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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.spe Porto Alegre  2019

 

ARTIGOS

 

Psicologia, pesquisa cartográfica e transversalidade

 

Psychology, cartographic research and transversality

 

Psicología, investigación cartográfica y transversalidad

 

 

Eduardo Passos

Universidade Federal Fluminense (UFF), Niterói, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

Esse ensaio discute a perspectiva transdisciplinar nos estudos da psicologia saudando os vinte anos do PPGPSI da UFRGS. Celebra o que foi feito na psicologia social praticada no programa de pós-graduação em Psicologia Social da UFRGS. Afirma a importância do trabalho rigoroso do método e nossa implicação com o campo da pesquisa em psicologia no contemporâneo que cartografa a realidade multivetorializada em que nos encontramos. O método da cartografia orienta a abordagem transdisciplinar na psicologia, entrelaçando clínica, cognição, filosofia e política, no esforço de se aproximar dos problemas que o mundo em que vivemos nos apresenta.

Palavras-chave: pesquisa, cartografia, transversalidade


ABSTRACT

This essay discusses the transdisciplinary perspective in psychology studies saluting the twenty years of PPGPSI of UFRGS. It celebrates what has been done in the social psychology practiced in the post-graduation program in Social Psychology of UFRGS. It affirms the importance of rigorous work of the method and our implication with the search field in contemporaneous psychology that maps the multivectorial reality in which we find ourselves. The cartography method guides the transdisciplinary approach in psychology, entwining clinic, cognition, philosophy and politics, in the effort of approaching the problems that the world we live in presents us.

Keywords: research, cartography, transversality


RESUMEN

Este ensayo discute la perspectiva transdisciplinar en los estudios de psicología en homenaje a los veinte años del PPGPSI de la UFRGS. Celebra lo que ha sido hecho en la psicología social practicada en el programa de postgraduación en Psicología Social de la UFRGS. Afirma la importancia del trabajo rigoroso del método y nuestra implicación con el campo de la investigación en psicología contemporánea que cartografa la realidad multivectorializada en que nos encontramos. El método de la cartografia orienta el abordaje transdisciplinar en la psicología, entrelazando clínica, cognición, filosofía y política, en un intento de aproximarse de los problemas que nos presenta el mundo en que vivimos.

Palabras clave: investigación, cartografía, transversalidade


 

 

Em maio de 1962 é morto com treze tiros o assaltante Mineirinho, morador do morro da Mangueira no Rio de Janeiro, onde era protegido pela população que o tomava como um Robin Hood carioca. Reza a lenda que Mineirinho teria sete vidas e que morreu levando no peito uma medalha de São Jorge e no bolso uma oração a Santo Antônio. Eram sete vidas, mas no excesso da prepotência policial foram treze as balas que lhe atingiram na madrugada daquele primeiro de maio de 1962. No mês seguinte, Clarice Lispector (2019) publica o conto “Mineirinho” na revista Senhor onde foi cronista desde 1958.

Esta é a lei. Mas há alguma coisa que, se me faz ouvir o primeiro e o segundo tiro com um alívio de segurança, no terceiro me deixa alerta, no quarto desassossegada, o quinto e o sexto me cobrem de vergonha, o Rev. Polis e Psique; 20 ANOS DO PPGPSI/UFRGS, 2019: sétimo e o oitavo eu ouço com o coração batendo de horror, no nono e no décimo minha boca está trêmula, no décimo primeiro digo em espanto o nome de Deus, no décimo segundo chamo meu irmão. O décimo terceiro tiro me assassina - porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro.

Clarice descreve as etapas do tormento diante do assassinato. Usa da sua sensibilidade para enfrentar o ataque policial, gesto violento que lesa a todos e de que ela não pode se proteger. Ela escreve o conto, acolhe o evento brutal e reage a ele, tudo a um só tempo, apontando com seu dedo em riste a injustiça social de um mundo no qual os direitos são tortos. A justiça que mata Mineirinho é de uma razão injusta. A ação e a reação da escritora se fazem nessa mistura afetiva, de uma indignação trêmula e contundente, acompanhando reflexivamente as mudanças em seu espírito que, por fim, sem mais poder se esquivar é atingido mortalmente. Algo nela morre para ser o outro. Ela quer ser o outro. Ela já quer morrer.

Clarice continua, não para:

Essa justiça que vela meu sono, eu a repudio, humilhada por precisar dela. Enquanto isso durmo e falsamente me salvo. Nós, os sonsos essenciais.

(...)

Quero uma justiça que tivesse dado chance a uma coisa pura e cheia de desamparo em Mineirinho - (...) é uma coisa que em nós é tão intensa e límpida como uma grama perigosa de radium, essa coisa é um grão de vida que se for pisado se transforma em algo ameaçador - em amor pisado;

(...)

Amor pisado, sangue pisado, palavra pisada. A escritora se sente pisada em seu amor que não é mais próprio, mas amor coletivo, amor comum ou que comuna com o bandido que tem com ela a prerrogativa do erro. Oferecendo sua sensibilidade em sacrifício literário, é sua existência que irradia em propagação perigosa tal como uma grama de radium.

Ela continua:

Essa alguma coisa muito séria em mim fica ainda mais séria diante do homem metralhado. Essa alguma coisa é o assassino em mim? Não, é desespero em nós. Feito doidos, nós o conhecemos, a esse homem morto onde a grama de radium se incendiara. Mas só feito doidos, e não como sonsos, o conhecemos. É como doido que entro pela vida que tantas vezes não tem porta, e como doido compreendo o que é perigoso compreender, e só como doido é que sinto o amor profundo, aquele que se confirma quando vejo que o radium se irradiará de qualquer modo, se não for pela confiança, pela esperança e pelo amor, então miseravelmente pela doente coragem de destruição. Se eu não fosse doido, eu seria oitocentos policiais com oitocentas metralhadoras, e esta seria a minha honorabilidade.

Até que viesse uma justiça um pouco mais doida. Uma que levasse em conta que todos temos que falar por um homem que se desesperou porque neste a fala humana já falhou, ele já é tão mudo que só o bruto grito desarticulado serve de sinalização.

Uma justiça prévia que se lembrasse de que nossa grande luta é a do medo, e que um homem que mata muito é porque teve muito medo. Sobretudo uma justiça que se olhasse a si própria, e que visse que nós todos, lama viva, somos escuros, e por isso nem mesmo a maldade de um homem pode ser entregue à maldade de outro homem: para que este não possa cometer livre e aprovadamente um crime de fuzilamento.

Uma justiça que não se esqueça de que nós todos somos perigosos, e que na hora em que o justiceiro mata, ele não está mais nos protegendo nem querendo eliminar um criminoso, ele está cometendo o seu crime particular, um longamente guardado. Na hora de matar um criminoso - nesse instante está sendo morto um inocente. Não, não é que eu queira o sublime, nem as coisas que foram se tornando as palavras que me fazem dormir tranquila, mistura de perdão, de caridade vaga, nós que nos refugiamos no abstrato.

O que eu quero é muito mais áspero e mais difícil: quero o terreno.

Na quarta-feira dia 14 de março de 2018, algo de sinistro acontecia entre nós. Foi uma noite escura como as outras, até que uma ventania excepcional, sem trovões embora repleta de raios, interrompeu a normalidade do céu do Rio de Janeiro. A cidade foi perturbada por um fenômeno meteorológico que só teve sentido para os que já sabiam do ato violento que cruzou nossas vidas, como no céu os relâmpagos cruzavam indicando a ira das deusas, tendo à frente Iansã, provavelmente o ori de Marielle Franco. Foram quatro tiros no rosto da vereadora, mulher preta, lésbica e da favela, ativista do campo progressista da esquerda, que era executada por uma ordem que já não mais se oculta, Estado de exceção tácito e sorrateiro que vem se impondo como uma sombra cinzenta sobre nós, gerando afetos tristes: medo, raiva, tristeza, angústia. Os tiros foram certeiros porque atingiram a todos nós, milhares, centenas de milhares mais ou menos pretos, mais ou menos mulheres, mais ou menos favelados, mas todos atingidos como se o ato de violação expusesse o comum da lesão, alvo multipessoal, coletivo. A ira de Iansã era proporcional ao golpe sofrido naquele momento do disparo, abrupto, inadmissível apesar de inelutável. Diante da morte, essa experiência de extrema dor frente ao que não tem reparo, do que não tem sentido nem nunca terá, porque a morte, o corpo frio da morte é um limite inexpugnável com que nos confrontamos diante de um abismo, dessa precipitação final, inescapável mas de que só temos uma vaga ideia até o momento que tocamos o corpo frio da morte. Marielle estava morta e seu corpo frio nos devolvia não só a evidência da violação, mas, sobretudo, a força que em nós é a evidência da vida, do calor da vida. A sua morte nos indicava o vívido da vida como forma por excelência da resistência. Precisamos falar da resistência, da luta que é intrínseca à vida, como a biopotência é intrínseca aos corpos que resistem à biopolítica. Precisamos falar das forças que nos atravessam. Talvez seja mesmo para esse terreno onde os domínios, os jogos de forças se cruzam que precisamos voltar. Na encruzilhada, Clarice Lispector e José Rosa de Miranda, o Mineirinho, se misturam, Marielle Franco e todos e todas nós somos um. Precisamos falar da transversalidade como diretriz metodológica para pensarmos em sintonia com o contemporâneo.

Nossas pesquisas em psicologia precisam tratar do terreno problemático que se delineia na interface transdisciplinar entre clínica, arte e política. Da transdisciplinaridade queremos essa operação primária do cruzamento - tal como no céu foram os raios de Iansã - para pensar as diagonais, os vieses, os vetores que nos atravessam e nos compõem no contemporâneo. Não há como pensarmos, doravante, nossos trabalhos de pesquisa sem considerar a força abrupta desses eventos como aquele que na noite de quarta-feira nos tomou na ventania do assassinato de Marielle.

Aquela morte foi programática, gerando comoção em milhares de mulheres e homens. E hoje ouvimos, estarrecidos, discursos políticos que se posicionam descaradamente contra o levante das minorias e a favor da violência que constrange, viola, tortura. A onda conservadora que, tal um tsunami, tomou de assalto a realidade brasileira, sobretudo nas últimas semanas desse mês de outubro de 2018, nos surpreende pela sua proporção, intolerância e esquecimento. Como foi possível produzir esse esquecimento da violação no Estado de exceção do golpe civil-militar de 1964? Como é possível não se lembrar dos perigos do autoritarismo masculinista que se impôs vestido de verde e amarelo? Não entendemos ainda como esse esquecimento se produziu. Não entendemos como esses afetos tristes puderam se espalhar com tamanha força a ponto de tornar secundária a propagação com brilho radioativo de uma vida pisada. Não entendemos como a população reagiu como um rebanho obediente às palavras de ordem de seus pastores. Não entendemos e por isso estamos estarrecidos e perplexos. Perdemos algum elo explicativo na cadeia sinistra dessa história recente.

Talvez seja prudente conter o furor explicativo e manter o estado de perplexidade como uma aura de proteção. Talvez não seja preciso explicar tudo, deixando um resto sem sentido, uma grama sensível que nos mantém atentos para o que acontece. Mas tal reserva não pode nos descomprometer com o rigor do método que nos orienta em nossas pesquisas.

Afirmamos a importância do trabalho rigoroso do método. Mantenhamos nossa perplexidade sem perder de vista nossa implicação com o campo da pesquisa em psicologia no contemporâneo que cartografa a realidade multivetorializada em que nos encontramos. Há um preconceito de que devemos nos livrar, preconceito que pressupõe uma relação excludente entre a radicalidade da invenção e o rigor metodológico, como se admitíssemos que uma ideia criativa só pudesse ser construída em um espontaneísmo do pensamento ou que a intervenção inventiva só se fizesse sob a forma de um laissez-faire. O preconceito tem também em sua forma invertida a pressuposição não menos perigosa de que um pensamento rigoroso metodologicamente não pudesse ser criativo, como se toda aposta e todo esforço fosse consumido no trabalho árido e infecundo do método.

Para nós, trata-se de pensar a relação entre inventividade e rigor metodológico de tal maneira que possamos afirmar um método da criação ou, por outra, pensar o trabalho metodológico como condição para nossas intervenções inventivas. O método da cartografia orienta a abordagem transdisciplinar na psicologia entrelaçando clínica, cognição, ética, estética e política. Trata-se de um método que:

(1) mantém inseparáveis descrição e funcionalidade. Aqui a descrição da realidade investigada se faz ato sobre a realidade - descrição-intervenção, observação-intervenção que constitui, no mesmo movimento, descrição e aquilo que descreve. A dimensão autopoiética (Maturana e Varela, 1972; 1987) ou enativa (Varela, 1989; Varela, Thompson e Rosch, 2003) da cognição (percepção, pensamento, memória) indica o caráter criativo (poiético) do conhecimento, o que faz da cartografia uma perspectiva metodológica que mitiga o sentido representacional da cognição. No método cartográfico, acessamos a realidade do “objeto” por atos-descrição que põem algo a funcionar, sendo os próprios atos cognitivos efeito de uma funcionalidade;

(2) amplia o plano de intervenção pela inclusão do indivíduo, do social, do coletivo de seres humanos e não humanos (as coisas do mundo como os objetos técnicos, fenômenos meteorológicos e geográficos). A cartografia considera a realidade a partir de seu processo de produção sempre heteróclito, articulando elementos de diferentes naturezas. Tem como diretriz o acompanhamento dos processos de efetuação, atuação (enação) da realidade. Conhecer torna-se acompanhar processos, o que não se dá sem a participação no plano coletivo de produção do fenômeno estudado. Pesquisa-se com os processos do mundo, em meio à diversidade do mundo. Pesquisa-se nos processos e não sobre eles.

(3) operacionaliza a intervenção através de dois dispositivos inseparáveis: o dispositivo analítico - análise no sentido químico do termo, análise como quebra do já dado - e o articulacional ou composicional - no sentido artístico do termo como criação de universos de referência. A pesquisa cartográfica considera inseparáveis conhecer e intervir. Como pesquisa-intervenção (Passos & Benevides, 2009; 2000) abre analiticamente a forma da realidade para acessar seu processo de realização; intervém sobre o instituído mirando os processos instituintes (Lourau, 1975). Com os fragmentos analíticos da intervenção, a cartografia se interessa pelas articulações ou composições que advêm no percurso da investigação.

O método assume aqui suas três faces: descrição do plano de produção ou das condições de possibilidade dos fenômenos estudados; ampliação da funcionalidade clínico-política do fenômeno pela inclusão das dimensões individuais e coletivas, humanas e não humanas; e operação analítico-articulacional sobre o terreno onde o fenômeno ganha e muda de sentido. Descrever as condições de possibilidade dos fatos imprime um atiçamento do plano de sua produção - plano de fazer ver e fazer falar, tal como Foucault demonstrou com sua analítica genealógica - que desestabilizado, libera forças de criação (Deleuze, 1988). Este trabalho de descrição não pode se realizar mantendo a separação entre aquele que descreve e aquilo que é descrito, o que exige a inclusão ou a lateralização como procedimento metodológico: os termos são postos lado a lado, de tal maneira que o indivíduo e o coletivo, os objetos humanos e não humanos se dispõem num mesmo plano clínico-político de produção da realidade. Esta ampliação da funcionalidade clínico-política do fenômeno investigado desestabiliza suas formas instituídas numa operação analítica, ao mesmo tempo em que permite a articulação de novos sistemas de referência ou territórios existenciais: o fenômeno se transforma ou sai do lugar onde o pressupúnhamos estar no ato mesmo da investigação. É a grama de radium emitindo sua propagação.

Certamente é o sentido do método que em última instância se transforma. Como qualquer método, estamos falando de uma direção, de um caminho a ser percorrido. A questão decisiva é o da determinação da direção do caminho (hodos). Ter a meta determinada previamente ao caminhar da pesquisa (meta-hodos) ou tê-la constituída no percurso da investigação (hodos-meta) e contando com a participação do objeto (sentido forte da pesquisa participativa) faz toda a diferença. A cartografia é um método de pesquisa-intervenção participativa que realiza a inversão metodológica do hodos-meta (Passos & Barros, 2009; Passos & Kastrup, 2014). Por isso mesmo, a cartografia nunca pode perder seu caráter circunstancial e está atenta tanto aos pontos de congelamento da capacidade normativa e aos limites da experimentação, quanto à intervenção que desestabiliza e articula os fragmentos da realidade analisada para a criação de novos territórios existenciais (o terreno que Clarice evoca). O método deve estar sensível aos movimentos, acompanhando os processos de mudança do/no terreno.

A propósito dessa palavra com que abruptamente Clarice Lispector termina sua crônica “Mineirinho”, Baptista e Ferreira (2013, p. 70) dizem:

O que seria este “terreno”? Oposto ao celestial e sublime, certamente. E também o terreno onde se ergue a casa habitada por paradoxos do cotidiano, lugar onde os homens vivem no desassossego dos choques e fricções. Esta interpretação para terreno está presente quando ela reflete sobre a sonsice que busca resguardar a casa de qualquer “estremecimento”. Diz a narradora: “Eu devo ter esquecido que embaixo da casa está o terreno, o chão onde nova casa poderia ser erguida” (ibid., p.30, negrito nosso). Não seria esta nova casa um modo novo de viver com os outros, diferente da “sonsice essencial”? E o terreno então não seria o peso, mas o lugar de onde se poderiam lançar os alicerces de novas construções.

A efetiva realização do método não se cumpre sem o engajamento no concreto do terreno que habitamos em nossas pesquisas. Não podemos falar da realidade concreta numa perspectiva de terceira pessoa como se ela pudesse ser apresentada numa mera descrição objetiva do fato ou do “que ele é”, do seu know what. O método exige uma perspectiva de primeira pessoa ou de engajamento na experiência de tal maneira que esta direção se realize num “como fazer”, num know how.

Como fazer com que esta tríplice face do método se cumpra? Como se engajar na experiência concreta e cartografá-la funcionalmente, ampliando o plano de composição pelas inclusões das dimensões individuais e coletiva, humanas e não humanas? Como realizar a análise e acompanhar a articulação de novos territórios existenciais? A operação concreta para a realização deste método, ou a contraface experiencial do método é a prática da transversalização.

O conceito de transversalidade foi criado no contexto da análise institucional francesa dos anos 1960, em uma transformação e desvio por relação ao conceito de transferência e contratransferência e ao de hierarquia institucional e “grupismo”. As circunstâncias nas quais o conceito emerge montam um cenário no qual a instituição manicomial do pós-guerra é criticada pelo fechamento da experiência da loucura. É pela conjugação entre forças de resistência ao enclausuramento que uma prática concreta de ampliação do plano da experiência no campo da saúde mental e das práticas militantes da esquerda ganha expressão com o conceito de transversalidade (Rossi & Passos, 2014).

Mais do que o conceito de uma experiência temos aqui um conceito-experiência que descreve e intervém. Por isso sua natureza paradoxal, a um só tempo teórica e técnica, abstrata e concreta. Este campo de experiências atravessado pela instituição psiquiátrica, pelos partidos políticos e pelos movimentos sindicais está fortemente segmentado, marcado por posições estanques e regido por códigos de comunicação e de trocas circulantes em dois eixos pré-estabelecidos: hierarquia e corporativismo - um eixo vertical que hierarquiza os sujeitos e um eixo horizontal que cria comunicações corporativas.

Felix Guattari afirmou que, através de uma psicoterapia institucional, o que se quer é acabar com os “porta-vozes”, com as características individualizantes das práticas de cuidado que centram nos especialistas a possibilidade de análise e transformação. Diferenciará grupo-sujeito de grupo-sujeitado, ressaltando que não está se referindo à concepção de grupo como tendo, em si, virtudes analíticas. Ao contrário, dirá que são necessários vários movimentos para que um grupo possa produzir “efeitos analíticos” (Guattari, 2014).

A primeira formulação de Guattari para “grupos sujeito e grupo sujeitado” - os dois modos de organização dos coletivos que expressam graus maiores e menores de liberdade - responde às demandas de sua experiência na clínica La Borde, nas décadas de 60/70. Como qualquer conceito, ele preenche diversas funções, dependendo tanto de variáveis do próprio campo do pensamento, quanto do momento histórico que o produz. O grupo sujeitado é caracterizado pela hierarquia e pela organização vertical ou hierárquica; é uma tendência grupal que conjura qualquer inscrição de morte, de dissolução, que preserva os mecanismos de auto conservação fundados na exclusão de outros grupos e que impede os cortes criativos que interrompem suas repetições sintomáticas. Recebe sua lei do exterior, opera por totalização, unificação, substituindo as condições de enunciação coletiva por agenciamentos estereotipados. Um grupo rebanho pautado pelo medo e pela sonsice como indicou Clarice.

Já o grupo sujeito coloca em questão sua própria posição, abrindo-se para o outro e para os processos criativos. É uma tendência grupal que conjura as hierarquias e totalidades, que se confronta com seu próprio limite, sua finitude, que não busca garantias transcendentais e que se define por um coeficiente de transversalidade ampliado. Suportando seu fim, diz: “porque eu sou o outro. Porque eu quero ser o outro ”.

O aumento do coeficiente de transversalidade é o grau de abertura para o outro e para o outramento de si. Está referido à possibilidade de confronto com outros grupos e ao confronto com o outro no interior do próprio grupo. É o grau de abertura à alteridade e, portanto, à emergência da diferença. Clarice escreve com a grama de radium na mão que a faz irradiar-se, abrir-se ao outro, suportando sua própria morte. Numa instituição essa irradiação pode se dar pelo aumento de comunicação entre os diferentes membros de cada grupo e entre os diferentes grupos, indicando um processo de transformação que aumenta a capacidade comunicacional, a liberdade de expressão e a condição de sujeito da história. A direção da intervenção clínico-política é essa: o método se cumpre na passagem da posição assujeitada do grupo para a de sujeito.

O conceito de transversalidade pressupõe a constituição da subjetividade como política e social. Neste sentido, a abertura do que Guattari chama de “coeficiente de transversalidade” depende de um maior ou menor contato com as condições de produção de fala, de decisão no coletivo. A produção de um grupo sujeito se dá pela possibilidade de tomada da palavra. O desencadear do processo analítico em qualquer intervenção cartográfica está relacionado ao aumento do grau de transversalidade. No caso do grupo, isto será possível quando ele for suporte para os diversos modos de expressão que emergem, os diversos enunciados que o descolem do lugar mítico e imaginário em que o próprio grupo se reconhece. Inserir-se no grupo como ouvido-ouvinte é o que abrirá a possibilidade de um acesso para além do grupo.

O conceito de transversalidade se define como um grau de abertura à alteridade ou um quantum comunicacional que tende a ser máximo entre os diferentes níveis e, sobretudo, nos diferentes sentidos intra e intergrupos: um quantum de radium. O conceito de comunicação que serve para Guattari pensar o coeficiente de transversalidade em um grupo deve ser entendido, como nos ressalta Lourau (1975), não a partir do esquema bilateral emissor-receptor. A comunicação a que se refere Guattari se exerce com uma dinâmica que subverte o eixo tradicional do sistema de informação. Guattari se distancia do modelo sociológico e psicológico que toma a instituição como estrutura de poder cujo sociograma latente se oculta por trás de um organograma manifesto. É esse eixo bidimensional que pressupõe a oposição entre um manifesto e um latente, um oculto e um explícito que Guattari põe em questão ao experimentar uma dinâmica de comunicação multivetorializada ou transversal. O que é produzido nessa experiência concreta de comunicações transversais não é da ordem do desvelamento, do desocultamento da dimensão profunda toda pronta e recalcada. Guattari insistirá que essa dimensão ativada pela análise “nunca é dada de uma vez por todas”, estando consequentemente ligada a uma “intervenção criadora do sujeito da instituição” (Guattari, 2014).

Seguir a diretriz metodológica da transversalidade nos leva, então, a cartografar processos de abertura ou fechamento comunicacionais. Frente aos que fecham, intervir na aposta da ativação dos processos de diferenciação e emancipação. Frenteaos que abrem, acompanhar a articulação dos universos de referência avaliandocoletivamente os sentidos que advêm. Não há como realizarmos tal direção sem estarmos sensíveis ao mundo, sem acolhermos os eventos que nos tocam, nos desviam, nos compõem. É preciso estar sensível à grama de radium como nos indica Clarice Lispector.

A psicologia social praticada no programa de pós-graduação em Psicologia Social da UFRGS, com sua inclinação transdisciplinar, dedica-se a esse estudo sensível, construindo sentido e narrativa para o que nos acomete no silêncio angustiante do presente. Saúdo, então, esses 20 anos do PPGPSI da UFRGS, celebrando o que aqui foi feito e confiante no que aqui será feito contra o obscurantismo que nos ronda.

 

REFERÊNCIAS

Baptista, L. Ferreira, M. (2013) Mineirinho e a compaixão da revolta: Uma leitura da leveza em Italo Calvino e Clarice Lispector. Revista Intratextos, vol 5, no1, p. 64-74. DOI: http://dx.doi.org/10.12957/intratextos.2013.11827        [ Links ]

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Eduardo Passos é professor titular do Instituto de Psicologia da Universidade Federal Fluminense (UFF).
E-mail: e.passos1956@gmail.com

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