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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.9 no.spe Porto Alegre  2019

 

ARTIGOS

 

Ética na Pesquisa em Psicologia Social: 20 anos do PPGPSI/UFRGS

 

Research Ethics in Social Psychology: 20 years of PPGPSI / UFRGS

 

Ética de la investigación en psicología social: 20 años de PPGPSI / UFRGS

 

 

Carolina dos Reis

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Partindo-se do lugar de estudante egresso, este artigo busca dar testemunho da formação de pesquisadoras e pesquisadores promovida junto ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. O presente escrito coloca em análise os fundamentos ético-políticos da produção do conhecimento em Psicologia Social que orientam nossos modos de pesquisar. Parte-se de um movimento de estranhamento e análise das diferentes formas de aproximação entre a Psicologia Social e aquilo que reconhece como seus objetos de estudo, quais sejam: o homem e o social.

Palavras-chave: Psicologia Social, Ética na Pesquisa, Produção do Conhecimento, Michel Foucault.


ABSTRACT

By considering a former student's stance, this paper is an attempt to bear witness to researcher education provided by the Graduate Program in Social and Institutional Psychology of Universidade Federal do Rio Grande do Sul. It aims to analyze the ethical-political foundations of knowledge production in Social Psychology that have guided our research methods. Furthermore, it involves the problematization and analysis of the different ways that Social Psychology has approached what it reckons as its study objects, namely: the man and the social.

Keywords: Social Psychology, Research Ethics, Knowledge Production, Michel Foucault


RESUMEN

Este artículo proviene de una invitación de, desde el puesto de estudiante de egreso, testificar sobre la formación de investigadores promovida por el Programa de Posgrado en Psicología Social e Institucional de la Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Este escrito busca analizar los fundamentos ético-políticos de la producción de conocimiento en Psicología Social que guían nuestras formas de investigación. Para eso, parte de un movimiento de extrañeza y análisis de las diferentes formas de la Psicología Social abordar su relación con lo que se reconoce como sus objetos de estudio, a saber: el hombre y lo social.

Palabras-clave: Psicología Social, Ética de la investigación, Producción de conocimiento, Michel Foucault.


 

 

Este artigo é efeito de reflexões provocadas pelo aniversário de 20 anos do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, data essa comemorada em um momento de grande tensão no país, em decorrência da eleição para a Presidência da República realizada no ano de 2018 no Brasil. Naquele período, vivíamos a proliferação indiscriminada de discursos de ódio às diferenças, impulsionados pela presença de dois projetos políticos em disputa. Ainda não havíamos vulgarizado o porte e o uso de armas, e a população já se armava com arcabouços de palavras que violentavam os corpos nas ruas. Em meio a isso, encontrávamo-nos para celebrar a existência de um Programa de Pós-Graduação cuja continuidade estava ameaçada pelo projeto político que, como naquele momento já se anunciava, tomaria a frente da gestão pública federal. A ameaça a que nos sentíamos expostos extrapolava os riscos colocados sobre todos os programas de pós-graduação - corte de verbas para a pesquisa, suspensão e recolhimento de bolsas de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado, e acirramento dos indicadores de avaliação -, que poderiam levar ao fechamento de programas considerados de baixa produtividade. Sentíamo-nos especialmente em risco pela consciência das ameaças que representávamos, em decorrência da perspectiva ético-política que sustenta nosso modo de produzir conhecimento.

Frente a essa conjuntura, o convite que inspirou a escrita deste artigo era o de dar testemunho do que a experiência no PPGPSI havia produzido em nós, estudantes egressos, e de como nossas pesquisas e atuação profissional compõem a produção de políticas públicas e contribuem para a garantia de direitos sociais. Logo de início, é importante dizer que, no PPGPSI, partimos do reconhecimento da indissociabilidade entre ética, política e produção de conhecimento. Trata-se de um programa que nos convoca a reconhecer que, no próprio ato de pesquisar, produzimos modos de vida e produzimos a nós mesmos. Assim, a presença do PPGPSI em nossa trajetória não se dá apenas no ato de pesquisar e não se restringe ao tempo do mestrado ou doutorado. Ela incide em nosso processo de constituição como pesquisadoras/es, profissionais, professoras/es, colegas, sujeitos. Ela marca todas as esferas de nossas vidas. Ela delineia a forma como habitamos o mundo. É sobre essa marca ético-política da produção do conhecimento em Psicologia Social, presente no PPGPSI, que gostaria de dar testemunho por meio deste artigo.

Falar sobre ética na pesquisa em Psicologia Social significa falar dos pressupostos epistemológicos que constituem esse campo de saber e seu modo de relação com o conhecimento. Os pressupostos epistemológicos são as condições de possibilidade de um tempo e contexto histórico que permitem a um campo de saber, como a Psicologia Social, estudar, pesquisar, falar sobre determinadas coisas de um modo e não de outro. Logo, para colocarmos em discussão as práticas de pesquisa em Psicologia Social, trata-se de fazer um movimento de estranhamento em relação à forma como pesquisamos para analisar o modo pelo qual, em diferentes momentos históricos, políticos, econômicos e culturais, a Psicologia Social vai buscar modos também diversos de conhecer, estudar e pesquisar. Não há, portanto, nada de natural ou evidente nas formas como pesquisamos; elas são resultado de jogos de saber e poder situados histórica, local, cultural, econômica e politicamente.

Nesse sentido, é importante fazermos um movimento de desnaturalização da aproximação entre a Psicologia Social e aquilo que se entende que seriam seus “objetos naturais” de estudos e de intervenção: o Homem e o Social. Não há, também aqui, nada de natural ou evidente na aproximação e na constituição de relações entre esses elementos. Essas relações são datadas e situadas localmente. Vale ressaltar que entendemos que o Homem e o Social não são objetos dados que estavam “prontos”, à espera de uma ciência como a Psicologia Social que os desvelasse. O que se constitui como sendo isso que entendemos como o Homem e o Social, bem como a própria Psicologia Social, é também efeito dos modos de relação entre eles, das formas de estudar, compreender, aproximar-se, etc. É a partir dessas diferentes relações e aproximações, que vão sendo forjadas diferentes Psicologias Sociais e diferentes concepções do que seria o social e de modos de ser sujeito. Logo, quando assumimos umadeterminadaperspectiva epistemológica, estamos afirmando um determinado modo de aproximarmo-nos do Homem e do Social e, por consequência, de produzirmos sentidos sobre eles, de darmos existência a determinadas formas de entendermos e de nos relacionarmos conosco, com os outros e com o mundo. Esta é, portanto, uma discussão que assume um caráter ético-político, uma vez que precisamos estar atentos aos efeitos de nossas práticas de pesquisa. Do contrário, corremos o risco de produzir saberes que justifiquem “cientificamente” práticas de exclusão, de vulnerabilização, de promoção de desigualdades e violências.

Michel Foucault (1981/2007), em As palavras e as coisas, analisa a emergência das Ciências Humanas como campo de saber. Ao fazê-lo, denuncia a não naturalidade dessa relação de objetificação do Homem pelas ciências. O autor afirma que foi a partir do século XIX que o homem passou a constituir-se simultaneamente como objeto e como sujeito agente do ato de pesquisar. É evidente que a emergência de cada uma das disciplinas que integram as Ciências Humanas, como a própria Psicologia Social, vai estar vinculada à proeminência de um problema ou de uma demanda a ser estudada e/ou resolvida. No caso da Psicologia, por exemplo, Foucault (1981/2007) destaca que seu fortalecimento como campo de saber dentro das Ciências Humanas vai se constituir atrelado à necessidade de formulação e adequação às novas normas impostas pela sociedade industrial. O Homem foi identificado como um problema, como um obstáculo ao avanço das novas ordens criadas pela sociedade capitalista. Era necessário, portanto, um saber que pudesse contribuir com o ordenamento social, com a adequação dos trabalhadores às fábricas e dos estudantes às escolas, com a definição de padrões desejáveis de conduta. O Homem foi então colocado como centro da razão, como sujeito que conhece e é conhecido, fortalecendo a crença de que eram possíveis um Estado e uma sociedade melhores mediante a primazia da racionalidade científica. Interessava, portanto, estudar esse Homem para melhor conhecê-lo e melhor governá-lo.

Essa objetificação do homem pelas ciências inaugurou um acontecimento na ordem do saber que provocou uma redistribuição geral da episteme: “o homem tornou-se aquilo a partir do qual todo o conhecimento deve ser constituído em sua evidência imediata e não problematizada, e aquilo que autoriza o questionamento de todo conhecimento do homem” (Foucault, 1981/2007, p.477). Isto é, interessa não somente estudar o mundo em si, mas a relação do “homem” com o mundo e como as coisas afetam as relações humanas; interessa reverter todo conhecimento científico em um bem, uma proteção ou um avanço para a humanidade. Esses conhecimentos vão se constituir como agentes transformadores da vida humana, como saberes que podem orientar a gestão das condutas. Entretanto, ao ser sujeito e objeto do conhecimento, o Homem trouxe as Ciências Humanas para um lugar paradoxal. Ao mesmo tempo que ocupam um espaço privilegiado em relação às demais ciências, pois todas “devem” remeter-se ao Homem, as Ciências Humanas ficam também relegadas a um lugar de imprecisão e incerteza quanto à sua condição de ciências por estarem impregnadas de subjetividade e pela ausência de um fundamento científico que lhes confira legitimidade irrefutável. Esse dilema que se coloca às Ciências Humanas vai gerar um campo de debate entre as diferentes formas como vão lidar com as especificidades de seus “objetos” de pesquisa, vinculando-se a diferentes pressupostos epistemológicos.

Dentreessasdiferentes epistemologias de pesquisa, uma das perspectivas que se estabeleceram como hegemônicas, sobretudo na Modernidade, buscou (e ainda busca) seguir o mesmo caminho das Ciências Naturais e Exatas, investindo em conferir objetividade positivada às problemáticas culturais, políticas e subjetivas que envolvem o homem. A Psicologia Social, ao seguir esse caminho, “tentou encontrar no homem o prolongamento das leis que regem os fenômenos naturais” (Foucault, 1957/1999, p. 113), buscou elaborar leis com base em modelos matemáticos, definição de relações quantitativas, hipóteses e mecanismos de testagens.

Guareschi et al., (2014) ao analisarem a produção do conhecimento em Psicologia caracterizam essa perspectiva como vinculada a um modelo representacionista de relação com o conhecimento que se caracteriza, grosso modo, por: buscar a definição bem delineada do “fato social” em estudo; com base na literatura já existente sobre o tema, levantar hipóteses que respondam à problemática; escolher as ferramentas metodológicas que mais aproximem o pesquisador do diagnóstico mais verídico possível, para a análise das variáveis que podem estar incidindo na cena pesquisada; definir as leis que regem o problema em estudo; não somente oferecer soluções ao problema atual, mas produzir um conhecimento que permita prever e gerenciar outras situações futuras, identificadas como semelhantes àquela.

São, assim, pesquisas que se destinam a responder a demandas que as convocam a agir, pois é aí que se situa sua necessidade e reconhecimento. Ao fazerem isso, as ciências psicológicas situadas dentro dessa perspectiva vão se colocar a serviço de diferentes instituições, vão oferecer legitimidade a práticas de governo, tanto de âmbito biopolítico quanto de gestão das condutas. A Psicologia Social NorteAmericana, por exemplo, assumia (e ainda assume) essa perspectiva ao produzir uma cisão entre indivíduo e sociedade e ao buscar adaptar/gerenciar esta unidade, o sujeito, que se produziria de um dentro/de sua interioridade, de um núcleo psíquico previamente dado, regido por leis naturais e influenciado por variáveis externas, isto é, pelo “social”. O “social” seria aí tomado quase como uma coisa, uma substância, resultante de tudo aquilo que é externo ao indivíduo. Tratar-se-ia de identificar as variáveis sociais que incidiriam sobre os comportamentos individuais (Hüning e Guareschi, 2009).

Guareschi et al., (2014) analisam, ainda, a existência de outros modos de conceber a produção do conhecimento, dentre esses destacam, pela força e visibilidade que adquiriram dentro do campo de saber da Psicologia, sobretudo por meio de abordagens teórico-metodológicas desenvolvidas pela Psicologia Social, as perspectivas de pesquisa que provocam rupturas com o projeto hegemônico da Modernidade, abrindo espaço para outras maneiras de fazer pesquisa e de constituir uma relação com o “objeto” a ser estudado. O que essas perspectivas têm em comum é um convite à reflexão crítica sobre os efeitos dos nossos saberes. Evidentemente que isso não ocorre de forma homogênea, nem mesmo dentro da Psicologia Social, mas, dentre os diferentes modos de fazer Psicologia e de fazer pesquisa em Psicologia, essa é uma área onde vemos um número de produções significativas que assumem ou buscam assumir essa postura. Esse modelo crítico vem convocando as pesquisadoras e os pesquisadores a assumirem os efeitos políticos implicados na forma como tecem suas pesquisas, tanto do ponto de vista dos referenciais teórico-metodológicos que as sustentam, quanto das relações estabelecidas com os sujeitos com quem dialogamos no processo de pesquisa. São estudos que partem de perguntas como: para quem nossas práticas se destinam? Que efeitos queremos produzir? Que compromissos assumimos? Que jogos de poder/interesse estão articulados ao nosso campo de estudos, nos atravessam e implicam também a nós, pesquisadores?

Nesse sentido, na América Latina, frente às desigualdades sociais e à presença de diversos regimes militares, na década de 70 e 80, constitui-se um movimento de ruptura com a forma como a Psicologia Social vinha se colocando a serviço das instituições, em uma postura adaptacionista dos sujeitos. Emerge daí uma Psicologia Social Crítica; fundamentada no Materialismo Histórico-Dialético, vem convocar a Psicologia a refletir sobre os efeitos políticos do modo como produz conhecimento, a posicionar-se no enfrentamento às violências e vulnerabilidades presentes nos diferentes países latino-americanos e a engajar-se em ações que possam provocar transformações nas condições econômicas e sociais de vida da população. Com uma concepção de sujeito histórico-social, entendendo-o como produto e produtor da história, essas metodologias buscam romper com pressupostos metodológicos da Modernidade, como a neutralidade científica do pesquisador e o uso de instrumentos que garantam a separação entre sujeito e objeto. Sustentados nessa perspectiva crítica, passam a desenvolverse modelos de pesquisa participante, como a pesquisa ação e os grupos focais, cujos objetivos eram desencadear processos de conscientização das ideologias incidentes em nossas representações de nós mesmos e do mundo e, a partir disso, investir em ações que promovessem transformações sociais. Essas ferramentas metodológicas foram (seguem sendo) usadas de forma expressiva, sobretudo em contextos de vida de populações em situações econômicas e sociais precarizadas, na organização, articulação e instrumentalização de lideranças comunitárias e de coletivos de lutas por direitos sociais.

Ainda dentro de um modelo que poderíamos, grosso modo, denominar como de reflexão crítica, alguns pesquisadores no campo da Psicologia Social têm se aproximado de autores pós-estruturalistas. As ferramentas conceituais de Michel Foucault têm sido empregadas com o intuito de superar algumas dicotomizações que marcam a produção do conhecimento em Psicologia e separam sujeito/objeto, interior/exterior, individual/coletivo. Essas ferramentas permitem-nos compreender que aquilo que nomeamos como o social, a forma como compreendemos os modos de ser sujeito, como nos constituímos enquanto tal, bem como a própria Psicologia Social, vão sendo produzidos de modo ininterrupto pelas práticas científicas, culturais, políticas e econômicas. Estão sempre em processo de coprodução e de transformação. O sujeito não se reduz, portanto, a uma unidade possuidora de um núcleo, situada fora do que nomeamos como o social e o político. O que nomeamos como sendo “o social” também não é uma substância, algo que está dado, no mundo, mas é fabricado a partir dos campos de saber e das formas como habitamos o mundo, como nos relacionamos entre nós. Assim, sujeito, social e Psicologia Social são elementos que vão sendo constantemente coengendrados (Hüning e Guareschi, 2009). Dessa forma, a crítica recai sobre os efeitos dos modos de produção do conhecimento da Psicologia Social com os quais nos engajamos, pois eles incidem inevitavelmente nos modos de ser sujeito, de entendermos o social e de vivermos as relações entre nós. Trata-se de fazer o que Guareschi et al. (2014) nomeiam como o movimento de pensar o pensamento pensando, isto é, analisar o papel da própria Psicologia na formação e funcionamento das formas contemporâneas de saber e poder.

É nesse modo de produção do conhecimento que se sustenta a experiência de relação com a pesquisa e o pesquisar pela qual tive a oportunidade de me formar e transformar junto ao PPGPSI. Por meio dela, buscamos afastar-nos cada vez mais da tentativa de resolver o paradoxo inerente à constituição da Psicologia como campo de conhecimento acerca do homem como sujeito e objeto do saber. O que os estudos foucaultianos nos ajudam a fazer é colocar em questão a paixão básica dos cientistas (Stengers, 2002): a busca pelo conhecimento verdadeiro. O escândalo revolucionário de seu pensamento está na afirmação de que os valores de verdade assumidos por determinadas teorias, concepções e enunciados não advêm de nenhuma transcendência inerente aos objetos, que haveria sido desvelada pelo cientista/pesquisador, mas estão, antes, circunscritos a condições de emergência históricas, políticas, culturais e econômicas (Hüning, 2014). Ao profanar os laboratórios do saber e colocar em evidência a mundanidade das verdades que nos constituem como sujeitos, Foucault lança holofotes sobre as arenas de disputas das ciências. Denunciando a falácia da retórica transcendental dos campos de saber, ele abre, se não a efetiva possibilidade de diminuir o desequilíbrio dos jogos de força que compõem a produção de regimes de verdade, no mínimo, um campo de possibilidades para a afirmação de práticas e ontologias subalternizadas e mesmo para a reinvenção das verdades que pautam aquilo que estamos em vias de tornarmo-nos.

Assim, trata-se de um modo de pesquisar que, como definem Nardi e Silva (2014), nos convida a analisar como nosso próprio pensamento se “enreda em dispositivos de saber e poder que caracterizam as formas de governo contemporâneas e, ao mesmo tempo, nos coloca o desafio de que possamos ser mais livres do que pensamos ser” (p.169). Isso porque, ao contribuírem para que possamos problematizar a emergência e sustentação de um determinado sistema de pensamento, as ferramentas teórico-metodológicas com as quais trabalhamos nos oferecem a possibilidade de pensarmos diferentemente do que pensamos hoje e, por meio da pesquisa, de constituirmo-nos em outros. Fazer pesquisas em diálogo com o pensamento foucaultiano, seria assim para os autores, recusar o ato de aplicar uma determinada teoria à leitura de uma situação problemática do cotidiano, como faríamos em um modelo representacionista, e compreender as estratégias e táticas utilizadas pelo autor para o desenvolvimento de seus estudos e pesquisas sobre uma determinada questão.

A caixa de ferramentas foucaultiana auxiliar-nos-ia a produzir uma desnaturalização dos procedimentos, tecnologias, alianças, que se estabelecem na relação saber e verdade, ou seja, na constituição por campos de saber de objetos e práticas. Buscando a desnaturalização desse jogo de produção das verdades, Foucault procurava entender como nos tornamos o que somos. Trata-se de um olhar voltado para o tempo presente, mas simultaneamente articulado com a compreensão daquilo que deixamos de ser e a abertura de múltiplas possibilidades ao devir (Nardi e Silva, 2014). Nessa perspectiva de produção de pesquisas, ao invés de respondermos acriticamente às demandas que nos são apresentadas, as ferramentas de Foucault colocam-nos o desafio de recusarmos todas as naturalidades e todos os universais e de investirmos na compreensão de: como é possível que tal problemática possa ser colocada como uma questão de pesquisa, neste momento histórico, político, econômico, cultural? Quais jogos de verdade vão ser engendrados nessa problemática?Que práticas de assujeitamento podem produzir?

Nardi e Silva (2014) destacam, ainda, três ferramentas deixadas por Michel Foucault que são fundamentais ao exercício de produção de pesquisas alicerçadas em um modelo de reflexão crítica, quais sejam: a arqueologia, estratégia a partir da qual Foucault buscava interrogar-se sobre o que fazemos, pensamos ou dizemos, a partir de condições de possibilidade de uma determinada formação discursiva; a genealogia, a partir da qual ele se perguntava sobre o que somos e como nos constituímos historicamente; e a ética, que se refere à realização de um trabalho de si sobre si, introduzindo a questão da liberdade frente à possibilidade de recusa às formas de assujeitamento. A reflexão crítica seria, para Michel Foucault (1978/1990), “a arte da inservidão voluntária, aquela da indocilidade refletida” (s/p).

Ao entendermos que há, na vontade de verdade científica, o risco da produção de conhecimento como violência, de um conhecimento que produz práticas que hierarquizam sujeitos, são excludentes e colocam a ciência e sua suposta neutralidade a serviço dos fascismos de nosso presente, a questão que buscamos nos colocar por meio de nossas pesquisas é: como assumir uma postura que nos aproxime mais da vontade de saber do que da vontade de verdade? (Nardi e Silva, 2014). As próprias ferramentas deixadas por Foucault aproximam-nos de pistas sobre como fazê-lo, pois, ao desnaturalizarmos as práticas de pesquisa e desestabilizarmos seu lugar de verdade, abrimos espaço para ações de pesquisa que não tenham como objetivo constituir uma unidade, uma resposta mais legítima e verdadeira do que as demais, mas provocar processos múltiplos, práticas diversas, não somente de enfrentamento dos problemas, como também da própria compreensão do que deve ser tomado como um problema a ser enfrentado (Hüning, 2014). Isso significa colocar-se ao lado de modos de fazer pesquisa que, além da técnica, tomem a crítica como ferramenta metodológica e se impliquem em um exercício ético e de enfrentamento das formas de assujeitamento, isto é, de abertura para práticas libertárias. Isso significa fazer da pesquisa uma ação política, posto que, nas palavras de Foucault (1978/2006),

A crítica não deve ser a premissa de um raciocínio que se concluiría por: eis aqui, portanto, o que lhes resta fazer. Ela deve ser um instrumento para aqueles que lutam, resistem e não querem mais as coisas como estão. Ela deve ser utilizada nos processos de conflitos, de enfrentamentos, de tentativas de recusa. Ela não tem de impor a lei à lei. Ela não é uma etapa em uma programação. Ela é um desafio em ralação ao que é (p.349).

A explicitação da não naturalidade, da não neutralidade e do consequente caráter político de toda produção de conhecimento fortalece as possibilidades de contestação das “verdades científicas”, sobretudo daquelas que se constituem como violências, não somente pela comunidade científica, mas também por aqueles sobre quem se fala. A Psicologia Social que buscamos produzir ao longo destes anos tem se colocado, assim, o importante desafio de fazer da pesquisa uma ferramenta de luta que nos permita enfrentar as formas de poder que silenciam ou invalidam discursos e práticas considerados marginais (Hüning, 2014). Ela é em si nossa ferramenta de enfretamento ao ódio às diferenças, uma vez que procura promover o encontro com a diversidade em uma relação de alteridade que nos leve a modificar aquilo que pensamos e aquilo que somos, em direção à produção de um comum.

Ao falar em comum, não me refiro ao sentido dessa palavra presente no senso comum, isto é, o comum como algo que é igual ou semelhante, mas à sua forma conceitual, que vem sendo trabalhada por autores como Michael Hardt e Toni Negri: como um exercício de relação com o outro que se dá pela via da alteridade, de deixar-se afetar pelas diferenças (Brown e Szeman, 2006). Logo, não é um comum que se encontra na igualdade, mas aquele que se constrói a partir da diferença. Essa perspectiva coloca-se como um convite para pensarmos no investimento em políticas de pesquisa não orientadas por referência a um humano abstrato, genérico, transcendental, mas em diálogo com as experiências concretas, na imanência das relações cotidianas, dos encontros locais entre modos singulares de pensar, perceber, sentir e agir.

 

REFERÊNCIAS

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Carolina dos Reis é doutora em Psicologia Social e Institucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, professora adjunta do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da UFRGS e integrante do Núcleo de Estudos em Políticas e Tecnologias Contemporâneas de Subjetivação.
E-mail: carolinadosreis@gmail.com

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