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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.10 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.95616 

ARTIGOS

 

Sob a ótica do exame: pesquisas sobre psicopatia e psicópatas no cenário científico brasileiro

 

From the perspective of the exam: the researches about psychopathy and psychopaths in the Brazilian scientific scene

 

Bajo la óptica del examen: las investigaciones sobre psicopatía y psicópatas en el escenario científico brasileño

 

 

Heriel Adriano Barbosa da LuzI; Antônio Carlos do Nascimento OsórioI; Anita Guazelli BernardesII

IUniversidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS), Campo Grande, MS, Brasil
IIUniversidade Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS, Brasil

 

 


RESUMO

Fazendo um panorama das formas como a psicopatia e os psicopatas são tratados no cenário científico nacional, pelo recurso da hermenêutica foucautiana, o presente artigo traça, a partir dos relatórios de teses e dissertações, a rede de saber-poder que captura e constitui a figura limite do inimigo social. Essa trama forma-se com procedimentos e técnicas de avaliação e exame, onde diversas práticas discursivas se articulam para esquadrinhar, lapidar e objetificar uma ontologia do criminoso, de fato ou em potencial, inalienável da natureza perversa. Os enunciados expressam-se na díade jus-psi formando os trilhos por onde correm os dispositivos de vigilância e se formam as estratégias de controle atuais. Essa pesquisa possibilitou: elucidar quais áreas interessaram-se pela temática; de que maneira elas delinearam seu(s) objeto(s); com quais saberes instituídos e instituintes estabeleceram seus diálogos; e como esse acontecimento configura-se na contemporaneidade.

Palavras-chave: Psicopata; anormal; vigilância.


ABSTRACT

This article draws from the reports of theses and dissertations about psychopathy and psychopaths the knowledge-power network that captures and constitutes the figure limit of the social enemy, in the Brazilian scientific scene, through the use of Foucault's hermeneutics. This network is formed with procedures and techniques of evaluation and examination, where diverse discursive practices are articulated to search, polish and objectify an ontology of the criminal, in fact or in potential, inalienable of its perverse nature. The statements are expressed in the jus-psi dyad by forming the rails by which the surveillance devices run and the current control strategies are formed. This research made it possible to: elucidate which areas were interested in the subject; how they outlined their object (s); with which institutionalized and instituted knowledge established their dialogues; and how this event is configured in contemporaneity.

Key-words: Psychopath; abnormal; vigilance.


RESUMEN

El presente artículo traza, por el recurso de la hermenéutica foucautiana, a partir de los informes de tesis y disertaciones, la red de saber-poder que captura y forma la figura límite del enemigo social, en el escenario científico brasileño. Esta trama se forma con procedimientos y técnicas de evaluación y examen, donde diversas prácticas discursivas se articulan para escudriñar, lapidar y objetivar una ontología del criminal, de hecho o en potencial, inalienable de la naturaleza perversa. Los enunciados se expresan en lo duo legal-psicológico formando los rieles por donde corren los dispositivos de vigilancia y se forman las estrategias de control actuales. Esta investigación posibilitó: elucidar qué áreas se interesaron por la temática; de qué manera ellas delinearon su(s) objeto(s); con qué saber instituidos e institucionales establecieron sus diálogos; y cómo ese acontecimiento se configura en la contemporaneidad.

Palabras clave: Psicópata; anormal; vigilancia.


 

 

Questões preliminares: a popularização da discussão sobre psicopatas

Basta abrir o feed de notícias para se deparar diariamente com novos psicopatas com características, perfis, motivações e crimes diversificados. Se as páginas policiais estão abarrotadas desses sujeitos tidos como obscuros, o caderno B, comumente traz entre os lançamentos de séries e filmes o tema do maníaco ou do assassino em série, com enredos envolvendo desde alienígenas até robôs destituídos de consciência e empatia. A temática desperta tanto interesse que há canais de televisão dedicados quase exclusivamente ao assunto e neles criminólogos de diferentes áreas comentam, sob diversos ângulos, científicos ou não, o modus operandi dos psicopatas.

Os trends topics do buscador mais acessado na atualidade mostram o interesse crescente por esses indivíduos e pelos métodos usados para sua detecção e delineamento de seu perfil na avaliação científica comumente realizada por profissionais. Um exemplo é o aumento de 1300% para o descritor 'teste de Rorschach' entre os períodos de 06 a 12 de maio de 2018, após publicação pela imprensa nacional dos procedimentos e resultados da avaliação psicodiagnóstica de uma pessoa processada no Brasil pela morte dos pais1.

Para o cinema foi anunciada há pouco a gravação de um longa metragem sobre a vida dessa ré confessa, que teve sua avaliação publicizada. A elaboração do enredo contará com a participação de uma investigadora graduada em administração de empresas2 e que também colabora em telenovelas. O mesmo aspecto pode ser identificado no cenário literário 'ficcional?', tanto para esse, como para outros casos. Escritores de diferentes áreas, quase sempre acadêmicas, celebram o sucesso de vendas, contando histórias e dando receitas para identificar esses indivíduos potencialmente perigosos3.

Crescem, nessa mesma direção, os estudos brasileiros nas diferentes áreas e sob diversas vertentes, que têm como fio condutor ou como objeto de investigação os psicopatas, e a psicopatia como a causação desse mal. Alguns a denominaram, apesar de seu início recente à ocasião, de o mal do século. Com o objetivo de problematizar essas pesquisas, o presente artigo pretende apontar as influências subjacentes ao campo científico em que elas se desenvolvem e fazer um panorama desse cenário, sem o intuito de esgotá-lo. Por isso foi escolhido apenas uma plataforma nacional, a Sucupira, que agrega os relatórios de mestrado e doutorado da Agência de Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - CAPES.

Como alguns trabalhos são anteriores à criação desse banco de dados, foi necessário buscar nas bibliotecas das instituições de origem ou contatar o pesquisador, afim de que pudessem compartilhar os relatórios. Cabem aqui dois agradecimentos: o primeiro aos pesquisadores consultados, que muito gentilmente dividiram o resultado de suas pesquisas e se prontificaram a oferecer outros esclarecimentos, e também às bibliotecas das instituições de ensino superior, cuja preocupação em manterem atualizados seus acervos é notável.

Por que pensar com Foucault esse tema?

Apesar de ter encerrado suas publicações há mais de trinta anos em decorrência de sua morte, as obras de Michel Foucault têm contribuído para as discussões em diversas áreas, não só as das Ciências Humanas, mas em alguma medida às Ciências Exatas e da Natureza, por suas problematizações acerca da construção do conhecimento, da epistemologia e da filosofia das ciências. A busca pelos trabalhos do autor, sobretudo após a edição de um compêndio de seus ditos e escritos, aumentou imensamente as possibilidades de investigação nesse referencial e isso produziu consequências: de um lado ampliou seu alcance; e de outro, as possibilidades de esmaecer o foco e de fragilizar sua perspectiva, dado ao uso descontextualizado de seus conceitos. Daí aparecerem acusações do tipo: Foucault era idealista; ou estruturalista; ou niilista; e até mesmo de ser um ateórico inconsequente. Para ele, no entanto, compreender a verdade, a normatividade e a epistemologia fora indispensável (EAGLETON, 2011), e essa questão repercute agudamente no presente trabalho.

Por isso, coloca-se a necessidade de alguns procedimentos cardeais. O primeiro deles é delimitar um campo: este será formado pela tríade psicologia, política e educação. O segundo é, a partir dos limites desse triângulo, criar espaços de articulação para o diálogo com outras áreas do conhecimento, como a (o): antropologia social, sociologia, psiquiatria, direito, filosofia, etc. Essas orientações vão ao encontro da proposta que conduziu os trabalhos de Foucault (2014a): a interdisciplinaridade. Flagrante mesmo em seus primeiros trabalhos, ela fez-se presente até seus escritos derradeiros, quase sempre em vias originais. Nesse trajeto lapidou-se um olhar histórico orientado às diversas práticas humanas e à construção do conhecimento, tomando-os como acontecimentos atualizados.

Num movimento a contrapelo, ele pensou os acontecimentos como fenômenos históricos encarnados em práticas sociais constituintes dos sujeitos contemporâneos. A exemplo disso tem-se a loucura, que se formou por diferentes vias até tornar-se o que é na atualidade: uma questão social, política e sanitária capaz de definir certos grupos, indivíduos e comportamentos. Essa história da loucura, engendrada na indagação: “quem somos nós nesse exato momento”? (FOUCAULT, 1995, p.239), compõe um elo do presente que forma a corrente de subjetivação dos sujeitos atuais, normais ou nem tão normais. Daí a sua importância para essa pesquisa: produzir e lançar um olhar ao presente, que compreenda seus deslocamentos, transformações e descontinuidades. Nesse sentido, o dispositivo do exame como um conjunto de práticas historicamente instituídas e constituintes de saber-poder oferece possibilidades para pensar as tecnologias que produzem subjetivações na contemporaneidade.

Uma dessas subjetividades é a daquele designado, dentre outros termos, de psicopata, que ao ser esquadrinhado pelo exame, configura-o como uma tecnologia de utilidade polivalente. Esta, por sua vez, acaba por promover a representação e objetificação de sua subjetividade a partir da nosologia médica, da moralidade jurídica e da psicopatologia, as quais, nesse caso, carecem de um sintagma que conecte sintomatologia e taxonomia. Daí o recurso a expressões ambíguas, confiscadas de seu corpo teórico precípuo, como maníaco, psicopata, serial killer, perverso, desiquilibrado mental, etc.

Foucault (2003; 2014c) reunia os discursos, principalmente os médico-jurídicos em torno dessas vidas, sem qualquer preocupação com sua exatidão semiológica, nosológica ou terminológica, em duas expressões: infame e anormal. Isso porque ele entendia que essas figuras são anteriores à própria constituição das ciências modernas, jurídicas, médicas ou psicológicas e comporiam as táticas de controle indispensáveis à formação do Estado moderno. Este precisou regular individualmente as vidas, desde sua sexualidade, que implicava a reprodução da mão-de-obra, até a criminalidade e devassidão (CASTEL, 2003), comportamentos esses comuns e que limitavam a administração estatal de alimentos, da propriedade privada e da regulação interna sobre as reservas de mercado (FOUCAULT, 2008).

Em A vontade de Saber (1980), ele se propôs a realizar uma análise histórica da sexualidade, inquirindo a psiquiatrização do prazer perverso:

Na preocupação com o sexo, que aumenta ao longo de todo o século XIX, quatro figuras se esboçam como objetos privilegiados de saber, alvos e pontos de fixação dos empreendimentos do saber: a mulher histérica, a criança masturbadora, o casal malthusiano, o adulto perverso, cada uma correlativa de uma dessas estratégias que, de formas diversas, percorreram e utilizaram o sexo das crianças, das mulheres e dos homens (p.100).

As representações mudaram e às figuras atuais, aperfeiçoadas a partir daquelas, nomeou-se de maníaco, pedófilo, psicopata, etc, como formas prototípicas contemporâneas do adulto perverso. Um exemplo foi exposto no texto sobre Pierre Rivière, o matriduofatricida. Nele Foucault (2010) coordenou uma equipe de pesquisadores no Collège de France para realizarem, a partir desse caso, análises sobre as relações entre psiquiatria e justiça penal - momento em que a psiquiatria destacava-se no cenário jurídico e dava-lhe as mãos para caminharem, até hoje, juntos.

O que garantiu essa aliança para os pesquisadores foram: a moralização da loucura e a implementação do tratamento moral por Pinel (1745-1826); a formulação controversa da terminologia Monomania Homicida por Esquirol (1772-1840), que traduzia o ímpeto incontinente de matar, enquanto esta, por sua vez, definia a ontologia do assassino; e as teses de Morel (1809-1873) sobre a hereditariedade da alienação mental e a degenerescência intrínseca à condição de ser do mentecapto (DUTRA, 2002; FOUCAULT, 2014b). Sobre esses rudimentos assenta-se a técnica do exame, até chegar no entrecruzamento da vigilância e da sanção normalizadora contemporâneos, para formar “um arquivo inteiro com detalhes e minúcias que se constitui no nível dos corpos e dos dias” (FOUCAULT, 2014d).

O trajeto, aqui en passant, percorrido pelas pesquisas e análises foucaultianas desenvolveram, pelo anteriormente exposto, territórios consistentes de pesquisa no campo da psicopatia criminal, que formaram rizomas em diversas áreas, ampliando e diversificando a discussão sobre essa temática. Por isso, pela fertilidade e amplitude desse escopo teórico, optou-se pela utilização de suas contribuições como ferramentas e recursos estratégicos de pesquisa.

Busca, sondagem e compilação dos dados

Para delinear a forma como a psicopatia e os psicopatas são investigados no cenário científico nacional, o recurso ao estado do conhecimento proporciona condições de se estabelecer o quadro, embora limitado se comparado ao estado da arte, bastante promissor no sentido de conhecer, de maneira geral, os métodos pelas quais o tema é construído, problematizado e investigado, e ainda, as formas de desdobramento e formação dos objetos de conhecimento desenvolvidos nas pesquisas e os resultados nelas alcançados. Para esse fim foi eleita a Plataforma Sucupira da CAPES como a fonte de relatórios de pesquisa. Tendo em vista que desde 2014 ela passou a abranger grande parte das teses e dissertações nacionais, ela ofertou possibilidades à coleta de uma amostragem suficiente de dados, atinente aos objetivos aqui elencados.

Quanto à escolha dos descritores, esta se deu em função da entrada 'Psicópata' realizada no dia 30 de junho de 2018. Por derivação, a partir da ocorrência de outros termos a ele conectados, e tendo em vista a noção de exame, ampliou-se a busca para 'Serial+Killer', 'Psicopatia' e 'Escala+Hare'. Os termos foram empregados isoladamente e sem combinação para não diminuir o quociente geral. Nesse momento não se discriminou teses e dissertações, nem se estabeleceu corte cronológico. O total de resultados, precedidos pelos descritores foi de, respectivamente: Psicopata =12 ocorrências; Serial+Killer =14 ocorrências; Psicopatia =71 ocorrências; Escala+Hare =11 ocorrências; Σ total/geral=108 ocorrências para os relatórios. Após a eliminação dos títulos repetidos, que pontuaram em mais de um descritor, chegou-se a Σtotal/relativo=92 relatórios.

Seguindo-se à leitura dos resumos do Σtotal/relativo, dois critérios foram demarcados: a) a prioridade dada nas pesquisas à questão da psicopatia no/do psicopata, ou tê-la como seu objeto, ou tê-lo como sujeito da pesquisa; b) permitir o acesso ao relatório final e, se for o caso, oferecer outros esclarecimentos não descritos nele. Como em alguns casos constatou-se que um ou dois desses critérios não foram atendidos, optou-se por subtrair 12 relatórios, restando Σ total/final=80, desses, 59 dissertações de mestrado e 21 teses de doutorado.

A maior parte dos trabalhos, 45 deles foi desenvolvida em programas de psicologia. Quanto ao restante, 10 foram realizados na medicina, dos quais 05 em psiquiatria, 03 em fisiopatologia e 02 no programa multidisciplinar de medicina e ciências da saúde. Em relação aos demais, 05 trabalhos estavam inseridos na área de Ciências Criminais, 04 nas Ciências Jurídicas ou Direito e o restante dividido em diversas áreas como História, Administração, Tecnologias da Inteligência e Design Digital, Comunicação Social, Letras, Estudos de Linguagens e Educação.

A ampla maioria dos trabalhos sobre esse tema inseridos na psicologia expõe a preocupação em se produzir uma visão científica descritiva e definidora da subjetividade, personalidade, caráter, traços ou dinâmica patológica dos sujeitos classificados como psicopatas ou portadores/possuidores de psicopatia, numa direção semelhante à da psiquiatria. O privilégio ao acesso e à elaboração de testes, inventários e escalas implica também nesse resultado, tendo em vista a porcentagem de 66% de utilização desses recursos pelos pesquisadores. As outras áreas com maior número de pesquisa seguiram a mesma tendência, principalmente a médica, onde todas as pesquisas recorreram ao recurso do uso de testes, sobretudo na psiquiatria. Para a especialidade de fisiopatologia, o teste foi usado para corroborar os dados obtidos com outros instrumentos como neuroimagem, aferição de volume de massa branca cerebral e respostas psicofisiológicas. Como alguns instrumentos de avaliação psicodiagnóstica são de uso exclusivo do psicólogo4, seria esperado que houvesse pouca procura a esse recurso por pesquisadores não psicólogos. Apesar dessa especificidade e das sanções legais, alguns pesquisadores não psicólogos fizeram uso desses recursos.

Sobre os instrumentos de avaliação, a Escala Hare e suas adaptações teve preferência entre os pesquisadores, o que indiretamente relaciona-se ao descritor Escala+Hare utilizado na busca inicial. Se para ele foram encontrados 11 ocorrências, em 42 pesquisas nas diversas áreas, ou seja, em mais da metade do total, a escala foi utilizada, evidenciando a preferência por esse instrumento entre pesquisadores. Na área médica, em 100% dos casos a escala foi empregada e em Psiquiatria foi praticamente o único recurso. Houve na psicologia apenas um relatório questionado diretamente o privilégio desse instrumento.

Além do uso de instrumentos tecnológicos mais avançados, como a tomografia computadorizada - TC, a ressonância magnética - RM e a tomografia por emissão de fóton único - SPECT, e também a da aferição de massa neural branca, o recurso à identificação de expressões faciais foi empregado em três casos, como um instrumento de identificação e de previsão de manifestação futura de psicopatia.

Nos estudos onde se aplicou testes, principalmente a Escala Hare, o lócus privilegiado de pesquisa foram instituições penais e de privação de liberdade. Estas somaram 47% do total, mas se se considerar o uso da Escala Hare nessas instituições, esse percentual chega a mais de 95%. Desse número, 13 trabalhos foram desenvolvidos em instituição socioeducativa em meio fechado, com adolescentes privados de liberdade. As aplicações, em sua maioria, preocuparam-se em respeitar as recomendações dos desenvolvedores dos testes e a aplicação deu-se, com duas exceções, de forma coletivizada. Os resultados, ao fim dos relatórios, preocuparam-se acentuadamente em estabelecer um tipo padrão ou em apontar um ponto de corte para a escala e menos em assinalar diferenças individuais entre os sujeitos da pesquisa. Em relação ao gênero, em 04 trabalhos constatou-se os termos 'mulher' ou 'gênero feminino' para se referir aos sujeitos da pesquisa.

O recurso à anamnese foi constatado em 02 casos e o Mini Exame do Estado Mental em 03 situações, como pré-condições de testagem. A História Pregressa foi um recurso para aquelas pesquisas que não fizeram uso de testes, orientadas pelas abordagens clínicas fenomenológicas ou existencialistas. Tomando o total geral, 2 pesquisas foram feitas no formato de estudo de caso.

Em relação aos relatórios dos Programas de Pós-graduação em Ciências Criminais consultados, suas preocupações dirigiram-se para o interesse em estabelecer um diálogo entre o código penal, a criminologia e o processo penal, trazendo a tríade imputável/semi-imputável/inimputável para problematizar os regimes especiais e as Medidas de Segurança. Além disso, apareceu o interesse em definir parâmetros de investigação criminal, descrevendo os modus operandi de assassinos seriais. Por fim, aparece o questionamento da Psicopatia como categoria jurídica, haja vista sua inserção nas pesquisas, sobretudo na medicina e na maior parte da psicologia, como um conceito tácito e unívoco que deriva por similitude das classificações do Manual Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde - CID-10 e do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais - DSM-V. Algumas pesquisas em Ciências Criminais, em psicologia social e em clínica psicanalítica, humanista ou existencial optaram em investigar o próprio conceito para apontar seus pontos de sustentação e de fratura.

Das demais pesquisas pode-se depreender a ampliação da discussão em duas direções. Na primeira delas estabeleceu-se um diálogo com as expressões culturais, tanto artísticas como factuais, onde o tema da psicopatia encontra emergência em fenômenos extemporâneos às construções científicas, para estabelecer com ele um diálogo profícuo. Para essas pesquisas, se a ficção literária incorpora temáticas e conceitos científicos, da mesma maneira as ciências nutrem-se das formas ficcionais e paraficcionais, formulando a partir delas representações, hipóteses, conceitos e objetos de investigação científica, como é o caso do Psicopata.

Quanto à segunda, as formulações produzidas a partir dos dados evidenciados nas pesquisas, fora de seus campos de investigação e sem o suporte teórico de análise daquelas, são assumidas e combinadas para produzirem generalizações metaconceituais que serão aplicadas em múltiplos casos. As formas de aplicação destacadas foram: para a detecção de perfis de psicopatia em organizações corporativas, grupos comunitários, ambientes digitais, universidades; e aplicação de testes para seleção de funcionários em empresas privadas e públicas, no intuito de se evitar a contratação de psicopatas.

Poderia ainda ser apontada outra forma que direta ou indiretamente encontrase no bojo da discussão de praticamente todas as pesquisas aqui levantadas: afinal, como se evidencia a formulação nosológica para psicopatia? Nesse sentido, um dos trabalhos de um programa de Linguística salientou a dissimetria entre os discursos do psiquiatra, do psicólogo e do juiz. Ao invés de combiná-los a partir de proposições comuns às três áreas, ele desenvolveu-se no sentido de refletir sobre os embates desses saberes, que em alguns momentos avizinham-se e em outros se distanciam. Haveria de fundo tanto uma estrutura linguística intrínseca à constituição ideológica e técnico-científica particular das áreas, como um embate discursivo estratégico em que, por vezes, desvela-se o rompimento do elo comunicacional e que, para ser reposto, exige a imposição recursiva da normatividade axiomática.

 

Caracterizações, resultados e análise hermenêutica das pesquisas pelo exame

Nessa sessão a hermenêutica foucautiana será utilizada como recurso de interpretação e análise dos relatórios. Não se tratou aqui de estabelecer ou aferir o grau de comprometimento com as condições de apropriação e de desenvolvimento de dada ciência, nem de debater os paradigmas de sustentação epistemológica das estruturas das comunidades científicas analisadas (KUHN, 1998), mas se intentou evidenciar as regras próprias aos jogos de linguagem, combinando os desempenhos que legitimam as pesquisas, às suas opções teórico-metodológicas (LYOTAR, 1988).

Para isso, a análise do discurso, especificamente a hermenêutica, funcionou como ferramenta para dar visibilidade ao painel composto por enunciados discursivos que emergiram do conjunto das pesquisas, demarcado nelas as estratégias que compuseram suas práticas sociais (FOUCAULT, 2011). Nessa perspectiva, evocou-se o conhecimento como formulação ou invenção resultante do embate travado em seu próprio campo ou no confronto com outras áreas ou saberes. Assume-se aqui que esse litígio é de ordem política, pois a escolha tática por dado instrumento está implicada numa motivação e posicionamento sócio-político de análise. Considerando que a analítica se forma pela raridade, exterioridade e acúmulo dos enunciados definidos em função dos resultados e caminhos vislumbrados (FOUCAULT, 2015), aplicou-se este procedimento ao montante de relatórios de pesquisas coletado. Isso permitiu compor um arquivo atual, processual e descontínuo das várias performances e desempenhos, que pode expressar os acontecimentos enquanto práticas sociais formativas, e também formadas, nos diferentes saberes científicos (idem).

Cabe a advertência de que o propósito não foi o de estabelecer um diagnóstico ou perfil sobre o cenário nacional, mas sim lançar um olhar hermenêutico a fim de interpretar as unidades discursivas a partir das funções e definições enunciativas dos próprios relatórios. Sem inferir o oculto ou o velado, objetivou-se trazer o mais-que-dito, ligando e desatando caminhos interpretativos para planificar a lógica do sentido norteadora do acontecimento das pesquisas (DELEUZE, 2009).

Nesse contexto foi trazido também o exame, a partir do conjunto de formulações, descrições e noções produzidas nas investigações realizadas por Michel Foucault, onde se articularam os diferentes momentos de sua pesquisa, desde a análise das teorias do conhecimento até a das práticas de si. Este conceito tático e técnico permite fornecer uma compreensão sobre os dispositivos disciplinares - formas empregadas pelo Estado em compasso com as ciências -, para produzir redes de circulação de saber-poder.

Empregado de diferentes formas nas diversas instituições, neste perseverou-se, desde sua emergência, a intenção de diferenciar e classificar para favorecer o controle e a administração, e com o Estado moderno essa tática aprimorou-se, a fim de garantir a vigilância sobre as vidas e sobre as populações. Sua aplicação polivalente dá-se nos campos jurídicos, médicos, psicológicos, policiais, administrativos, etc., permitindo a aproximação e o distanciamento destes, e em cuja valência pode habitar interesses comuns, geralmente relativos às garantias do establishment.

Como instrumento, ele pode ser aplicado em diversos espaços, situações e públicos: ambientes virtuais, empresariais, carcerários, socioeducativos, hospitalares, ambulatoriais e jurídicos. Por meio dele extrai-se um saber advindo da sistematização dos dados das tabelas, inventários, testes psicológicos,

questionários, prontuários, etc., na mesma medida em que se repõe um poder. Isso porque, ao classificar por determinado saber, restringe-se nos limites da taxonomia, o circuito de atuação de um sujeito ou população. Ou seja, restitui-se um poder. O rotulado é restringido pelo mecanismo de poder, e o saber oriundo disso é ampliado, havendo a contínua retroalimentação. Nessa dinâmica, o pesquisador detém ou ele acredita deter em suas mãos um instrumento asséptico capaz de revelar, traduzir ou provocar a manifestação de um aspecto ou fenômeno desconhecido até mesmo pelo próprio investigado, com o qual poderá reestabelecer os quadrantes preditivos do normal/anormal, salutar/patológico e confiável/perigoso.

Pode-se extrair disso, a partir do levantamento realizado, e tendo o exame como parâmetro, três performances de pesquisa constitutivas desse campo: a normativa; a ontológica e a naturalista. A maior parte dessas investigações, mais de 3/4 do total, está compreendida na área formada por esse triângulo.

Tomando-se apenas as pesquisas empíricas, no entanto, a totalidade delas está compreendida na área formada por esses três pilares e tanto os instrumentos empregados como a metodologia, bem como as razões para a escolha destes, estão intrinsecamente ligados à opção epistemológica que fizeram. Na constituição ontológica, por exemplo, há nas pesquisas a tentativa de se estabelecer ou presentificar um ideal-tipo, mas como nelas a discussão sobre a cultura está solapada, cria-se uma antropologia sem história na qual a condição de ser (humano ou desumano) desenvolve-se por sua determinação idiossincrática. O sujeito está, de antemão, condenado à condição de ser aquilo que ele é. Os limites de e para seu ser, não obstante, acabam delineados nos instrumentos de investigação e em seus resultados: escala, teste, inventário, auto ou hétero identificação de emoções, etc.

As formulações naturalistas intentaram, nas pesquisas levantadas, produzir um espaço fértil entre a psicologia, a fisiologia e a epistemologia. Duas elaborações destacaram-se: na primeira delas buscou-se estabelecer, pela observância das condições de falseabilidade, justificação e generalização, com o recurso da estatística e psicometria, a fidedignidade dos instrumentos de avaliação, e de adaptação populacional, além de medir a capacidade inferencial destes; na segunda, o uso dos instrumentos objetivou aferir e corroborar dados estatísticos e hipóteses do pesquisador sobre a psicopatia. Com exceção de um trabalho, todos os demais confirmaram suas hipóteses, o que abre margem à discussão acerca da falseabilidade como condição para a produção científica baseada em evidências. Parece haver nesse panorama, uma inversão epistemológica do naturalismo metodológico, sugerindo que determinados instrumentos de investigação, e ainda seus objetos, tenham sido escolhidos no intuito de corroborar a hipótese e as crenças endossadas pré-teoricamente pelos autores.

Apesar do cuidado, dentro de uma proposta de psicologia de base empírica, em se atentar às exigências metodológicas, experimentais e procedimentais de pesquisa, a aceitação tácita das perspectivas antropológico-epistemológica, inerentes ao instrumental, da maior parte delas, contribui para os equívocos da infalibidade e da indubitabilidade na produção de conhecimento científico (MOSER et al. 2009), o que poderia comprometer o próprio naturalismo, cuja premissa “Uma análise adequada utiliza conceitos da psicologia” deve ser seguida por “Resultados empíricos podem resultar em modificações de análises”, porque a “Análise científica é mais útil que a análise conceitual” (FELDMAN, 2012, p. 275; 278 e 283). Para que a ciência não se confunda com um dogma, mas se constitua como conhecimento verdadeiro e justificado, a falibilidade e a dúvida devem sustenta-la, o que gera novas proposições, fazendo a ciência avançar. Em mais da metade dos relatórios verificados, as pesquisas empíricas não implicaram em novas formas de conhecimento, mas apenas restringiram-se a aplicar, adaptar ou corroborar as existentes principalmente as do psicólogo canadense Robert Hare (1995), mais especificamente pela escala por ele elaborada, que traz nela todo o bojo de sua meta-teoria sobre psicopatia.

Esses fatores, no panorama das pesquisas, ligam-se diretamente à normatividade, onde se tenta esquadrinhar para enquadrar o sujeito nos quadrantes da norma e da normalidade. A complexidade da subjetividade é posta à prova pela média e pelos marcos legais, e a moralidade é assumida como sinônimo de ética e confundida com saúde. O psicopata seria, ao mesmo tempo, imoral, patológico e criminoso (potencialmente ou em ato). Aligeira-se a discussão ética, que fica reduzida: à demarcação territorial do campo normativo, psicológico e médico, entre o nós (não psicopatas) e o outro (psicopata); e à projeção da consciência de si, como empatia, afeto, culpa e arrependimento.

Essas categorizações, notadamente as duas últimas, oriundas do discurso religioso, são aceitas como categorias, noções ou axiomas da ciência psicológica, e sobre isso não se pesou quaisquer questionamentos, possivelmente por não compor um dos problemas a que os trabalhos se dedicaram ou pela tentativa de escapar à pesada discussão proposta nessa área pela teoria do conhecimento ou na ética da filosofia da ciência. Amparar-se, todavia, em constructos discursivos religiosos compromete a própria condição ética em que se alicerça a normatividade, pois enquanto aqueles empregam noções generalistas, esta condiciona a norma às qualidades do igual e do desigual.

O que se evidenciou no conjunto dos resultados das pesquisas, para concluir, foi a ligação direta entre a motivação prévia e comportamento eliciado, combinando os três aspectos acima referidos, para personificar a um só tempo o modelo genérico e a potência idiossincrática que conduz inevitavelmente ao ato criminoso. Nelas, os recursos procedimentais e metodológicos foram empregados para recolocar, pela classificação, a potência dessa determinação tríplice da identidade da psicopatía, para perfazer a lógica do “ cercle vicieux" (DEL VECCHIO, 2005, p. 95), em outras palavras: faz porque é psicopata e é psicopata porque faz. O exame permite encerrar o sujeito na área psicobionormativa, definindo e delimitando seu corpo, subjetividade e motivação.

Como antípodas às performances de pesquisa acima descritas, algumas se preocuparam em descontruir, a partir das áreas da psicanálise, humanismo e fenomenologia, as noções aceitas tacitamente nas anteriores, buscando formar uma ontologia. Se de um viés as investigações psicanalíticas propuseram a aproximação da noção de psicopatia como uma formação psíquica própria à psicodinâmica perversa, de outro, fizeram da perversão a condição básica da constituição psíquica. Observou-se que, tanto a universalização quanto a metalinguagem pautada no inconsciente tenderam mais a diluir os sujeitos da pesquisa no discurso psicanalítico do que fê-los emergir a partir dele. Por outro lado, as pesquisas dirigidas a problematizar o delineamento da noção de psicopatia compuseram um quadro fértil e complexo, trazendo um extenso material literário e jornalístico, num movimento de composição e decomposição.

Em um dos relatórios de pesquisas, sob a orientação da perspectiva da alteridade radical levinasiana, a psicopatia foi tomada como uma forma de relacionamento social que expõe as dimensões intersubjetivas do vínculo eu-outro. Esta, no entanto, não se configura como instância, substância ou condição para o ser. Para essa abordagem haveria uma confusa assimilação dos termos psicopatia e psicopatas que criou problemas de ordem conceitual, investigativa e humanitária. Ao reduzir o sujeito ao comportamento manifestado no ato criminoso comprometer-se-iam questões éticas fundamentais, a exemplo da dignidade da pessoa humana. A psicopatia, por ser um transtorno e não uma doença refere-se apenas a uma dimensão do sujeito, mas o título de psicopata acaba encarcerando nesse rótulo as múltiplas dimensões de ser. Por isso, ela optou em compreender o modus vivendi ao invés do modus operandi.

Além dessas questões, essa e outra pesquisa de abordagem foucaultiana destacaram os problemas teóricos, metodológicos, procedimentais, estatísticos e éticos tanto da aplicação brasileira quanto da elaboração da escala pelo canadense. Dentre eles estão: pressupostos teóricos, filosóficos e antropológicos não discutidos e definidos por Robert Hare; o lócus de pesquisa ser, prioritariamente, a instituição carcerária; carência de estudos sequenciais; inobservância das considerações éticas atuais em pesquisa com seres humanos; aplicação longitudinal para dados coletados com procedimentos transversais; desconsideração às questões culturais e particulares das instituições carcerárias; confusões psicométricas entre traço e fator; além de outros problemas.

Dirigindo-se à cartografia, ao lócus de pesquisa e ao processo de escolha de determinada população, três relatórios expõem o caminho de desumanização e objetificação por que passam os sujeitos da pesquisa. Elas destacam que no fundamento dos critérios de seleção e orientação da investigação sobre a psicopatia está o controle e às vezes o aniquilamento de parte da população considerada disfuncional, perigosa e degenerada. Como exemplo, ao declarar-se a impossibilidade de tratamento do psicopata, restar-lhe-á somente a condenação perpétua pela Medida de Segurança. Essa é uma das prerrogativas de Hare, a da não possibilidade de recuperação. Corrobora-se a aceitação tácita de sua antropologia e de seus pressupostos implícitos, com elementos das ciências naturais, que nem sempre condizem com os das ciências humanas, mas são articulados de forma a justificar alguns resultados.

Em outra dinâmica de pesquisa, a dos relatórios que analisam a temática pela perspectiva da linguagem, eles podem ser distribuídos pelos vieses semiótico e ficcional. No último, a dramaturgia é trazida para provocar aqueles pesquisadores que creem na assepsia da investigação e da pesquisa, levando-os a se questionarem sobre a real motivação que os conduziu à escolha deste problema de pesquisa. Propõem essa discussão mostrando como o crescimento das pesquisas dirigidas à temática dos criminosos seriais relaciona-se à produção ficcional. A cada lançamento são revigorados os interesses, como foram os casos: do filme Psicose - 1960; do livro e filme de O Silêncio dos Inocentes - 1981 e 1991 respectivamente; e das séries Dexter - 2006 e Hannibal - 2013. Há uma indústria cultural que retroalimenta a ficção e a ciência.

No viés semiótico analisaram-se as formas como a imprensa repercutiu casos envolvendo seriais killers, maníacos ou psicopatas. Um deles tratou da reabertura da investigação, após a série de notícias sobre assaltos e homicídios, do caso conhecido como Titica, em uma praia da região Sul do país. Outro formato de pesquisa, também nos moldes semióticos, analisou os enunciados linguísticos, por meio dos quais se delimitou territorios discursivos de circulação de linguagem e de reposição de saberes. Nesse relatório, a linguagem marca a assimetria da economia discursiva médico-jurídico-psicológica levando à compreensão de que esse quadro representado anteriormente na área do triângulo, forma, na verdade um tríptico assimétrico. Dessa forma, quando o magistrado exerce uma função próxima à do poder soberano, anterior ao aparecimento do Estado, e decide o destino de um acusado, surgem duas questões que permanecem abertas: haveria no Estado moderno uma fissura através da qual se afloraria a figura tirânica do antigo soberano? Isso não poderia fomentar um Estado de exceção?

O quadro delineado e seu reverso formaram a positividade das condições de exercício da função enunciativa e, pelas unidades discursivas, pode-se demarcar o a priori histórico das pesquisas. Nele desenvolveram-se identidades formais, apareceram continuidades simbólicas, translações conceituais, regras e rearranjos no jogo investigativo da temática da psicopatia, apontando para a estetização, estandardização e evocação da figura prototípica do inimigo social que se personifica na imagem do psicopata.

 

(In)conclusões do a priori histórico

A preocupação em demarcar, classificar e diagnosticar por meio da identificação de características particulares e populacionais tem um desenvolvimento bastante remoto, e desde esse período estão imersos nos rituais, na cosmogonia e no mito as pré-condições do exame.

Os códigos de Ur-Nammu, Namu e Lipit-Ishtar mostram que, ainda na Antiguidade, os indicadores legais eram utilizados como sistema de ordenamento para a vigência e manutenção do domínio imperial. Esses importantes dispositivos permitiam à voz do soberano estender-se muito além dos muros do palácio real e, posteriormente, dos limites da cidade. Era uma forma de fazer ecoar e de dar visibilidade às pretensões soberanas, estivessem elas formalizadas ou não na figura real, o que nem sempre acontecia (DRAPKIN, 1982). Suas inscrições criavam estrias discursivas que permitiam conectar assimetrias para produzir espaços de unidade política. Em alguns casos, a exemplo do assírio, o entalhe cuneiforme unia homens e deuses, para por meio da boca do rei, emanar leis e oblações às quais deviam se curvar tanto a natureza como os homens.

A cada ciclo dinástico o rito, precípuo do sistema jurídico hodierno, reestabelecia esse poder real. Ele era, portanto, tático, pois possuía em si um jogo estratégico para ordenação do cenário social. Não havia ainda nessas sociedades o distanciamento entre o mágico, o religioso e o racional, tampouco a percepção do tempo enquanto sucessão cronológica ordenada e vivia-se o ritual como o acabamento indefinido e sempre renascente da vida dos seres (GUSDORF, 1980). A essas noções coligava-se a antiguidade grega, sobretudo à importância atribuída à palavra, não apenas da caligrafada, mas da proferida. Tal qual aquela, na sociedade grega, o léxico aproximava os confins imperiais a ponto de, sobre suas fundações, poder erigir-se algo como a pólis. “O que implica o sistema da polis é primeiramente uma extraordinária preeminência da palavra sobre todos os outros instrumentos do poder” (VERNANT, 2002, p. 53). Fosse ela uma opinião espontânea litigante ou o resultado do trabalho intelectivo de legisladores, nela estava orquestrava a economia das vidas e dos grupos como um canal entre mito e política, tornando-se “o instrumento político por excelência, a chave de toda autoridade no Estado, o meio de comando e de domínio sobre outrem” (idem, p. 53-54).

Esse espaço dissêmico abriu-se ao cultivo de técnicas e formas de enquadramento e veridição que, embora não se constituam propriamente como os rudimentos das tecnologias de exame atuais, dado seus distanciamentos políticos, sociais e epistemológicos, apresentam correspondências. Uma delas, a aferição, era desde Hipócrates (460 a.C.- 370 a.C.) e Galeno (129 - 217) formas importantes de formulação de leis para a tomada de decisão, não apenas quanto à terapêutica, mas sobretudo em relação à política.

Essa prática, contudo, não se restringiu ao povo greco-romano. Os chineses da Dinastia Xia a utilizavam muito tempo antes, dentro da especificidade cultural de seu momento, há mais de quatro milênios, como recurso à seleção de soldados para as guerras imperiais (DUBOIS, 1970). Sua utilização, no entanto, como ferramenta de individuação e vigilância é fruto do ocidente recente, contando com pouco mais de dois séculos e as questões do crime e da criminalidade com as quais se lida atualmente são assuntos nascidos na própria formação do Estado moderno, portanto, bastante recentes. Nessa forma administrativo-política, o inimigo social convive com os demais cidadãos no interior da sociedade, havendo a necessidade de controle e previsão destes sujeitos, o que leva à proliferação de técnicas, táticas e instrumentos amparados nos cálculos de Estado, ou seja, estatística, como é o caso dos testes psicológicos de individualização, identificação e classificação.

Para isso é que são erigidos tipos ideais, figuras-limite, como é o caso do psicopata. Por composição, essa imagem ubuesca constitui a estetização do mal. A partir dela e orientados pelos artigos 5°, 6° e 7° da Lei de Execução Penal, os profissionais inseridos no contexto carcerário aplicam seus checklists de psicopatia ou em Unidades Socioeducativas computam a previsibilidade da reincidência desses, doentes para alguns e sem consciência para outros, infratores e futuros criminosos, incuráveis e sem reabilitação. Nessas instituições estar privado de liberdade e ser diagnosticado com psicopatia significa a condenação perpétua. Os profissionais e pesquisadores fazem o papel de sentinelas para vigiarem ou produzir tecnologias de identificação de almas perversas. A ação seguinte é a de mortificar essa alma condenada apriore por sua natureza, impulsos e ímpetos malditos. Identificado, abre-se outro seguimento de controle no qual a indústria farmacêutica assume a dianteira: a castração química e o entorpecimento psicológico, receitas da ciência médica combinada à jurídica. Calça-se a luva à mão: lucro para a indústria farmacêutica, sensação de segurança para a população e de missão cumprida pelas ciências jus-psi. Estabeleceu-se assim a ontologia do criminoso, psicopata, inimigo social por excelência.

Resta a pergunta: se as profissões têm por base um código ético e profissional amparados na Declaração Universal dos Direitos Humanos, que destaca a inalienabilidade, o respeito e a garantia à vida por que há a aceitação tácita do anteriormente exposto pela quase totalidade de profissionais e de pesquisadores que trabalham ou investigam essa temática? Essa questão aqui inconclusiva servirá para encorajar os próximos trabalhos, deste ou de outros pesquisadores que se sentirem instigados pela questão.

 

Notas

1 https://bit.ly/2mEiuYE

2 https://bit.ly/2NmXWPG

3 https://goo.gl/EhyFF9

4 Normatizações sobre Avaliação Psicológica: Resolução CFP n° 025/2001 (revogada pela Resolução CFP n° 002/2003) Novembro/2001. Define teste psicológico como método de avaliação privativo do psicólogo e regulamenta sua elaboração, comercialização e uso. Disponível em <https://goo.gl/9jMyie>.

 

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Enviado em: 18/08/19
Aceito em: 06/03/20

 

 

Heriel Adriano Barbosa da Luz Psicólogo, Mestre em Psicologia, Doutorando em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso do Sul; Professor Substituto da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.
E-mail: herielluz@gmail.com
Antônio Carlos do Nascimento Osório é Doutor em educação pela PUC-SP. Atualmente é Professor Titular da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e coordenador da pós-graduação em Educação da mesma universidade.
E-mail: antonio.osorio@ufms.br
Anita Guazelli Bernardes é professora doutora da Universidade Católica Dom Bosco (UCDB).
E-mail: anitabernardes1909@gmail.com

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