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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.spe Porto Alegre  2019

 

ARTIGOS

 

A Ética em Jogo no Campo Surpreendente da Pesquisa1

 

The Ethics at Stake in the Surprising Field of Research

 

La Ética en Juego en el Campo Sorprendente de la Investigación

 

 

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho

Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

Trata-se de exposição oral suscitada pelo texto “Entre a problematização da ética e a ética da problematização”, de Adriano Ruschel Marinho. Assume-se aqui que a pesquisa em ciências humanas e sociais possui sempre o caráter de intervenção, razão pela qual a atitude ética se reveste de uma dimensão coletiva. Nesse sentido, as noções de implicação e de recalcitrância constituem importantes eixos de apoio à eticidade em pesquisa. A verdadeira discussão ética não se faz no projeto, nem se esgota na apreciação do comitê de ética em pesquisa, senão que inicia a partir da experiência de habitar o campo. Ao pesquisador, cabe assumir o desafio ético de reconhecer que o campo lhe traz surpresas sempre imprevisíveis e irredutíveis aos termos do consentimento livre e esclarecido, sobretudo quando se sabe que regulamentação vigente está longe de representar os anseios da pesquisa à luz das ciências humanas e sociais.

Palavras-chave: ética em pesquisa; implicação; recalcitrância


ABSTRACT

This is an oral presentation prompted by the reading of "Between the problematization of ethics and the ethics of problematization", by Adriano Ruschel Marinho. It is assumed that research in the human and social sciences always has the character of intervention, which is why the ethical attitude has a collective dimension. In this sense, the notions of implication and recalcitrance represent important support bases for research ethics. The true ethical discussion is not done in the project, nor is it exhausted on the research ethics committee report, but it starts from the experience of inhabiting the field. The researcher must take on the ethical challenge of recognizing that field brings surprises which are unpredictable and irreducible to the terms of informed consent, especially when it is known that current rules are far from representing the research aspirations in the human and social sciences.

Keywords: research ethics; implication; recalcitrance


RESUMEN

Se trata de una exposición oral suscitada por el texto "Entre la problematización de la ética y la ética de la problematización", de Adriano Ruschel Marinho. Se asume que la investigación en ciencias humanas y sociales es siempre una intervención, razón por la que la actitud ética posee una dimensión colectiva. Por tanto, las nociones de implicación y recalcitrancia son importantes ejes de apoyo a la ética de la investigación. La verdadera discusión ética no se hace en el proyecto, ni se agota en el dictamen del comité de ética en investigación, sino que empeza a partir de la práctica de habitar el campo. Al investigador le toca asumir el desafío ético de reconocer que el campo le trae sorpresas siempre imprevisibles e irreductibles a los términos del consentimiento informado, sobre todo cuando se sabe que las reglas vigentes no representan los anhelos de la investigación a la luz de las ciencias humanas y sociales.

Palabras clave: ética en investigación; implicación; recalcitrancia


 

 

Intervenção

Bom dia a todas e todos! Mais uma vez agradeço por estar aqui hoje para contribuir com as discussões deste evento. O Adriano nos traz uma questão bastante importante e interessante que é pensar a ética em pesquisa. E entendo que, ao pensar a ética em pesquisa, a partir do viés de que ela não se reduz à avaliação do protocolo de um projeto, a primeira questão a ser colocada é de que toda pesquisa é intervenção. Afirmar que toda pesquisa é intervenção é inclusive afirmar que a pesquisa não se limita ao processo de construção, ao processo de aplicação no campo e ao momento em que se entrega o trabalho escrito. Acho, portanto, que a pesquisa é atemporal nesse sentido. E aí, a primeira pergunta que me vem, a partir dessa afirmação, é: Como entender a exumação de uma pesquisa? Isso porque pensar a exumação de uma pesquisa é pensar que o fim da pesquisa corresponde ao fim do trabalho do pesquisador. Mas, se toda pesquisa é sempre intervenção, ela continua viva enquanto produz intervenções no mundo. Intervenções essas que não são previsíveis para nós, pesquisadores.

Outra questão que acho importante é desindividualizar o trabalho da pesquisa. E aí, desindividualizar é também entender que a pesquisa, por ser um trabalho coletivo, deixa ter dono. E por deixar de ter dono, a atitude ética também deixa de ser uma atitude individual. Porque, se a ética do pesquisador for igual à ética em pesquisa, nós vamos voltar a entender que existe um sujeito com responsabilidade ética e, portanto, um sujeito a ser culpabilizado por suas atitudes éticas. Então acho que são duas questões importantes para a gente colocar. Uma é: O que é a intervenção da pesquisa e de que maneira essa intervenção caracteriza a pesquisa como pesquisa? A segunda é pensar que a atitude ética não é uma atitude individual. E tomar a ética como coletiva é retirar, da noção de ética do pesquisador, toda a questão sobre ética em pesquisa. São dois pontos importantes.

 

Implicação

Outra coisa também importante a ser colocada é a ideia de neutralidade, mas a partir da noção de implicação. Porque me parece que a afirmação da neutralidade não é algo que a gente esteja validando aqui. Não temos um debate aqui sobre se há ou não há neutralidade, até mesmo pelo próprio texto que você escreveu. Agora, a questão é esta: Quando a gente deixa de falar de neutralidade, a gente começa a falar de quê? E eu acho que a noção de implicação é importante para isso.

Tem uma expressão muito utilizada no âmbito das ciências físicas e naturais que é o "erro de paralaxe". Essa expressão pode ser melhor pensada por nós. Por exemplo, quando vamos fazer a leitura da temperatura do ar, está lá o termômetro, a gente precisa se aproximar do termômetro para ler até onde o mercúrio está marcando na escala. Mas também sabemos que o calor do nosso rosto, ao se aproximar do termômetro, faz aquela temperatura aumentar. Então, nas ciências físicas e naturais, nós somos o tempo todo orientados, ao ler a temperatura do termômetro, a fazer isso no tempo menor possível. Para que a temperatura do nosso rosto influencie o menos possível a leitura da temperatura que a gente vai fazer. Do contrário, nós chamamos isso de erro de paralaxe. O erro de paralaxe consiste exatamente na influência da temperatura do meu rosto na temperatura do ar quando eu leio o termômetro. Eu acho que a grande questão, para nós, é assumir o paralaxe e deixar de lado a noção de erro de paralaxe. A questão aí não é exatamente o quanto nosso rosto influencia a temperatura, mas o quanto isso passa a ser entendido pela pesquisa como erro. Talvez seja essa a questão: tomar o paralaxe e dar outro sentido para ele. Não é negar que o nosso rosto, de fato, faz aumentar a temperatura do ar. Mas assumir que o nosso rosto também está presente nesse ar. E se ele está presente no ar, ele também intervém nesse ar. Portanto, colocar em outro lugar essa noção de erro pode ser também importante.

 

Campo

Outra questão fundamental é tomar a noção de pesquisa como habitação do campo. Ou seja, só fazemos pesquisa ao habitar um determinado campo. E é exatamente nesse momento, quando a gente habita o campo, que os desafios éticos se colocam para nós. Portanto, e aí eu concordo com você, pensar a ética em pesquisa não é pensar a aplicação da Resolução 510.2 Já foi a 196,3 a 466,4 agora é a 510. Mas não é pensar, a partir daí, que essa resolução seja um processo de habilitação. Na verdade, a resolução já disse a que veio. A proposta da resolução de ética em pesquisa é avaliar protocolo de pesquisa. Ela não se propõe a ser uma resolução para pensar a ética, os desafios éticos no campo de pesquisa. E aí, talvez a questão seja pensar que a nossa relação com a resolução da ética em pesquisa, a nossa relação com o comitê de ética em pesquisa, nada disso garante uma discussão sobre ética em pesquisa. Não porque o texto da resolução seja limitado, mas sim, porque a proposta do comitê de ética se resume à avaliação de um projeto. E nesse sentido, ele faz o que acha ser ética em pesquisa.

A questão nossa é pensar se a ética em pesquisa tem a ver com habitar o campo. Se a ética em pesquisa tem a ver com os desafios que o campo impõe, do ponto de vista ético, então a questão não se limita à resolução. A resolução faz outra coisa. É preciso pensar então que o desafio ético se faz para além disso. E isso é importante porque, de modo geral, quando a gente fala de ética em pesquisa, a gente fala batendo na resolução, dizendo que ela não serve ou dizendo aquilo que ela deveria ser. Só que ela não se propõe a ser isso. A gente, às vezes, perde muito tempo, nós todos, quando tratamos de ética em pesquisa, falando do lugar do TCLE, falando do lugar da aprovação ética em pesquisa, mas acho que a nossa questão é outra. Talvez, nos nossos textos sobre ética em pesquisa, a gente precise olhar menos para essa resolução, porque efetivamente, quando a gente trata de ética aqui, neste espaço, com o nosso jeito de pensar a ética, a gente fala mesmo de outra coisa. A gente fala do desafio que a pesquisa nos coloca no momento em que a gente está lá no campo. A resolução não dialoga com isso. Ela não se propõe a ser isso. A tarefa de um comitê de ética termina quando diz que nosso projeto de pesquisa prevê os riscos éticos. E, por isso, passa a ser um projeto autorizado para ir ao campo. Só que aí acaba o trabalho do CEP.5 Se a gente entende que o desafio ético começa aí, não tem mais que ficar se relacionando com o CEP. Tem que construir uma outra discussão ética por fora dessa resolução. Eu acho que a resolução tem lá seu valor quando nos obriga a pensar o que a gente vai fazer no campo. Se isso resume a ética em pesquisa, então tudo bem. Mas, se a gente entende que a ética em pesquisa é outra coisa, a resolução já não dialoga com isso. A gente perde tempo, muitas vezes, afirmando que a resolução é limitada.

Mas ela é isso. E se propõe a ser isso.

 

Recalcitrância

Acho que a grande questão é: Quando a gente vai entender que o desafio ético está no campo? Que o desafio ético está no momento em que esse campo não é tão dócil como a gente esperava? E que, por não ser tão dócil, traz questões para nós? Um conceito também importante para pensar isso é a noção de recalcitrância, da Vinciane Despret,6 quando ela vai nos dizer que o campo resiste àquilo que a gente se propõe a fazer com ele. A gente tem duas atitudes em relação a isso. Nós podemos torturar o campo, para que o campo seja exatamente aquilo que a gente previu. Ou a gente abre mão da noção de previsibilidade e entende que fazer pesquisa é estar aberto às surpresas que o campo nos coloca. E aí, já é uma outra questão que não dialoga com a resolução. A gente está falando aqui, de fato, de outra coisa. A gente está falando dos desafios que o campo nos coloca para a pesquisa.

A própria resolução, quando fala sobre eticidade em pesquisa, vai dizer que ela se coloca a partir de quatro eixos. Primeiro: o respeito ao sujeito. E, por isso, a ideia de um consentimento que seja livre e esclarecido, para que o sujeito entenda do que se trata a pesquisa, para que ele possa inclusive recusar-se a participar dela a qualquer momento. O reconhecimento da autonomia do sujeito faz parte desse respeito. Ou seja, respeitar o sujeito é fazer com que, para ele, a pesquisa seja mesmo livre e esclarecida. Eu não gosto da palavra "esclarecida", mas é assim que o termo se chama. A pesquisa deve ser nítida o suficiente para que ele entenda onde está entrando, para que ele possa inclusive dizer que não quer. E que a gente respeite a autonomia desse sujeito. Esse é o primeiro eixo. O segundo é uma noção de riscos e benefícios. Quer dizer, a resolução nos diz que, quando a gente faz pesquisa, temos que ter o máximo de benefícios com o mínimo de danos e riscos. O terceiro eixo trata de evitar os danos previsíveis. E o quarto, corresponde à relevância social da pesquisa. Talvez, a partir desses quatro pontos, seja possível fazer uma boa discussão sobre ética em pesquisa. Mas eu não sei se a melhor maneira de nos articularmos com a resolução seja a partir da existência de um TCLE ou da avaliação de um protocolo. Porque aí a gente está comparando coisas que não são comparáveis. São coisas completamente diferentes.

Não estou aqui fazendo uma defesa da resolução. Mas eu acho que ela não me serve para discutir isso que a gente está querendo discutir. E por não me servir, me parece que a gente perde tempo demais dizendo que ela é limitada. Porque, na verdade, a gente está falando de uma outra postura frente à discussão ética em pesquisa. Ou seja, nós estamos aqui dizendo que a ética da pesquisa não é a ética da construção do projeto. Ética é aquilo com o que a gente se depara quando está no campo. E aí, já vamos para outra coisa mesmo, porque a resolução não fala sobre a nossa relação com o campo. A resolução fala sobre a nossa relação com a construção de um protocolo. E aí, por serem coisas muito diferentes, a gente acaba perdendo muito tempo dizendo que aquilo ali não nos serve. Pois a gente está fazendo outra coisa. E a partir de outra relação. Então eu acho que a noção de recalcitrância é extremamente importante. Porque ela nos coloca em um campo que está o tempo todo trazendo surpresas para nós. E que bom, né? Que bom que um protocolo de pesquisa não seja suficiente para prever tudo aquilo que vai acontecer no campo! Se nós somos, como pesquisadores, bons o suficiente para construir um projeto que não vai nos surpreender, me parece então que a gente está fazendo pesquisa do que já sabe. E se é para fazer pesquisa assim, me parece então que a gente perde tempo em ir ao campo, visto que já sabemos tudo o tempo todo.

 

Surpresas

Eu acho que a grande postura ética que cabe a mim, como pesquisador, é exatamente reconhecer que o campo me traz surpresas, que o campo não é aquilo que eu acho que ele é. E é por isso mesmo que eu vou a esse campo, para ser surpreendido, para entender melhor as forças que o constroem na minha relação com o próprio campo. E aí me parece que o grande desafio ético da pesquisa está exatamente nesse momento em que esse campo me surpreende. E por isso, se eu parto desse princípio, o meu protocolo de pesquisa jamais será suficiente. Porque, senão, eu entro numa de que a resolução da ética em pesquisa é suficiente para fazer uma discussão sobre ética em pesquisa, e aí digo que ela é limitada porque não garante isso. Se eu faço assim, na verdade, o que estou dizendo é que o campo não vai me surpreender.

Porque eu tenho um projeto de pesquisa que é suficiente para minha relação com esse campo. E aí, tudo aquilo que é surpresa no campo, eu passo a entender como um problema do meu projeto. Talvez seja essa a grande questão ética que se coloca.

Às vezes parece que o bom pesquisador é aquele que consegue escrever um projeto cujo campo não lhe vai surpreender a partir da pesquisa. Ou seja, parece que o meu projeto precisa ser o mais parecido possível com aquilo que vai ser a finalização da minha pesquisa. O que está se querendo dizer aqui é que a gente pensa o contrário disso. O bom projeto não é aquele que me permite ir para o campo sem surpresas. O bom projeto é aquele que me coloca bons dispositivos para que eu chegue em campo de modo tal que esse campo me surpreenda. É exatamente o contrário. Por isso, pensar ética a partir daí não é dialogável com a resolução. Porque a resolução parte do princípio de que a ética está presente no modo como eu construo o meu protocolo, no modo como eu construo o meu projeto.

Talvez o grande desafio dos comitês de ética em pesquisa seja de não se reduzirem ao papel de polícia da pesquisa. Aquela que vai investigar se o pesquisador está prevendo de modo suficiente os seus problemas éticos. Nem ao papel de cartório da pesquisa. Aquele que vai te dar um número para que você possa então dizer ao seu financiador e à revista onde quer publicar que você, de fato, fez passar o seu projeto por um comitê. Talvez seja esse, então, o grande desafio dos CEPs hoje: não ser nem polícia, nem cartório. E aí, nesse sentido, estamos aqui realmente falando de uma outra coisa.

 

Projeção

Falando agora mais de perto com a sua escrita. Uma questão assim: você fala sobre a tendência de enquadrar a ética como disciplina de metodologia científica. Talvez a grande questão seja pensar como é que a gente está fazendo as disciplinas de metodologia científica. Mais do que dizer que o problema está em enquadrar a ética na metodologia, é questionar os usos que estamos fazendo da metodologia. A metodologia é o lugar de pensar o desafio de fazer pesquisa? Ou a metodologia é o lugar de descrever o passo-a-passo da pesquisa? Aí eu acho que o próprio problema não está exatamente no fato de se colocar a ética dentro da metodologia, mas de perguntar: O que a gente está fazendo com a metodologia? Essa é uma questão importante para todos nós.

Outra coisa que eu queria que você nos ajudasse a desenvolver: quando você fala que se propõe a “substituir a problematização da ética em pesquisa pela ética da problematização em pesquisa”, o que que você quer, de fato, dizer com isso? Eu te confesso que fiquei um tempo parado nessa tua afirmação, para tentar entender o que você está querendo dizer, mas prefiro te ouvir. E aí você fala: "Tratase não só de assumir a obrigação de prever implicações éticas a cada fase da pesquisa, mas também de projetar medidas éticas aplicáveis desde o projeto até a publicação dos resultados." E aí eu também te pergunto: O que você quer dizer com projetar medidas éticas aplicáveis? Eu estranho a palavra "projetar" aí. Projetar medidas éticas aplicáveis seria o quê? Seria prever que medidas éticas são essas? Mas se é possível, para nós, projetar medidas éticas, isso significa então que o campo não nos surpreende. A ponto de conseguirmos projetar quais são essas medidas. Me parece então que a noção de projetar medidas éticas dificulta pensar a ética da nossa relação com o campo no sentido que nos interessa. Ou seja, de acompanhar, o tempo todo, os desafios éticos que o campo nos coloca, sem essa noção de projeção, sem essa noção de conseguir prever medidas éticas, já que o campo é um campo que está nos surpreendendo o tempo todo. Inclusive nos desafios éticos que nos impõe.

Outra questão que eu também não entendi, quando você fala: "Problematizar a ética, transformá-la em questão demandante de respostas." Mas o que significa isso? Como, assim, transformar a ética em questão demandante de respostas? O que é "demandante de respostas", afinal de contas? Estou perguntando porque não entendi de fato. Mesma coisa também aqui: "Até que ponto vale avançar, até que ponto é melhor se conter ou então recuar, tendo em conta o impacto previsível de determinada ação sobre a vida alheia?" Mais uma vez, a noção de previsão. Assim como você, em outro momento, fala sobre a projeção de medidas éticas, agora também vem falar sobre "o impacto previsível de determinada ação", não é? Porque acho assim: uma coisa é a gente reconhecer que as nossas ações produzem impactos. Por isso que toda pesquisa é intervenção. Outra coisa é a gente conseguir prever que impactos são esses. Talvez seja essa a questão que eu coloque a você: Estamos pensando a pesquisa a partir da possibilidade de prever os impactos que ela produz no campo? Ou partimos do princípio de que ela produz impactos que só vamos conhecer com o próprio desenrolar da pesquisa? Desenvolver essa noção de que toda pesquisa é intervenção, acho então que pode ser uma pista interessante para o seu trabalho. Até para a afirmação de tudo o que você diz.

 

Esclarecimento

Tem outro ponto em que você fala assim:"Eis a razão das exigências colocadas em prática pelas instituições sérias de pesquisa acadêmica no que diz respeito à mais rigorosa previsão dos preceitos éticos cabíveis em cada investigação." Aí, minha primeira pergunta é:

O que você está chamando de instituição séria? Como pode uma instituição ser séria a priori? Porque uma instituição séria é aquela que é, a priori, séria. Como pensar essa seriedade a priori, se, quando a gente fala da pesquisa, está sempre tratando de algo em desenvolvimento? Por que o adjetivo "sério" ao falar de instituição? Se o desafio ético não se dá a priori, mas em cada relação de pesquisa, como falar em rigorosa previsão de preceitos éticos?

Acho que uma discussão também interessante, quando a gente fala sobre o TCLE, diz respeito a uma pesquisa feita aqui, pelo pessoal de linguística da UFRGS.7 Eles fizeram essa pesquisa há mais ou menos cinco anos. Pegaram TCLEs aprovados pelo comitê de ética do hospital universitário daqui da UFRGS e fizeram uma pesquisa de linguística, visando saber quantos anos de escolarização é necessário para compreender exatamente tudo o que consta nesse tipo de documento. Não conheço como se faz pesquisa de linguística nesse nível, mas é assim que eles fizeram. Eles queriam saber quantos anos é preciso para que se possa, de fato, compreender o que se escreve nesses textos. E fizeram essa pesquisa com TCLEs aprovados. No final, chegaram à conclusão de que é preciso, em média, 31 anos de escolarização para compreender exatamente tudo o que está escrito. A grande pergunta que a pesquisa fez é: Até que ponto dá para dizer que o TCLE serve para nos tornar livres e esclarecidos sobre o que é a pesquisa? Já que a própria linguagem do TCLE exige pelo menos 30 anos de escolarização, serão todos professores titulares, os sujeitos de pesquisa? Senão, parece que a gente tem um problema. Temos a escrita de um termo que se propõe a tornar a pesquisa livre e esclarecida, mas a própria escrita do termo não permite que as pessoas entendam o que nele está escrito. Essa é uma pesquisa bastante interessante nesse sentido. Mas eu acho que a sua questão aqui é outra. Não entendo porque você passa tanto tempo falando de CEP e de TCLE, quando a questão é mesmo, de fato, outra. Essa é a minha impressão lendo o texto.

 

Concepções

E então você coloca assim: "Significa assumir o compromisso de prever implicações éticas a cada passo da investigação e projetar medidas éticas." E aí eu fui implicando com todos os seus "prever" e "projetar" que vão se colocando ao longo do texto. Porque eu acho que realmente a questão não é de previsibilidade. A questão ética não é de conseguir prever o que vai acontecer e, portanto, de conseguir adotar uma postura que possa minimizar o risco. Porque aí, essa noção de previsibilidade e de projeção vem muito articulada à noção de risco das pesquisas biomédicas, de onde a gente quer fugir. Entrar nessa de previsão e de projeção é algo que nos aproxima muito mais de uma certa concepção de pesquisa que, de fato, não está dialogando com a gente.

Em outra hora também você fala: "Fazer da sua própria reputação um exemplo digno de memória e reconhecimento ao olhar dos outros." Isso não seria individualizar a questão ética? Não seria, de novo, fazer um retorno da ética em pesquisa para a ética do pesquisador? Me parece também que essa é uma questão importante para a gente pensar. Não no sentido de pensar a ética como retorno a um indivíduo ético, a um pesquisador que precisa ser ético, mas de pensar a ética em pesquisa como uma dimensão que é coletiva, que remete à relação do pesquisador com milhões de coisas que aparecem na pesquisa. Não no sentido de uma atitude do pesquisador a priori, porque senão a gente vai entrar numa de que a ética em pesquisa se resume a um pesquisador ético. Acho que também são questões para você pensar.

Mais uma vez, quando faz referência à sua pesquisa, você fala de uma pesquisa já concluída. Quando é que uma pesquisa está concluída? Quando eu faço uma pesquisa, publico essa pesquisa, ela está lá na Polis e Psique8 por exemplo, e alguém pega o meu artigo e faz uma citação, essa minha pesquisa não está concluída. Ela está servindo para outras coisas. Ou seja, nós pesquisadores não somos mais donos da nossa pesquisa a partir do momento em que a gente coloca ela no mundo. E se a gente coloca ela no mundo, não é mais dono dela, não faz a menor ideia se ela está concluída ou não. Eu queria dialogar com você sobre isso. Quando você fala que ela já está concluída e resolve exumar a pesquisa: Como é pensar a exumação de algo que está no mundo? Já que a pesquisa é, de fato, a problematização dos seus efeitos?

 

Controvérsias

Uma outra coisa importante, mais para o final, quando você fala sobre as resoluções de ética em pesquisa (196, 466, 510). Se você quiser manter essa discussão (eu tiraria), acho que é bom falar sobre as próprias controvérsias envolvidas na resolução 510. Porque você coloca aqui, né: "A resolução 510 que veio regulamentar a ética da pesquisa em ciências humanas e sociais.” Acho bom lembrar que a ética em pesquisa tomou um golpe. A resolução 510 foi construída para que as ciências humanas e sociais tivessem outro modo de pensar a própria questão da eticidade em pesquisa. A CONEP9 criou um GT para se pensar a noção de risco, a partir de uma briga de muitas entidades, inclusive da psicologia, que estão envolvidas nessa discussão. Em certo momento, a CONEP dissolveu esse grupo de trabalho e a Resolução 510 acabou não servindo para regulamentar as ciências humanas e sociais. Então é só um adendo, porque essa é hoje uma grande controvérsia colocada em nosso campo. Existem comitês de ética, inclusive em ciências humanas, querendo sair do sistema CEP-CONEP, entendendo que a resolução sofreu um golpe. Esse é o momento que a gente vive agora. Afirmar, como você faz, que a resolução veio regulamentar a ética de pesquisa em ciências humanas e sociais, significa negar o momento que a gente está vivendo na disputa com essa própria resolução. Uma nota de rodapé, pelo menos, valia aqui para apontar que ela não veio regulamentar da maneira como a gente inclusive até acreditava que ela viria. Embora eu ache que a sua proposta não passa por uma discussão sobre a resolução da ética em pesquisa.

Outra questão é que, às vezes, quando a gente afirma a ética em pesquisa a partir do campo, e não a partir de um protocolo, parece que essa discussão só serve para as pesquisas em ciências humanas e sociais, parece que só a gente tem um campo que nos surpreende. As ciências duras, para elas, parece super-tranquilo isso tudo: elas fazem um protocolo porque o campo isso, o campo aquilo... Na verdade, a grande questão é a gente pensar qual é a nossa relação com a recalcitrância do campo. Porque a gente também poderia torturar o campo. Se o campo me surpreende, eu faço ele não me surpreender. Eu torturo o campo. Mas acho que isso não é algo específico das ciências humanas. Talvez, nas ciências humanas e sociais, a gente faça essa discussão de maneira tal que fica parecendo, para nós mesmos, como se fosse uma questão diferente do que é para as ciências duras. Mas vamos lembrar A Vida deLaboratório do Latour,10 por exemplo, onde ele discute essa questão das ciências de um modo mais amplo. É porque você coloca aqui, né: "Os desafios éticos foram significativos, não apenas pelas limitações da Resolução 196 quanto ao enfoque qualitativo em ciências humanas e sociais, mas sobretudo..." Então acho que essa é uma discussão para as ciências em geral. Talvez nós, das ciências humanas e sociais, estejamos sendo protagonistas da discussão, mas não é só a gente, não. Tem gente nas ciências duras que também faz essa discussão de maneira bastante interessante. Essa é uma questão voltada a todas as ciências. O desafio da ética em pesquisa como forma de relação com o campo é uma questão colocada não só para as ciências humanas e sociais, mas para o conjunto das ciências.

 

Autonomia

Outro ponto, quando você vai falar sobre a sua questão do pesquisador e do militante, acho que a noção de implicação é bem interessante para a gente discutir isso aí. Não concordo plenamente com a postura inicial de tentar separar os lugares do pesquisador e do militante.

Mas concordo com aquilo que você discute depois que passa a olhar para a própria pesquisa. No caso, a noção de implicação te ajuda a fazer essa discussão. A noção de implicação que está lá no Lourau. Tem um livrinho antigo até, mas que depois virou uma edição especial da Mnemosine, a revista da UERJ, sobre a vinda do Lourau ao Brasil (esqueci o nome do livro, mas está numa edição da Mnemosine , um texto do Lourau),11 onde ele discute sobre pesquisa, sobre implicação em pesquisa, que eu acho interessante para pensar isso.

Como falei, outra noção que pode ser muito interessante é a noção de recalcitrância, é a noção de que o campo me surpreende, pois não é dócil como eu achava que fosse. O campo vai me dar rasteira. E os desafios éticos são exatamente os de lidar com as imprevisibilidades do campo. Ou seja, não é tornar a minha pesquisa previsível, mas sim, assumir que o campo é imprevisível. Assumir que o campo nos surpreende: talvez seja essa toda a graça da pesquisa.

Outra questão também importante é essa discussão que você traz sobre a identificação dos nomes completos. Isso aí faz parte da própria discussão sobre a autonomia dos sujeitos. Eu acho que a discussão não é de saber se usa o nome do sujeito ou se usa o pseudônimo, mas de perguntar ao sujeito como é que prefere aparecer nas pesquisas. Talvez pensar isso a partir da relação com a autonomia seja bem interessante. Por exemplo, eu tenho uma orientanda que trabalhou com pessoas travestis e transsexuais que moveram processos judiciais de retificação do próprio nome. Na verdade, é uma pesquisa sobre a justiça e não sobre as pessoas travestis e transexuais. Muitas vezes a gente acha que a assinatura do TCLE é um grande entrave para a pesquisa. Naquela pesquisa, a assinatura do TCLE foi um grande dispositivo de implicação da própria pesquisa. Porque ali elas puderam assinar o nome que queriam assinar. E era essa a primeira pergunta: “Mas eu assino que nome?” Porque era essa a questão que estava em jogo ali, com aquelas pessoas. E a gente dizia: "Você assina o nome que você quiser." Assinaram o nome que elas escolheram, mesmo ainda sem a retificação visada, porque eram todas pessoas que tiveram seus processos negados pela justiça. Foi um grande instrumento de implicação da pesquisa. Elas faziam questão do nome que escolheram para a sua identificação na pesquisa, Porque, naquele contexto, o nome era algo extremamente relevante. Então vale pensar assim: O que o sujeito quer? Eu acho que isso é mais interessante do que fazer uma discussão do tipo: usa o nome próprio ou não usa o nome próprio. Perguntar ao campo como é que ele quer ser identificado talvez seja algo bastante interessante para a gente articular até com a própria noção de autonomia do sujeito. Porque você fala: "Dar aos próprios sujeitos os créditos pela autoria de suas próprias histórias." Talvez uma grande pergunta seja: De que modo cada um entende crédito? E isso pode ser uma questão importante.

 

Desafios

Outra questão, quando você fala: "Claro que, agindo assim, poderia contaminar os resultados finais." Que lógica de pureza é essa? Que lógica de pureza é essa que a gente não pode contaminar os resultado finais pela presença do próprio pesquisador? Acho que também aqui seria um ótimo momento de discutir outra noção para o chamado paralaxe das ciências físicas e naturais. E mais duas questões que eu queria que você desenvolvesse melhor, porque também não entendi, são as duas frases finais do seu trabalho. Porque você fala, na primeira: "Nos limites deste texto, a frustração não passa de irritação com o tempo perdido no cultivo de determinada expectativa de conteúdo disponível ao final da leitura." Aí, a outra: "Já no campo da pesquisa social, a frustração de expectativas geradas nas relações éticas que o pesquisador estabelece pode suscitar consequências bem mais graves, delicadas, profundas e irremediáveis." E aí, o seguinte: Como é que é essa noção de frustração? Acho que também essa é uma discussão importante.

Enfim, queria te parabenizar pelo modo como seu texto nos faz pensar. Essa é uma discussão que merece uma problematização. Pensar a ética em pesquisa é algo fundamental. Se a gente está trazendo esse tema aqui é porque já entendeu que a ética, para nós, não é construir um bom projeto. Então eu parto de que, para nós, o bom projeto não é aquele que nos serve inteiramente para a aplicação no campo. É interessante falar isso aqui, neste lugar, com tantos estudantes que já foram candidatos a um programa de pós-graduação e tiveram que fazer seu anteprojeto. Porque às vezes parece que a banca avalia qual é o projeto que está mais pronto para ir ao campo. E não é isso o que a gente pensa quando avalia um projeto.

Porque a gente não acredita que o bom projeto seja aquele que está pronto para ir ao campo. O bom projeto é aquele que suscita a ida ao campo. O bom projeto é aquele que tem dispositivos suficientes para me fazer pensar que a ida ao campo é algo que vai me instigar. O bom projeto não é aquele que será fielmente aplicado ao campo. Porque é aí, exatamente aí, que se dão os desafios éticos de pesquisa. E, claro, os desafios éticos de pesquisa também se dão nos nossos coletivos de pesquisa, nos nossos grupos de pesquisa, na relação com a orientação, na relação com os outros colegas. A fase do "comitê de ética em pesquisa" é uma fase importante para a gente pensar o nosso projeto e então, é claro, os desafios éticos se dão a partir daí. É nesse ponto que a gente está falando igual. É isso. Obrigado!

 

Notas

1 Exposição oral apresentada em 18/10/2018 em Porto Alegre, no âmbito do evento Psicologia, Direitos Sociais e Políticas Públicas: Temas em Debate nos 20 anos do PPGPSI, sob promoção do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, como comentário crítico ao artigo Entre a problematização da ética e a ética da problematização, de Adriano Ruschel Marinho.

2 Resolução n° 510, de 07/04/2016, do Conselho Nacional de Saúde (CNS), sobre a ética da pesquisa em ciências humanas e sociais.

3 Resolução n° 196, de 10/10/1996, do CNS, sobre diretrizes e normas de pesquisa envolvendo seres humanos.

4 Resolução n° 466, de 12/12/2012, do CNS, em atualização à Resolução n° 196/1996-CNS.

5 Comitê de Ética em Pesquisa.

6 Despret, V. (2011, agosto, dezembro). Conversa com Vinciane Despret após conferência abertura. 2 Colóquio Internacional Entre_Redes. Pesquisas e Práticas Psicossociais,6(2),170-173. Recuperado em 15 abril, 2019, de ufsj.edu.br/portal2-repositorio/File/revistalapip/volume6_n2/Debate_1.pdf

7 Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

8 Revista eletrônica do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS.

9 Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Grupo de trabalho.

10 Latour, B., & Woolgar, S. (1997). A vida de laboratório: a produção dos fatos científicos. Rio de Janeiro: Zahar. Recuperado em 16 abril, 2019, de pedropeixotoferreira.files.wordpress.com/2011/02/latourewoolgar_a-vida-de-laboratorio-e28093-a-producao-dos-fatos-cientificos_book.pdf.

11 Lourau, R. (2007). Primeiro encontro (26.04.93). In R. Lourau. René Lourau na UERJ: análise institucional e práticas de pesquisa. Mnemosine, 3(2),5-23. Recuperado em 16 abril, 2019, de www.mnemosine.com.br/ojs/index.php/mnemosine/article/viewFile/113 /pdf_98.

 

 

Pedro Paulo Gastalho de Bicalho é professor associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro, vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia e ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas em Direitos Humanos. Bolsista de produtividade em pesquisa (CNPq).
E-mail: ppbicalho@ufrj.br

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