da pesquisa, mas também de projetar medidas éticas aplicáveis desde o projeto até a publicação dos resultados. A título de exemplo, investe-se na exumação de pesquisa já conclusa, visando apurar eventuais falhas ou deslizes éticos com base na ética da problematização. Segue-se a configuração de novo estudo sob o mesmo referencial.

Palavras-chave: pesquisa; ética; problematização


ABSTRACT

Converting ethics into a subject of reflection represents a historic and recurring challenge to philosophy. Research does not escape from scrutiny of ethical problematization, although it does not advance so much beyond the free and informed consent term to submit the project to research ethics committee for approval. The trend to frame ethics as a discipline of scientific methodology results from it. In contrast, it's proposed here to replace the problematization of ethics in research by the ethics of research problematization. It's about assuming the promise to predict ethical implications at any stage of research, and also designing applicable ethical measures since the research project to the publication of results. As an example, it's invested in a concluded research exhumation, aiming at ascertaining eventual failures or delays based on the ethics of problematization. The setting of a new study under same reference follows it.

Keywords: research; ethics; problematization


RESUMEN

Convertir la ética en tema de reflexión es un desafío histórico y recurrente de la filosofía. El campo de la investigación no escapa al cribado de la problematización ética, aunque poco avance más allá del término de consentimiento informado para la sumisión del proyecto al comité de ética en investigación. De ahí la tendencia en encuadrar la ética como disciplina de metodología científica. Al revés, se propone cambiar la problematización de la ética en investigación por la ética de la problematización en investigación. Se trata no solo de prever implicaciones éticas a cada fase de la investigación, sino aun de proyectar medidas éticas válidas desde el proyecto hasta la publicación. Por ejemplo, se hace la exhumación de una investigación ya acabada, buscando apurar eventuales fallas o deslices éticos según la ética de la problematización. Se sigue la configuración de nuevo estudio bajo el mismo referencial.

Palabras clave: investigación; ética; problematización


 

 

Introdução

Problematizar a ética, transformá-la em questão demandante de respostas, fazer dela o tema de reflexões criteriosas, destrinchá-la em facetas de múltiplas repercussões, inseri-la na pauta de debates acirrados, tudo isso pertence à história da filosofia desde tempos imemoriais. Não à toa, quando se trata de definir os limites da boa conduta perante os outros, sobretudo no caso concreto de quem responde por decisões que afetam os destinos de coletividades inteiras, costuma-se adentrar em terreno de difícil consenso. Até que ponto vale avançar, até que ponto é melhor se conter ou então recuar, tendo em conta o impacto previsível de determinada ação sobre a vida alheia, eis o tipo de questionamento cuja solução requer a aplicação de princípios éticos, tais como o de não impor o que se repudiaria sofrer, entre tantos outros.

O campo da pesquisa não foge ao crivo da problematização ética. Afinal, cabe sempre indagar até que ponto os efeitos deste experimento ou daquela intervenção preservam a saúde física e moral de cada participante, cuja integridade também importa ao seu núcleo familiar e ao seu círculo de amizades. Eis a razão das exigências colocadas em prática pelas instituições sérias de pesquisa acadêmica no que diz respeito à mais rigorosa previsão dos preceitos éticos cabíveis em cada investigação que se procure desenvolver, seja mediante a devida preparação do termo de consentimento livre e esclarecido (TCLE) com base em padrões regulamentados, seja por meio da prévia submissão do projeto ao comitê de ética em pesquisa (CEP), após sua qualificação pela banca examinadora e antes da saída a campo para a produção de dados.

Por mais que se vise garantir a lisura ética do estudo com tais cuidados, porém, não é sensato fechar os olhos às suas evidentes limitações, especialmente quanto ao teor formal do TCLE e ao modo impreciso de apresentá-lo em busca de assinaturas ou de concordâncias que pouco dizem da efetiva compreensão dos riscos em questão por parte dos próprios sujeitos de pesquisa, sobretudo quando pertencem a extratos sociais jamais integrados pelo pesquisador. Nesse sentido, em contribuição ao aprofundamento dessa crítica, entende-se a necessidade de lançar novas luzes ao tema, invocando-o para além da dúvida cartesiana que tende a encaixar o problema da ética em pesquisa como disciplina específica da metodologia científica. O que se busca aqui fazer é inverter os termos com os quais se costuma formular a questão, visando substituir a problematização da ética em pesquisa pela ética da problematização em pesquisa.

Investir na ética da problematização significa fazer transbordar os cuidados éticos da pesquisa para além da elaboração do TCLE e da submissão do projeto ao CEP. Significa dar tratamento ético a todo o percurso que leva o pesquisador desde a conversão de determinada inquietude em problema até a divulgação dos resultados obtidos com a aplicação do método científico na experiência de campo. Significa assumir o compromisso de prever implicações éticas a cada passo da investigação e projetar medidas éticas aplicáveis ao longo de toda sua trajetória. Trajetória essa que, a bem dizer, não se encerra com a publicação dos resultados: o próprio uso que se pode fazer desses resultados também interessa à ética da problematização.

A inspiração vem das formulações de Foucault acerca da “Ética do cuidado de si como prática da liberdade” (2004). Fazer de sua própria reputação um exemplo digno de memória e reconhecimento ao olhar dos outros, é bem o que se deve esperar do pesquisador, seja perante os sujeitos de pesquisa que lhe dão entrevistas e material de observação, seja perante os pares que acompanham suas publicações, seja perante a opinião pública que associa seu nome a tal ou qual realização. É disso que trata a ética em seu sentido mais instigante do que prescritivo no antigo mundo greco-romano, à luz de Foucault. Seguir esse caminho requer do pesquisador um forte investimento em cuidar de si mesmo, em aprimorar seu próprio comportamento, com vistas a reduzir o risco de tornar-se “escravo dos próprios apetites”, quando se chega ao ponto de manipular resultados para comprovar hipóteses ou fazer do sujeito de pesquisa um simples fornecedor de dados, sem qualquer interesse pelas consequências últimas da investigação.

Um modo exemplar de assim proceder deriva da velha prática etnográfica do diário de campo, à medida que permite ao pesquisador, num primeiro instante, explicitar suas próprias preconcepções de senso comum sobre os fenômenos observados para depois, em processo de releitura, analisar tais impressões em busca de concepções mais robustas. Quando abordamos uma comunidade qualquer para fazer dela um campo de pesquisa, é a própria experiência do contato, da sondagem, do convite à participação, que necessita ser eticamente orientada para tornar-se, por sua vez, eticamente responsável, com todos os riscos envolvidos nessa atitude, inclusive no tocante à eventual rejeição do convite. Nesse sentido, cabe prever a participação dos sujeitos em certa relação de pesquisa sempre por livre adesão, assim como cabe submeter a inserção do pesquisador em certo campo à prévia autorização dos sujeitos responsáveis por sua sustentação. Esclarecer para si mesmo os cuidados éticos que restringem as suas próprias liberdades junto ao campo e à experiência de contato que irá configurá-lo, desde antes de nele ingressar, representa o primeiro passo para o enquadramento ético do pesquisador.

Mas é preciso avançar para mais além. Quando convertemos nossa inquietação com a realidade em problema de pesquisa, é o próprio movimento de problematização que deve ser eticamente conduzido. Afinal, que efeitos e repercussões podem ser previstos ou imaginados em caso de confirmação ou de refutação das intuições e hipóteses iniciais acerca do problema levantado? Em que medida a própria formulação do problema ou das questões norteadoras do projeto já não vem carregada de preocupações alheias ao bem-estar de todas as pessoas direta ou indiretamente atingidas? Até que ponto é possível divisar problemas com base na ética das relações sociais, a rigor, quando sabemos viver em sociedades profundamente desiguais, onde os interesses do poder político e econômico costumam subestimar, em nome do progresso, os marcos da identidade cultural e territorial de populações nativas e tradicionais? São questões dessa ordem, dentre tantas outras, que caracterizam a ética da problematização em pesquisa.

Para dar maior concretude às questões acima formuladas, traça-se aqui o propósito de experimentar a aplicação dessa abordagem sobre uma pesquisa já concluída em todas as suas etapas, visando observar em que medida é possível especular que houve ou deixou de haver o devido reconhecimento de implicações éticas relevantes ou a devida observância de medidas baseadas em princípios éticos no manejo de situações previsíveis ou surpreendentes. Trata-se de um exercício teórico praticado sobre as memórias do próprio autor a respeito do processo de investigação que manteve durante a realização de seu mestrado em educação. À exumação analítica de uma pesquisa completamente encerrada, segue-se a configuração analítica de um outro estudo, ainda em fase de preparação, com base na ética da problematização.

 

Método

Primeiramente, trata-se de descrever as etapas mais críticas de realização da pesquisa escolhida para fins de aplicação do exercício teórico proposto, procurando registrar, para cada etapa descrita, as implicações éticas identificadas pelo autor já naquele tempo, assim como as providências tomadas na própria ocasião para o seu devido enfrentamento. A seguir, trata-se de especular, a título de discussão, sobre implicações éticas eventualmente não observadas ou mesmo indevidamente enfrentadas pelo autor. Por último, à guisa de conclusão, trata-se testar o movimento prospectivo, projetando-se um novo estudo à luz do referencial em análise.

Para o desenvolvimento do trabalho especulativo, busca-se recorrer a uma variação do estilo narrativo adotado no registro descritivo da pesquisa em processo de exumação, visando provocar contrastes entre o olhar do passado e o olhar do presente sobre o mesmo fenômeno. Na descrição da pesquisa, tal como claramente concebida e conduzida na época, será mantida a narrativa de argumentação impessoal, enxuta e assertiva que caracteriza a escrita acadêmica hegemônica. Já na reflexão atual sobre lacunas e deslizes do passado, bem como na projeção do futuro, será explorado um estilo mais pessoal, inquisidor e sujeito à acidez autocrítica.

 

Resultados

Anos atrás, este autor fez mestrado com base em estudo de caso à luz do referencial da memória coletiva, na vigência da Resolução n° 196, de 10/10/1996, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), que tratava das diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos, depois substituída pela Resolução n° 466, de 12/12/2012, igualmente do CNS, ambas fixadas dentro do enfoque biomédico e anteriores à Resolução n° 510, de 07/04/2016, também do CNS, que veio regulamentar a ética da pesquisa em ciências humanas e sociais. O estudo se fundamentou em entrevistas concedidas por oito adultos de baixa renda, removidos de uma ocupação popular urbana no centro histórico de Porto Alegre para casas de passagem à espera de relocalização em futuro projeto de moradia, sob ação do poder público municipal (Marinho, 2008). Os desafios éticos foram significativos, não apenas pelas limitações da Res. 196/1996-CNS quanto ao enfoque qualitativo em ciências humanas e sociais, mas sobretudo pela conexão entre a situação de vulnerabilidade social dos sujeitos de pesquisa, o choque de interesses que levou o poder público ao uso da força policial e a antiga militância do próprio pesquisador a favor da resistência dos ocupantes contra o destino que lhes foi imposto. Para enfrentar esse conjunto de desafios, coube ao pesquisador dar um tratamento ético às etapas mais decisivas do projeto e da execução da pesquisa, conforme se resume a seguir.

O primeiro desafio foi despregar do pesquisador a imagem do militante, construída ao longo de três anos de atuação em nome da organização de uma ocupação urbana formada por famílias sem teto regular, a ponto de contribuir com a fundação da associação de moradores e com sua representação no orçamento participativo da cidade, em forte oposição ao projeto de remoção. Em decorrência do resultado adverso e do interesse em redigir uma narrativa dessa história com base no ponto de vista dos vencidos, a primeira medida tomada foi manter certa distância da comunidade, quebrada apenas em resposta a chamados por ocorrências pontuais. Não se tratava de abandonar a militância por completo, mas de desenvolvê-la em outro nível, junto à esfera do poder judiciário, onde o registro memorial dos removidos poderia servir de prova processual na ação judicial então em curso. Foram dois anos de um certo afastamento, dedicados à catalogação dos dados e à concepção do plano metodológico do estudo, durante os quais se fez a transição entre a antiga imagem do militante e a nova figura do pesquisador. O sentido ético dessa medida residia em destacar a visão da própria comunidade sobre o que ocorreu. Aos olhos do pesquisador, eram evidentes os danos causados às famílias pelo poder público. Mas até que ponto seriam visíveis aos olhos delas mesmas? E de que modo? Manter o ímpeto militante à frente das ações de pesquisa poderia induzir o pesquisador e os sujeitos a carregá-la de versões favoráveis à vitória judicial. O valor ético dessa atitude seria discutível.

Pode-se questionar a decisão de criar distanciamento como solução ao desafio ético de não induzir a resposta dos participantes. Pode-se insinuar que esse tipo de explicação mascara o entendimento altamente criticável de que fazer pesquisa militante representaria uma postura antiética ou anticientífica. Pode-se inclusive suspeitar da subordinação do pesquisador ao mito da neutralidade científica que a renúncia à militância permite sugerir. Enfim, pode-se duvidar do sentido ético atribuído a uma decisão também tomada por motivos estratégicos. Seja como for, não há como fugir à constatação de que a opção entre assumir essa ou aquela abordagem investigativa junto ao campo sempre levanta questões de ordem ética, cabendo ao pesquisador reconhecê-las e levá-las em consideração antes de tomar o passo decisivo, a partir do qual não poderá mais recuar sem efeitos talvez irreversíveis. Certo é que não cabe esperar, da pesquisa qualitativa, que seja replicável sob condições ideais de controle, a julgar pela sabida recusa do mundo social em reagir segundo modelos de laboratório. Portanto, se é critério do pesquisador fazer escolhas, ante as infinitas variáveis que incidem sem aviso prévio sobre sua presença em campo, cumpre sempre fazê-lo à luz de reflexões éticas suscetíveis de explicitação e debate.

Na pesquisa em análise, consequência lógica da decisão de manter distância durante o período de preparo metodológico foi conceber as questões da entrevista semiestruturada sem fazer qualquer alusão à associação de moradores pela qual militou o pesquisador ou ao poder público que tantas vezes representou o principal alvo de suas críticas notórias. Elaboradas de modo estritamente genérico, as questões tratavam de levantar a trajetória de vida passada e a expectativa de vida futura dos sujeitos, sempre em termos de moradia, trabalho e organização (familiar e social). A oportunidade de abordar episódios da remoção era aberta pelo simples questionamento da trajetória pessoal de vida, sem que nenhuma pergunta fosse previamente formulada em busca de tal resposta. O sentido ético dessa abordagem era de garantir que toda e qualquer manifestação alusiva aos referidos episódios por parte dos entrevistados fosse feita de forma absolutamente espontânea, sem ser provocada de forma explícita pelo pesquisador.

Outra providência tomada foi decidir, como critério para definir a amostra dos sujeitos de pesquisa, entrevistar só aqueles que autorizassem a identificação de seus nomes completos e verdadeiros em todas as publicações decorrentes da pesquisa. O sentido ético dessa medida era duplo. Inicialmente, compor uma narrativa baseada em memórias, mas com pretensão de se apresentar enquanto relato histórico. Finalmente, dar aos próprios sujeitos os créditos pela autoria de suas próprias histórias, reconhecendo-lhes o direito em expor seus pontos de vista pessoais sobre como viram o passado e como esperavam ver o futuro.

Não há porque se estender sobre o conjunto de medidas tomadas para a veiculação da carta de esclarecimento aos sujeitos de pesquisa, assim como do TCLE, visto que se manteve suficiente grau de fidelidade à cartilha de aplicação da Res. 196/1996-CNS, com as esperadas adequações às características do estudo previsto e do campo abordado. Basta acrescentar que todo o procedimento foi documentado por escrito e gravado em vídeo, distribuindo-se cópias aos sujeitos para lhes permitir comprovar toda e qualquer tratativa feita com o pesquisador.

As entrevistas foram conduzidas pelo pesquisador nos termos previstos, tomando-se o cuidado de evitar qualquer alusão aos episódios da remoção, seja antes, durante ou depois das gravações feitas para fins de registro, a eles fazendo-se referência somente dentro dos limites de sua evocação pelo próprio entrevistado. Também se teve o cuidado de validar as narrativas feitas com base no registro das entrevistas perante os próprios entrevistados, permitindo-lhes revisar ou excluir trechos inteiros, a seu critério, para submeter à análise e publicação apenas os conteúdos expressamente autorizados, sem nutrir qualquer interesse em lidar com material sigiloso. O sentido ético dessa medida era garantir a relação de plena confiança entre o sujeito pesquisador e os sujeitos de pesquisa mesmo após a publicação dos resultados.

Finda a coleta, tratou-se de cruzar os dados das narrativas chanceladas com o arquivo de registros, sobretudo escritos e fotográficos, mas também sonoros e audiovisuais, conforme catalogados pelo pesquisador, de maneira a contextualizar os relatos individuais sob uma rede de fontes diversas, às quais se fez agregar o referencial teórico selecionado para fundamentar as análises. Para além das motivações metodológicas, tais procedimentos também adquiriam um sentido propriamente ético, à medida que davam consistência coletiva e social à memória singular de cada um, tornando possível a ruptura do isolamento tendente a expor os sujeitos e suas famílias a processos de culpabilização pelo destino que lhes foi imposto.

Terminada, defendida e aprovada a dissertação, tratou-se de rever cada sujeito para lhe oferecer o livro editado com a versão definitiva do texto, junto com um livreto em formato de álbum, contendo as fotografias batidas pelo pesquisador do entrevistado e de seus familiares ao longo dos anos de contato com a comunidade. O livro só passou a ser distribuído a outros destinatários, sem jamais passar por qualquer espécie de comercialização, após a sua devida entrega em primeira mão aos próprios sujeitos. A devolução dos resultados permitiu expor a intenção de usá-los como prova judicial, com o que se obteve unânime concordância.

 

Discussão

Mas seria justo abandonar a comunidade à sua própria sorte, justamente quando mais necessitava de apoio, após se ver derrotada em suas forças e em suas expectativas? Não seria esse um gesto de traição à confiança depositada em minhas mãos? Não seria mais adequado, então, explicitar a todos o que estava em jogo ao tomar tal decisão? Como falar em ética se, nesse caso, decidi por conta própria, sem expor minhas razões com a devida antecedência? Claro que, agindo assim, poderia contaminar os resultados finais, mas, convenhamos, seria realmente impossível conceber um desenho de pesquisa capaz de enfatizar o ponto de vista dessas famílias de forma absolutamente isenta, sem comprometer o vínculo já estabelecido comigo? Até que ponto não agi por mero comodismo? Até que ponto não busquei na ética uma desculpa para chutar o balde do compromisso até então assumido com essas pessoas? Enfim, até que ponto não me pus a usar a ética para justificar uma atitude antiética?

Pensemos na pulverização da figura do militante: seria possível tamanha abstração? Como se a generalização das questões usadas ao entrevistar as pessoas tivesse o condão de, por si só, apagar da memória dos sujeitos tudo aquilo que representei diante deles por tanto tempo, seria isso possível? Não se trata pura e simplesmente de mais uma crença difundida pelo paradigma da neutralidade que incorporei sem assumir da boca para fora, só porque o enfoque qualitativo não lhe dá crédito? A julgar pelas decisões tomadas e pelas explicações que dei, será que não agi com base nessa crença, mesmo sem querer? Afinal, faria diferença usar questões diretamente alusivas aos fatos em situação de aberta militância? Cá para nós, qual seria o problema? Não terei sido preconceituoso, subestimando a capacidade daquelas pessoas em formar juízo próprio sobre os acontecimentos, independente de minha presença, de minha opinião? Não terei sido iludido pela figura mítica do herói de capa e espada, capaz de salvar os fracos e oprimidos com os poderes infalíveis do pesquisador suposto saber?

Expor os nomes verdadeiros dos sujeitos de pesquisa foi de uma ingenuidade atroz. Por mais que houvesse aprovação dos próprios sujeitos, até que ponto estariam eles aptos a prever possíveis consequências negativas dessa decisão? Afinal, estávamos em situação de conflito declarado contra um poder infinitamente superior. Como assegurar que os sujeitos não sofreriam represálias pelo simples fato de exprimir, em suas opiniões, à luz de minhas próprias confirmações, posições contrárias à validação da remoção arquitetada pelo poder público? Mesmo sem constar qualquer prova de ter havido algum tipo de represália, como poderia garantir a inexistência desse risco na época? Afinal, os entrevistados continuavam morando em locais mantidos pelo poder público. Não seria mais sensato protegê-los desse risco com base no anonimato, mediante o uso de pseudônimos? Entre o risco de perder os créditos da autoria e o risco de sofrer retaliações, não deveria prevalecer o último?

Quanto ao investimento em estabelecer relações de confiança, mediante gravações e documentações fartamente distribuídas, o sentido ético disso tudo já não foi comprometido pela identificação nominal dos entrevistados? Na hipótese de outros despejos ou mesmo do simples abandono daquela comunidade à sua própria sorte pelo poder público que prometera sustentá-la na casa de passagem, abandono esse que já vinha ocorrendo antes da pesquisa se realizar, de que serviria, objetivamente falando, a confiança baseada na prévia submissão do teor das entrevistas? Seria capaz de impedir a reprodução de novos constrangimentos? Seria capaz de evitar o agravamento de suas condições já precárias de vida? Até que ponto não se tratava mais de me proteger como pesquisador do que garantir os sujeitos em sua integridade já tão exposta e vulnerável? Como assegurar igualdade de condições para o livre debate com os sujeitos na hora de fechar a versão final dos documentos e das narrativas? Como acreditar que a avaliação de riscos estaria plenamente consumada com base nesses procedimentos?

Cabe aqui evocar o risco da pesquisa provocar a reação de agentes do poder público em posição de poder e em condições de agir de forma arbitrária perante aacusaçãode que seriam responsáveis por ação, omissão ou negligência contra uma população desamparada. Nessa hipótes, digamos que o sujeito se sentisse prejudicado em razão de alguma represália sofrida pelas revelações divulgadas na pesquisa, de que serviria a comprovação de que foi responsável ele mesmo pela exposição de sua versão da história? Poderia servir talvez para descarregar sua frustração contra si mesmo ou contra seus familiares mais desprotegidos? Qual proteção ética poderia ser afiançada por um documento de papel nesse caso?

Por fim, o que dizer da devolução dos resultados? Foi o momento que escolhi para revelar a possibilidade de usar tais resultados como prova na ação judicial que ainda seguia em andamento ao final do estudo. A devolução é sempre meritória do ponto de vista ético. Mas, é preciso reconhecer, não chegou a surtir o efeito desejado. O processo foi arquivado sem que nenhum morador fosse chamado a prestar seu depoimento perante o juiz. Cumpre então refletir: até que ponto não agi com pretensões salvacionistas de fazer o bem, ou antes, de fazer aquilo que considerava ser o melhor para o destino dos sujeitos? Até que ponto os escutei verdadeiramente? Até que ponto não os pus na posição de simples trampolim para minha própria carreira acadêmica?

 

Conclusão

Com o resgate memorial relativo ao passo a passo da pesquisa desenvolvida, busca-se demonstrar que a ética em pesquisa, muito mais do que um referencial normativo de aplicação protocolar, deve sempre corresponder a uma postura de profundo respeito pela integridade dos sujeitos de pesquisa e de cuidadoso controle no uso da metodologia científica, especialmente no campo da pesquisa qualitativa, para apurar aquilo que tende a fugir da percepção imediata, mas que produz efeitos críticos sobre os rumos da sociedade.

Com o exercício do papel de advogado do diabo contra mim mesmo, tratei de colocar em dúvida a solidez de minhas próprias convicções, visando evocar o quanto há de frágil no terreno da ética, quando se circunscreve o debate ao diálogo entre pesquisador e orientador, sem a participação de uma instância terceira, externa a essa relação, sob a forma concreta do CEP. De fato, à época do presente estudo, não se considerava imprescindível a submissão do projeto na esfera da pesquisa em educação. Todas as medidas tomadas foram concebidas pela preocupação de cercar o conjunto de decisões metodológicas assumidas com um grau mínimo de reflexão ética.

A ética da problematização requer do pesquisador que pense a ética como mediadora última de suas relações com a ciência, com a metodologia, com o campo e com a sociedade humana, tal como se revela,historicamentefalando: fragmentária, crivada de contradições e sob intenso domínio do poder político e econômico. As relações com um sistema público de regulação ética me parecem necessárias, muito embora também estejam os CEPs sujeitos ao sucateamento de suas próprias condições de sustentação, formação e trabalho. Trata-se, sem dúvida, de questão a ser problematizada de forma aguda e permanente.

A promessa de finalizar este artigo com a projeção prospectiva de um novo estudo com base na ética da problematização será aqui propositalmente descartada. A frustração desse compromisso simboliza não só o deslize ético sempre possível de nos capturar, mas também a precarização das condições de produção acadêmica que compromete o próprio alcance do idealismo ético no campo da pesquisa, a nos servir de alerta. Nos limites deste texto, a frustração não passa de irritação com o tempo perdido no cultivo de determinada expectativa de conteúdo disponível ao final da leitura. Já no campo da pesquisa social, a frustração de expectativas geradas nas relações éticas que o pesquisador estabelece pode suscitar consequências bem mais graves, delicadas, profundas, irremediáveis. Eis o risco.

 

Pós-Escrito

Vou me deter onde teve maior implicância, em tuas palavras:"Eu impliquei quando tu fala em prever e projetar." Vale fazer um breve comentário sobre essa questão de prever e de projetar, em função de uma expressão que utilizei, com a qual tu também implicou, que é de "exumação da pesquisa", especialmente quando digo em "exumar uma pesquisa concluída". Porque "exumação" é um termo que se usa para fazer referência a um cadáver, ou seja, a um corpo que já perdeu vida e está lá enterrado. No entanto, por algum motivo, desconfia-se de alguma coisa, provavelmente da causa mortis, então vai-se lá, desenterra-se e submete-se tal corpo a procedimentos. Eu não entrei no mérito de que a pesquisa segue produzindo efeitos, porque ela, de fato, segue produzindo efeitos. A ciência se faz sobre os efeitos de pesquisas realizadas e concluídas no sentido de que o trabalho de campo já se encerrou. O relatório, a tese, a dissertação, o artigo, tudo isso já foi escrito e publicado, ou seja, colocado ao alcance do público. Então, é nesse sentido que faço referência a uma pesquisa concluída. Não estou entrando no mérito dos efeitos que a pesquisa produz após ser encerrada naquelas etapas de relação com o campo e de aplicação da metodologia eleita para produzir dados, reflexões e análises que por fim se reúnem e se consolidam num texto. Tanto é que a gente está falando aqui de uma pesquisa feita há quinze anos atrás e que, em virtude da oportunidade de tratar desse assunto da ética em pesquisa, resolvi agora revisitar para desenvolver exatamente esta reflexão: Até que ponto foram adequadas as problematizações éticas que levantei na época? Adequadas no sentido das decisões tomadas. É por isso que eu busquei fazer todo um relato de como foi feita a pesquisa do ponto de vista das questões éticas suscitadas nessa aventura surpreendente de adentrar o campo e sofrer seus efeitos. E assim, por cautela ética, tomei o cuidado de efetuar esse trabalho sobre uma pesquisa que eu mesmo fiz, como um esforço de reflexão e análise, de voltar ao tempo para repensar e revisar os procedimentos adotados em função das situações desencadeadas pelo campo no desenrolar desse estudo. É puramente de um ponto de vista formal e objetivo, portanto, que eu falo de investigar uma pesquisa que já se concluiu. Mas eu entendo a tua implicância com essa forma de se referir, porque, afinal de contas, tanto é verdade que a pesquisa surte efeitos depois da publicação de seus resultados, que a gente mesmo está discutindo isso aqui e agora, muito tempo após o trabalho de campo. Então, a partir desse preâmbulo, vou tratar só das observações em relação a prever e projetar, de um lado, bem como em relação a expectativa e frustração, de outro. As outras observações que tu fez, eu anotei e vão ficar para minha reflexão a posteriori. Mas vamos tratar agora um pouco disso: prever e projetar, expectativa e frustração.

Primeiramente, vou concordar contigo quando, a partir desse enfoque, dessa ótica de que o campo nos surpreende, tu reafirma que o campo é, por definição, imprevisível. Mas é imprevisível, entendo eu, no detalhe, no acontecimento, nos seus meandros. É imprevisível, portanto, da mesma forma como é imprevisível este momento aqui. Não se sabe o que cada um de nós vai dizer. E as pessoas aqui presentes estão curiosas para saber: "Mas o que eles vão dizer? O que eles têm a dizer? E por que estou aqui? Vale a pena estar aqui?" Essa é a dimensão da imprevisibilidade, sobre a qual eu assino embaixo do que tu mesmo disse: é o que dá graça ao acontecer. E é por isso que a gente vai a campo, não só para fazer pesquisa, mas também para ouvir relatos de pesquisa e acompanhar eventos como este, entre outros. Entretanto, na ocasião em que começo um projeto de pesquisa, eu já entro, por definição, no campo da projeção. Vamos dar o meu caso como exemplo. Digamos que eu queira pesquisar sobre as questões que envolvem a ocupação de uma área, um campo, um terreno público no centro de Porto Alegre, por uma comunidade de famílias sem teto. E, por estarem sem teto, elas vão promover a ocupação de um espaço abandonado. E eu quero entender como elas se organizam para ocupar esse espaço. Então vou lá. Vou conhecer. E ao conhecer esse campo, sou envolvido desde o início por um sentimento de militância. A partir do momento em que entendo o que está se passando, eu penso assim: "Quero contribuir para a organização dessas famílias." Por quê? Porque já estou prevendo que, cedo ou tarde, elas serão submetidas a um processo de remoção. A visão que eu tenho ali é de ser um excelente espaço para abrigar um shopping center. Bem no centro de Porto Alegre. Essas famílias não vão ter muito tempo ali. Como posso contribuir para que elas se organizem, da melhor forma possível, para enfrentar essa situação, enquanto não vier a remoção? Como posso contribuir dessa forma? Então isso foi uma pré-visão. Eu previ que isso tudo poderia acontecer. E foi uma previsão acertada, ela realmente aconteceu. As famílias foram removidas. Assim, por um lado, nisso eu concordo contigo, a gente tem que se imbuir da convicção de que o campo deve nos surpreender. Mas, por outro lado, vejo que é obrigação do pesquisador, bem como do militante, prever situações com base no nível de conhecimento e contato que tem daquele campo específico e do campo teórico em geral. Tem que prever, mas claro, não no sentido de torturar o campo de modo tal que ele se ajuste à previsão. Nem no sentido de que a previsão, uma vez prevista, tenha então que se realizar conforme o previsto. É preciso sempre revisar a própria previsão e estar pronto a admitir que também se erra. Às vezes, a gente prevê o campo se comportar de um jeito, mas ele se comporta de outro. Se a gente não se prepara para isso, podemos cometer erros sérios.

É por isso que eu fiz um jogo com o leitor. E já vou entrar na questão da expectativa e da frustração para encerrar este meu comentário. Eu fiz um jogo ao prever que não só faria a revisão de uma pesquisa anterior, mas também o projeto de um novo estudo com base nessas questões da ética da problematização. Afinal, como posso submeter a devida problematização da pesquisa, ou seja, a conversão de um fenômeno social em problema, como posso estruturar isso de forma a incorporar, nessa estruturação, nesse enfrentamento, a própria ética em todos os momentos? Como posso prever um novo estudo a partir dessa perspectiva que trato como ética da problematização? Mas não cumpri com a palavra. O tempo todo, na abertura do texto, no resumo, na conclusão da introdução, na exposição do método, eu anuncio que vou realizar isso, mas acabando a leitura, no último parágrafo, eu venho dizer que a promessa de projetar uma nova pesquisa, com base na ética da problematização, será descartada. Vamos pensar no caso do leitor que criou a expectativa de que, em algum momento, no término do artigo, iria encontrar resposta para a seguinte pergunta: "Mas como é que esse autor imagina concretizar o anúncio de que vai projetar um novo estudo com base no referencial que está defendendo?" No final eu digo que estou descartando isso, que já não vou fazer assim. Não sei se aconteceu contigo, mas vamos generalizar. Se um determinado leitor, ao longo desse texto, chega a criar expectativa sobre o assunto e então se depara com um último e definitivo anúncio de que essa expectativa está sendo deliberadamente frustrada, como é que será que se sente? Pois bem, no campo da leitura, isso pode gerar, no máximo, frustração e irritação. Já no campo da pesquisa social, onde a gente costuma enfrentar realidades tão revestidas de contradições, problemas e enfrentamentos, frustrar expectativas éticas suscitadas no campo com os sujeitos pode causar danos de muito maior gravidade do que uma simples decepção ou irritação. É mais ou menos isso que eu quis dizer. Talvez não tenha sido competente o bastante para deixar tudo claro, ou seja, para dar mais contraste entre o anúncio repetido e o desfecho apresentado. Mas é isso.

 

REFERÊNCIAS

Foucault, M. (2004). A ética do cuidado de si como prática de liberdade. Entrevista concedida a H. Becker, R. Fornet-Betancourt, & A. Gómez-Müller. Em M. Foucault. Ética, sexualidade, política (Coleção Ditos e Escritos, 5, pp. 265-287). M. B. Motta (Org.). Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.

Marinho, A. R. (2008). Memórias do Casarão: lições de uma ocupação popular urbana derrubada por políticas sociais públicas. Porto Alegre, RS: Autor. Recuperado Novembro 20, 2019, de https://nestpoa.files.wordpress.com/20 19/01/memórias-do-casarão.pdf

 

 

Adriano Ruschel Marinho é doutorando vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisa em Saúde e Trabalho (NEST).
E-mail: armarinho@hotmail.com

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