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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.10 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.89721 

ARTIGOS

 

Um espelho de duas faces: ser ou não ser mãe?

 

A double-sided mirror: to be or not to be a mother?

 

Un espejo de dos caras: ser o no ser madre

 

 

Janaína Silva; Maria de Fátima Aranha de Queiroz e Melo

Universidade Federal de São João del Rei (UFSJ), São João del-Rei, MG, Brasil

 

 


RESUMO

A maternidade por muito tempo foi considerada indispensável para a vivência feminina. Porém, nas últimas décadas, vem ocorrendo um movimento contrário a uma naturalização do sentimento materno fundamentado apenas pelo pertencimento da mulher ao gênero feminino. Este trabalho é fruto de um mestrado em andamento cujo objetivo é descrever como a concepção sobre a maternidade foi construída, bem como analisar, através do Desafio da Maternidade Real, postado na plataforma Facebook, matérias e documentários publicados no Youtube, como as pessoas se manifestam a respeito desse assunto. Através desta análise, percebemos a necessidade de alavancar a discussão também em torno de uma não maternidade. Metodologicamente, adotamos a Teoria Ator- Rede para mapear e discutir as translações efetuadas entre os diversos actantes envolvidos na controvérsia e por entendermos que os dados disponíveis na internet se constituem um excelente campo de pesquisa, uma vez que potencializam a rastreabilidade dos acontecimentos.

Palavras-chave: Redes sociais; Teoria Ator-rede; Feminino; Maternidade; Aborto.


ABSTRACT

Maternity has long been considered indispensable for the female experience. However, in recent decades there has been a movement contrary to a naturalization of maternal sentiment based only on women's belonging to the feminine gender. This work is the result of an ongoing Master's Degree, whose objective is to describe how the conception about motherhood was built, as well as analyze through the Challenge of Real Maternity, posted on the Facebook platform, stories and documentaries published on YouTube, how people manifest themselves about this subject. Through this analysis, we perceive the need to leverage the discussion also around a non-maternity. Methodologically, we adopted the Actor-Network Theory to map and discuss the translations performed among the various actors involved in the controversy and because we understand that the data available on the Internet constitute an excellent field of research, since they potentialize the traceability of events.

Keywords: Social networks, Actor-network theory, Feminine, Maternity, Abortion.


RESUMEN

La maternidad por mucho tiempo fue considerada indispensable para la vivencia femenina. Pero en las últimas décadas viene ocurriendo un movimiento contrario a una naturalización del sentimiento materno fundamentado sólo en la pertenencia de la mujer al género femenino. Este trabajo es fruto de una maestría en marcha, cuyo objetivo es describir cómo la concepción sobre la maternidad fue construida, así como analizar a través del Desafío de la Maternidad Real, publicado en la plataforma Facebook, materias y documentales publicados en Youtube, como las personas se manifiestan al respecto. A través de este análisis, percibimos la necesidad de aprovechar la discusión también en torno a una no maternidad. Metodológicamente, adoptamos la Teoría Ator-Red para mapear y discutir las translaciones efectuadas entre los diversos actores involucrados en la controversia y por entender que los datos disponibles en Internet se constituyen un excelente campo de investigación, ya que potencian la rastreabilidad de los acontecimientos.

Palabras clave: Redes sociales, Teoría Actores, Mujeres, Maternidad, Aborto.


 

 

Introdução

“Me recuso a ser mais uma ferrramenta pra iludir outras mulheres de que a maternidade é um mar de rosas e que toda mulher nasceu pra desempenhar esse papel... Eu vou lançar outro desafio, o desafio da MATERNIDADE REAL... De tudo o que as mães passam e as pessoas não dão valor, como se toda mulher já tivesse sido programada pra viver isso. Postem fotos de desconforto com a maternidade e relatem seus maiores medos ou suas piores experiências para que mais mulheres saibam da realidade que passamos. Dizem que no final sempre acaba tudo bem, mas o meio do processo por muitas vezes é lento e doloroso.”

Este é um trecho do Desafio da Maternidade Real lançado na plataforma Facebook em fevereiro de 2016 por uma usuária que passava por sua primeira experiência como mãe. O desafio surgiu em resposta ao Desafio da Maternidade que havia povoado as páginas da plataforma dias antes, desafiando mulheres a postarem fotos que demonstrassem sua felicidade com a condição de mães. O Desafio da Maternidade Real, ao contrário, convidava as mães a postarem fotos de desconforto com a maternidade para que compartilhassem o outro lado da vivência desse período da vida da mulher que, segundo a autora da provocação, não é divulgado. Sua postagem obteve 119 mil curtidas, 2700 comentários diretos - que são aqueles deixados abaixo do texto - e 5283 comentários ao todo, considerando as respostas inscritas abaixo de outros posts deixados no desafio. Obteve também 21783 compartilhamentos, gerando tamanho desconforto a ponto de a página ter sido denunciada e retirada do ar por 24 horas. O assunto imediatamente viralizou em outros meios de comunicação como a televisão e o rádio, o que acabou permitindo que mais pessoas se interessassem pelo tema. Diante de tamanha repercussão, escolhemos o Desafio da Maternidade Real (DMR) como nossa porta de entrada no que chamamos de controvérsia sobre a maternidade. Segundo Pedro (2010), é preciso encontrar uma forma de “entrar na rede”, de começar a seguir os atores e de participar da dinâmica que seus movimentos possibilitam traçar1.

Os meios de comunicação foram e são, sem dúvida, fundamentais para propagar a informação e contribuíram para a formação de uma nova abordagem no que diz respeito à maternidade, ao mesmo tempo reforçando os conceitos trazidos em nossas caixas-pretas. O ato de gestar um novo ser, dar à luz e cuidar de uma criança tem sido encarado como uma tarefa sublime atribuída às mulheres. Assim, quando surgiu o Desafio da Maternidade Real, lançado no Facebook com toda a repercussão que ele provocou em tão pouco tempo, a caixa preta se abre, dando-nos a oportunidade de acompanhar algumas controvérsias que colocaram em xeque a ideia de maternidade. Segundo (Venturini, 2009, p. 4):

[...] as controvérsias começam quando os atores descobrem que não se pode ignorar o outro e as controvérsias acabam quando os atores conseguem exercitar um compromisso sólido para viverem juntos. Qualquer coisa entre esses dois extremos pode ser chamada de controvérsia.

Ao seguir o desafio da Maternidade Real e seus desdobramentos como um evento do cotidiano, tivemos a possibilidade de perceber a conectividade dos movimentos online, observando a participação daqueles que registraram suas posições deixando rastros acessíveis à pesquisa. Venturini (2010) aponta que os métodos digitais permitem a visualização de fatos que não são apenas atuais, possibilitando mostrar os vários momentos e as mudanças ocorridas no decorrer de uma controvérsia. Transitamos entre as matérias online e aquelas plasmadas em artigos e livros para descrever a rede que dá sustentação à opção de ser mãe e o seu reverso.

 

Maternidade: Um amor construído ao longo da história

No Brasil do século XIVe XVII, a igreja católica detinha grande poder normatizador sobre a sociedade. Del Priori (1995) aponta que, de forma geral, a mulher deveria ser obediente ao marido, cuidar da casa, cozinhar, lavar e prestar serviços sexuais ao marido, objetivando sempre a perpetuação da família através da procriação. Deve-se ressaltar, porém que, nesta época havia diversas situações culturais e econômicas, que acabavam por tornar o controle por parte da igreja sobre a população uma tarefa complexa se comparada com outras realidades culturais onde não havia tanta diversidade povoando um mesmo território.

Até o final do século XVIII, a maternidade era vivida por aqui de formas distintas: havia mulheres que tinham seus filhos solteiras; havia também filhos de relações concubinárias que poderiam ou não ser duradouras, além daquelas que estavam dentro dos padrões religiosos, com filhos oriundos de matrimônios tradicionais (Del Priori, 1995). Em vista dos vários momentos econômicos vividos no Brasil, grande parte das mulheres chefiava suas famílias quando seus companheiros tinham que ir em busca de sustento e/ou novas conquistas, não sendo raro que tais mulheres dessem à luz a filhos fora do casamento neste período, ou ainda que seus companheiros voltassem trazendo seus filhos bastardos (Del Priore, 1995). Assim, numa mesma casa, era possível encontrar filhos de pais ou mães diferentes, convivendo em harmonia. Já as mulheres que, por algum motivo, não dispunham de nenhuma ajuda financeira/emocional por parte do genitor da criança, acabavam por entregar os filhos aos cuidados de outros ou cometiam o infanticídio, optando assim por não exercer a maternidade. Segundo Venâncio (1997), uma das formas mais comuns de abandonar as crianças recém-nascidas era deixá-las no meio da rua, comportamento que assustava terrivelmente o poder religioso, já que se acreditava que ninguém podia falecer sem receber o sacramento do batismo. Assim, a elite “esclarecida” da sociedade, os governantes e os comerciantes faziam doações às Santas Casas de Misericórdia para que recebessem essas crianças, tendo as unidades do Rio de Janeiro e de Salvador recebido, entre os séculos XVIII e XIX, cinquenta mil crianças (Venâncio, 1997). A roda dos expostos, conhecida na Europa, ganhou força no Brasil apenas após a independência. Sobre esse assunto Scavone (2001, p. 50) aponta:

Esses fatos sugerem que a realização da maternidade não foi sempre aceita como irreversível, ocorrendo na história, em épocas distintas e por motivos diversos, uma recusa circunstancial da maternidade frente aos padrões de natalidade dominantes, sobretudo entre as mulheres solteiras e/ ou entre aquelas que já tinham tido muito(a)s filho(a)s. Vale dizer, a condenação social desta recusa sempre foi muito forte, ainda persistindo em sociedades nas quais o aborto é proibido.

Del Priori (1995) ressalta também que aquelas mulheres que não desejassem a gravidez optavam por abortos, o que muitas vezes acarretava também a sua morte, apontando ainda que não é possível, no caso do Brasil, se ter uma ideia do número de abortos que ocorriam.

A partir do fim do Século XVIII, podem-se perceber traçados mais firmes no que se refere a normatização do modelo familiar burguês, as famílias passando aos poucos a viver de maneira mais privada. Os casamentos eram ainda arranjados e, não se esperando que houvesse sentimento anterior ao casamento, a mulher devia se abster do desejo sexual, se transformando em uma figura passiva na relação. Beauvoir (1980) aponta que a mulher deixava o domínio dos pais e se entregava nas mãos de um novo senhor. A criação dos filhos era responsabilidade das mães que deveriam ser amorosas e cuidar para que nenhuma doença fosse contraída por seus filhos.

O saber médico veio se ocupar dos modos de vida da colônia no século XIX, priorizando inicialmente as formas de sexualidade apresentadas dentro e fora do casamento, chegando, segundo Del Priori (1995), a considerar a realização do prazer através do excesso e da ausência da finalidade reprodutora, como doença física e moral. Posteriormente, a medicina se ocupa do aleitamento materno, tentando extinguir de vez o hábito de alimentar as crianças com o leite de índias e escravas. A medicina fornece ainda orientações sobre os melhores tipos de leite, além de receitas para manter um bom nível de qualidade e produção. A criança deveria ser criada dentro dos preceitos da igreja, garantindo assim a salvação eterna para ela e seus pais. Del Priore (1995) aponta que existem registros de que as mães internalizaram de fato as recomendações da igreja e do saber médico da época que trabalhava sempre em concordância com a religião. Segundo Moura e Araújo (2004), todo esse movimento em torno do aleitamento materno acabava por regular a vida da mulher, uma vez que ela permanecia por um período de até dois anos confinada dentro do ambiente doméstico, voltando também sua atenção não só para a criança, mas também da família, postura conveniente aos interesses políticos e religiosos da época.

A primeira guerra mundial em 1914 levou as mulheres ao mercado de trabalho, visto que houve uma grande perda de mão de obra masculina para a guerra. Fonseca (1997) ressalta, porém que, no Brasil, as mulheres, além de exercerem suas funções no mercado de trabalho, tinham que se preocupar em manter sua reputação, uma vez que o trabalho feminino não era bem visto pela sociedade. O que chama a atenção é que, nas décadas iniciais do século XX, qualquer atividade que fosse exercida pela mulher casada era considerada apenas como um suplemento à renda masculina, não havendo também por parte dos cônjuges nenhum ajuda relativa aos trabalhos domésticos, gerando para a mulher uma jornada dupla de trabalho, embora não recebesse nenhum tipo de remuneração pela segunda. Deve-se ressaltar que essa dupla jornada feminina não parece, até o momento, passível de muita mudança. Para Pombo (2013), as mulheres continuam acumulando mais tempo de trabalho total que os homens e recebendo em média 25% a menos que eles.

Bassanezi (1997) aponta que, no Brasil, a partir de 1950, as mulheres chegam com mais força à faculdade e ao mercado de trabalho, porém ainda com muito preconceito uma vez que eram preparadas para o casamento, para o cuidado da casa e para a criação dos filhos. Nessas circunstâncias, seria incompatível e desastrosa a ideia de conciliar a vida familiar e profissional. Bassanezi (1997) continua afirmando que era comum, na época, que as mulheres de classe média abandonassem o trabalho ao se casarem ou a partir do nascimento do primeiro filho, devendo ser a maternidade para a mulher uma alegria, uma “sagrada missão feminina”.

Em 1960, surgiu um forte movimento feminista nos EUA que se espalhou rapidamente pelo Ocidente. O movimento através de suas lutas buscava desacreditar parte das teorias psicanalíticas, que argumentavam sobre a natural submissão das mulheres, sobre o complexo de castração e o patriarcalismo da teoria (Mitchell, 1979, p. 17). Segundo Zafiropoulos (2009), as leituras de Freud por exemplo, indicam que o ideal feminino era ser mãe, sendo essa uma posição que permanece ao longo de sua obra.

A partir da década de 70, com a chegada das pílulas contraceptivas, a mulher passa a ter um maior controle sobre o momento de vivenciar a maternidade (Scavone, 2001). Nota-se que, antes, não havia a opção de adiar a decisão de ter filhos e, por isso, o número de abortos, infanticídios e abandonos eram alarmantes aos olhos da sociedade da época, assim como demonstrou Del Priori (1995). Nesse sentido, o movimento feminista passou a travar também uma luta em defesa do direito da mulher pela interrupção voluntária da gravidez, pleiteando que a discussão fosse colocada na agenda política nacional. Para Barsted (2009), a década de 80 foi marcada por uma organização do movimento feminista que foi às ruas e garantiu que as questões sobre o aborto repercutissem na grande mídia do país. A partir da década de 90, através das várias conquistas femininas já demonstradas, pode-se perceber um movimento feminino de não aceitação da maternidade como prioridade na vivência feminina.

 

Lutando pelo direito de trilhar o caminho contrário

Percebemos que as mulheres foram reivindicando seu terreno através de movimentos feministas e do maior acesso às faculdades e vagas de emprego, buscando igualar-se aos homens e requerendo seus direitos, fato que, para Beauvoir (1980), causou profunda modificação na instituição do casamento, pois fez com que a mulher não se sentisse mais aprisionada à sua função materna e servil. Scavone (2001) aponta que a maternidade passou a ser alvo dos movimentos feministas à medida que questionavam sobre as implicações sociais e políticas de assumirem a opção de serem mães. Para o movimento, a maternidade se caracterizava como o eixo central da opressão das mulheres, uma vez que sua realização acabava por determinar o lugar da mulher no âmbito familiar.

Butler (1998) argumenta que qualquer esforço realizado no sentido de entender as mulheres segundo um padrão universal será sempre produtor de normatização, gerando grupos e antigrupos, a exemplo da maternidade tomada como compulsória, desconsiderando o fato de que nem todas as mulheres são mães, algumas não querem ser por diversos motivos e outras são, mas não consideram esse o ponto central de sua vivência.

Ao nos debruçar sobre as vozes dos actantes presentes no Desafio da Maternidade Real, encontramos diversos posicionamentos que vão em direção a uma obrigatoriedade de um sentimento positivo e sacralizado sobre a maternidade, além da culpabilização feminina pela gravidez. Tais fatores nos remeteram ao recente panorama político do ano de 2018, ano que foi marcado de maneira significativa nas discussões envolvendo gênero. Percebemos que estamos longe de ver uma imparcialidade, quando o assunto se refere a maternidade. Em agosto de 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) do Brasil determinou a abertura de mais uma caixa-preta ao convocar audiências públicas para um debate sobre a descriminalização do aborto. Para o debate foram convocados religiosos, médicos, juristas e ativistas brasileiros e estrangeiros. Tal movimentação ocorreu após o PSOL (partido político brasileiro) e a Bioética anis (Organização não-governamental, sem fins lucrativos, voltada para a pesquisa, assessoramento e capacitação em Bioética na América Latina) terem apresentado uma ação solicitando que o aborto não fosse considerado crime quando realizado até a décima segunda semana de gestação. Segundo a ação apresentada, os artigos do Código Penal que proíbem o aborto confrontam alguns preceitos da Constituição Federal, como o direito das mulheres à vida, à dignidade, à cidadania, à não discriminação, à liberdade, à igualdade, à saúde e ao planejamento familiar, entre outros.

A primeira lei apresentada no Brasil, relativa às questões do aborto, datada de 1946, regularizava o aborto em apenas dois casos: quando a gravidez fosse em decorrência de estupro ou caso oferecesse risco para a vida da gestante. Nota-se, porém, que tais brechas judiciais não foram amplamente aceitas uma vez que, já em 1949, novos projetos de lei eram apresentados no intuito de extinguir tais permissivos (Rocha 2009).

Ao que parece, o debate em torno do assunto não caminhou muito nos últimos 69 anos. Atualmente, essas duas permissivas ainda prevalecem, somando-se a elas uma nova permissiva de 2012 que libera o aborto também em casos de bebês anencéfalos (Torres “e cols”, 2013). O autor salienta ainda que, embora o aborto tenha sido regularizado nos casos acima citados, apenas em 1996 os serviços públicos de saúde normatizaram o atendimento especializado para abortos protegidos pela lei (Torres “e cols” 2013), denotando que mesmo nessas circunstâncias o procedimento ainda não era bem aceito. Já para Oliveira at al (2009), essa omissão por parte do estado se deu também por conta da grande rejeição social e moral baseada em preceitos religiosos relativos ao aborto, além de atribuições culturais relativas a sexualidade que transformam, em suas palavras, as “vítimas em rés (p.159)”.

Assim, perante a lei, toda mulher que provoca o próprio aborto ou que permita que outrem o faça deve responder por crime contra a vida, devendo ser julgada por um Tribunal de Júri. Caso condenada, a mulher deve cumprir uma pena 1 a 3 anos. Ventura (2009) chama a atenção para o fato de que o aborto parece ser penalizado mais ao nível moral do que criminal. Afinal, se o mesmo é considerado um atentado contra a vida, ou um homicídio, deveria sofrer as mesmas sanções previstas em lei de um homicídio simples que pode ser de 6 a 20 anos de pena.

Há duas grandes controvérsias contidas nesta esfera penal e criminal: a primeira refere-se a que tipo de vida está sendo subtraída quando se realiza um aborto até as 12 semanas, período considerado máximo para a realização de abortos previstos na lei no Brasil. Se, para alguns, a vida começa a partir da fecundação, outros acreditam que não há vida sem a formação cerebral que se completa por volta deste período e, deste modo, a própria definição de vida torna-se obscura e confusa. Salienta-se que, em vários países onde o aborto é legalizado, o tempo de gestação para a intercorrência do evento é variável, o que aponta mais uma vez para a dificuldade da própria ciência em delimitar o período exato em que o embrião passa a ser considerado ser vivo. A segunda controvérsia refere-se a uma limitação da liberdade, pois, afinal, quando se criminaliza o aborto, opta-se por aprisionar a mulher a uma condição compulsória de maternagem e, se esta mulher optar por um aborto clandestino, corre o risco de ser aprisionada pelo estado.

A questão moral é algo que aparece invariavelmente ligada à questão religiosa. Ainda que o estado laico tenha sido decretado no Brasil no final do século XIX, não há como esquecer dos mais de 400 anos de hegemonia da igreja católica no país (Nunes, 2009), fato que nos deixou impregnados pela cultura do cristianismo, fazendo com que imagens santificadas do corpo da mulher como sendo o único capaz de gerar o milagre da vida continuem sendo disseminadas ou cultivadas explicita ou subliminarmente. Segundo Ventura (2009, p. 191):

“Os estudos que defendem uma legislação restritiva sustentam, igualmente a partir de uma perspectiva constitucional, que o aborto fere o princípio da inviolabilidade do direito à vida e defendem que qualquer lei que o permita é um atentado à dignidade da pessoa humana, pois dispõe da vida humana como um mero meio para o alcance de interesses e conveniências individuais. Defendem, ainda, a concepção de que a vida é um direito natural, concedido por Deus ou pela natureza e por essa razão, um direito absoluto, que protege um bem que não pode ser disponibilizado por qualquer lei ou autoridade constituída.”

 

Da justiça à saúde: o aborto como uma das principais causas dos óbitos maternos

“A prática do aborto sempre existiu, em todos os tempos, em todas as sociedades, com métodos e técnicas que variaram, desde os mais rudimentares e folclóricos (uso de ervas consideradas “abortivas”, auto aplicação de meios para destruir o feto, etc) até os científicos (Werebe, 1998, p. 52)”.

Ao que parece, o aborto, antes visto apenas por uma esfera judicial, foi se transformando em um assunto de saúde pública na medida em que mais óbitos maternos foram chegando ao conhecimento da sociedade, fato que começou a ganhar destaque na década de 90 com o aumento da produção de pesquisas com enfoque em saúde reprodutiva.

A Pesquisa Nacional de Aborto2 (PNA) de 2010 demonstrou que, aos 40 anos, aproximadamente uma em cada cinco mulheres alfabetizadas nas áreas urbanas do Brasil já passou por pelo menos um aborto (Diniz at al, 2017). Essa tendência se confirmou na PNA realizada em 2016, segundo a qual, em 2015, meio milhão de mulheres realizaram um procedimento de aborto, metade destes realizados, em sua maioria, através de medicamentos, gerando a necessidade de passar por internação para finalizar o procedimento (Diniz at al, 2017).

Os números demonstram por si sós que a criminalização do aborto parece não estar evitando o fato de que as mulheres optem pelo procedimento e, no máximo, está permitindo que mais mulheres morram através de procedimentos inseguros. Mas quem são estas mulheres? Segundo a PNA de 2016, os abortos são realizados por mulheres comuns, de todas as idades, casadas ou não, que são mães hoje, de todas as religiões e sem religião, de todos os níveis educacionais, que trabalham ou não, de todas as classes sociais, de todas as raças e em todas as regiões do país (Diniz at al, 2017). Deve-se, porém, ressaltar que, embora tal evento atinja todas as mulheres, são as mais carentes que passam por mais intercorrências hospitalares e fatais em comparação com as classes sociais de médio e alto poder aquisitivo. Os estudos revelam que as mulheres negras, residentes nas regiões norte e nordeste, com menor escolaridade e informação, são aquelas que não têm acesso a métodos de aborto clandestino menos inseguros, passando por clínicas clandestinas mais baratas, comprando medicamentos sem o conhecimento de procedência. Em muitos casos, onde não há condição financeira para custear a clandestinidade, as gestantes optam por métodos populares, velhos conhecidos da população feminina.

Durante a audiência pública convocada pelo STF em agosto de 2018, a Dra. Sandra Helena3 (Professora Universitária, Conselheira do conselho Federal de Psicologia), ao expor os preceitos da psicologia relativos a descriminalização do aborto, argumentou que, de acordo com as diretrizes estabelecidas pelos três últimos congressos nacionais da categoria, a psicologia deve trabalhar para promover ações que visem a descriminalização e a legalização do aborto no Brasil, uma vez que, para a categoria, a criminalização do aborto acaba por impedir o direito de autonomia feminina, uma tentativa do estado de gerir os corpos e a subjetividade daquelas que escolhem abortar, punindo-as por não cumprirem o principal papel designado historicamente ao gênero feminino, o de serem mães.

Forna (1999) aponta que a mulher, atualmente, exerce uma crescente autonomia sobre si quando comparada a décadas anteriores ameaçando a ordem vigente. O receio de que as mulheres possam abandonar sua função primordial acomete também os tribunais e a sociedade e tais sentimentos acabam por se tornar um combustível para impedir o ato da transgressão feminina (Forna 1999, p.192)

Para Ventura (2009), o principal desafio de advogados e teóricas feministas é articular a questão do aborto, não só como uma questão de saúde, mas também como uma questão de direito civil das mulheres, da liberdade e autonomia corporal dos sujeitos, nos cuidados com sua saúde e do exercício de sua sexualidade e reprodução, estabelecendo assim o aborto como um direito de liberdade da mulher.

 

Clandestinas conectadas, uma conversa com as redes sociais

A conectividade das redes sociais e suas diversas faces tem se apresentado como uma das principais formas de comunicação da atualidade. Temos acompanhado um crescente aumento de profissionais da TV migrando para canais exclusivos do mundo on line. Acompanhamos, neste ano, a vitória do candidato Jair Bolsonaro à presidência do Brasil, após uma campanha quase toda realizada através de aplicativos e redes sociais. As redes sociais se tornaram palco de incontáveis discussões nos mais diversos âmbitos, mas parece ter se transformado também em uma espécie de consultório médico, como nos mostra a matéria apresentada pela BBC News em junho de 2018. Segundo a repórter que realizou a matéria, seu intuito era acompanhar como a tecnologia estava sendo utilizada pelas mulheres que tentam abortar no Brasil.

A matéria relata a existência de um grupo de whatsApp (aplicativo multiplataforma de mensagens instantâneas e chamadas de voz para smartphones. Além de mensagens de texto, os usuários podem enviar imagens, vídeos e documentos em PDF, além de fazer ligações grátis por meio de uma conexão com a internet.) que vende e instrui gestantes do início ao fim de um procedimento de aborto. Essas mulheres não são necessariamente médicas ou enfermeiras e as medicações são vendidas por valores entre R$1,500 e R$900 reais. Estes dados demonstram que, além de arriscarem a vida, as mulheres que procuram pelo grupo necessitam ainda de algum poder aquisitivo para a realização do procedimento. A matéria denuncia ainda a existência de clínicas clandestinas de péssima qualidade que cobram entre R$4.500 e R$7,500 reais para realizarem tal procedimento, além de relatar mortes, medo e tristeza. Essas informações vão ao encontro de histórias mostradas por um documentário publicado em setembro de 2014 disponível no you tube (plataforma de compartilhamento de vídeos que pertence ao Google) intitulado Clandestinas. O documentário expõe diversas histórias de mulheres que, em algum momento da vida, optaram por um aborto e se transformaram em clandestinas, uma vez que passaram a figurar em um cenário de obscuridade, onde o medo da punição impera.

Uma das clandestinas conta ter sido recebida por um médico vestido como açougueiro que portava instrumentos rudimentares em uma clínica abortiva. Em seu depoimento ela diz:

“... Eu fui para uma clínica, eu paguei R$700, 00, pra ir numa clínica de aborto. Quando eu cheguei lá, eu fui recebida por um médico vestido de açougueiro, com um avental branco todo ensanguentado e com instrumentos claramente artesanais, rudimentares. Ele aplicou uma injeção local que eu não me lembro se funcionou ou não, mas eu senti dores absurdas e aí eu comecei a ter uma crise de vômito enquanto o médico me torturava dizendo que se eu não tivesse procurado ele eu não estaria vivendo aquilo.”

A mesma clandestina nos conta que, após seis dias sangrando, foi levada a um hospital onde foi orientada por uma enfermeira a jurar para o médico que havia sofrido um aborto espontâneo, caso contrário o médico a deixaria morrer.

O comportamento da equipe médica também é pauta no documentário da BBC News, nos fazendo refletir sobre o assunto, ao apontar que 70% das denúncias de aborto são realizadas por profissionais da saúde, trazendo relatos de mulheres que foram coagidas a confessar o crime enquanto sangravam e sentiam dor. O depoimento de uma das integrantes do grupo de WhatsApp verbaliza:

“Eu tinha tomado as pílulas em casa e, assim que eu comecei a sentir dor eu fui pro hospital, eu tive o feto e aí logo depois eu tive uma convulsão. Eles entraram na sala falando que era para eu confessar senão eu ia ficar algemada, ia para um presídio e que ia ser melhor pra mim, que eu tinha que colaborar. Aí eu comecei a falar e foi autuado crime em flagrante”

Em contraste a este comportamento, as 90 mulheres que fazem parte do referido grupo de WhatsApp acompanham, ajudam e orientam as outras. Os abortos aconteciam em tempo real, uma vez que, após fazerem os procedimentos, as mulheres mandavam áudios e mensagens para manter as colegas informadas ou para pedir ajuda.

Ao contrário do que se pode imaginar, o motivo da existência do grupo não é o lucro. Ao relatar sobre a criação do grupo, a responsável conta de um estupro sofrido alguns anos antes, lamentando que, apesar de ter procurado ajuda, não foi bem recebida pelas autoridades, uma vez que o estuprador mantinha grande influência no âmbito policial. Assim, ela se viu obrigada a ter a criança e nos conta:

“Eu fui ignorada, passei por todo tipo de humilhação...meu filho vai fazer 4 anos agora, eu amo meu filho, mas a gravidez não era o que eu queria para mim. Eu sentia que eu tinha uma vida inteira pela frente e parece que roubaram isso de mim. Por causa disso que eu comecei, não acho justo que a gente seja obrigada a isso.”

A ocorrência de aborto em decorrência de estupro também se fez presente nos relatos das clandestinas, já que uma delas verbaliza ter sido estuprada por um colega de trabalho com quem flertava. Em suas palavras: “As pessoas viam eu flertando, as pessoas viram que eu aceitei a carona, como é que eu podia falar que eu tinha sofrido uma violência?”

Nota-se que, em ambos os casos, o Estado falhou na proteção e acolhimento destas mulheres: no primeiro caso, falhou por desconsiderar um crime contra uma mulher, em decorrência da posição social do agressor, por negligenciar a existência e o sofrimento feminino. No segundo caso, há uma falha, não só no âmbito do Estado, mas também no âmbito das ideias que circulam entre as pessoas, fundamentadas em uma perspectiva ainda machista. A fala da clandestina demonstra que o fato de ela ter se interessado pelo rapaz e aceitado estar em sua companhia seria encarado pela sociedade e pelo Estado como uma permissão para a relação sexual. Sua escolha por uma não denúncia apenas reflete as várias histórias presentes nos meios de comunicação onde o estuprador justifica seu ato a partir do comportamento, do vestuário ou do lugar onde está a mulher. São argumentos que culpabilizam a mulher pelo crime sofrido e transferem ao abusador a condição de vítima, uma vez que seduzido pelos “encantos e falta de pudor feminino.”

Nos casos de aborto amparados pela lei, a mulher deve procurar uma Unidade de Saúde para buscar informações ou ir direto a um hospital de referência do Sistema Único de Saúde (SUS) mais próximo. Não é necessário que se apresente um boletim de ocorrência ou laudo de corpo de delito em casos de violência sexual. A orientação do SUS é que todas as mulheres sejam tratadas com respeito e dignidade, não sendo função da equipe médica julgá-las. Embora pareça não haver muita burocracia, uma das clandestinas que passou pela situação nos conta que foi submetida a vários interrogatórios médicos e teve seu processo negado. Neste sentido, Forna (1999) acrescenta que, enquanto o estado usa as leis para controlar as ações e comportamentos das grávidas e mães, colocando o poder de decisão também nas mãos dos médicos, ocorre um cerceamento dos direitos humanos que deixam de ser em parte conferidos as mulheres em questão. Segundo a clandestina:

“As pessoas que iam lá para enfim, estar em contato com essa portaria, eram meninas de 10 anos, meninas de 12 anos, eram mulheres muito fragilizadas. Você passa por uma sabatina muito complicada, muito escrota e inclusive você passa por mulheres que deveriam te apoiar te colocando contra a parede e te perguntando: Porque você quer fazer um aborto... Cada vez que eu tinha que repetir a história... não existe grau de comparação, mas a violência simbólica de eu ter que repetir e ser destratada e sentir como uma mulher vítima de violência sexual é destratada e as pessoas não acreditam na sua história.”

Existem, porém, diversas formas de subjugo sofridas pelas mulheres que vão além do físico e caracterizam também um possível motivo de aborto. Uma das clandestinas nos conta que, quando foi comprar o medicamento para praticar o aborto, foi questionada pela vendedora se queria o verdadeiro ou o falso. Quando questionou a existência de um falso, recebeu como resposta: “Não, porque tem gente que é obrigada a fazer aborto porque o marido ou o namorado ou o pai querem. Diante desse depoimento, uma questão se impõe: quem está abortando? Parece que, embora o corpo seja da mulher, em alguns casos, a decisão prevalece como sendo a do homem.

Não há, até o momento, muitos estudos que tratem da figura masculina ligada ao ato do aborto e vários fatores podem contribuir para esta ausência de pesquisas. A gestação como um evento biológico exclusivamente feminino, ou, ainda, a responsabilização exclusiva da mulher pelos filhos pode figurar neste cenário. É importante refletir que, mesmo nos casos em que o aborto, clandestino ou não, é realizado em comum acordo entre o casal, o peso verbal sobre a decisão tende a recair sobre a mulher do mesmo modo que a criminalização por um aborto clandestino recai apenas sobre a figura da mulher, não sendo avaliado qual grau de influência o homem pode ter tido em tal decisão.

Para Forna (1999), “As grávidas continuam na mira da justiça, mas não se vê quaisquer acusações correspondentes aos homens (p.204).” No âmbito do senso comum, costuma-se ouvir que o pai que aborta é aquele que não presta assistência à criança seja financeira ou afetiva. Porém, ainda que esta noção exista, a indiferença do pai não é percebida como algo absurdo. Donath (2017) aponta que os pais que abandonam os filhos são malvistos pela sociedade, mas em hipótese alguma recebem a condenação desumana que as mulheres recebem quando sinalizam não querer a responsabilidade da maternidade. No Desafio da Maternidade Real, lançado no Facebook, pudemos perceber um movimento de culpabilização da autora do desafio que, segundo alguns posts, não teria escolhido bem o pai da criança, o que faria dela obrigatoriamente a única responsável pela gestação e criação do filho, além da naturalização de um comportamento irresponsável presente nos pais omissos.

Se ela não soube escolher o pai tem + que fazer o papel de pai e de mãe...Se a criança veio é pq ela permitiu...Filhos são presentes de Deus e não um fardo...

Homem não quer saber de nada, quer transar e ponto final, quem tem q se prevenir sim é a mulher! Realmente não são tudo flores, mais ela mesmo escreveu que não gosta desse momento! E essa é a minha opinião, não quisesse se prevenisse, hj em dia fica grávida quem quer!

Para alguns, o aborto é um assunto que diz respeito exclusivamente à mulher, em decorrência de sua função biológica. Se a vida que a mãe carrega só pode se desenvolver através dela, somente ela pode ser responsabilizada pela mesma. Não é necessária muita reflexão para inferir que a fecundação, salvo em casos de fertilização, ocorreu através de relação sexual entre duas pessoas, atestando assim que o homem tem uma participação ativa neste processo de criação de uma nova vida. O que parece então é que o feto tem mais direitos em seu processo de formação do que após seu nascimento, uma vez que o homem, um ator principal da criação da nova vida, pode escolher não aceitar os deveres e cuidados que devem ser dispensados a ela. Se abortar é escolher pela não vivência da maternidade, aqueles que optam pela não vivência de uma paternidade ativa também abortam. Mas, destes, pouco se fala e para estes, poucas sanções penais são aplicadas e, quando o são, ocorrem por falta de auxílio financeiro para com a criança, caso em que se configura uma forma de aborto afetivo do pai para com a nova vida.

 

O prazer negado

Como esse lixo pode ser chamada de #Mãe??? Vc deveria ter nascido com o útero seco sua vagabunda na hora de rebolar gotosim numa rola vc deve ter adorado agora ficar dizendo que detestou ser mãe é o cúmulo do absurdo...Pq vc seu estrume não se preveniu???Pq não tomou um anticoncepcional???Alguém te falou que ser mãe era fácil???Toma vergonha na sua cara e agradeça a Deus por seu filho ser perfeito...Agradeça a Deus por ter pego uma gravidez e não um HIV...Se toca sua vaca e repense seus conceitos...Tenho pena de vc... (Fragmento do desafio Real da maternidade)

Dois outros fatores chamam a atenção no Desafio da Maternidade Real, o primeiro apontando para a não utilização de métodos contraceptivos por parte da autora e o segundo dizendo respeito à obrigatoriedade de assumir todas as possíveis consequências de uma relação sexual que deu à mulher a oportunidade de sentir prazer. Ambos culminando na culpabilização apenas do gênero feminino pela concepção de uma nova vida.

As pílulas anticoncepcionais chegaram ao Brasil por volta dos anos 70, indicando uma reformulação nas práticas da sexualidade vivida por homens e mulheres que passaram a se sentir mais livres para manter relações sexuais dentro e fora do âmbito matrimonial sem as consequências de uma gravidez indesejada. Essa liberdade porem não foi vista com bons olhos pelas diversas religiões: a Igreja Católica, por exemplo, tem recusado historicamente a utilização dos métodos anticoncepcionais por acreditar que o casamento deve estar sempre aberto à transmissão da vida e, desde modo, condena também o aborto em qualquer circunstância (Costa e Carvalho 2014).

Embora a sociedade, de maneira geral, tenda a apresentar comportamentos sexuais mais liberais, há, ainda, muitos paradoxos morais presentes na maneira como as mulheres conduzem suas práticas de vida. Parece haver um enraizamento de valores sexistas que ainda hoje permitem ao homem saciar seus instintos sexuais, sem pensar demasiadamente nas consequências de suas ações. Já às mulheres fica atribuída toda a responsabilidade preventiva. Além das acusações morais e culpabilização, a mulher não pode simplesmente gozar de momentos de prazer, mas arcar sozinha com qualquer imprevisto decorrente da relação.

[...] Na hora de abrir as perninhas e virar os olhos é oooootimoooooo. Não to julgando ninguém (nem posso), mas pq não usou camisinha, pq não tomou remedinho? Se tá passando por isso a culpa é única e exclusivamente sua!

Diante de tais comentários uma pergunta se faz importante: se a autora do Desafio da Maternidade Real relatasse ser essa criança fruto de uma violência sexual, os posts iriam em outras direções? A sacralidade da maternidade seria mantida, assim como sua compulsoriedade? Se a questão trazida pelos militantes do grupo que discorda da descriminalização do aborto é a existência de uma vida que não deve carregar culpa pelos de seus genitores, se esta vida não pode ser penalizada, então o aborto em casos de violência sexual também não deveria ocorrer, afinal o embrião fruto desta violência seja dotado das mesmas características biológicas de fetos de relações sexuais consentidas.

Quando não há uma política de Estado que acolha de maneira integral a escolha da mulher, o risco pela necessidade de um aborto ilegal é aumentado. Ao que parece, o Estado procura atuar em várias frentes que diminuam a autonomia da mulher no que diz respeito ao seu corpo e sua possibilidade de maternidade, não lhe sendo permitido abortar - afinal trata-se de uma vida - mas também não lhe é facilmente permitida a escolha de jamais gerar uma vida. Segundo uma das clandestinas:

“Você levar a discussão nessa direção, é basicamente você tomar as pessoas e principalmente as mulheres como seres desprovidos de qualquer responsabilidade, de autoconhecimento, basicamente é um argumento furado para você não dar soberania não dar poder que as mulheres merecem ter sobre elas próprias.”

 

Reagindo às redes de construção do feminino

“... ninguém tem noção do que é maternidade compulsória, o papo de "ser mãe é uma dádiva", "instinto materno" e o quanto é gratificante o sacrifício, como se fosse tudo lindo... você mostrou que ser mãe é puramente ser de carne e osso, ser julgada por todos, tirar forças de onde não tem! Amar seu filho não significa amar passar noites acordada e não poder comer uma refeição com calma, mas essa sociedade patriarcal de merda nos fez acreditar que o papel de santas e nos anularmos enquanto mulheres e virarmos só "mãe" é o certo” (Fragmento de um comentário deixado na página do DMR).

Esperamos, ao seguir a controvérsia flagrada nas redes do Facebook, ter buscado cumprir a difícil tarefa de descrever como se teceram as redes que construíram a maternidade enquanto tema sacralizado e aquelas que emergem como reação a essa sacralização des/res/construindo outras possibilidades para que as mulheres vivam sua condição. Não pretendemos esgotar o assunto.

Ao trabalhar a controvérsia da maternidade, tivemos a possibilidade de ouvir as vozes de diversos actantes, presentes em diversos espaços. Embora nosso ponto de partida tenha sido o Desafio da Maternidade Real, encontramos pelo caminho outras vozes que nos ajudaram a questionar verdades estabilizadas e a construir reflexões, atuando como importantes mediadores envolvidos na controvérsia. Para Latour (2012, p.65), “os mediadores transformam, traduzem, distorcem e modificam o significado dos elementos que supostamente veiculam.” A cada nova aliança formada por tais mediadores, surgem novas e diferentes possibilidades de afetações; diferentes porque não podemos partir do pressuposto de que existe uma verdade absoluta, de que os modos de se viver, sentir e escolher sejam universais; é preciso compreender que nada existe sem construção e sem mediação e que toda construção é produto de múltiplas afetações.

Concordamos com a escritora nigeriana Chimamanda Adichie ao expor em conferência de 2009 à Technology; Entertainment; Design (TED)4 que: “As únicas histórias apagam mundos, fazem desaparecer possibilidades de vida, de existências.” Embora na conferência em questão ela aborde, como as histórias de fome, necessidade e tristeza contadas sobre a África acabam por encobrir tantas possibilidades e vivências felizes e produtivas de seu povo, podemos fazer um recorte para as únicas histórias contadas sobre o feminino e a maternidade ao longo dos anos que, ao se repetirem nas mídias diariamente, vão reforçando um único modelo vivencial possível.

Ao analisar os comentários postados no Facebook, nos deparamos com as mais diversas reações. Mas, sem dúvida, o fato de não ser permitido à mulher o direito a verbalizar os dissabores da maternidade nos surpreende, pois ninguém é capaz de vivenciar um mesmo sentimento o tempo todo, da mesma forma como entendemos que a maternidade envolve sentimentos que são produtos de uma construção localizada e que não podem ser universalizados. Faz-se importante compreender que maternidade não deve ser tomada como sinônimo de amor. Exercer a maternidade não pode ser confundido com a capacidade de expressar um sentimento, menos ainda com a capacidade de não expressar sentimentos opostos ao esperado. Nesse sentido, resistir é necessário. É preciso resistir a um modelo único de maternidade e a um indiscutível e universal destino biológico feminino, assim como precisamos também criar modos de pensar e de perceber as singularidades do humano, deixando para trás os velhos modelos de dualidade em que, por exemplo, algo só pode ser considerado certo ou errado. São necessárias novas categorias que acolham o diferente, que não aprisionem os seres. Talvez essa tenha sido, conscientemente ou não, a intenção de todas as mulheres que dividiram conosco suas histórias, suas dores, medos, angústias, mas também sua coragem. Como vimos, o ato de maternagem se configura através de uma complexa rede onde se fazem presentes diversos outros actantes além da mulher e da criança. Vencer a opressão nunca foi uma tarefa fácil, mas, a cada tentativa, novos olhares se lançam sobre os oprimidos e novas chances de conscientização das diferenças se formam.

Não se trata aqui de defender uma não maternidade, muito menos uma maternidade compulsória. Trabalhamos no sentido de questionar a exigência de comportamentos, sentimentos e desejos de alguém, baseando-se apenas em seu gênero. Quando observamos a rede que deu emergência à construção dos fatos, torna-se mais fácil atuar na sua desconstrução. Sabemos que esta desconstrução não acontecerá de uma hora para outra, pois concordamos com Forna (1999) quando aponta que as crenças acerca da maternidade se encontram entranhadas e misturadas com as políticas e as práticas de um país, que acabam por limitar nossas escolhas diariamente.

Esperamos, com este trabalho, ter contribuído para uma resistência consciente, que potencialize a aceitação das diversas formas de maternidade.

 

Notas

1 Sobre o conceito de caixa-preta, Lemos (2013, p.55) explicita o seu significado que aqui tomamos como um conceito chave para nosso trabalho: “É a estabilização (uma organização, um artefato, uma lei, um conceito) e a resolução de um problema. Após a resolução da controvérsia, tudo se estabiliza, passa para um fundo e desaparece, até o momento em que novos problemas apareçam e a rede se torne mais uma vez visível”.

2 Os dados da Política Nacional de aborto também foram discutidos na Audiência pública convocada pelo Tribunal Superior Federal em agosto de 2018, pela pesquisadora Débora Diniz. A exposição oral pode ser acompanhada no link: https://www.youtube.com/watch?v=3dB5SSRCO1M.

3 A exposição completa dos argumentos da Dra. Sandra Helena pode ser vista no link: https://www.youtube.com/watch?v=zsm6Jw8dROo.

4 O vídeo completo da exposição da escritora Chimamanda Adichie, pode ser visto no link: https://www.ted.com/talks/chimamanda_ad ichie_the_danger_of_a_single_story?langu age=pt-br#t-564647.

 

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Enviado em: 19/01/19
Aceito em: 06/03/20

 

 

Janaína Silva é formada pelo Centro Universitário FAESA. Mestranda em psicologia pela Universidade Federal de São João del Rei. Correspondências R. Vereador Vicente Cantelmo N 400. Bairro Guarda Mor. São João del Rei-MG.
Email: nanasjdr@hotmail.com
ORCID: orcid.org/0000-0002-9468-6087
Maria de Fátima Aranha de Queiroz e Melo é Pós Doutora em Psicologia Social (UFF), Doutora em Psicologia Social (UERJ), Mestra em Educação (PUC-Rio), Psicóloga (UFRJ). Professora Associada Departamento de Psicologia e PPGPSI da Universidade Federal de São João Del Rei.
E-mail: fatimaqueiroz.ufsi@gmail.com
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