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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.spe Porto Alegre  2019

 

ARTIGOS

 

Quem fala consente? Diálogo sobre o dizer e o calar na Academia

 

Who speaks consent? Dialogue on saying and to silence at the Academy

 

¿Quién habla consiente? Diálogo sobre decir y callar en la Academia

 

 

Ariadne Cedraz; Marciana Zambillo; Raquel Guerreiro

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Este escrito, que se pretende um Texto - conceito exposto por Costa (2017), o qual considera que o encontro com uma escrita produz acontecimento - parte das proposições colocadas por Deleuze em O método da dramatização e em Um manifesto de menos, além de considerar os escritos de Sílvia Balestreri acerca do trabalho de Carmelo Bene e seus desdobramentos. Tratase de uma escrita que começa em um percurso que se instaura antes mesmo do início de uma sentença e vale-se de Clarice Lispector para firmar-se como algo que começa e cresce pelo meio. Ao mesmo tempo, é um escrito que, a partir de Costa, Deleuze, Guattari, Lapoujade, entre outros autores e artistas, pede passagem para não ter fim. Flertando com a escrita teatral, o presente trabalho intenta apresentar o fenômeno-circunstância - personificado na personagem Palavra dita-demais - por meio do qual conceitos perdem força e sentido, ao serem aplicados e replicados de forma vazia, em nossos próprios discursos. Tal fenômeno sinaliza que dadas palavras-conceito podem virar símbolo de status, assim como podem servir para viabilizar um diálogo que repete o mesmo, sem levar ao pensamento e à criação.

Palavras-chave: conceito; escrita acadêmica; método da dramatização


ABSTRACT

This writing, which is intended as a Text - concept presented by Costa (2017), which considers that the encounter with a writing produces event - goes from the propositions made by Deleuze in The method of dramatization and One manifesto less, besides considering Silvia Balestreri's writings on the work of Carmelo Bene and it's deployments. This writing begins on a path that begins even before the beginning of a sentence and uses Clarice Lispector to establish itself as something that begins and grows through the middle. At the same time, it is a writing that, from Costa, Deleuze, Guattari, Lapoujade, among other authors and artists, asks for passage to never end. Flirting with theatrical writing, this work intends to present the circumstance-phenomenon - personified in the character Word-too-much-said - through which concepts lose their force and meaning when applied and replicated in an empty way, in our own speeches. Such a phenomenon signals that given word-concepts can become a status symbol, as well as serve to enable a dialogue that repeats the same, without leading to thought and creation.

Key words: concept; academic writing; method of dramatisation


RESUMÉN

Este escrito, que pretende ser un Texto - concepto expuesto por Costa (2017), que considera que el encuentro con un escrito produce acontecimiento - parte de las proposiciones hechas por Deleuze en El método de dramatización y Un manifiesto menos, además de considerar los escritos de Silvia Balestreri acerca del trabajo de Carmelo Bene y sus desarrollos. Es una escritura que comienza en un camino que se crea antes del comienzo de una oración y usa Clarice Lispector para establecerse como algo que comienza y crece en el medio. Al mismo tiempo, es un escrito que, desde Costa, Deleuze, Guattari, Lapoujade, entre otros autores y artistas, pide pasaje para que no termine. Flirteando con la escritura teatral, el presente trabajo tiene la intención de presentar el fenómeno-circunstancia - personificado en el personaje Palabra demasiado dicha - a través del cual los conceptos pierden su fuerza y significado cuando se aplican y replican de manera vacía, en nuestros propios discursos. Tal fenómeno indica que dadas palabras-conceptos pueden convertirse en un símbolo de estatus, así como también sirven para permitir un diálogo que repite el mismo, sin conducir al pensamiento y a la creación.

Palabras clave: concepto; escritura académica; método de dramatización


 

 

, pois parece não ser mais importante dizer se é, ou não, verdade esta história. Talvez, até depois do depois de um amanhã longínquo, os personagens aqui envolvidos perguntem a si mesmos o que permanecerá mistério.

Para fins de meio entendimento, considere uma sala. A sala é grande, tem uma mesa, uma estante,______, um sofá, e você pode dispor esses elementos como bem entender.

Perceba os detalhes.

A sala está cheia de livros. Livros abertos, livros entreabertos. Livros nunca antes abertos. Livros para sempre fechados.

Na sala, além das vidas-lidas expostas e escondidas, outras idas: papéis rascunhados, um computador ligado e uma pessoa a sua frente.

Você pode interpor, sobrepor ou até compor a cena vagamente descrita. Se você fechar os olhos por “um, dois, três, quatro, cinco, seis” segundos, conseguirá ver a sala em suas minúcias.

Agora, retire da sala os livros, os papéis, o ser. Retire da sala o sofá, a estante,______, o computador. Para enxergar melhor esta história, retire da sala a luz e, por fim, retire da cena a sala.

Quando se pensou que tudo poderia ser suprimido, até um silencioso vazio, surgiram: Cabeça, o Nada, a Palavra não-dita e a Palavra dita-demais.

CABEÇA: (aos berros) Por favor, Palavras, apareçam!

NADA: (aparece em cena lixando as unhas, como quem não tem nada a fazer) Cabeça, saiba ao menos pedir exatamente o que queres! Melhor que tu digas: Palavras, escrevam! Não é algo escrito que queres? Então, nem precisas conjurar nenhuma entidade, basta que o trabalho seja feito. E, se essas palavras por quem gritas resolverem aparecer, creio que podes arrepender-te amargamente.

PALAVRA DITA-DEMAIS: Vocês me parecem um tanto equivocados, meus caros. Isso aqui não é sessão de bruxaria para que qualquer ente seja conjurado, evocado, ou qualquer que seja o termo mais adequado neste contexto. Não obstante a isso, parece-me que vocês estão acometidos por certa perda de memória. Estou e estive aqui o tempo todo, desde antes das primeiras linhas desta conversa. Presentifico-me mesmo no silêncio, para formar pensamentos, ornar ideias e institucionalizar um entendimento do mundo. E você? (diz indagando ao Nada) Quem é você e, que mal lhe pergunte, o que está fazendo nesta cena?

NADA: “Eu, Nada, a luz desta cidade pela cultura e pela instrução, um bêbado ridicularizado por todos porque é livre para desprezar as coisas e vomitar nas honrarias...”.1

PALAVRA DITA-DEMAIS: (interrompendo) Letrado esse seu amigo existencialista, Cabeça! Já começa citando Camus.

CABEÇA: (expressando confusão) Era mesmo Camus? (saca do bolso um caderninho e uma caneta e, virando-se para o Nada, pergunta) Você poderia repetir o que disse, pra ver se eu posso usar a citação?

NADA: Pois... agora essa fala já perdeu a graça... a Palavra não me deixou anunciar o fim do mundo!!!!

PALAVRA DITA-DEMAIS: Não foi a minha intenção, caro Nada, sinônimo de coisa nenhuma! Como você sabe - e se não souber, deveria saber - não creio que seu tom jocoso seja à toa. Huizinga destaca a importância do lúdico. O homo ludens somos nós, não?! Creio que pode ter sido esse o seu propósito. Está vendo, Cabeça? Estamos aqui por você.

CABEÇA: Já vi que você está aqui. suas palavras inteligentes fazem com que eu me sinta cada vez mais na casa da burrice (fala como quem pensa alto). Ouvir Palavra falando e Nada recitando prosa, deve ser devaneio. Só posso estar sonhando! Mas, se estiver sonhando, deveria eu ignorar esse texto? Seria esse um pré-texto ou pretexto para alguma coisa nesse contexto? Se isso for mesmo um sonho, talvez nada disso faça diferença.

PALAVRA DITA-DEMAIS: De novo em crise, Cabeça?! Parece que não pensa! Não entende as coisas? Que diferença faz se é realidade ou ficção? Mais importante que aquilo que é pactuado como real é a potência das forças. Esclarecer-lhe-ei algumas coisas: O que você vive é um PRO-CES-SO. E, nada mais promissor do que transformar este processo em escrita! Pode-se usar um personagem conceitual, tornarse um peregrino, chamar a si mesmo de Alice e conhecer maravilhas.Fazendo tudo do jeito precisamente estudado, você poderá ser lido, discutido, admirado! Mas, atenção! Para este fim, é de suma importância o uso das palavras adequadas. É preciso deixar transparecer o advento do conhecimento em cada linha que se percorre. (vira-se para Nada) Entende isso, Nada?! É exatamente por isso que Cabeça me chama. (olha novamente para Cabeça e diz) Estou às ordens!

NADA: Tenho a impressão de que tu não sabes, Palavra dita-demais, se ficas às ordens ou se impões a ordem! Tu serves a tantas senhoras - tantas ciências e tantas filosofias - que só podes estar caducando. E, quando digo caducando, do verbo caducar, quero dizer que chegou ao término o teu prazo de validade. Tuas folhas já começam a cair, anunciando um longo e tenebroso inverno.

CABEÇA: Devo estar sonhando mesmo! (belisca-se e sente dor) Ai!

NADA: Cabeça, essa Palavra que vos olha, (e faz menção a tal personagem apontando para ela com as duas mãos) Palavra dita-demais, tem este nome não somente por ocupar um lugar importante, mas também é assim denominada pois todos a repetem de qualquer modo. Ela não mente quando assume que está em tudo. Tu podes vê-la entranhada na filosofia clássica, mas, ao mesmo tempo, enroscada na filosofia dita subversiva. A Palavra dita-demais morou na Idade Média e vive sem custos na contemporaneidade. Nos discursos científicos de ontem e de hoje, ela nomeia o dito. A pose com a qual se apresenta, fez com que ela ocupe relatórios... políticas, além de inúmeras cabeças.

PALAVRA DITA-DEMAIS: (como quem se sente orgulhosa de si) Até agora só ouvi elogios... pode continuar!

NADA: Pois sim... (movimentando-se como quem faz reverência) Lembra-te quando se serviram de ti para exporem tua legítima vocação?

PALAVRA DITA-DEMAIS: Não sei do que se trata esta sua explanação que talvez seja ludibriosa...

(Cabeça apresenta cada vez mais interesse no monólogo feito por Nada. Palavra dita-demais faz sinal para que Cabeça ignore Nada. No entanto, Nada continua)

NADA: Certa feita, uns físicos - para quem esta Palavra (e aponta para a Palavra dita-demais) já serviu - resolveram agrupar uma certa linhagem de palavras ditas-demais em formato de artigo e o submeteram à publicação em uma revista de Estudos Culturais. As palavras não foram, de forma alguma, escolhidas ao acaso: ao perceberem a utilização de conceitos das ciências exatas pelas ciências humanas, segundo eles de forma inadequada e abusiva, os autores se serviram de expressões já cristalizadas em certos escritos, para satirizar a construção do pensamento dito pós-moderno. Assim, esses senhores da ciência, de um jeito bem "DITO-DEMAIS" - para usar teu sobrenome, Palavra, e lavrar meu compromisso com a ABNT - queriam expor a crítica de que grupos interessados em aparentar erudição a partir da reprodução de certas palavras, ao extirpá-las de seus contextos, somente vociferavam coisas sem sentido, comprovando - fisicamente - que palavras ditas-demais podem, mesmo vazias, assumir o status de ciência comprometida. Posso dizer-te que o resultado do escrito paródico ficou apolínio, mas não dizia absolutamente nada. Mesmo assim, foi publicado em uma revista de renome.

PALAVRA DITA-DEMAIS: (pouco amistosa) Calúnia!

CABEÇA: Do que você está falando, Nada?

(O Nada lê uma citação impostando a voz como quem quer parecer um professor que profere a verdade)

NADA: “Uma característica da ciência pós-moderna emergente é sua ênfase na não-linearidade e na descontinuidade: isso é evidente, por exemplo, na teoria do caos e na teoria das transições de fase, bem como na da gravitação quântica. Ao mesmo tempo, pensadoras feministas ressaltaram a necessidade de uma análise adequada da fluidez, em particular a fluidez turbulenta. Esses dois temas não são tão contraditórios quanto possa parecer à primeira vista: a turbulência se relaciona com a forte não-linearidade, e o caráter suave/fluido é, às vezes, associado à descontinuidade (por exemplo, na teoria das catástrofes); assim, uma síntese de modo algum está fora de cogitação.”2

(Ao final, o Nada suspira, como quem quer mostrar que a erudição é debilitantemente pedante)

PALAVRA DITA-DEMAIS: O artigo-chacota foi um deleite. Tenho muitos senhores, de fato. Quando eles não se entendem, pegam partes de mim e repetem à exaustão, daí meu nome! Entretanto, talvez seja interessante pôr em análise esse surto verborrágico. Talvez esse Nada, Cabeça, esteja valendo-se do lúdico para tratar de coisas muito sérias. Pergunto-me sobre quão poderosa pode ser a prolixidade de um discurso em vias de se fazer entendido, pergunto-me como o paradigma ético-estético-político pode valer-se, sobretudo, de outras ciências como a física quântica, citada na fala do colega, para destacar a não-linearidade das coisas, pois o tempo e a duração...

NADA: (se coloca frente à Palavra dita-demais, ajoelha-se e, com as mãos juntas, como quem suplica, começa a falar) Oh Palavra-soberana... Suprassumo do conhecimento mediano, parca fonte de conceitos e manancial de inesgotável soberba. deleita-me com tua sapiência e expliques a mim, pobre súdito do saber, ignóbil por natureza, como um texto desvela-se na sua própria onipresença inquestionável, em vez de denunciar a possibilidade de vazio e inépcia! (levantase e sorri disfarçadamente, com tom sarcástico)

PALAVRA DITA-DEMAIS: (com o dedo em riste) Alto lá, Monsieur Rien! Não pense que estar todo inspirado em coisa alguma lhe dê o direito de me insultar, ou mesmo desestabilizar a erudição que constitui todo meu conhecimento. Você parece realmente não saber o que diz ao desdenhar, com ironias, minha importância neste contexto e, por que não, em outros contextos também. Ora, ora, ora... talvez eu possa até dizer que não há mais conhecimento sem mim. Logo eu, que faço corpo uno onde antes só havia o pensamento fragmentado. É por meio de mim que a ciência torna-se viável, compreensível. Eu trago entendimento, onde antes apenas pairava a dúvida e o não-saber. Eu posso separar os homens dos animais, os letrados dos relativamente imbecis, a lei do crime. Eu sou condição primeira do diálogo acadêmico, inteligente, inteligível, intelectual e, portanto, superior às falas brandas do senso comum, da ciência estreita, da ausência de saber. Eu sou a própria instituição. Vocês deveriam ficar lisonjeados pela minha onipresença, se assim posso dizer. Por conseguinte, afirmo, sem titubear, que Cabeça precisa de mim, e chamou-me aqui justamente porque apenas através de mim poderá defender-se, prosseguir sua existência e, quiçá, atingir a eternidade. Apenas co-mi-go e com ninguém mais. Sem mim, vocês não saberiam hipotecar o futuro, nem reivindicar os mortos. Não compreendo o motivo de estarmos perdendo tanto tempo com esta discussão sem nenhum fundamento.

(Cabeça suspira, olha para o Nada de um lado, olha para a Palavra dita-demais do outro... tem um olhar confuso, como quem acha que fez algo errado e tem que pedir desculpas, mas, ao mesmo tempo, não sabe ao certo o que fez)

NADA: (falando para Palavra dita-demais) Oh, minha cara, perdoe-me por meu péssimo comportamento (e a olha com um sorrisinho de canto de boca). Tu tens toda a razão do mundo, tu és tudo isso aí que afirmas ser. Eu, por outro lado, Nada sou, como bem observastes no início. Para além do teu blá-blá-blá, talvez eu precise dizer que não são as palavras que precisam ser postas à prova ou encaminhadas à danação! Palavra largada sozinha não têm força. Quem sustenta e reafirma a tua capacidade e condição de status? Talvez as palavras não sejam o verdadeiro crime.

CABEÇA: Você está insinuando que talvez mesmo a Palavra dita-demais, que você tanto acusou, pode ter alguma serventia?

PALAVRA DITA-DEMAIS: É lógico que tenho serventia! Ignore este sujeito. Até agora ele não nos apresentou argumentos consistentes, tampouco apresentou dados ou resultados, o que nos leva a crer que ele não tenha capacidade de produzir conhecimento. Para mim, ele não disse nada!

NADA: O impasse que aqui se consuma elucida o fenômeno, no qual alguns modos de dizer ganham notoriedade em detrimento de outros! A Palavra dita-demais se institui como se houvesse uma única modalidade de dizer as coisas. É como se ela (aponta para um canto do palco em meia luz), aquela que estava ali a todo momento, mas que ninguém percebe, não pudesse imprimir o que cala. (diz em tom circense) Senhoras e senhores, escritos, inscritos, escritoras e escritores, que rufem os tambores (som de tambores que anunciam o auge de um espetáculo de circo), palmas para ela: a Palavra não-dita (enquanto fala, Nada aponta para um local do palco, onde se acende um canhão de luz e a plateia pode ver a Palavra não-dita, que está de costas). Aplausos senhoras e senhores! Mais palmas para ela!!! (Nada aplaude, sons de aplausos da plateia transbordam no ambiente, enquanto o palco escurece e, posteriormente, emudece para que possa ser ouvido o fantasma das vidas-lidas).

(Narrador) FANTASMA DAS VIDAS-LIDAS:Bem-vindo caríssimo leitor, espectador e/ou criador de si. Eu sou o narrador desta história, por isso peço que perdoem o insano diálogo das criaturas que não se calam. Esta narrativa poderia ser outra qualquer, num cenário qualquer, pois, afinal de contas, retiramos da cena a sala onde, supostamente, tudo deveria começar, se esta fosse uma conversa corriqueira. Amputamos da cena tudo aquilo que se poderia facilmente presumir, abrimos espaço para a emergência de condições de possibilidade de existências outras, que podem estar aí, por trás desses olhos que escutam ou desses ouvidos que leem.

Pelo que se sucedeu desde o princípio desta cena-acontecimento, que coloca no palco o drama da própria vida, a amputação parece deflagrar um excesso, em vez de apontar para a falta de algo. Mas o que se excede? O que transborda? Talvez, por meio da operação de subtração - da limpeza do que pode facilmente ser percebido - seja possível fazer ver outros modos de existência: os virtuais. Portanto, ao considerarmos o ato de minorar enquanto um ato de criação, torna-se visível o invisível - porém presente, desde antes. O que se desvela em tal desenlace é tão inusitado quanto o real. Como se pôde testemunhar, Seu Nada, nada deixa passar; assim como a Palavra dita-demais nunca deixa de dizer, e Cabeça, em crise, está prestes a enlouquecer. Apesar disso, como é certo que algo mais na cena havia, a Palavra não-dita, calada se ia, nem sequer aparecia.

Estava, sentia, mas nada dizia. Parecia ressecada de conceitos que, de tão repetidos, estampam o mundo sem precisar dizer.

(A pausa de cena é interrompida, os personagens se tornam novamente visíveis)

CABEÇA: Havia ainda outra Palavra? Além de estupidez, cegueira pode ser outro substantivo a colar no meu nome!

PALAVRA DITA-DEMAIS: Não posso crer que vocês estão dando crédito a uma outra que nem se pronuncia, que não fala! Mesmo que haja qualquer ente aqui neste cenário, não admito que deva ser dada qualquer importância. Até uma porta no meio desta cena chamaria mais atenção que o silêncio desta aí!

NADA: (recitando a poesia) “Eu sou feita de madeira

Madeira, matéria morta

Mas não há coisa no mundo

Mais viva do que uma porta”3

(vira-se para a Palavra não-dita e fala) Palavra não-dita, acho que essa (apontando para a Palavra dita-demais), a que te chamou de 'outra', quis insinuar que tu és “burra como uma porta”. Não obstante a isso, (falando com a Palavra dita-demais) Palavra dita-demais - personagem-fenômeno de peça acadêmica - gostaria de ressaltar que tu falas de quem não fala, mas ninguém aqui pergunta o motivo do silêncio da Palavra não-dita! Tão calada... mas por quem? Pelo quê? Será que o silêncio desta palavra não resulta do fato de que um tipo de discurso se faz insuportavelmente ouvido silenciando tudo o mais?! Sons impronunciados que repousam no ainda não; ou mesmo formas que jazem na visão periférica, relegadas ao fundo, mas que sustentam de pé estruturas que se agigantam...

PALAVRA DITA-DEMAIS: (bate palmas três ou quatro vezes, pausadamente, antes de começar a falar) Decerto que as colocações que o Nada tanto gosta de apresentar podem ter sentido profícuo. Mas deixemos de lado algumas questões. há sempre um momento neste processo em que a palavra precisa ser escrita! Até agora, esse Nada, que se finge inteligente, só citou Camus e Vinícius de Morais e, pelo que me recordo, nenhum dos dois é reconhecido enquanto autor acadêmico.

CABEÇA: Agora você fala como se a ciência nunca tivesse usado a arte para qualificar ou servir de inspiração para as suas produções, ou mesmo se valido da arte para apresentar uma ideia!

NADA:Muito bem, Cabeça! Estás começando a pensar por ti, não?!

PALAVRA DITA-DEMAIS: Claro que Cabeça pensa! Mas deve pensar como nômade. Pensar no sentido forte. Cabe questionar a arte. Eu, neste momento, por exemplo, questiono as asneiras que criam uma polêmica sem fim neste diálogo!

NADA: Aí que tu te enganas, cara Palavra dita-demais (Nada coloca-se na posição do 'Pensador ', divagando). Será que há mesmo pensamento se se escolhe, de antemão, um certo modo de pensar? As palavras são as ferramentas para a construção de um pensamento. Mas, será que é possível criar alguma coisa se são usadas sempre as mesmas palavras, outrora criativas e criadoras, mas agora já ditas-demais? Como dar curso a um fluxo de pensamento em vias de se fazer por meio de repetição de palavras sempre muito ditas? Repito: Seria isto o ato de pensar? Há palavras que carregam em si sementes para o desabrochar de novas ideias... repetir o mesmo não tornaria limitados os destinos de nosso pensamento? E, além disso (ergue-se da posição do 'Pensador', mantendo o punho cerrado na testa), será que essas palavras que certos ouvidos apreciam (dança arrocha) - sem moderação - não se tornaram vazias, porque perderam a sua força e sentido devido a uma simples repetição mimetizada?

CABEÇA: E qual a relevância dessas questões?

PALAVRA DITA-DEMAIS: Veja bem, Cabeça, existe um modo já estabelecido de dizer as coisas, um modo já seguro de usar as palavras em um determinado contexto. O tipo de discurso anuncia o local de fala indicado pelas palavras que se escolhe para exprimir o que você quer dizer.

NADA: (falando em tom jocoso) Eu não queria dizer nada, mas o dado concreto aqui é que bastou Cabeça se dar conta da presença da Palavra não-dita que já começou a dizer o que não dizia e a fazer o que não fazia.

CABEÇA: (divagando com certa angústia) Dá pra fazer as coisas de outro jeito? Tenho a impressão de que há um jeito que pode e outro que não pode. Eu acho que o jeito diferente é tudo o que não pode.

PALAVRA DITA-DEMAIS: Farei uma observação sobre esse comentário angustiado: certo e errado são construções sociais, e isto fica patente quando destituído o ideal platônico, o que poderia nos encaminhar a uma discussão que destaca um processo em que diferença e repetição se conjuram. Neste contexto, que inaugura um novo plano de imanência, emerge a ética. Esta, por sua vez, poderia ser aqui pautada como uma possibilidade eternamente construída na esfera das mais variadas relações, por conseguinte, demarca-se uma dimensão estética inerente a este paradigma ético, que move minha alocução. Poderia eu, mais uma vez, citar autores que inauguram tal pensamento, mas prefiro não me repetir e ser concisa como uma palavra curta.

NADA: Ainda bem que esta foi uma observação 'curta'.

PALAVRA DITA-DEMAIS: Retruque o quanto quiser, Nada (que a olha com aspecto de desdém), mas, eu-palavra, sou o elemento que anima o mundo. Sou coisa. Sou corpo. Sou pensamento. Sou evidência. Sou palavra de ordem. Se adesivo minha produção com certos códigos e com pouco escrúpulo é porque tenho a segurança de que o processamento dos dados será bem assimilado. Sendo assim, como sou, estou certa de que não interpelarão “o que é?” quando digo 'potência'. Quando digo as coisas como digo, ninguém pergunta “o que se quer dizer com isto?”. Posso ser a razão de muitos tormentos, mas os anos de ciência, de filosofia e de produção de conhecimento moderno - e por que não dizer pós-moderno - fizeram de mim o acalanto para a existência de muitos tantos que se fizeram exemplos de saber. Sou firme. Sou solidez. “Todas as forças têm uma dimensão institucional”, quando se diz isto, todos estão sob o mesmo céu e têm sobre suas cabeças, bem mapeados e delineados, os caminhos do pensamento. O universo escalona-se a nossos pés por uma análise ética-política-estética!

(E como se pudesse haver um ponto e vírgula no meio de uma frase sem letras, os personagens congelam para dar lugar ao escuro. Ao se tornarem invisíveis, dão passagem ao narrador que, com sua voz, invade o escuro silêncio como uma luz amarela)

(Narrador) FANTASMA DAS VIDAS-LIDAS: Como se o impossível fosse palpável, um instante durava uma eternidade. Dúvidas foram categorizadas como angústia, como se a vida pudesse ser dividida e encaixotada em diferentes esferas. Interessante esse movimento de encaixotar em diferentes esferas - pôr em quadrados ou retângulos, fazendo referência a um espaço geometricamente redondo.

Talvez esse movimento represente, em certa medida, um modo de ser da Academia. Por meio de estratégia organizadora, os percursos curriculares são divididos em disciplinas, desse modo os conteúdos são cirurgicamente recortados para caberem numa ou noutra matéria, como se essa montagem pudesse tornar os conceitos personagens de uma peça teatral que faz sentido.

Nas peças-currículos-vidas-lidas-escritas-e-falas-acadêmicas conceitos pululam. Supõe-se, inclusive, que os conceitos são máquinas e nós somos os operadores destas. Mas não poderíamos supor que está tudo ao contrário? Será que não estaríamos sendo operados pelos conceitos que lemos? Se o conceito não é a máquina, mas, ao contrário disso, aquilo que opera a máquina, teríamos criado uma máquina de guerra contra o pensamento? Uma criação ao revés?

Estamos habitados por 'certas' formas de dizer. Isso fez com que conceitos perdessem sua possibilidade de variação, ficando estáticos e servindo-nos de referência. Deixaram de ser um ponto de partida e tornaram-se ponto de chegada, de modo que a viagem se resume a um percurso sem idas e sem voltas, sem sair do lugar, levando o pensamento a perder sua errância. Formas de entender o mundo enrijeceram-se, deixaram de ser caminhos nômades e tornaram-se postes. Mas será que postes imóveis, plantados em um plano duro, podem nos dar luz? Onde estão os cabos de força que os abastecem?

Era essa a alegoria que desfilava no palco, quando, num certo instante, parecia que o Nada, nada fazia, enquanto Cabeça tudo doía; uma Palavra, tudo dizia e a outra, tudo calava. Faltou aquilo que nomeava acontecimento um evento qualquer, e o sucedido deu-se com menos calma - ou menos alma - do que poderia ser, mas com mais legitimidade do que poderia haver na cena em que se amputa, por meio de uma operação cirúrgica, o que se supôs ser preponderante, até restar o que estava despercebido. Mas, o tempo em nó, como um novelo desfeito, um emaranhado de serpentes, faz com que cada saída conduza a outro começo.

(fim de pausa, somente o Nada está em cena)

NADA: Eu queria viver em pleno éter entre os simulacros aéreos das Coisas.

CABEÇA: (como quem chega sem avisar) Eu queria viver a fala que grita. Eu queria vencer o grito que cala. Eu queria emudecer esta conversa, escrever poucas linhas, fazer meu trabalho, mudar o mundo e dormir solenemente um sono tranquilo.

PALAVRA-DITA-DEMAIS: (seguindo Cabeça como um fiel escudeiro) Certíssima consideração. O sono é fundamental. O cansaço é inevitável.

NADA: Deixa o cansaço te consumir, Cabeça. Há quem diga, por exemplo, da existência de duas noites: uma em que se dorme e outra que é uma noite branca; noite em claro, em que se desenrola o processo de escrita.

PALAVRA DITA-DEMAIS: Que Nada inteligente! Essa é a sua estratégia?! Chegar à exaustão, perder as faculdades mentais e, com isso, criar palavras que, uma vez ditas, ninguém poderá entender? Quantas vezes será preciso anunciar em teses as palavras que já existem?! As palavras já existem, tudo é uma questão de colocá-las nas suas frases. Encaixá-las para melhor dizer. Cabeça, ignore esse coisa nenhuma.

CABEÇA: Mas e a originalidade?

NADA: (dizendo devagar e em tom pensativo) Originalidade? Tudo é sempre original, Cabeça. Além disso, fazer alguma coisa já é um bom resultado. Não é isso que defende a Palavra dita-demais?! (faz umas caretas e começa a descascar uma banana) Vamos esquecer a frase célebre que diz: “a inteligência só é boa quando vem depois”?4

PALAVRA DITA-DEMAIS: Não ponha palavras na minha boca!

NADA: (falando de boca cheia enquanto come a banana) Eu não proferirei mais palavras. Calar-me-ei. Vou fazer como a outra que silencia, na esperança de alguém ter alguma ideia.

PALAVRA DITA-DEMAIS: Desde que não seja uma ideia platônica...

NADA: (com “cara de insight”) Mudei de ideia sobre calar e tive uma ideia agora! (deita delicadamente a casca de banana no chão e, olhando para a Palavra dita-demais, aponta para casca de banana, como quem diz “pise aqui e caia! ”) Queres fazer as honras de seguir o script e escorregar na casca de banana? Se ela foi colocada no chão deve ser um elemento cênico fundamental! (o Nada finge que anda sem ver a casca de banana, finge que cai e diz em seguida) É muito arriscado tramar novidades, um imprevisto pode acontecer! Havia uma casca de banana no meio do caminho, o meio do caminho era uma casca de banana... (começa a fazer várias mímicas, como quem anda, escorrega, cai e levanta-se atrapalhado)

PALAVRA DITA-DEMAIS: Nossa! Que cena inestética! No nível disso, só mesmo uma notícia de Facebook: “O Nada, tentando parafrasear o poeta, num só gesto conseguiu desvalorizar o agronegócio, estragar a literatura e confundir a ciência”.

NADA: Talvez, para que vejas que quem mais fala neste diálogo é a Palavra não-dita. (e começa novamente a fazer várias mímicas confusas em movimentos ora acelerados ora mais lentos)

PALAVRA-DITA-DEMAIS: (como quem finge que é impossível um estado alterado de 'nervos') Ilustríssimo Nada, em meu âmago palpita a ideia de que você quer estabelecer um agressivo diálogo. Não impute a mim o papel de arauto da verdade absoluta. Eu tento restringir-me a livros, a artigos, a congressos e a tudo que me afeta, mas, diante desta provocação, vou falar sobre esta (faz sinal de aspas com as mãos) “casca de banana”: as forças realmente portam a potência do acaso. Mas é preciso não se esquecer de que, no eterno movimento do plano de formas e das forças em coemergência, há sempre um movimento de institucionalização que é o fruto desse processo cíclico.

NADA: (animado, como quem tem razão) FRUTO de um processo cíclico! Eu sabia que a banana era importante!

PALAVRA DITA-DEMAIS: Não! (um pouco irritada) É óbvio que não estamos falando de banana!! Estou explicando o uso ajustado das palavras. Palavras cuidadosamente construídas ao longo de estudos rigorosos que sinalizam a maturidade científico-filosófica do sujeito que as profere.

CABEÇA: Mas, como um fruto, se a palavra amadurece demais, despenca, espatifa-se no chão e, desfeita em mil pedaços, perde sua consistência.

NADA: Vira natureza-podre-morta-sem-vida... faz cara de espanto, quase como um mímico que exagera o nada e aponta para a Palavra dita-demais) assim como tu! Eu comi a banana, agora tu digeres a metáfora. (reproduz uma dança feminina que se repete em vários clipes das canções que são sucesso, beija o ombro direito e requebrase)

(Palavra dita-demais vira-se bruscamente para trás e aparece com uma bandeja cheia de armas)

PALAVRA DITA-DEMAIS: (falando com muita seriedade) Escolham suas armas. Vamos começar o debate!

NADA: (em tom sarcástico) Acalma-te, meu benzinho, assim tu te arrancas as letras!

PALAVRA DITA-DEMAIS: Estou muito calma! Conto com anos de estudo, uma miríade de teorias, ensaios bem escritos, além de muita terapia! Estou sempre centrada na produção do comum, que tem como condição a heterogeneidade. Disponibilidade e abertura de corpo não me faltam para ser atravessada pelos afectos, por isso, sei compor e coengendro-me com o caos. Escolham suas armas!

NADA: Palavra, palavrinha... eu sei que tu estudaste muito. Mas eu também sou muito inteligente! Anos de meditação mindfulness deram-me uma capacidade de concentração inigualável. Estou muito concentrado em entender e explorar o mundo. Compreendo o forró eletrônico, sei dançar arrocha, já fui em baile funk e frequentei igrejas neopentecostais. Faço justiça restaurativa com constelação familiar e, além disso, tenho curso de respiração holotrópica, coach e hatha yoga para controlar as emoções e ser igualmente focado, no lugar-comum.

CABEÇA: (pensando) Acho que nunca participei de constelação familiar! Nem sei muito bem como funciona, também não sei muito de baile funk, forró eletrônico, meus anos de estudo não deixaram espaços pra isso. Mas quem vive essas experiências talvez sinta alguma coisa, enquanto eu não sinto nada nos meus escritos, dos quais nem gosto! Então já não sei se tem uma coisa que é melhor do que a outra.

PALAVRA DITA-DEMAIS: Deixa de ser cabeça-oca, Cabeça! Pense na ciência como a melhor opção para tudo! Para isso você pode dispor de vários recursos. quem precisa de constelação familiar, quando tem a filosofia, a antropologia, a psicologia? Deixando essas constelações de lado, posso até assumir que, por meio do estudo aprofundado da cultura, também pode ser produzido conhecimento sobre o mundo. A cartografia é uma estratégia belíssima e muito recomendada na atualidade! E, se você falar da arte como uma estratégia para explicar processos de subjetivação, por exemplo, há que se considerar uma performance estilística, especialmente quando as palavras podem compor uma narrativa poética e ou ficcional.

CABEÇA: Arte?! Eu gosto de música...

NADA: Então cante, Cabeça! Cante qualquer coisa, “quem canta seus males espanta”. Cante uma palavra!

CABEÇA: (cantando, como quem obedece porque consegue obedecer, mas sem ter muita certeza de que esteja fazendo “a coisa certa ”)

“Palavra prima
Uma palavra só, a crua palavra
Que quer dizer
Tudo
Anterior ao entendimento, palavra”5

NADA: (aplaude rindo) Bravo! Bravo! Muito literal, mesmo assim, bravo! Bravo! É para ti que Cabeça canta, Palavra!

PALAVRA DITA-DEMAIS: Para mim não! Nada disso!

NADA: Mas eu não falei contigo! Falei com a outra! (apontando para a Palavra não-dita)

PALAVRA DITA-DEMAIS: Você me insulta com suas piadas, mas não assume a responsabilidade do debate! Anda, escolha uma arma! (diz isso ainda empunhando a bandeja com armas)

CABEÇA: (como se estivesse em uma cena à parte, falando alto, como quem diz o que pensa) Eu fiquei pensando sobre essa música... Será que a palavra é anterior ao entendimento? Será que a palavra pode ser como a água, que sua forma líquida adequa-se a qualquer balde? Será que a palavra d'água transborda?

NADA: (observando Cabeça, fala) Olha o que aconteceu com Cabeça! Cabeça, para aí com essas palavras.

CABEÇA: Por quê?

NADA: Porque eu gostava mais da música quando era somente música e fazia-me sentir uma coisa sem ter que me fazer pensar. E se eu pensar com palavras ditas-demais?! (e então Nada sorri para a Palavra dita-demais, como se, vitorioso, já percebesse ser possível que Cabeça é capaz de entender que é viável encontrar palavras outras nas diversas esferas da vida)

PALAVRA DITA-DEMAIS: (responde, certa de que, armada ou não, ainda é necessária) Se for assim, vamos ter diálogo, em vez de debate! Devo me desarmar?! (e ensaia um movimento de deixar de lado a bandeja)

NADA: Isso é uma piada?! Podes fazer o que quiseres, minha cara, com armas ou sem armas! Cabeça já está pensando. deve ser a influência da presença muda da Palavra não-dita, que do seu silêncio fez uma força capaz de instaurar questionamentos para além dos seus meios caducos.

CABEÇA: Calem-se vocês três!

NADA: Vocês três?! (dizadmirado) Já falei muita besteira. Fico lisonjeado de mandares que eu me cale, e julgo muito acertado mandares calar a Palavra dita-demais, mas me admira que mandes calar a Palavra não-dita. Enfim, estou certo! Mesmo em silêncio ela já aciona mudanças! Queres mesmo que ela se cale? Tu ainda gritaste com a pobre coitada! (e faz cara de drama em prol da Palavra não-dita, com a intenção expressa de irritar a Palavra dita-demais).

CABEÇA: Desculpe, Palavra, não quis te ofender!

PALAVRA DITA-DEMAIS: Tudo bem... sob forte emoção é normal deparar-se com o vertiginoso caos do desequilíbrio!

CABEÇA: Mas eu pedi desculpas à outra!

NADA: Hahahahaha! Essa foi boa. A Palavra dita-demais pensa que foi escrita no centro! Coitada! Cabeça, quem sabe tu matas essa Palavra para fazer falar a outra.

PALAVRA DITA-DEMAIS: (ainda segurando a bandeja com armas) Ótima conclusão: homicídio sempre resolve os casos.

NADA: Pode não resolver os casos, mas criar outros! Se ocorrer um homicídio, a Palavra não-dita terá que falar como testemunha ocular da cena do crime!

CABEÇA: Como foi que surgiu essa história de homicídio? Quero pensar as palavras e não somente dizê-las, quero fazer isso sem correr o risco de matá-las, esvaziá-las ou fazer com que percam sua condição líquida. Não quero solidificar a palavra d'água. Para conseguir o que eu quero, é preciso que haja um duelo entre vocês?

NADA: Cabeça, já explicamos que tu és o sentido de estarmos aqui! Há que se considerar que a vida é uma disputa! Lógico que o duelo é necessário! Cada um que se sirva de suas armas. (mais uma vez ri de forma jocosa, aponta para a bandeja de armas que a Palavra-dita-demais porta, mas, para a surpresa de todos, Nada tira do seu bolso uma caneta)

CABEÇA: O que é isso, Nada?!

NADA: (como quem não entende a pergunta, responde em tom de obviedade) Uma caneta!

CABEÇA:Você quer reescrever a Palavra?! É isso?! Isso é possível? É como se você quisesse desenhar uma pessoa que já está pronta. A pessoa pronta é pronta? Palavras impressas podem virar outra coisa? Como é que você vai plantar novas letras nessa palavra?

(O Nada, que saiu de cena enquanto Cabeça falava, trocou sua caneta por uma borracha gigante)

CABEÇA e PALAVRA DITA-DEMAIS: (com espanto) O que é isso?

NADA: (em tom feroz, indo em direção à Palavra dita-demais) Vou te apagaaaaaaar, Palavra!

CABEÇA: (fala enquanto tenta proteger a Palavra da borracha gigante) Nada, não sei se isso adianta. Calma! Não sei se já tenho a preparação necessária para apagar tudo aquilo que essa Palavra representa! A Palavra dita-demais evoca entidades onipresentes, que sequer precisam ser citadas diretamente para que um leitor as reconheça! É a Palavra dita-demais que sai das bocas dos meus pares, dos meus altares e das nossas próprias bocas.

NADA: Sim, sai da minha boca, mas por onde a Palavra passa? (abandona a borracha gigante no chão e fala como se discursasse) Oh, grande boca sem pernas, cada vez mais sedentária a Palavra fica... passeia por poucos lugares, é restrita. Perdeu seu nomadismo, ganhou um senso de direção que obedece a bússolas.

(enquanto a cena ocorre, Palavra não-dita começa a comer a borracha)

CABEÇA: (exprimindo admiração com o fato de a Palavra não-dita estar comendo a borracha, fala com o Nada, quase como quem cochicha) Ela está comendo a borracha! Será que isso pode apagá-la?!

PALAVRA DITA-DEMAIS: O que vocês estão cochichando aí?!

NADA: Que queres com isso, Palavra dita-demais? Vais anotar no teu diário de campo?

CABEÇA: (respondendo à Palavra dita-demais) Me preocupa o fato de Palavra não-dita estar comendo a borracha! (em tom de preocupação) E se ela se apagar?!

PALAVRA DITA-DEMAIS: Você se preocupa com uma palavra que não diz nada e que ainda se apaga mesmo antes de ser escrita?!

(Neste momento, a Palavra não-dita começa a dançar, girando como se essa dança fosse uma espécie de transe acrobático que desafia o peso do seu corpo, a gravidade e o ritmo. É uma dança hipnótica que fala sem dizer por meio de um sentir)

CABEÇA: (olhando a dança da Palavra) Ela não se apaga antes de ser escrita. Ela se transforma antes mesmo de ser.

PALAVRA DITA-DEMAIS: (ainda segurando a bandeja, pondo-se em posição majestosa) Quero anunciar a vocês, que se hipnotizam facilmente, que tenho muito a dizer... transbordo de coisas a dizer. Não preciso dançar uma coisa louca para chamar atenção. Minhas habilidades são de outra ordem e são forças que marcam a potência deste acontecimento que materializa a minha existência neste plano. Minha intenção é apenas a criação de condições de possibilidade para a emergência de experiências de dizibilidade do que advém a partir do processo do exercício do pensamento, o qual, por sua vez, é capaz de engendrar movimentos instituintes coadunando uma dimensão ético-estético-política na produção de novos agenciamentos coletivos de enunciação. Apenas isto!

(Em um ato impulsivo, Cabeça saca um revólver da bandeja e atira, acertando em cheio a Palavra dita-demais. Um estrondo se faz ao cair da bandeja no chão. A Palavra se pulveriza, estilhaçando-se em infinitas letras ensanguentadas)

CABEÇA: AHHHH! (solta um grito de pavor) Mas o que foi que eu fiz? Acho que perdi a cabeça!

NADA: O que fizeste, Cabeça? (exclama boquiaberto) Tens muita coragem!!! Será que deste modo tu acabas com tuas chances de publicação?

(Pausa na cena, os personagens continuam lá, parados. O palco está vermelho, enquanto se ouve a voz do narrador)

(Narrador) FANTASMAS DAS VIDAS-LIDAS: Parecia que personagens de uma cena não eram gente, nem subordinados a algo, nem coisa qualquer que pudesse ser facilmente nomeável. Talvez fossem facetas de um processo de muitas caras híbridas. Talvez fossem elementos de um caminho que teima em hibridizar-se quando todas as forças o conduzem a tomar um rumo que, mesmo quando não é retilíneo, já tem suas curvas e ondulações previamente programadas. Antes, seus caminhos já pareciam traçados, embora pairasse um suspense. As linhas dessa história se faziam verbo passivo. Seria uma história já escrita e com marcas imutáveis? Seria uma história descrita,com objetividade asséptica e insossa? Seria verdade? Seria uma invenção já caduca que segue o curso de linhas facilmente encontradas nas palmas de suas mãos? Seria uma peça de teatro na qual já se sabe que o fim repete o início? Talvez não possa ser dito o que se sabia. Talvez sequer seja possível falar sobre o que não se sabia. Entretanto, parecia manifesto o fato de que, independente de toda a querela e de toda interpelação jocosa, havia, agora, na presença silente da Palavra não-dita e na ausência descrita da Palavra dita-demais, um espectro de surpresa.

O fato é que a cena era de espanto. A cena era de horror. A cena era violenta. A cena era inusitada. Estavam diante do perigo. Nesse contexto, não eram as armas que apresentavam ameaça. Estavam em apuros, pois corriam, agora, o risco de precisar encontrar outros nomes para o que fora outrora dito. Provavelmente não notavam que o perigo que repousa nessa situação, talvez não seja encontrar um nome impróprio ao que se passa (todos os nomes são impróprios), mas o de acreditar-se bem assistido pelo que se nomeia'6

Era como se o Nada seguisse os mesmos passos do personagem de Camus e tivesse anunciado o fim de um mundo. E, enquanto se dava o ocaso daquela insistência, a testemunha ocular silenciosa do crime ocorrido, revigorada em sua dança, calada em seu silêncio, sem estar às escondidas, mas sem que ninguém, além de si mesma, prestasse atenção no seu movimento, escreveu no ar a seguinte palavra:

NADA: (terminando de montar um cenário que se refere a um boteco em praça pública. Enquanto começa a falar, ele termina de forrar a mesa e serve uma bebida) Venha, Cabeça, vamos viver um pouco. (após ele servir Cabeça, pergunta) Diga-me, a partir de agora, qual caminho vais trilhar para que sejas entendido pelos outros, sem utilizares o dialeto que assumiste anteriormente? (faz cara de muito interessado, cotovelos apoiados na mesa e as mãos sustentando o queixo)

CABEÇA: E você acha que eu sei?! Talvez, já nem saibamos mais conversar na ausência daquela que eu mandei pelos ares.

NADA: Será? Será que está tudo perdido?! E esta nossa conversa de bar? Não significa nada?

CABEÇA: Não sei. Talvez algo aconteça. Será que sem a Palavra dita-demais me apontando quais são as “palavras certas” é possível que eu possa finalmente escolher as palavras, as referências e até mesmo o percurso que quero assumir? (olha para o lado e cutuca Nada, apontando a Palavra não-dita) Já essa aí, continua aqui e continua calada! Por que será que uma palavra falava tanto e outra tanto cala?!

NADA: O que tu pensas sobre isso?

CABEÇA: Sei lá. acho que às vezes parece que os outros já pensaram tudo. São tantos conceitos bem ditos. Quando eu uso certas palavras, parece que as pessoas já me dão crédito, mas, ao mesmo tempo, não quero ser como a Palavra dita-demais, que fala umas coisas bonitas, mas sem nenhum sentido. Quero sempre me fazer entender, entendeu?! Mas às vezes eu penso que os conceitos, que se situam na minha escrita por meio de palavras, ou se revestem de uma trama própria que eu não alcanço, ou estão sempre tramando contra mim!

NADA:Cabeça, veja bem. Muitos vocábulos são construídos para organizar ou resolver um impasse, apresentar uma ocasião. Para desenvolver certa apreciação sobre os mistérios que nos cercam, ou para organizar a apresentação de uma dada circunstância, é preciso mais do que um conjunto ordenado de palavras, digamos assim para lembrar nossas companheiras: a morta e a calada. Os conceitos correm o risco de virarem palavras vazias, ditas-demais, quando servem como uma estratégia para não pensar. A formulação de um modo de ler o mundo não deve servir para parar ou acomodar o pensamento, em vez disso, deve ser o ponto de partida para um pensamento boêmio que faz da noite-que-corre sua estadia cigana (serve outra bebida para Cabeça). palavras ditas-demais são como um escudo que protege a cabeça do pensamento...

CABEÇA: (complementando) ...mas, ao mesmo tempo, criam um status, colocam a pessoa que fala numa posição de privilégio que tem sido valorizada pelos que escutam.

NADA: (levantando o copo para brindar com Cabeça) Tim tim! Saúde! Por isso, o modo como um dado termo se consolida, coloniza todas as possibilidades de ser das coisas. E, se pensar é sentir, fixar-se à Palavra dita-demais é predeterminar as nossas emoções diante da aventura que é a vida.

CABEÇA: Sim... agora tudo faz um pouco mais de sentido e eu consigo perceber o que sinto desde o início: é muito difícil fazer as coisas de um modo diferente. Consigo entender meus medos, mas, entendendo esses medos, noto que a cada passo que assumo tomo uma decisão, exponho-me menos ou exponho-me mais; fico mais perto daquilo que é seguro ou realmente me disponho a viver as possibilidades às quais o pensamento me conduz... Mas pensar não é fácil, escrever sem a Palavra dita-demais é um desafio que me leva, por exemplo, a não estabelecer uma barreira entre os diferentes tipos de conhecimento. A arte, a música, as experiências de vida, a fala cotidiana de outros... quase sempre me inspiram mais do que os livros que eu não consigo entender. Algumas vezes, só consigo entender esses mesmos livros se os traduzo segundo as experiências que não consigo fazer caberem em nenhuma tela ou papel.

NADA: (com gestos de quem arruma as coisas para ir embora) Muito bem, Cabeça! Essa foi a tua fala mais longa em toda a peça! (Cabeça sorri e o Nada continua) Acredito que já possamos ir embora, Cabeça pensante.

CABEÇA: Talvez seja este o momento de ir embora mesmo. Mas confesso que estou transbordando de dúvidas, caro 'inimigo' (diz isso com um riso, ao qual o Nada corresponde, e os dois se abraçam. Nada e Cabeça começam a andar saindo do palco e Cabeça diz) Eu tô aqui pensando: Será que eu matei mesmo a Palavra dita-demais?

(Todo o diálogo a partir de então ocorre com tais personagens saindo do palco. Retiram-se da cena, mas não saem pelas coxias, seguem pela plateia)

NADA: O que tu achas?

CABEÇA: Acho que como qualquer outro fenômeno, ela pode nunca morrer completamente. Talvez eu tenha que estar sempre vigilante a cada letra, pra não escorregar nas armadilhas dessas palavras que podem estar grudadas em mim.

(No palco pode-se ver a Palavra não-dita calada, concentrada numa escrita invisível, como quem manuseia uma máquina de pensar. Do outro lado, as milhares de letras, antes espalhadas e banhadas em sangue, vão unindo-se até comporem novamente a Palavra dita-demais que, uma vez recomposta, fica escondida pelas tapadeiras do teatro. Com a cabeça erguida sobre os ombros, ela espreita os demais personagens e a plateia)

CABEÇA: Seu Nada, mesmo sem ler “Estado de Sítio”, tô aqui pensando... Você não deveria ser um niilista?

NADA: Eu não poderia ser o avesso disto? Aliás, quem disse que alguém deveria alguma coisa...

... do nada, a cena, que ocupava o lugar da sala, desfaz-se, e a sala, onde parece ter começado este escrito, se refez. Uma mesa já não parecia ser qualquer mesa. Um sofá poderia ser ______, pois as lacunas impostas para dizer que não há drama sem improviso, pareciam menos assustadoras. Os livros nunca antes abertos deslizavam suas letras pela pele que recobria os seres inanimados. O outro ser, sorvendo e expirando ar, animado pela inspiração, ritmado pela dissonância dos seus batimentos cardíacos, já sabia que pode tanto ser conduzido pelas suas vísceras e pelos seus músculos, quanto pela sua desrazão. E, ao assumir que do nada sempre vem alguma coisa (que nunca se sabe o que é ou o que pode ser), apagou as palavras incompreensíveis que escrevera.

Rascunhou de improviso alguns parágrafos. Esboçou um sorriso de feliz incerteza. Levantou-se. Andou até o fim daquele espaço diminuto. Abriu a porta. Foi pra rua e:

 

Notas

1 Camus (2018, p.37-8).

2 Sokal & Brickmont (1999).

3 Fragmento do poema “A porta”, de Vinícius de Moraes (1970).

4 Deleuze (1987, citado por Rolnik, 1993)

5 Música 'Uma palavra', de Chico Buarque (1995).

6 Esta citação compõe-se de dois trechos extraídos e livremente combinados de Costa (2017, p. 55).

 

A partir de

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Ariadne Cedraz, Marciana Zambillo e Raquel Guerreiro são doutorandas do Programa de Pós-graduação de Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
E-mail:dinecedraz@yahoo.com.br; marcianazambillo@gmail.com e quelpapel@hotmail.com

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