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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.spe Porto Alegre  2019

 

ARTIGOS

 

Pesquisa Participativa Decolonial: Movimentos de Pensamento entre Terra e Marte

 

Decolonial participatory research: movements of thoughts between Earth and Mars

 

Investigación participativa descolonial: movimientos de pensamiento entre tierra y marte

 

 

Douglas Casarotto de Oliveira; Lúcia Almeida; Rafael Wolski de Oliveira

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

O presente artigo tem por finalidade colocar em problematização o colonialismo invisível presente nas práticas de pesquisa. Inspirados pela perspectiva decolonial e pela perspectiva da filosofia da diferença, os autores optaram por utilizar elementos ficcionais para colocar em questão o lugar do pesquisador, principalmente, do pesquisador-trabalhador no seu encontro com o campo de pesquisa. O texto se move através do problema que se coloca por entre-sujeitos, entre-lugares e entre-saberes da e na pesquisa, buscando discutir se é possível uma pesquisa decolonial. O artigo propõe, mesmo para metodologias em que o pesquisar e o pesquisador se constituem no processo da investigação, que o pesquisador esteja atento ao “colonizador que o habita”. Trata-se de estar atento ao fato de que sua simples presença no campo marca uma diferença com relação ao outro, colocando-o neste limiar colonizador/não colonizador.

Palavras-chave: pesquisa participativa; perspectiva decolonial; psicologia social


ABSTRACT

This paper aims to problematize the invisible colonialism present in the research practices. Inspired by the decolonial perspective and by the perspective of the philosophy of difference, the authors choose to utilize fictional elements to put into question the role of the researcher, mainly, the worker-researcher in their encounter with the research field. The text moves through the problem that arises amid-subjects, amid-places and amid-knowledges of and in the research, seeking to discuss the possibility of a decolonial research. The article proposes, even for methodologies in which the research and the researcher constitute in the process of investigation, that the researcher is alert to the “colonizer who inhabits themselves”. It's about being aware to the fact that just being in the field sets a difference in relation to the other, putting him in a threshold colonizer/not colonizer.

Keywords: participatory research; decolonial perspective; social psychology


RESUMEN

El presente artículo tiene la finalidad de colocar bajo problematización el colonialismo invisible presente en las prácticas de investigación. Inspirados por la perspectiva decolonial y por la perspectiva de la filosofía de diferencia, los autores optaron por utilizar elementos ficcionales para poner en cuestionamiento el lugar del investigador, principalmente, del investigador trabajador en su encuentro con el campo de investigación. El texto se mueve a través del problema que se ubica por entre-sujetos, entre-lugares y entre-saberes de y en la investigación, buscando debatir si es posible una investigación decolonial. El artículo propone, aun para las metodologías en que el investigar y el investigador se constituyen en el proceso de la investigación, que el investigador esté atento al "colonizador que le habita". Se trata de estar atento al hecho de que su mera presencia en el campo marca una diferencia en relación al otro, colocándolo en este límite colonizador/no colonizador.

Palabras clave: investigación participativa; perspectiva descolonial; psicologia social


 

 

Introdução

O colonialismo visível te mutila
sem disfarce: te proíbe de dizer, te
proíbe de fazer, te proíbe de ser.
O colonialismo invisível, por sua
vez, te convence de que a
servidão é um destino e a
impotência, a tua natureza: te
convence de que não se pode
dizer, não se pode fazer, não se
pode ser. Eduardo Galeano

O colonialismo invisível se reproduz nos encontros. Como uma força, presentifica-se em atitudes, relações, políticas, ações do Estado sobre os sujeitos e entre os atores de uma comunidade. O ato de pesquisar no Brasil, e, no contexto Latino-americano em geral, está impregnado dele. Transborda a colonialidade incessantemente, ativamente e de forma perspicaz.

A imposição da produtividade acadêmica, devido aos modelos de avaliação das pós-graduações, que se associam aos parâmetros determinados pelos modelos globalizados neste campo, bem como a prioridade e predominância (para não falar da hegemonia) de autores europeus ou norte-americanos nas bibliografias dos planos de ensino e ainda a existência de periódicos brasileiros que só aceitam textos na língua inglesa (para subir na pontuação da CAPES), são formas mais encarnadas da subserviência colonial. Contudo, o presente texto trata de problematizar questões mais sutis implicadas no encontro entre pesquisador e campo de pesquisa (e, principalmente, sujeitos presentes nos campos), aquelas que se emaranham nas entrelinhas, nos lugares de fala ou na simples presença de um sujeito acadêmico, ou “da academia”, no campo de pesquisa.

Estas questões se complexificam quando o pesquisador está inserido no campo, antes de tudo, enquanto trabalhador. Este lugar de trabalhador-pesquisador traz à cena, relações de poder-saber que se atualizam e se agenciam nesta tríade academia, trabalho e pesquisa. É a partir deste lugar e das tensões que se colocam neste campo de forças que este artigo campos de trabalho e de pesquisa? Como se dáatensão usuários/trabalho/pesquisa/academia? De que modo é possível (ou não) contrapor, de fato, a dicotomia estabelecida entre o mundo da academia e a sociedade? Binariedade reforçada cotidianamente e que tem sido questão acesa quando nos perguntamos a serviço de que(m) estão nossos trabalhos/pesquisas? Os trabalhos/pesquisas são nossos? Para que(m) servem?

Cabe aqui enfatizar que a pesquisa em psicologia social prima pelo sujeito histórico/político e, comumente, afirma uma posição de pesquisador em transformação, que se modifica nos encontros possibilitados neste campo. Contrapõe, assim, o modelo hegemônico de pesquisar ao diferir da perspectiva que busca “extrair” os dados comprobatorios, ou não, de uma hipótese. Apesar deste posicionamento ético, e porque não dizer, radical, em tempos de (re)produtibilidade acadêmica e apresentação massiva de dados descontextualizados de tempo e política, a pesquisa em psicologia social pode também cair na armadilha do colonialismo. E essa armadilha parte de um não reconhecimento do pesquisador como um colonizador a priori. Então se questiona, é possível desenvolver um trabalho-pesquisa decolonial?

Na tentativa de darmos visibilidade a alguns aspectos relacionados ao pesquisar em psicologia social, trazemos alguns trechos de diários de campo, no intuito de disparar algumas questões que se colocam no encontro entre sujeitos de pesquisa com os sujeitos da pesquisa.

Dia 23/05/2017

Hoje iniciamos um trabalho na escola municipal que sofreu vários episódios de tiroteios no seu entorno durante o horário de aulas. Nosso grupo de psicólogos ofertou um trabalho de acolhimento, escuta e desenvolvimento de estratégias de enfrentamento ao grupo de professores e à equipe diretiva. Mas, mesmo percebendo que o trabalho era muito esperado e desejado pelo grupo, sentimos que, naquele momento, o grupo nos colocou no lugar de especialistas. Esta “roupagem” que nos é atribuída precisará passar por todo um processo até a possibilidade de sua desconstrução. Processo difícil e dolorido, mas, ao mesmo tempo, prazeroso e delicado, porque passará por certa transformação do corpo psicólogo-pesquisador. O trabalho inicia e o grupo se movimenta. Primeiros movimentos: Queixa-ataque à Secretaria de Educação -expressões de angústia frente ao poder público, à mantenedora que não os acolhe, não os escuta, não os vê. Desejam que os grandes gestores venham à escola para ouvi-los. “Nós estamos tão abandonados quanto esta comunidade!”; “Por que eles não vêm até aqui para ver o que estamos passando?”. Próximo movimento: Queixa-denúncia do governo municipal: protestos frente a uma certa política de educação que se mostra inadequada e desconectada da realidade. Sentem-se desconsiderados em sua caminhada: “Querem que a gente alcance as metas do IDEB, mas não percebem que as crianças precisaram ficar dois meses fora de casa por causa da violência da comunidade!”. Novo movimento:Queixa-sofrimento da/pela comunidade e dos/pelos alunos: manifestações de ansiedade e tristeza pela ausência do Estado nas comunidades, que amplia e banaliza as situações de violência ali vivenciadas e, principalmente, pelas dificuldades enfrentadas pelas famílias no seu cotidiano frente a carência de recursos materiais e de lazer e de assistência e...: “No final do dia nós, professores, vamos embora, mas as crianças ficam aqui! Eles não têm para onde ir!”. Aos poucos, o grupo constata suas limitações, ao mesmo tempo que percebe a delicadeza e importância de seu trabalho: “A escola é o único lugar em que podem brincar! Aqui ainda é um espaço seguro!”. Movimentos outros:observações de seu próprio processo enquanto grupo. Apostam no seu poder de fala e de análise sobre o seu trabalho: o que podem enquanto grupo?

Dia 10/06/2017

Estamos há algum tempo desenvolvendo um trabalho com alunos e comunidade, além do trabalho com os professores e, de certa forma, parece que estamos nos “misturando” com a comunidade escolar. Hoje participamos de um evento de Hip Hop na escola, onde ocorreram oficina de rimas, apresentações de rap, oficinas de tranças afro, oficina de grafite e almoço coletivo. Como trabalhadores sentimos que estamos inventando uma forma de cuidar articulada ao movimento Hip Hop, buscamos experimentar práticas, construir conhecimentos, enquanto os estudantes e a comunidade buscam um lugar de acolhida. Cena, de certo modo, comum na escola: trabalhadores, estudantes e comunidade reunidos. Todos pareciam curtir as pessoas, as atividades, o lugar. Mas dentre as pessoas que ocupavam o espaço, haviam várias ligadas ao movimento Hip Hop da cidade. Estas pessoas não necessariamente fazem parte do cotidiano da escola. Afinal, porque estariam alí? Não eram trabalhadores ou alunos, não moravam na comunidade. Como foram parar naquela escola? Como se produz essa relação onde, espontaneamente, eles se propõem a compartilhar sua prática naquele local? Convidamos o pessoal e eles vieram. Mas por que viriam? À tarde houve uma mesa de debates com jovens do Hip Hop, trabalhadores da saúde, estudantes, docentes. A intensidade das falas, das histórias de seus envolvimentos em escolas, serviços de saúde, nas ruas, com a família, com a loucura, com as drogas, com a polícia, com o trabalho, evidenciava a importância deste movimento na vida de muitas pessoas. Nós compusemos uma das mesas de debates da tarde, junto com outras pessoas ligadas a Redução de Danos, pelo viés do trabalho no SUS. Fizemos uma fala sobre o trabalho de Redução de Danos que inventamos na escola. Porém, sentimos um certo malestar, depois da fala. Ficamos nos questionando: “O que esta fala interessa ao pessoal que está aqui? No que ela compõe?” Após o evento, algumas pessoas vieram até nós dizer da importância do que falamos, pois acompanhamos esse processo desde estes primeiros encontros, tínhamos no corpo essa história. Em seguida, outro participante, em tom de brincadeira, disse a um de nossos colegas: “Tu tá segurando o microfone como um Mc ”. Ele sorriu com ele e respondeu: “Mas não foi só o microfone, tu viu que a fala foi acelerada, colocando mais ênfase em algumas partes da fala, como um Mc?” Não sei se ele escutou desta forma o que lhe foi dito. Contudo, o teor da brincadeira indica um movimento que sentimos em nós, que tem aver com Hip Hop operando em nosso corpo.

Dia 15/08/2017

Hoje conversamos com um aluno que se disponibilizou a participar do projeto de pesquisa que estamos desenvolvendo na escola. Nos encontramos num final de tarde em uma sala da escola, gravador a postos e iniciamos a conversa. Após explicar um pouco o percurso da pesquisa, o que segue por parte dele é uma narrativa detalhada e impressionante de uma história de vida: a infância marcada pela pobreza, a vida em situação de rua, a opção em não retornar para casa, as duas passagens pela FASE, o uso de drogas considerado por ele mesmo problemático (em um momento de sua vida), a opção pela continuação do uso de Crack (de forma controlada, hoje em dia) proporcionada através de seu encontro com a Redução de Danos. Quase uma hora de conversa, uma trajetória muito rica disponibilizada para a produção que se pretende que seja conjunta, coletiva. Ao final, uma fala parece colocar um distanciamento entre mundos: “Hoje estou bem, me sinto bem... só o fato de estar aqui falando com o professor contribuindo com esse trabalho, há alguns anos não imaginaria isso”. Terminamos o encontro, na parada de ônibus, combinações para um encontro futuro, numa aula. O ônibus chega, nos despedimos, o aluno vai para sua barraca no centro, nós pegamos nosso carro e vamos para nossas casas.

 

Humanos em Marte

Angela Ixkic Bastian, Félix Guattari, Fernand Deligny, Gayatri Chakravorty Spivak, Gilles Deleuze, Jeanne Favret-Saada, Shannon Speed, também são Astronautas! Estão em Marte com uma missão específica: ajudar três astronautas, que habitam e trabalham em Marte, a pensar implicações relativas a sua mudança de posição em relação aquele planeta - de trabalhadores a pesquisadores - a partir de uma perspectiva decolonial. Os astronautas a quem ajudarão vieram para Marte há alguns anos para trabalhar com saúde e educação. Eles têm por lá um trabalho-vida, o que lhes dificulta pensar separadamente estes âmbitos. Será que algum dia já se conseguiu isto?

Neste momento, em Marte, encontram-se em uma situação de se tornarem pesquisadores que habitam aquele planeta. Desta experiência de fora da Terra, de um tempo e espaço diferentes, estão em processo de inventar palavras para dizer dos afetos que têm se produzido neste encontro com o ser pesquisador-trabalhador. É a partir deste reencontro que dizem de um pesquisar que se dá por entre o trabalho, a academia, o campo, a bibliografia e outros tantos diversos elementos.

A mudança de perspectiva (de trabalhadoresatrabalhadores-pesquisadores) não se faz tarefa simples, posto que o trabalhar e habitar em Marte lhes produziu uma sensação de pertencimento a este território. Pode-se dizer que Marte já faz parte de seu território existencial e, ao tomar este local enquanto lugar de pesquisa torna-se para eles mais evidente a importância de problematizar a ciência desde sua perspectiva ética. Não diz respeito apenas ao cumprimento de protocolos e a um modo de conduzir-se, mas diz da maneira como se relacionam nos encontros com as pessoas, com as experiências, com os conceitos, com a vida que se produz por entre o que se chama de pesquisa.

Trata-se de um outro modo de se colocar em relação aos corpos, a outros territórios, à própria vida. Trata-se de assumir um posicionamento decolonial, que não é um aspecto banal, mas fundador das relações naquele planeta, já que não se trata de ensinar ou de aprender um modo de viver, mas sim de viver e construir modos de vida, posto que não estão nem dentro, nem fora do processo, mas misturados em meio ao processo.

Nas diferentes tentativas de composição que fizeram em Marte, como trabalhadores apenas, inspiraram-se em problematizações de experiênciasrealizadas na Terra com os povos africanos, indígenas, com os considerados diferentes, como os “loucos”, “drogados”, autistas. Seu olhar a estas experiências se deu no intuito de ficarem atentos aos riscos de reproduzirem em suas práticas de trabalho processos de exploração, normatização, assistencialismo,institucionalização, dominação, mistificação, subalternização que poderiam decorrer dos encontros travados em Marte, por mais “bem” intencionados que fossem.

Neste momento, na transição de uma figura híbrida - trabalhador-pesquisador - eles atualizam as questões que os movimentaram no início de seu contato com Marte. Pode-se dizer que uma questão que movimenta suas tentativas de operar a partir do lugar do trabalhador-pesquisador é a seguinte: Há formas de pesquisar sem atuar, de algum modo, como colonizador? Ao levantar essa questão, de antemão, eles assumem que sua simples ida - como humanos - para Marte, com sua visão do que seja mundo, com os valores que trouxeram, com suas práticas de saúde, de educação, de habitação, de sociedade, já foi um processo de colonização. Um exemplo simples disto é quando passaram a chamar os nativos de lá de marcianos. Ao naturalizar esta nomenclatura deixaram de considerar que Marte ou marciano são nomes atribuídos por humanos aos considerados não-humanos. O modo como se nomeia o outro, seja ele marciano, louco, usuário, trabalhador, parece já marcar uma diferença de lugar e de posição, que pode fixar categorizações colonizadoras. Então, importa a eles desnaturalizar e colocar em problematização, principalmente, o que parece banal.

Vale salientar que os astronautas trabalhadores-pesquisadores também foram nomeados de outro modo por marcianos e astronautas. Por habitarem Marte, sua forma de viver já está integrada aos processos que conformam a vida. De certo modo, habitam um lugar de meio. Não são marcianos, nunca serão! Mas também não são somente astronautas. Dada a diferença percebida foram chamados de humanoutros.

 

Efeitos dos encontros em Marte

Na busca de compreensão das relações entre humanoutros e marcianos, os astronautas se surpreenderam com algumas práticas que acontecem entre os dois grupos que habitam Marte. Elas servem a ambos e diz de uma construção de interesses comuns. Diz de uma novidade que acontece em meio a diferentes tentativas de composição. Uma das práticas é a de se reunirem para conversar sobre os problemas na tentativa de encontrar soluções e alternativas para os mesmos. Uma dessas reuniões aconteceu quando a Base da Colônia foi apedrejada, sem que se soubesse a motivação para tal atitude. No início não foi fácil para nenhuma das partes. humanoutros, ainda vistos como astronautas, tentavam abrir espaço para entender o que era importante aos marcianos, os quais, por sua vez, não conseguiam confiar nas “boas intenções” daqueles forasteiros. Outra prática comum era a de um ritual criado pelos marcianos, que lembra, para nós terráqueos, uma festa, ou uma batalha de rap. Este ritual acontecia tanto no território dos marcianos quanto na Base dos humanoutros.

Os astronautas decidiram pautar este assunto em uma de suas conversas com os humanoutros. Inicialmente alguns astronautas queriam saber dos interesses envolvidos pela parte dos marcianos. Afinal, por que discutiriam os problemas, ou compartilhariam seus rituais? Não eram humanoutros, não estavam para aprender a trabalhar. Shannon Speed se irritou com aquele tipo de questionamento dos colegas. Sentiu um tom estranho, naquelas falas.

Exclamou: - Vamos parar com essa bobagem! Esse querer saber o interesse só dos marcianos me parece desconfiança. Parece que eles se aproximaram de nós para tirar algo. Não podemos esquecer que foram os humanoutros e nós que chegamos aqui.

Eles já estavam aqui, já tinham suas práticas, sua forma de viver. E questionou:

- Pensar deste jeito nos levará onde?

No intervalo do respiro de Shannon, que por sinal fazia uma pergunta retórica, como uma luz que se acende, Gayatri Spivak lançou ao grupo uma reflexão que ampliou a questão da colega. Ela trouxe como referência sua experiência como pesquisadora na Terra:

- Não são “eles” e “nós”! Nós não somos eles também! Quando chegamos aqui e os abordamos como Eles, desconfiamos deles, de seus interesses. Não estaríamos ignorando a diversidade, as relações de poder colocadas, a heterogeneidade? Entre nós já existem diferenças muitas! Em nosso planeta também temos um Norte e um Sul, um Ocidente e um Oriente, onde as práticas intelectuais do sujeito do Ocidente insistem em manter o Ocidente como Sujeito. Temos nossas diferenças dos lugares de onde vivemos, das posições que ocupamos, do sermos acadêmicos do Norte ou do Sul, do centro ou da periferia. Num mesmo reduto acadêmico temos aqueles pesquisadores com maior prestígio, com mais verbas para pesquisas, com melhores lattes, isso sem falar nas invejas, discordâncias, antagonismos entre nós. Não somos muito diferentes deles, e somos muito diferentes entre nós.

Seguiu-se a fala de Gayatri um silêncio em tom de mea culpa. Trazer situações da Terra, quando se está distante fisicamente parece que fez os astronautas se olharem de outra forma. Em seguida, com certo constrangimento, deram-se conta da forma como estavam se colocando para abordar as produções comuns entre humanoutros e marcianos.

Shannon sentiu o efeito de sua fala amplificada pela de Gayatri. E resolveu falar de uma de suas experiências, que ilustra uma forma de entender essa produção conjunta.

- Lembro-me de uma pesquisa que realizamos junto com mulheres indígenas. Elas não eram acadêmicas como nós. No início era difícil nos entendermos. Elas diziam que queriam estar conosco, mas éramos nós que puxávamos as discussões. Quando elas falavam, era de coisas que não nos pareciam ligadas à pesquisa. Somente depois de um tempo, estando juntas, conseguimos produzir um evento que além de servir para discutir as questões que eram nossas, serviram a objetivos concretos e imediatos delas. O evento também fortaleceu suas lutas políticas.

Naquele momento, com sentimentos reativados produzidos naquela experiência, Shannon buscou o olhar de Angela Bastian, parceira de pesquisa em solo mexicano, como se buscasse força para suas palavras. E disse:

- Em resumo, percebi que, para aquela prática ser comum, todos tivemos que nos deslocar de nossas concepções, de nossas formas habituais de pensar, de nossas referências do que é e para que serve uma pesquisa. Então, penso que se trata de entender que referências se modificaram por aqui, nos humanoutros e nos marcianos. Penso que essa relação onde, espontaneamente, eles se propõem a compartilhar suas práticas, como naquele ritual que assistimos, diz dessas referências que movimentaram, não é?

As falas de Shannon e Gayatri funcionaram. Também não foi por acaso que foram convidadas a esta expedição. Afinal, suas experiências de pesquisa ajudaram-lhes a produzir um corpo de pesquisadoras que geralmente se acionava, quando os rumos da conversa indicavam a produção de subalternidade e não de vida.

 

Quem constrói as saídas

Na base da colônia, outra conversa, entre humanoutros, marcianos e astronautas, trouxe problematizações importantes sobre as experiências produzidas, com o intuito de definir os rumos das pesquisas.

- Nós estamos tão abandonados quanto esta comunidade! Disse a humanoutra Maria Pereira. Seu tom foi de queixa em relação a como a base na Terra estava considerando suas necessidades em Marte.

Sem responder a questão e instigando a humanoutra a pensar, Gilles Deleuze colocou:

- Abandonados como a comunidade? Até nossa chegada aqui nós não sabíamos que havia comunidade. Para nós a comunidade eram vocês. E por que vocês não falaram disso para a gente? -Perguntou Gilles.

- Porque de longe não dá pra falar. Vocês não entenderiam! - Disse Maria, que continua em tom de desabafo:

A distância de um universo, que já era grande, aumentava a cada dia em que nos envolvíamos com a colônia e nos misturávamos com os nativos. Mas o que importa dizer é que a comunidade dos marcianos tem seu modo de viver que não entendemos bem. Inicialmente, nossa colônia tinha o objetivo de criar um lugar semelhante à Terra, mas encontramos esse povo aqui. Diferente. Tivemos que adaptar nosso projeto. Fazer modificações considerando os diferentes. Pensávamos que tínhamos os saberes e as tecnologias para melhorar a vida daqui mas, infelizmente, não foi só isso que aconteceu. Nossa presença produziu efeitos que não esperávamos. A violência foi um deles. Aumentou entre eles e também conosco. Também ocorreram doenças imprevistas. Vocês, que estão de lá, dizendo o que é pra gente fazer não tem noção de como é aqui, no dia a dia!

Tentando ajudar a explicar o que não tinham ainda condições, o humanoutro Lucas questionou o grupo de astronautas:

- Por que vocês vieram só agora ver o que estamos passando? A fala por rádios, as conversas por vídeo não davam conta de expressar a vida que estamos inventando. De dizer das composições que fazemos, dia após dia, para inventar uma vida possível.

Duas palavras sintetizam a tensão que emergiu nesta conversa: expectativas frustradas. Expectativa dos humanoutros frustrada no encontro com o campo, onde, apegados a objetivos previamente estabelecidos, acabaram reproduzindo relações cujos efeitos não foram os esperados, pelo contrário. Expectativa dos astronautas frustrada, pois, de longe, imaginavam humanoutros e uma colônia que só existia em suas ideias.

A conversa serviu para que as expectativas frustradas pudessem se movimentar e possibilitar o pensamento acerca de problemas concretos vivenciados em Marte, como a situação apresentada por Maria:

- Os chefes daqui querem que a gente alcance as metas de “educação”, mas não percebem que as crianças nativas precisaram ficar dois meses fora de casa por causa da violência da comunidade!

A preocupação dos humanoutros já não era somente com o projeto, mas com a relação entre o projeto e a vida do novo planeta, que já sofria alterações desde as primeiras missões enviadas.

Lucas complementa:

- No final do dia, nós voltamos para a colônia, mas as crianças ficam aqui! Eles não têm para onde ir! A base é o único lugar em que podem brincar! Aqui ainda é um espaço seguro!

Crianças! As dificuldades das crianças de lá afetaram fortemente também ao grupo de astronautas.

Fernand Deligny escutava aquela fala com cautela e consentimento. Sabia que o projeto colônia, como projeto pensado, não era o que ditava as relações que lá se estabeleciam, apesar de esta ser a ilusão que animava a ida até Marte. Sabia que o agir, para além do fazer, se acionava em situações como a que estavam vivendo, onde as necessidades de viver se sobressaiam. Suas experiências com os incuráveis, irrecuperáveis1, apesar de contra a corrente, também prepararam seu corpo para estar naquela expedição.

Como lidar com isto que vinha com tamanha intensidade? Alguns astronautas tinham olhares inquietos.

Félix Guattari lembrou-se de diversas crises que vivenciara em La Borde, inclusive de situações agressivas. E conseguiu perguntar aos colegas:

- A violência da qual se fala era uma questão específica das relações que surgiram depois de sua chegada aqui, ou uma atualização da violência de outros momentos que já tinham ocorrido na Terra, tal como em outros processos de colonização? Por que isto não chegou a nós? Mas apesar da novidade, ninguém aqui é ingênuo para pensar que aqui seria diferente do que já vivenciamos na Terra, em nossas relações entre diferentes civilizações como a africana ou a indígena, ou com os que consideramos diferentes, os que chamamos de “loucos”, os gays e lésbicas, os presidiários. Certa violência se atualiza com a nossa simples presença aqui. Chegar, compor, intervir, estar junto, implica certa violência porque impõe ao outro, e a nós também, uma desterritorialização, um abandono do confortável lugar conhecido, para compor outros lugares, sejam lugares comuns ou não. De qualquer modo, a partir da nossa chegada neste território, não seremos mais os mesmos e eles também não. Este encontro é arriscado e violento para todos.

E a violência da nossa presença gera resistência, que pode impor-se de forma violenta e perigosa.

Esta reflexão fez os humanoutros ampliarem suas problematizações:É possível não ser violento nesta relação pesquisa-trabalho? Era muito cedo para conseguirem respostas. Mas sabiam que não se tratava de achar respostas. Tratava-se de colocar seu lugar e suas ações em problematização. Tratava-se de colocar o pensamento em movimento. Mas, ao mesmo tempo, tratava-se de tensionar estas questões junto aos envolvidos.

Por outro lado, os astronautas perceberam que a história que lhes foi contada, quando estavam do outro lado do universo, como “A história” da colônia em Marte, omitia aspectos fundamentais para quem habitava Marte: humanoutros e marcianos.

Jeanne, como Fernand, optou por ficar quieta. Sua experiência com feitiçaria lhe ensinou que há situações que só são compreensíveis de dentro. Estavam apenas nos primeiros encontros com humanoutros e marcianos e a sensação de montanha-russa indicava algo que não podia ser dito, ainda. Pela insipiência do contato, mas também pela fragilidade dos recursos de comunicação que trouxeram da Terra. A opção por não falar naquele momento dizia também de sua preocupação por saber que, mesmo depois de estar dentro do dispositivo, talvez não tivesse como dizer o que era. Percebia que talvez a questão para eles não seria dizer o que se passava, mas inventar conjuntamente alternativas.

Nessa altura dos contatos entre astronautas, humanoutros e marcianos a situação seguia com muitas ideias. Afinal, o encontro entre humanoutros e marcianos estava produzindo efeitos para além do previsto. Além disto, os próprios humanoutros sentiam-se parte daquela problemática. Crianças sem lugares para brincar, em risco de vida permanente em função das relações em sua comunidade. Se nos primeiros encontros de astronautas e marcianos estas situações não chamavam a atenção, com o dia a dia destes encontros os problemas passam a serem comuns.

A partir destas últimas conversas a sensação de “beco sem saída” foi dando lugar a certo consenso: Não eram eles, astronautas e humanoutros que encontrariam soluções para aquelas situações. Perceberam que, naquelas discussões, apenas repetiam um jeito colonialista de operar.

- Nós definiremos o que fazer e depois aplicaremos? Questionaram os humanoutros. - Como é difícil sair deste lugar de quem sabe e define as saídas!

 

Papo reto!

Depois da última reunião, os humanoutros esperaram os astronautas saírem da sala e perguntaram aos marcianos:

- O que está acontecendo com vocês? Sempre colocam suas opiniões, resolvem junto conosco os problemas de trabalho, nos dão os “atalhos” de Marte. Por que quando os astronautas estão aqui vocês falam somente no final da conversa, ou ficam só na escuta?

Carolina de Jesus, Djamila Ribeiro, Eduardo Galeano, Geovani Martins, Davi Kopenawa se olham, mas não respondem! O silêncio dizia de uma relação ainda atravessada mais por diferenças do que por comuns.

Diante de tal impasse, aproveitando-se de sua condição de humanoutros, resolveram fazer-lhes um pedido.

- Queremos saber o que pensam sobre os assuntos que discutimos. Sobre a questão do descaso com a colônia, sobre a situação das crianças, sobre a violência, sobre as práticas que fizemos juntos, sobre mudanças nos “referenciais”, nos jeitos de pensar que tem ocorrido com a gente.

Os marcianos conversaram baixinho entre si por cinco minutos. Os, humanoutros, esperançosos por respostas, se olharam. Então Carolina se dirigiu ao grupo e disse:

- Falar, discutir, dizer o que fazer, não é com a gente. Já escrevemos o que pensamos sobre isso, quando isso fazia sentido para nós. Está dito lá. Por que não olham nossos materiais?

E entregaram uma mochila aos humanoutros com uma série de suas produções. Os humanoutros, inicialmente meio confusos com o posicionamento dos marcianos, aos poucos compreenderam que falar, dar ideias, dizer o que é ou não é, não tinha sentido para eles. Seu dizer e escrever tinha outro sentido, outras finalidades2. Em sua oferta eles afirmavam que sua contribuição era a partir de sua experiência e de suas afetações.

O “papo reto”, numa linguagem de marcianos, diz de uma conversa direta, objetiva, sem rodeios. Sem rodeios, os marcianos mostraram que o problema de falar pouco e ao fim das reuniões, na verdade, era um falso problema. Mostraram que o “fazer junto”, que o “pesquisar junto”, não implicava dizer, debater, argumentar, escrever como humanoutros ou astronautas. Afirmaram, com seu gesto, que o comum que estavam produzindo tinha a ver com a vida em Marte e em como esta poderia ser potencializada na relação com a pesquisa.

 

Para além do que dizem

Quarto de Despejo, O que é Lugar de Fala, O sol na Cabeça, A Queda do Céu, as Veias Abertas da América Latina.... Restou aos humanoutros se deixarem afetar pelos materiais que os marcianos lhes entregaram para que os saberes de suas experiências os pudessem inspirar, impregnar, tocar suas práticas de pesquisa em Marte.

Em meio a organização e estudo dos materiais recebidos dos marcianos algo se modificou aos humanoutros. Começaram a conversar sobre a questão que os animava sobre o lugar de trabalhador-pesquisador: o próprio pesquisar e a pesquisa decolonial. Perceberam que estes encontros com astronautas e marcianos já era sua pesquisa operando: os movimentos de conversa entre os grupos, a tentativa de escuta de todos, de discussão dos conflitos, de olhar os movimentos, de compreender as diferenças em jogo, de não querer planificá-las, de ficar atentos aos modos de expressão. Perceberam que, para além de tudo que escutaram e falaram, dos materiais que receberam, sua experiência com astronautas e marcianos, e o que aconteceu a partir desta, lhes mostrou modos de fazer que são preciosos para tornarem-se pesquisadores não-colonizadores.

 

Sobre Marte e Marcianos

Em uma cratera pouco iluminada de Marte, distante do centro de pesquisa, lugar-comum onde a vida acontece, marcianos e humanoutros conversam....

Marciano: - Antes da chegada de vocês aqui em Marte, vivíamos em paz, não que não houve conflitos, disputas e até guerras, mas a vida que se vivia era suficiente, estava tudo bem! Nossos alimentos eram plantados e colhidos por nós, fazíamos nossos próprios remédios com as plantas que conhecíamos. Agora eles (os remédios) parecem não fazer mais efeito. Que virada foi esta que até as plantas parecem não mais saber?

E continua...

- Você, por exemplo, vem lá da sua Base, aqui para a nossa comunidade para me conhecer, para saber minha história, minha relação com as drogas. “Hoje estou bem, me sinto bem... só o fato de estar aqui falando com o professor, contribuindo com esse trabalho, há alguns anos não imaginaria isso”. Eu tenho o maior prazer em dividir contigo minha história, porque sei que é importante para a tua pesquisa. Assim, me sinto importante também! Mas, algumas drogas que uso não eram consideradas ilegais e prejudiciais até a chegada dos humanoutros aqui em Marte! Algumas faziam parte dos costumes locais! É engraçado, mas acabamos absorvendo os costumes de vocês, jeito de vestir, de comer, de medicar, até os valores e regras estamos absorvendo. Mas e o nosso jeito, e os nossos costumes? Será que isso não importa?

Muitas coisas passam pela cabeça do humanoutro. Ele fica angustiado com tudo que o marciano o faz refletir e questionar e sentir! Em poucos segundos pensa:

- Mas estou aqui não para servir de modelo a ninguém, até porque não o sou! Também uso algumas drogas, mais leves, talvez! Drogas consideradas lícitas (café, álcool, tabaco, remédios...), mas ainda assim são drogas! Que problemas estamos construindo ao produzir determinados valores, determinados costumes e determinados saberes? De que modo construímos essa ideia de “usuários de drogas”? De que maneira estamos produzindo “restos” sociais e vidas precarizadas por não se enquadrarem em determinados parâmetros sociais? Por outro lado, por mais que eu esteja tentado produzir uma pesquisa conjunta, construída coletivamente por todos os atores envolvidos, ela ainda é reconhecida como minha? Será que é possível construir uma pesquisa reconhecida pelos sujeitos como sendo deles também? Será que a simples presença da pesquisa e do pesquisador já aciona processos de colonização? O que é possível fazer para desconstruir este lugar de colonizador? O que eu digo agora para este sujeito?

E decide nada dizer... O silêncio neste momento talvez carregue mais sentido do que uma fala articulada, do que um conceito, do que uma pergunta... E seguem conversando a partir do silêncio.

Marciano: - Mas o que me incomoda mesmo é dizerem que SOU um marciano drogado, um ex-presidiário, como se eu fosse só isto! Minha vida é muito mais do que isto, minha vida é feita de várias histórias, várias experiências, várias vivências. Ninguém deveria ser visto somente a partir de um ponto de vista, nem para o melhor, nem para o pior. E não devemos ser vistos como sendo todos iguais: todo marciano é deste modo e todo humanoutro é daquele modo. Não concordo com esta visão! Você concorda?

Humanoutro: - Concordo contigo! Somos heterogêneos. Constituímo-nos na e pela diferença, a cada momento diferimos de nós mesmos...

Marciano usuário interrompe a fala do humanoutro: - Não entendo quando tu fala assim!

Humanoutro: - Desculpa, estava lembrando de uma conversa que tivemos ontem com os astronautas que vieram conhecer nossa comunidade. Mas a teoria não importa agora, o que importa é a forma como nós afetamos um ao outro. Não sairemos desta conversa do mesmo modo como iniciamos, sairemos diferentes, porque você me fez pensar e questionar muitas coisas.

Marciano: Às vezes tu até parece um marciano!

Humanoutro:Acho que nossas fronteiras estão começando a se embaralhar. Talvez estejamos em meio a outro ser, nem humanoutro, nem marciano, talvez uma mistura humanoutro-marciano, ou marciano-humanoutro?

Marciano usuário fica pensando no que aquele humanoutro estava dizendo: -Então ele também está se modificando? O que eu falo não lhe interessa somente pela pesquisa? Minha história o faz refletir, o faz sair do lugar? O marciano usuário não sabe o que dizer, prefere calar, no silêncio escuta melhor a si mesmo e aos outros!

E no silêncio ambos percebem-se conectados a uma força que não vêm de um ou de outro, mas da composição que se faz entre eles. Percebem o risco que correm por estarem ali, lado a lado. Mas este risco não é um risco qualquer. É arriscar-se e colocarse em perigo de desmanchamento de suas supostas fronteiras, é um surfar num mar turbulento. O que pode advir desta conexão? Não há certezas, não há sequer ideias. Mas, não é disso que se trata! Tratase de viver a experiência do comum. Desta experiência que passa pelo corpo e pela alma, que os toma de sobressalto e que tira o ar. Assombrados com sua intensidade, nada podem fazer senão vivê-la.

A experiência que ali se fez não estava prescrita, nem prevista. Ela se faz neste encontro entre dois seres tão diferentes e, ao mesmo tempo, tão parecidos, provenientes de mundos tão distantes e tão próximos, com visões de vida tão díspares e tão iguais. Estes seres que se abrem à experiência e nesta experiência produzem o comum. Os dois, ainda sentados, lado a lado, em silêncio, parecem inebriados pela emoção que os toma. Produziram-se outros neste encontro. As lágrimas não caem, mas iluminam o luar com sua intensa presença.

 

Sobre conclusões e aberturas:

O presente artigo trouxe extratos de diários de campo e o conto de Marte como estratégias metodológicas para dar visibilidade à sutileza com que o colonialismo que nos habita se faz presente nas práticas de pesquisa que desenvolvemos, seja trabalhando na periferia, na Universidade, ou em Marte. Não se trata do local que pesquisamos ou trabalhamos, trata-se de como nos colocamos em campo, como habitamos este lugar de pesquisa e de trabalho, ou seja, como fazemos corpo com a pesquisa, com o trabalho e com as pessoas.

Fazer corpo diz de como nos abrimos aos encontros que se suscitam a partir do primeiro contato, da primeira conversa. Não se trata de conhecer o campo de pesquisa e os sujeitos da pesquisa. Não basta perguntar sobre como vivem, o que desejam e o que esperam dos pesquisadores e da pesquisa, pois, provavelmente, digam somente o que interessa ao pesquisador. Fazer corpo diz de como nos deixamos afetar, tocar, transformar pelo campo. Diz das experiências que produzimos por entre estes encontros.

Importa abrir-se ao comum que se produz entre os sujeitos, que vai muito além e aquém do que planejamos na pesquisa. Reafirmamos com Fernand Deligny que:

Entre vagar e pesquisar - no sentido mais nobre do termo - existirá verdadeiramente uma diferença de nível? (...) Vagar é um termo destituído de complemento, de objeto. O mesmo vale para pesquisar, que assume sua altura, sua exigência própria, quando quem pesquisa trabalha em rede (...) e quando o quê - que seria o objeto do pesquisar - não é necessário em absoluto, sendo o 'projeto pensado' do pesquisador: pesquisar. (p.38, 2015)

Então, mais do que um projeto pensado com objetivos e hipóteses, uma pesquisa, que se propõe decolonial, estará atenta ao próprio movimento do pesquisar. Trata-se de vagar, de acompanhar os fluxos, as linhas de força que vão se compondo e se produzindo no meio, no entre - entre-sujeitos, entre-saberes, entre-lugares, entre-afetos. Aquilo que não pertence nem a um nem ao outro, mas que se compõe no encontro, ou como nos diria Spinoza, interessam os afectos produzidos nos bons encontros. Esse entre merece atenção especial na pesquisa, pois atenta-se ao viver e ao experienciar junto.

De qualquer modo há que se colocar sempre em problematização que o simples fato/ato de estar em campo, de colocar uma pesquisa em ação já marca uma diferença de lugar fala: quem fala, de onde fala. Muitas pesquisas buscam “dar voz” ou “dar lugar às falas” dos sujeitos da pesquisa. Então questionamos: cabe ao pesquisador “dar” voz ou lugar a alguém? Os sujeitos já possuem voz e lugar!

Há que se colocar em problematização o lugar de fala, reconhecer que como trabalhadores e como pesquisadores há diferenças que necessariamenteprecisamser compreendidas, para que, com estes encontros, possamos potencializá-las. Para além de estabelecer uma relação de composição entre pesquisador e campo, faz-se necessário a priori, uma postura de reconhecimento de que já existe(m) um (muitos) saber (es) configurado(s) nos campos de pesquisa. Com esta perspectiva, o tornar-se pesquisador e trabalhador com um olhar decolonial volta suas questões para um questionamento permanente das práticas em questão no sentido de compreender no que as mesmas contribuirão para o pesquisador, para o trabalhador e para as pessoas, comunidades e coletivos que compõem este percurso. Enquanto pesquisadores-trabalhadores voltamos à academia para potencializar nossos trabalhos ou produzir conhecimento sobre nossa experiência.

Ao buscarmos palavras para concluir nossas reflexões sobre a pesquisa decolonial, lembramos-nos de um vídeo que traz filmagens de um momento de troca, em que os participantes (trabalhadores, pesquisadores, usuários, rappers) compartilhavam experiências construídas em comum. A cena filmada em um final de tarde traz vários depoimentos, dentre os quais se destaca a fala de Igor Gomes que, em sua vez de falar à câmera, faz uma leitura perspicaz dos acontecimentos e traz uma mensagem direta a todos. Contudo, cerca de um ano após este evento, participando de outro evento conosco, Igor sofreu um acidente e não sobreviveu. Emocionados com esta lembrança, que surge no final deste processo reflexivo, decidimos reproduzir a mensagem trazida por Igor, não com o intuito de fecharmos essa discussão, mas de produzir outras aberturas.

Sempre existiu o movimento Hip-Hop na cidade e o Co-RAP veio com a necessidade de organizar essa galera, era muita gente fazendo aqui, fazendo ali e produzindo e correndo atrás e o Co-RAP nasceu pra que a gente conseguisse se organizar numa célula, da gente para gente mesmo, pra que a gente se reconhecesse enquanto agentes culturais mesmo, todos jovens e moradores da periferia e fazendo um som[...] Às vezes tem gente que fala que tem que levar cultura pras quebrada, tem que levar cultura pra periferia, mas tem que se ligar que lá tem muita coisa boa[...] é uma cultura local, uma cultura popular[...] O Co-RAP vem pra manter viva essa cultura oriunda da periferia, essa cultura pura, e pra também instrumentalizar ela cada vez mais[...] A cultura da periferia não é nem um pouco valorizada, às vezes as comunidades não recebem o olhar adequado, sabe!? Em várias áreas, cultura, esporte, lazer[...] O Co-RAP também é essa luta, também é essa batalha, a gente também tem a luta política, que é a luta mais importante. Porra, vamo investir nas periferias meu, não adianta inventar um monte de casa de passagem pros cara que já tão num nível de droga, já quase morrendo, e achar um lugar pra deixar a galera um mês e depois a galera sai gordinha e volta pra rua[...] Tem que ter um trabalho gradativo, contínuo, um trabalho real, verdadeiro. Com vontade, sabe!? Não adianta querer ocupar as pessoas pra objeto de estudo e só isso, por uma porra de um TFG, uma porra de uma graduação. É ajudar, querer fazer, sabe meu!? E se somar pra luta realmente, tá ligado!? A gente vem fazendo esse trabalho nas comunidades de maneira autêntica, genuína, independente, mas é difícil[...] Falta um puta de um investimento, falta gente que trabalhe com seriedade também, pessoas que queiram realmente fazer a diferença. Tem gente que vem por que é bonito, oba-oba, tem gente que vem pelo oba-oba[...] Mas é bem difícil, tá ligado!? Que pena que o poder público também não é nosso parceiro, o poder público deveria ser nosso parceiro, deveria acreditar mais no CAPS AD, acreditar mais no trabalho de quem tá aqui no CAPS, acreditar no trabalho da galera que tá na rua e apoiar[...] O poder público deveria bem fazer isso, entendeu!? No meu ver eu acho que é por aí. 3

 

Notas

1 Termos utilizados a partir da psiquiatria para designar crianças autistas, demonstrado no filme Ce Gamin lá.

2 Sobre relação entre colonialismo escrita e fala Deleuze e Guattari abordam o tema em sua obra o Anti Édipo, na sessão “Voz, grafismo e olho: o teatro da crueldade”(2010, p. 249-251).

3http://www.clicsul.net/portal/sul-tragedia-jovem-de-26-anos-e-encontrado-morto-no-arroio-sao-lourenco/

 

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Douglas Casarotto de Oliveira, Lúcia Almeida e Rafael Wolki de Oliveira são doutorandos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
E-mail: douglascasarotto@hotmail.com; lusalm@yahoo.com.br; rafaelwolski@gmail.com

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