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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.10 no.1 Porto Alegre jan./abr. 2020

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.90297 

ARTIGOS

 

Políticas de ações afirmativas na educação e as contribuições da psicologia Sócio-histórico-cultural

 

Affirmative action policies in education and contributions of socio-historical-cultural psychology

 

Políticas de acciones afirmativas en la educación y las contribuciones de la psicología sócio-histórico-cultural

 

 

Luciana Ferreira BarcellosI; Solange Jobim e SouzaII

IUniversidade Federal de São João del-Rei (UFSJ), São João del-Rei, MG, Brasil
IIPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo retoma questões que estão pautando a relação entre políticas de ação afirmativa e educação superior no Brasil. O objetivo é traçar um paralelo entre as iniciativas macro e micropolítica colocando em destaque seus desdobramentos para o contexto educacional brasileiro. A análise da política de reserva de vagas no ensino superior brasileiro tem como ponto de partida dois aspectos em destaque: a) as relações estabelecidas entre Políticas de Estado e Ações da Sociedade Civil; e b) a polêmica gerada em torno dos conceitos de identidade, raça e etnia na definição dos critérios para a reserva de vagas. Como conclusão, o artigo apresenta uma breve análise das contribuições da psicologia sócio-histórico-cultural para este debate.

Palavras-chave: Ações afirmativas; ensino superior;políticas públicas; psicologia sócio-histórico-cultural.


ABSTRACT

This article reviews the issues that function as guidelines for the relationship between affirmative action policies and higher education in Brazil. The goal is to draw a parallel between macro and micro policies initiatives, highlighting their developments in the Brazilian educational context. The analysis of the reservation policy in Brazilian higher education has two aspects that stand out: A) the relations established between State Policies and Civil Society Actions; B) the controversy around the concepts of identity, race and ethnicity regarding the definition of the criteria for the reservation of student places. As a conclusion, this article presents a brief analysis of the contributions of socio-historical-cultural psychology to this debate.

Keywords: Affirmative actions, public policies, higher education, socio-historical-cultural psychology.


RESUMEN

Este artículo retoma cuestiones que están pautando la relación entre políticas de acción afirmativa y educación superior en Brasil. El objetivo es trazar un paralelo entre las iniciativas macro y micro políticas, destacando sus desdoblamientos en el contexto educativo brasileño. El análisis de la política de reserva de cupos en la enseñanza superior brasileña tiene como punto de partida dos aspectos en especial: a) las relaciones establecidas entre Políticas de Estado y Acciones de la Sociedad Civil; y b) la polémica generada en torno a los conceptos de identidad, raza y etnia en la definición de los criterios para la reserva de vacantes. Como conclusión, el artículo presenta un breve análisis de las contribuciones de la psicología socio-histórico-cultural para este debate.

Palabras clave: Acciones afirmativas, enseñanza superior, políticas públicas; psicología socio-histórico-cultural


 

 

Introdução

Pretende-se, neste artigo, retomar algumas questões que vêm pautando (especialmente com o advento de políticas de ações afirmativas no campo da educação) a relação entre políticas de ação afirmativa e educação superior no Brasil e, a partir da psicologia social crítica, refletir sobre as seguintes temáticas tangentes: a relação dos cursos pré-vestibulares comunitários e o movimento negro com a política de reservas de vagas nas universidades; e os atravessamentos e desafios de experiências de ações afirmativas na educação nos âmbitos privado e público. A intenção é traçar um paralelo entre as iniciativas - macro e micropolítica - colocando em destaque seus desdobramentos para o contexto educacional brasileiro 1.

Vale ressaltar que, neste artigo, a análise da política de reserva de vagas no ensino superior brasileiro terá como ponto de partida a seguinte questão: o entendimento de políticas de ação afirmativa, nas suas propostas e fundamentações, e as relações estabelecidas entre Políticas de Estado e Ações da Sociedade Civil no que se refere às questões sociais e políticas do País. Nas palavras de Vieira (2003):

Devemos observar que as ações afirmativas diferem em sua natureza: creio que devemos considerá-las tanto como políticas de ação afirmativa (emanadas do Estado e das diversas instituições e instâncias governamentais) quanto como iniciativas de ação afirmativa (criadas, sobretudo, pelas diversas formas de organização da sociedade civil) (p.89).

Vieira (2003) situa o conceito de ação afirmativa no seu aspecto sociopolítico, ou seja, buscando interpretá-lo tanto como medida implementada pelo Estado como também por iniciativa da sociedade civil organizada. Portanto, compreender a implementação das políticas de ação afirmativa no contexto brasileiro requer uma análise consubstanciada nos confrontos, acordos e tensões existentes entre os agentes (Estado e Sociedade Civil) e seus modos de ação. Se, por um lado, as políticas de reserva de vagas consistem em Políticas Públicas de Estado, por outro, é necessário cautela para não se tomarem tais ações de forma isolada. Isso significa compreendê-las na interface das relações estabelecidas com a sociedade civil e os interesses políticos que estão em jogo em determinado momento histórico.

Tendo como referência essa premissa, serão abordados os seguintes aspectos:

a) A participação de movimentos sociais na consolidação da política de reserva de vagas nas universidades públicas brasileiras(Movimento Negro Brasileiro e os movimentos pré-vestibulares comunitários);

b) Experiências pioneiras da política de reserva de vagas em universidades públicas e alguns de seus desdobramentos;

c) Os embates conceituais: a abordagem da psicologia sócio-histórico-cultural e suas contribuições para este tema.

Em concordância com Vieira (2001), o que marca a nossa história é, então, o fato de que, mesmo tendo sido legitimadas pelo Estado sob o viés de política pública, as políticas de reserva de vagas contaram fundamentalmente com as ações feitas pelos movimentos sociais, em especial o movimento negro, ao qual Vieira (2003) atribui o surgimento de uma nova sociedade civil, “atuante, organizada politicamente” (p.90), fazendo emergir novas concepções de cidadania e modos de participação social.

Desde as décadas de 1960/1970, o movimento negro brasileiro vem discutindo a relevância das ações afirmativas e organizando-se politicamente para pressionar sua adoção. Contudo, o Estado Brasileiro mostrava-se reticente até mesmo em aceitar oficialmente a existência do racismo no País (VIEIRA, 2003).

Em meio a turbulências tensionadas a partir da relação com o Estado e com outros segmentos sociais, a sociedade civil organizada age no sentido de reivindicar e fazer valerem direitos sociais e políticos. O objetivo deste artigo é analisar as particularidades da política de reserva de vagas promovida pelo Estado e suas tensões/articulações com as demais esferas políticas de ação.

 

Os movimentos pré-vestibulares comunitários e o movimento negro na implementação da política de reserva de vagas nas universidades públicas brasileiras

As políticas públicas para educação superior no Brasil estão entremeadas às políticas no âmbito privado, tornando ainda mais complexo o entendimento das experiências de ações afirmativas no País. De acordo com Dias Sobrinho (2011):

Estes fatores que fazem parte das transformações e das novas problemáticas educacionais, num quadro de crescente complexidade da sociedade, indicam que as categorias tradicionais e opostas do público e do privado já não servem muito bem para explicar o sistema de educação superior. Entre público e privado não há mais fronteiras bem definidas e incomunicáveis. (...) o poder público impulsiona programas que ampliam o acesso às instituições privadas e públicas. Surgem os programas de subsídios diretos e indiretos, por via de renúncia fiscal, ações afirmativas consignadas em cotas ou bônus (p.140).

Como exemplo desse embate, pode-se citar o programa implementado em 1994, em função da parceria entre cursos pré-vestibulares comunitários e a PUC-Rio, denominado Programa Bolsa de Ação Social da PUC-Rio.

São muitas as questões decorrentes dessa experiência. Será dado privilégio, aqui, às tensões entre as ideologias que sustentam os movimentos pré-vestibulares comunitários- sem perder de vista a heterogeneidade desses movimentos, haja vista as diferenças nas propostas e nos aspectos ideológicos a eles inerentes - e um processo de democratização/expansão que concilia instituições tanto de âmbito público quanto privado, como é o caso brasileiro. Desse modo, como referência no âmbito privado, serão analisados alguns desafios e questões elucidadas pelo caso do Programa Bolsa de Ação Social da PUC-Rio2.

Esse Programa enfrentou inúmeras barreiras para a inserção de jovens de esferas sociais menos privilegiadas numa universidade privada voltada para o público majoritariamente das classes média e alta. O processo seletivo do vestibular era o mesmo dos demais alunos, mas a manutenção desses estudantes dependia tanto da bolsa integral da mensalidade - concedida mediante a vinculação a algum curso pré-vestibular comunitário previamente cadastrado pela instituição - quanto do Fundo Emergencial de Solidariedade(FESP)3 - criado pela Pastoral da PUC-Rio, valendo-se doações para auxiliar os estudantes nos custos indiretos da formação acadêmica, como transporte, alimentação e material didático.

O crescimento do projeto trouxe também o aumento dos problemas a serem enfrentados. Uma proposta-piloto, contando com um Fundo de Emergência de cunho caritativo (em lugar de uma Política de Permanência), não supria as necessidades dos estudantes com problemas dessa ordem. Os atores institucionais, idealizadores do projeto, se deram conta desse fato à medida que essa experiência foi se concretizando. O que surpreendeu foram as controvérsias geradas em razão da incompatibilidade entre as filosofias dos cursos pré-vestibulares comunitários-enquanto movimentos sociais com ideologias e posições políticas que iam muito além do objetivo de ingresso de estudantes de camadas populares na universidade - e as medidas internas institucionais de enfrentamento dessas problemáticas, próprias de uma instituição privada com as características da PUC-Rio e de uma instituição católica e filantrópica, cujo público-alvo concentra grande contingente de alunos de classe social economicamente mais favorecida da população.

Com o crescimento do projeto e da possibilidade de obtenção do auxílio junto ao Fundo Emergencial de Solidariedade (FESP), constata-se que a escolha da PUC-Rio, pelos alunos dos pré-vestibulares comunitários, passa a ser uma opção em detrimento das demais universidades, especialmente as públicas, tão almejadas por muitos até então.

Nesse contexto, surge um dilema; ou seja, os idealizadores do Programa de Ação Social da PUC-Rio se deparam com a impossibilidade de absorver a demanda crescente por vagas, bolsas e auxílios. Os posicionamentos dos jovens quanto à proposta de auxílio variavam, oscilando em torno do seguinte dilema: FESP: sinônimo de beneficio ou FESP: sinônimo de direito?4

Esse dilema se configurava de forma objetiva na postura de alunos que compartilhavam da crença na ideologia de transformação social e política, pela democratização do ensino superior, de maneira que as vagas das universidades públicas deveriam ser para todos; ou melhor, deveriam garantir o acesso democrático de estudantes oriundos das classes sociais menos privilegiadas. Isto é, para os alunos oriundos dos cursos pré-vestibulares comunitários, aqueles com perspectivas de ocupar espaços nas universidades públicas, com vistas a garantias de direitos de grupos excluídos e de transformação social e política, o ingresso na PUC-Rio (instituição privada e católica) traz tensões e conflitos nas relações com a instância que gerencia o fundo (a pastoral da universidade), a qual, em razão das fontes de onde vinham os recursos do FESP (doações) e do caráter filantrópico da instituição, entendia o FESP como benefício, e não como direito.

Dauster (2004), em pesquisa sobre o mesmo tema, destaca a importância desses projetos sociais “no ingresso na universidade e no estabelecimento de uma rede de relações de intercâmbio de trocas imateriais e regras de reciprocidade como base da vida social” (Mauss,1974, p.24, citado por Dauster, 2004). Sobre os estudantes provenientes dos cursos pré-vestibulares comunitários, a autora ressalta que eles tendem a atuar também como mediadores, ora exercendo o papel de estudantes, ora a função solidária de professores de vestibular. Com essa prática, esses estudantes revelam alto grau de coesão interna, ancorados em uma visão política do seu significado social enquanto universitários (Dauster, 2004).

O curso pré-vestibular comunitário foi, sem sombra de dúvidas, peça fundamental tanto no processo antecedente ao ingresso no espaço acadêmico como durante o processo de formação dos jovens no curso superior. Ficou bastante nítido o quanto esses movimentos sociais - alguns deles -, além de se preocuparem com a aprovação de estudantes de baixa renda nos vestibulares, possuem convicções políticas que superam esse primeiro objetivo.

Vale salientar que os cursos pré-vestibulares comunitários, conforme Mariz, Fernandez e Batista (2003), tiveram seu início na Bahia sob o viés político do movimento negro. Esses autores afirmam que o pré-vestibular foi proposto como instrumento de conscientização, articulação e apoio à juventude negra da periferia de Salvador. No caso específico do Rio de Janeiro, a primeira experiência ocorreu em São João de Meriti, na Baixada Fluminense, em 1992/1993, tendo como principal articulador o Frei Davi R.Santos,a partir de reflexões de grupos envolvidos com as questões de espaços populares e eclesiais, em especial tendo por base a Pastoral do Negro, sendo a proposta disseminada posteriormente para várias localidades do estado do Rio de Janeiro.

De forma a atrelar progresso individual a uma luta social, esses movimentos sociais pretendiam inserir os estudantes nas universidades de forma a construir uma consciência negra e de classe. Nesse sentido, “os que fazem esses cursinhos de pré-vestibular sabem também dos limites de sua ascensão econômica ao ingressar na universidade” (Mariz et al., 2003).

É nessa perspectiva que importa analisar a articulação entre movimentos pré-vestibulares comunitários e movimento negro brasileiro. É notório o número de ações e propostas envolvendo temáticas raciais na área da educação na cena contemporânea. A Conferência de Durban, realizada em setembro de 2001, um dos marcos indiscutíveis na luta do movimento negro em escala mundial e com importantes efeitos para o Brasil, previu, conforme Souza (2004), a implementação de políticas públicas para eliminação das desigualdades raciais e sociais mediante a construção de programas com recursos adicionais para educação e saúde destinados aos afrodescendentes. Esse autor enfatiza, sobretudo, a desigualdade no campo educacional e argumenta:

A discriminação racial praticada em nossa sociedade viola o direito à igualdade e, consequentemente, à cidadania. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) nos mostram que a educação tem sido responsável pela exclusão de grande parcela da população negra que não se percebe cidadã, já que a política pedagógica não favorece a diversidade pluriétnica nas escolas públicas e os livros didáticos não são adequados à pluralidade racial, perpetuando o preconceito por meio de seus conteúdos (Souza, 2004, p.42).

Longe de pretender abordar, do ponto de vista histórico-político, o percurso do movimento negro no Brasil, dada a complexidade e as diferenças existentes nos posicionamentos e ações, trata-se, sobretudo, de mostrar a participação crucial desse movimento tanto na implementação de políticas públicas na área da educação voltadas para esse público quanto na mobilização de ações sociais e de transformações nos campos cultural, social e ideológico.

É ainda Souza (2004) quem denuncia as condições de trabalho dos profissionais da educação como precarizadas e insuficientes, além das falhas na própria organização do sistema de ensino, de modo a inviabilizar a consolidação de um trabalho de qualidade. Acredita, contudo, que mudanças nessas estruturas e a conscientização política da função social da escola são saídas possíveis para garantir uma democracia tanto econômica quanto política, social e racial.

No percurso histórico do movimento no Brasil, verifica-se que o campo de ação do movimento negro foi se amplificando e diversificando, intervindo tanto nas políticas governamentais quanto por intermédio dos movimentos sociais organizados (Gonçalves & Gonçalves e Silva, 2006). A necessidade de propostas de ação nas várias esferas políticas ressoa nas afirmações de Souza (2004) quando atribui a origem das desigualdades raciais às duas instâncias: governo e sociedade civil, alegando que: “(...)quem cria as desigualdades raciais são, de um lado: a passividade, a permissividade e o naturalismo na esfera da sociedade, e de outro lado: a demagogia, a burocracia e o racismo na esfera de governos” (p.44).

A aproximação do movimento negro a perspectivas multiculturais no Brasil, como explicam Gonçalves e Gonçalves e Silva (2006), ocorreu numa época em que o paraíso racial sequer pensava em ser questionado no País. Na cena contemporânea, década de 1990 mais especificamente, ganha visibilidade um conjunto de ações propositivas impulsionado pela luta do movimento negro brasileiro. Pautas reivindicatórias obtêm espaço na agenda política governamental, aliadas às ações de movimentos sociais. Nesse contexto, Paiva (2010) elenca três aspectos centrais que impulsionam as políticas públicas vigentes, são eles: o reconhecimento, por parte do Estado de que havia racismo no Brasil; as ações dos movimentos sociais, com destaque para os movimentos pré-vestibulares comunitários e o próprio movimento negro e, por fim, a Conferência realizada em Durban, em 2001 e suas ações e proposições. Dentre os aspectos destacados, será dado enfoque, neste artigo, à atuação dos movimentos sociais. De acordo com os autores citados anteriormente, na década de 80, uma primeira ação política ganha relevo: as estratégias usadas pelo movimento negro unificado em função, principalmente de reivindicar o acesso à educação e denunciar o racismo5.

A despeito das diferenças existentes entre os grupos, destacam-se, de acordo com Paiva (2010), duas temáticas: a) a denúncia de racismo que permeou as relações na sociedade brasileira e contribuiu para resultados assimétricos de status social; e b) a recusa em se submeter a esses padrões assimétricos e aos lugares tradicionalmente designados a eles. É em razão desses dois aspectos que a educação entra em cena:

A educação foi compreendida como o grande direito a ser conquistado para que esses padrões começassem a ser modificados: se hoje há políticas de ação afirmativa para os 'negros' ou 'afrodescendentes', traduzindo a constituição de uma identidade negra difícil de ser conquistada em um país onde se reforça a ideia de mestiçagem nas relações sociais, elas traduzem reivindicações baseadas nesse processo de afirmação de nova identidade (Paiva, 2010, p.15).

A política de reserva de vagas, com maior visibilidade a partir da instituição do recorte racial como critério, tornou-se viável, sobretudo, por mudanças nas posições do Estado no que tange ao tema do racismo no Brasil. Maio e Santos (2005) trazem uma sequência de acontecimentos representativos do percurso de Estado, antes indiferente ao tema e posteriormente assumindo para si propostas de enfrentamento da discriminação e das desigualdades raciais no País. Os autores afirmam que, “de um estado 'neutro' em matéria racial até meados dos anos 1990, observa-se a formulação de propostas de políticas públicas racializadas” (Maio& Santos, 2005).

Dentre as maiores controvérsias geradas nesse processo, desde 1970, a maior parte delas situava-se em torno do debate sobre “o mito da democracia racial e o racismo à brasileira” (Brandão, 2005, p.185). Essas discussões ganham repercussão nos textos acadêmicos, na área de ciências sociais, em que novas interpretações sobre as relações raciais no Brasil ficam cada vez mais evidentes.

Entremeado de controvérsias e debates, o tema ocupa espaço na pauta do governo. Logo após a Conferência de Durban, o governo brasileiro definiu um programa de política de cotas no âmbito de alguns ministérios. Nos planos estadual e municipal, diversas iniciativas foram realizadas para a implementação do sistema de cotas. Aquela que obteve maior destaque no final do ano de 2001 foi a da Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, que estabeleceu uma porcentagem das vagas nas Universidades Estaduais para pretos e pardos. A partir de 2002, o debate e a implementação de políticas de ação afirmativa com viés racial, com foco no sistema de cotas, estenderam-se por diversas universidades públicas e privadas tanto Estaduais como Federais (Brandão, 2005, p.189).Serão apresentados a seguir as polêmicas em torno dos critérios de definição racial e os desdobramentos no âmbito da implementação das políticas nas instituições pioneiras - UERJ, UnB e UNEB.

 

As experiências pioneiras da política de reserva de vagas em universidades públicas e seus desdobramentos

Uma das ações de maior repercussão na sociedade brasileira foi a aprovação da política de reserva de vagas para alunos negros em universidades estaduais, em 2002, tendo como pioneiras a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF), acompanhadas por outras universidades em períodos posteriores. Destaca-se, ainda, o caso da Universidade de Brasília (UnB) como a primeira Universidade Federal do País a adotar a política. A Universidade Estadual da Bahia (UNEB), por intermédio do seu Conselho Universitário e mediante a Resolução n°196/2002, aprovou um plano de ações afirmativas para afrodescendentes advindos de escolas públicas, além de outras muitas instituições que passaram a adotar políticas de ações afirmativas de modos variados, cada qual com suas particularidades. As experiências em cada instituição apresentam aproximações e distanciamentos. Suas análises devem considerar os dois aspectos entrecruzados: o que há de comum e as particularidades. Não há como tomar cada uma dessas instituições isoladamente, visto que as temáticas e repercussões deflagradas dialogam e se misturam. As distinções entre elas decorrem, dentre outras razões, das características de cada região onde se localiza a instituição, das posições e da lógica sociopolítica interna a cada uma delas e das vivências no cotidiano acadêmico.

Várias experiências se iniciaram de modos plurais, sendo, entretanto, efetivamente construídas no cotidiano das universidades. Uma vez implementadas, impasses e demandas surgem a todo momento, mobilizando cada instituição de ensino a debater e tentar sanar as lacunas. Tendo seu início no processo seletivo do vestibular de 2003, a experiência da Universidade Estadual da Bahia (UNEB) teve um percurso distinto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), j á que, conforme analisa César (2004), a implementação da proposta na primeira não desencadeou maiores contrariedades e tensões do ponto de vista jurídico, diferentemente do caso da UERJ.

Dentre as razões, César (2004) menciona a Lei n° 9.394/96, cuja interpretação “atribui às universidades um âmbito deliberativo sobre seus critérios de seleção para o vestibular”, além do fato da participação da própria comunidade acadêmica no projeto, o que significou a realização de medidas e de uma política educacional eficaz com positivas repercussões dentro e fora do contexto universitário.

Mattos (2004) salienta o caráter pioneiro da UNEB e as peculiaridades da experiência nessa instituição, comparativamente às demais universidades estaduais, quando afirma:

Na UNEB, o sistema de cotas, embora tenha sido provocado por uma iniciativa externa, organizou-se como uma proposição da própria comunidade acadêmica que, através da Reitoria, da Comissão referida e do órgão deliberativo máximo da instituição, valeu-se do princípio da autonomia universitária e independência dos seus fóruns decisórios internos para deliberar sobre a matéria (p. 201).

Outro dado que justifica o fato de a experiência na UNEB ter ocorrido de modo menos penoso do que no caso da UERJ é a própria “conjuntura social, política e institucional local”.As características socioeconômicas e culturais da população baiana, composta em termos majoritários por afrodescendentes, muito contribuíram para garantir a legitimidade da Resolução n°196/2002 na Universidade e perante a sociedade mais ampla.

O caso da Universidade de Brasília (UnB), por sua vez, traz algumas peculiaridades em relação às demais instituições (UERJ e UNEB). Além de ser a primeira experiência de reserva de vagas em instituições federais do País, conforme César (2004), o caso da UnBapresenta, de imediato, a proposta de uma política de permanência,que a complementa,incluindo, dentre as diretrizes: a) programa de estímulo aos alunos negros do segundo grau de educação pública com o objetivo de melhorar a qualificação dos alunos nesse nível de ensino; b) suporte financeiro para os alunos por meio de bolsas de manutenção para os estudantes que necessitarem; e c) apoio acadêmico pedagógico para os que dele necessitarem, entre outras medidas.

Além disso, diferentemente dos casos da UERJ e UNEB, que optaram pelo critério de autodeclaração para identificação racial, a UnB exige, ainda, uma comprovação externa e mais objetiva da percepção da cor do candidato mediante a apresentação de fotografia e avaliação de um comitê como forma de evitar possíveis fraudes. Nesse sentido, outras discussões e polêmicas surgem por conta dessas medidas, uma vez que se adota a aparência dos candidatos como forma de seleção, dividindo opiniões e aumentando as tensões do debate sobre o tema.Uma delas é descrita no trecho a seguir:

Os responsáveis pelo vestibular da UnB por diversas ocasiões reiteraram que a meta da comissão era a de analisar as características físicas, visando identificar traços da raça negra. Esse objetivo gerou constrangimentos diversos e dilemas identitários de não pouca monta entre os candidatos ao vestibular devido às dúvidas se os critérios seriam mesmo o de aparência física (negra) ou de (afro)descendência. A candidata A. P. L. P., a princípio na dúvida sobre se se declararia 'negra', foi convencida pelo argumento da mãe, que lhe disse que sua 'tataravó era escrava'. Contudo, ainda assim, A. P. estava preocupada, pois, segundo ela, 'pela fotografia não dá para analisar a descendência'. (...)R. Z., um candidato que se declarou negro, ainda que 'com a pele clara, cabelo liso e castanho (...)nem de longe lembra[ndo] um negro', e cuja classificação não foi aceita pela Comissão, afirmou: 'Vou levar a certidão de nascimento de meu avô e mostrar a eles (...) se meu avô e minha bisavó eram negros, eu sou fruto de miscigenação e tenho direito' (Paraguassú, 2004, citado por Maio& Santos, 2005, p.193).

Vários foram os impasses enfrentados no momento em que eram estabelecidos os critérios por meio dos quais seriam selecionados os estudantes que poderiam concorrer às vagas reservadas no processo seletivo do vestibular. As maiores tensões eclodiram, em superioridade, nas universidades que adotaram o recorte racial como critério, o que explica, em parte, a grande repercussão envolvendo a política de ação afirmativa no País.

Vale salientar que, em princípio, as propostas contaram com critérios de identificação definidos por cada instituição de ensino e pertinentes às discussões e demandas que surgiram na época na implementação e que, possivelmente, a definição desses critérios vem passando por alterações ao longo dos anos.

A UnB estabelece como recurso a fotografia e institui um Comitê Avaliativo, formado por professores, estudantes e coordenação, para decidir se o candidato encontra-se, ou não, dentro dos critérios necessários6.

Significaria, no caso das cotas raciais, que o candidato deveria ser considerado pertencente à raça negra, para, então, ter a possibilidade de concorrer via reserva de vagas por recorte racial. A UERJ, por sua vez, estipulou como critério a autodeclaração. De acordo com Santos (2005), “ambos os procedimentos, quando inaugurados, foram alvos de severas críticas”.O autor comenta ainda que a mídia, à época do vestibular de 2003, lançou críticas ferrenhas, tendo como principal mote propagandista as supostas ocorrências de fraudes: “candidatos socialmente

reconhecidos como brancos dentro do padrão de relações raciais brasileiro se declarando pardos ou pretos para disputar as vagas reservadas aos negros” (Santos, 2005, p.14-15). O uso de fotografias, também na UnB, foi criticado, especialmente na eminência de situações paradoxais como a que envolveu irmãos consanguíneos enquadrados em raças distintas em função da variação da cor da pele.

Batista (2007), fazendo uma retrospectiva histórica do conceito de raça, nas acepções conferidas pelos discursos científicos e na apropriação do termo em dadas sociedades, explica que, em princípio, privilegiou-se uma perspectiva biológica para estabelecer os parâmetros que o definiriam. Partindo desse pressuposto, teorias racistas defendiam a manutenção da pureza das raças, a perpetuação de umas e a extinção de outras. Foi, também, o critério racial, numaorientação biologicista, que respaldou o estabelecimento de classificação das raças segundo julgamento e valores de inferioridade ou de superioridade.

No caso brasileiro, a apropriação deste termo -raça- assume novos formatos, dificultando ainda mais a luta antirracista. A perspectiva biológica carrega uma dimensão simbólica, que assume significados rígidos e discriminatórios no plano social, como explicado no trecho a seguir:

A existência da noção de raça biológica e a evidência da raça simbólica, ou seja,da raça socialmente percebida e interpretada. Quaisquer que sejam as variações de sentido do termo raça, a desconstrução científica da raça biológica não fez desaparecerem as percepções comuns fundadas na aparência física, e em primeiro lugar na cor da pele. Culturalmente codificadas, essas percepções conduzem o homem comum a classificar os indivíduos que encontra segundo suas características visíveis, e não de acordo com o conhecimento genético. Esse hiato entre raça biológica e a caracterização social fundada na aparência físicaconstitui um problema e um desafio para o antirracismo (D'Adesky, 2001, p.1, citado por Batista, 2007, p.18).

O sentido empreendido pelo movimento negro brasileiro a respeito do conceito de raça é apresentado por Gomes (2004) da seguinte forma: quando o movimento negro e pesquisadores das relações raciais trabalham como conceito de raça, eles o fazem a partir da ressignificação desse conceito.Trabalha-se com raça como uma construção social histórica e política. Nos contextos da cultura e da política e nas relações sociais, o fator raça, nas suas diferenças, não pode ser desconsiderado, na medida em que esse fator tem sua operacionalidade na cultura, funcionando como fator gerador de desigualdades sociais (p.54).

Há quem discorde da prerrogativa de Gomes (2004). São as mesmas opiniões que acreditam no paraíso racial. É preciso analisar as divergências geradas pelo tema, não tomando por base,exclusivamente, essas posições, mas também as dificuldades enfrentadas no estabelecimento dos critérios de definição de raça se considerada a miscigenação do País.

O argumento da miscigenação, utilizado por muitos, embasa as críticas à política de cotas raciais quando responsabiliza essas ações pelo acirramento do racismo e pela divisão da sociedade brasileira em raças. Ali Kamel, jornalista da Rede Globo de Televisão, é um dos que o utilizam.Grande crítico da implementação do sistema no País, Kamel(2006), no livro “Não Somos Racistas: Uma Reação Aos Que Querem Nos Transformar Numa Nação Bicolor”, mostra-se surpreso com a afirmação de que o Brasil seria, de fato, um país racista.

As considerações de Batista (2007) caminham na direção oposta às palavras do jornalista. Batista (2007) acredita que, ainda hoje, prevalece uma “dimensão especificamente racial na desigualdade social brasileira”, mantendo essa ideologia viva tanto quanto “seu poder de sedução” (p.21).

Gonçalves e Gonçalves e Silva (2006) entendem o tema do racismo no Brasil como um grande paradoxo, uma vez que institui relação assimétrica entre diferentes no mesmo momento em que a própria diferença é motivo de exaltação. Essa contradição faz do Brasil um país miscigenado, plural, ao mesmo tempo que desigual nas condições e relações entre os sujeitos.

Com a composição de uma comissão responsável por determinar os que estarão, ou não, aptos a concorrerem via cotas raciais na UnB, sendo parte constitutiva desse Comitê Avaliativo os cientistas sociais - antropólogos mais especificamente -, o debate convoca seus interlocutores a refletir epistemológica e eticamente sobre o tema. As divergências e os conflitos ficam latentes e se refletem nos artigos e textos publicados na área. É, pois, partindo das dissonâncias - e não das convergências - que se configuram terrenos férteis para transformações e avanços a caminho da almejada justiça social.

Os debates acalorados incluíram variadas instâncias da sociedade, mas contaram, sobretudo, com embates entre os discursos científicos. Verifica-se, ao longo do trajeto, posicionamentos por parte de pesquisadores de variadas áreas do conhecimento, a exemplo da educação, do direito e da biologia. Nesse aspecto, serão apresentadas algumas contribuições a respeito das implicações da psicologia social, sob a perspectiva da psicologia sócio-histórico-cultural, com o tema.

 

A Polifonia do Discurso Científico do Cenário das Políticas de Reserva de Vagas de Recorte Racial: Contribuições da Psicologia Sócio-histórico-cultural para o Debate

Sant'Anna (2004) põe em pauta a discussão sobre direitos humanos, especialmente nas últimas décadas, sintetizando-a na assertiva: “Todo ser humano é diferente” (p.173). Segundo o autor:

Se a aparência física é o que, num primeiro momento, nos distingue como indivíduos, a nossa singularidade como ser humano aporta uma rede complexa de relações sociais que faz com que sejamos não apenas distintos dos outros, mas, especialmente, diferentes em nosso comportamento, personalidade, sensibilidade, sexualidade, talentos, gênero, raça, etnia e nacionalidade. Assim, apesar de sermos todos membros do que chamamos de humanidade, a luta pela universalidade dos direitos humanos hoje, mais do que nunca, organiza-se, fundamentalmente, como a luta pelo direito à produção de novas singularidades, no sentido de reconhecimento da igualdade na diferença (p.173).

Afonso e Rodrigues (2003) analisam as políticas de reconhecimento na interface com as políticas de redistribuição no cerne das ações afirmativas para o ensino superior no Brasil. Referente às primeiras, os autores ressaltam a importância dessas ações como forma de promoção da igualdade social.

Alegando que, do ponto de vista político, contudo, há a prevalência de condições de exclusão social dos negros, das mulheres e dos homossexuais em decorrência de um “ideal de igualdade a serviço da manutenção do status quo”, Afonso e Rodrigues (2003) destacam a seguintes palavras de Santos (1997):

Das diferentes versões de uma dada cultura, deve ser escolhida aquela que representa o círculo mais amplo de reciprocidade dentro dessa cultura, a versão que vai mais longe no reconhecimento do outro (...) As pessoas e os grupos sociais têm o direito a ser iguais quando a diferença os inferioriza, e o direito a ser diferentes quando a igualdade os descaracteriza (Santos, 1997, p. 29, citado por Afonso& Rodrigues, 2003, p.275).

A polêmica gerada em torno do recorte racial e dos critérios usados como forma de identificação - autodeclaração, no caso da UERJ - traz para o debate disciplinas que se propõem a analisar, a partir do discurso científico, conceitos como identidade, raça e etnia dentre outros. É dessa forma que a antropologia, a sociologia e disciplinas afins entram no debate na tentativa de fornecer subsídios teóricos para uma determinação objetiva sobre a legitimidade da política e suas estratégias de efetivação. A noção de identidade abre brecha para diversas análises e concepções, sobretudo, no campo da ciência psicológica.

Os paradigmas que embasam o conceito de identidade, na interface com um modo de pensar/fazer psicologia que entende o sujeito em uma relação dialética com a sociedade, priorizam, antes, a formação dessa identidade e as relações que se estabelecem no contexto sócio-histórico em que o sujeito - que se constitui da e na experiência - se insere.

Vale distinguir e clarificar os conceitos de identidade, individualidade e subjetividade, que, em alguns momentos, confundem-se quanto às suas significações. Miranda (2005), pautada em Guattari, explica:

A subjetividade de um indivíduo diz respeito menos à identidade e mais à singularidade, isto é, à possibilidade de viver a existência de uma forma única, no entrecruzamento de diversos vetores de subjetivação. Por outro lado, a singularidade não está circunscrita somente ao indivíduo, mas há singularizações presentes nos grupos ou em instituições. Portanto, a subjetividade de um indivíduo é marcada menos por uma etiqueta identificatória do que pela diversidade, pela heterogeneidade dos modos que ela pode assumir (p.37-38).

Quando o critério de autodeclaração prevê que o sujeito se autoidentifique, parte-se do princípio, justamente, que essa demarcação identitária depende menos de um conjunto de critérios universais e mais de um modo de percepção e de identificação que depende de uma construção subjetiva, ligada aos afetos e ao reconhecimento de si perante o outro.

Afonso e Rodrigues (2003) apresentam duas definições sobre ser negro. A primeira poderia ser explicada da seguinte forma:

(...) todo indivíduo de origem ou ascendência africana suscetível de ser discriminado por não corresponder, total ou parcialmente, aos cânones estéticos ocidentais, e cuja projeção de uma imagem inferior ou depreciada representa uma negação de reconhecimento igualitário, bem como a denegação de valor de uma identidade de grupo e de herança cultural e uma herança histórica que geram a exclusão e a opressão (D'Adesky, 2001, p. 34, citado por Afonso& Rodrigues, 2003, p. 283).

A outra conceituação justificaria justamente o critério autodeclaração usado para inclusão dos estudantes no sistema de reserva de vagas em função de essa autoafirmação perpassar, sobretudo, uma “posição política que o indivíduo adota diante da coletividade” (Afonso&Rodrigues, 2003). E como explicam os autores:

Ao dizer-se negro, mais que compartilhar traços fenotípicos como cor de pele, formato de nariz ou tipo de cabelo, o sujeito estaria assumindo a postura política de se ligar a um grupo historicamente discriminado negativamente, sofrendo de uma exclusão social e cujas origens históricas são depreciadas pelo grupo hegemônico. Esse posicionamento político traria a este sujeito a percepção de ser membro de uma coletividade que lhe assegura determinados direitos, mas também encerram inúmeros ônus sociais, com os quais deveria arcar conscientemente (Afonso & Rodrigues, 2003, p.283).

Castro (2001) analisa especificamente o modo como jovens percebem a convivência na cidade contemporânea, fazendo referência às noções de identidade e de pertencimento como necessárias à condição de constituição da cidadania. Em se tratando do que constitui a identidade brasileira, a autora discute a dificuldade de jovens e crianças identificarem-se uns com outros de modo a sentirem-se parte de uma mesma nação, uma vez que apresentam mais diferenças que aproximações, sobretudo quando situados em posições socioeconômicas bastante distintas.

As análises de Castro (2001) apontam a cidade contemporânea como sendo o cenário onde se tornam visíveis as desigualdades sociais. Isso aconteceria em razão da exibição permanente de signos visuais, que demarcariam e diferenciariam os indivíduos quanto às suas posições e realidades sociais. A mesma autora faz uma analogia entre a vivência do sujeito-citadino contemporâneo e o Flaneur, descrito por Walter Benjamin, como o grande conhecedor da cidade. Ambos - o homem contemporâneo e o Flaneur, de Benjamin -, consistiriam em fisionomistas da multidão, ou seja, leitores e decodificadores de rostos humanos, nos seus gestos, expressões e sinais, inferindo possíveis características e dados pessoais a partir dessas decifrações.

O reconhecimento e a identificação de 'quem sou eu' e 'quem é o outro' se apoiam nos processos dinâmicos de disponibilizar, ostentar e decodificar as particularidades visíveis que permitem localizar cada sujeito anônimo da grande cidade em termos de suas afiliações sociais, culturais e territoriais (Castro, 2001, p.119).

As considerações precedentes fazem eco com um dos argumentos usados em defesa do critério racial como condição para reserva de vagas quando parte do princípio de que o mesmo critério usado pela sociedade para discriminar de forma negativa os sujeitos - a cor da pele - passa a ser usado com a função de inclusão - a discriminação positiva, uma das premissas das políticas de ação afirmativa.

 

Considerações Finais

A experiência do Programa de Ação Social na PUC-Rio permitiu alcançar as seguintes reflexões:

a) O processo de democratização das instituições de ensino superior, no Brasil, ocorreu num misto entre iniciativas nos âmbitos público e privado. Esse fato gerou polêmicas, as quais têm permeado o campo educacional, como as controvérsias entre educação como um bem público, direito de todos ou como mercadoria, tendo por base a perspectiva da meritocracia. À medida que se fala em prover educação em condições de equidade para todos, fala-se, também, em todas as condições necessárias para a garantia do acesso e a permanência;

b) Os movimentos da sociedade civil organizada impulsionaram políticas públicas de Estado influenciando não somente a legitimação de ações jurídicas - perspectiva macro -, como os modos de posicionarem-se dos sujeitos envolvidos -perspectiva micropolítica -, o que significa dizer que: compreender Políticas de Estado implica entendê-las na interseção/articulação entre as várias forças sociopolíticas envolvidas;

c) As ações dos movimentos sociais no campo educacional, no Brasil, conjugam interesses mais amplos do que propriamente o ingresso de estudantes menos favorecidos economicamente. Os movimentos vinculados aos pré-vestibulares comunitários, por exemplo, estão atrelados diretamente às temáticas de cunho racial e sobre processos identitários. Tais iniciativas fazem parte do rol de ações afirmativas e, por esse motivo, englobam um conjunto de propostas voltadas para grupos desfavorecidos não somente do ponto de vista econômico, mas também social e cultural.

Em se tratando da repercussão social, o debate sobre o racismo no Brasil toma a cena. Nesse sentido, a política de reserva de vagas nas universidades públicas brasileiras, especificamente a que adota o critério racial, traz à tona discussões que ficam escamoteadas e submersas sob a premissa da existência de uma democracia racial brasileira e sob a alegação da suposta impossibilidade de uma identificação racial no País em razão do processo de miscigenação.Há que se ressaltar, no entanto, que essa identificação racial é feita cotidianamente nos trajetos e percursos dos sujeitos pela cidade, produzindo subjetividades marcadas pela exclusão e pela invisibilidade que essas relações na cidade provocam.

É preciso não perder de vista os modos como os sujeitos constituem suas identidades e as maneiras de sentirem-se pertencentes no mundo a partir das relações que estabelecem na cidade cotidianamente. Os processos de aculturação e as relações marcadas pelos valores e estrutura impostos pelo sistema capitalista de produção participam da constituição subjetiva dos sujeitos. Isso deve ser levado em conta frente à afirmação de que identificação racial depende de uma normativa universal, que coloca o outro como o julgador da sua condição de sujeito.

Em outros termos, autodeclarar-se implica dar espaço para que o próprio sujeito possa, ele mesmo, afirmar sua identidade a partir do modo como ele se percebe. E essa autopercepção não está desvinculada da relação com a sociedade em que eles e encontra inserido.

O reduzido número de produções e de pesquisas sobre o tema da ação afirmativa no campo da psicologia e de temas afins sinaliza uma maneira prevalecente de pensar a ciência psicológica como restrita a uma prática clínico-assistencial no campo psicológico e pouco afeta a problemáticas de cunho político-social. Este artigo intenciona, portanto, apresentar outra possibilidade de análise, sob a égide de paradigmas da psicologia sócio-histórico-cultural, de forma a contribuir como suporte para as experiências de estudantes ingressantes pelo sistema de reserva de vagas e demais atores institucionais nas universidades que adotaram a política, tanto quanto para a proposição de políticas públicas na educação com vistas à justiça e garantia de direitos sociais.

 

Notas

1 O Programa Bolsa de Ação Social da PUC-Rio teve início em 1994, mas antes já havia os pré-vestibulares comunitários vinculados ao movimento negro e igreja católica, especialmente no estado da Bahia. As políticas de reservas de vagas nas universidades públicas pioneiras foram implementadas em 2002/2003 (UERJ, UnB e UNEB).

2 Sobre esse tema, ver Barcellos(2007).

3 O Fundo Emergencial de Solidariedade (FESP) foi idealizado a partir das demandas de situações cotidianas envolvendo os primeiros estudantes que ingressaram via Programa de Ação Social. A verba era adquirida por meio de doações com vistas a custear os gastos dos estudantes bolsistas com transporte e alimentação. Na pesquisa, relatos apontam grande evasão desses alunos e situações-limite por falta de recursos básicos.

4 Esse embate foi constatado tendo por base entrevistas realizadas com atores institucionais idealizadores do projeto, dentre eles professores, administradores e funcionários, além de alunos de diferentes cursos. Detalhes sobre esta pesquisa de campo, podem ser encontrados em Barcellos (2007).

5 Não se pode perder de vista que essa corrente faz parte de um momento em que a sociedade civil organizada, em várias frentes representativas, assume intensa participação na cena política. Paiva (2010) atribui à Carta Magna de 1988 e aponta certa tendência de forte associativismo na década de 1980, englobando desde associações de bairros até movimento sociais propriamente ditos, intervindo na reivindicação de “antigas e novas demandas” com características de “um protagonismo da sociedade civil” (p.12) até então inovador na política pública do País.

6 Na UERJ, a autodeclaração; na UNEB e na UnB, fotografia e comitê de avaliação.

 

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Enviado em: 13/02/19
Aceito em: 06/03/20

 

 

Luciana Ferreira Barcellos é Pós-Doutoranda em educação (PNPD/CAPES) e professora-colaboradora do Programa de Pós-Graduação em Educação - PPEDU, da Universidade Federal de São João Del Rei -MG.
E-mail: lucianafbarcellos@gmail.com
ORCID: orcid.org/0000-0002-1512-9566
Solange Jobim e Souza é professora adjunta aposentada da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e professora associada da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
E-mail: soljobim@uol.com.br
ORCID: orcid.org/0000-0003-0182-9024

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