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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.10 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.104026 

ARTIGOS

 

A Noção de Experiência na GAM Brasileira: Relações Raciais e Subalternidades

 

The Notion of Experience in GAM: Racial Relations and Subalternities

 

La Noción de Experiencia en la GAM: Relaciones Raciales y Subalternidades

 

 

Livia Zanchet; Analice de Lima Palombini

Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo decorre de uma pesquisa de doutorado que investigou a noção de experiência nos artigos sobre a Gestão Autônoma da Medicação no Brasil publicados entre 2011 e 2018. Nele, aborda-se um dos aspectos evidenciados pela pesquisa: a discussão da noção de experiência a partir da perspectiva decolonial, na companhia de autores como Achille Mbembe, Gayatri Spivak e Conceição Evaristo, com o objetivo de aproximar tal discussão das particularidades que dizem respeito à população brasileira quanto ao tema das subalternidades e das relações raciais. Os resultados apontam para a invisibilidade e o silenciamento a respeito de tais questões na produção referente à estratégia GAM durante o período mencionado. Ao mesmo tempo, são localizadas passagens onde os usuários fazem resistência e apresentam saídas para enfrentar a opressão. Assim, reconhece-se na GAM um potencial antirracista que pode vir a se fortalecer.

Palavras-chave: Experiência; Gestão Autônoma da Medicação; Pensamento Decolonial; Relações Raciais.


ABSTRACT

This article stems from a doctoral research that investigated the notion of experience in the articles on Autonomous Medication Management in Brazil published between 2011 and 2018. In it, one of the aspects highlighted by the research is discussed: the discussion of the notion of experience from the decolonial perspective, in the company of authors such as Achille Mbembe, Gayatri Spivak and Conceição Evaristo, with the aim of bringing this discussion closer to the particularities that concern the Brazilian population on the subject of subalternities and race relations. The results point to invisibility and silencing about such issues in the GAM strategy during the period mentioned. At the same time, passages are located where users resist and present exits to face oppression. Thus, we recognize in GAM an anti-racist potential that can be strengthened.

Keywords: Experience; Autonomous Medication Management; Decolonial Thinking; Race Relations.


RESUMEN

Este artículo se deriva de una investigación doctoral sobre la noción de experiencia en los artículos de la Gestión Autónoma de la Medicación en Brasil publicados entre 2011 y 2018. En él, se discute uno de los aspectos destacados por la investigación: la discusión de la noción de experiencia desde la perspectiva descolonial, en compañía de autores como Achille Mbembe, Gayatri Spivak y Conceição Evaristo con el objetivo de acercar esta discusión a las particularidades que preocupan a la población brasileña en materia de subalternidades y relaciones raciales. Los resultados apuntan a la invisibilidad y al silencio sobre tales problemas en la estrategia GAM durante el período mencionado. Al mismo tiempo, los pasajes se ubican donde los usuarios resisten y presentan salidas para enfrentar la opresión. Por lo tanto, reconocemos en la GAM potencial antirracista que se puede fortalecer.

Palabras-clave: Experiencia; Gestión Autónoma de la Medicación; Pensamiento Descolonial; Relaciones Raciales.


 

 

Introdução

Este artigo decorre de uma pesquisa de doutorado que investigou a noção de experiência presente nos artigos publicados sobre a Gestão Autônoma da Medicação (GAM) no Brasil entre os anos de 2011 e 2018 (Zanchet, 2019), tendo sua autora participado do projeto multicêntrico que implementou a estratégia GAM no país. A tese resultante dessa pesquisa apresenta e discute os diferentes empregos da palavra experiência, bem como as formas como a estratégia GAM foi permitindo o acesso à experiência dos diferentes sujeitos que com ela se encontraram, sejam eles usuários, familiares, trabalhadores ou pesquisadores do campo da saúde mental. A escolha por abordar a noção de experiência aconteceu após uma primeira leitura deste material, quando constatamos o frequente uso do termo nestas publicações e, portanto, a relevância de tomá-lo como noção articuladora da pesquisa.

Na pesquisa de doutorado analisamos produções acadêmicas em torno a GAM que tiveram, como campo de intervenção, os serviços públicos de saúde no Brasil, país onde mais de 54% da população é negrae onde é esta maioria que compõe o público que mais acessa tais serviços. Os dados mais recentes (SEPPIR, 2011) mostram que em torno de 70% da população que utiliza o Sistema Único de Saúde (SUS) se auto-declara de cor preta ou parda, classificando-se, portanto, como população negra segundo o IBGE. Constatamos, no entanto, que a experiência, na perspectiva da racialização das relações, não havia ganhado menção explícita nas publicações em questão, indicando um ponto de investigação em cuja invisibilidade muito se teria a ver. Como consequência, a pesquisa se estendeu, para além dos artigos, incorporando em sua análise passagens de teses e dissertações realizadas no período, quando estas traziam referências concernentes à discussão, bem como de falas pronunciadas no I Encontro Internacional da Gestão Autônoma da Medicação (2018).

Mesmo que insuficientes, são vários os avanços alcançados a este respeito no campo da Política Pública de Saúde, em especial na construção de legislação e de materiais escritos, tais como a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra - PNSIPN (Brasil, 2013). Os estudos e o trabalho clínico têm mostrado que as marcas do racismo, ainda que silenciosas, silenciadas e por vezes dissimuladas, estão presentes e são significativas na maneira como brasileiras e brasileiros se relacionam entre si (Carone & Bento, 2014, Kon, Silva & Abud, 2017).

Neste artigo, portanto, abordaremos um dos aspectos evidenciados pela pesquisa: a discussão da noção de experiência a partir da perspectiva decolonial, na companhia de autores como Achille Mbembe, GayatriSpivak e Conceição Evaristo, com o objetivo de aproximar tal discussão das particularidades que dizem respeito à população brasileira quanto ao tema das subalternidades e das relações raciais. Desta forma, buscamos colocar tais questões em evidência e dar sequência a um debate atual e necessário.

 

O que (não) se viu na GAM brasileira - sobre relações raciais e subalternidade

A racialidade se fez presente na GAM de forma interseccional à loucura, sem que, no entanto, pudéssemos atentar, naqueles anos, para a importância de tematizá-la: uma grande maioria dos usuários participantes na primeira etapa da pesquisa (2009-2010) era negra, enquanto os acadêmicos eram quase todos brancos. A participação de estudantes negros entre graduandos, mestrandos e doutorandos participantes do projeto, embora minoritária, prenunciava a transformação em curso no ensino superior público no Brasil, com a adoção da política de cotas raciais e sociais. Em 2012, a Lei Federal 12.711 passou a garantir 50% do acesso ao Ensino Superior para estudantes oriundos de escolas públicas e acesso de negros e indígenas, equivalente à sua densidade populacional (Brasil, 2012). Como consequência, de alguns anos pra cá, o cenário nas universidades brasileiras se transformou. Jovens provenientes de classes sociais menos abastadas, negros e indígenas adentraram as portas das instituições de ensino superior e, decorrentes de sua presença, outros tensionamentos vêm se fazendo visíveis, assim como novas ideias e problematizações. Nesta direção, modificações apareceram na literatura científica a ser consultada e começa a ganhar espaço o pensamento decolonial, o qual tem por objetivo problematizar a manutenção das condições colonizadas da epistemologia, privilegiando elementos epistêmicos locais e contribuindo, assim, para a desconstrução das condições de opressão e dominação (Reis & Andrade, 2018).

Nos artigos produzidos até 2018 pela GAM brasileira não há menção direta à discussão decolonial ou a seus autores e autoras. Não são abordadas diretamente as relações raciais e seus efeitos na experiência dos sujeitos no campo da saúde mental. No entanto, podemos encontrar nuanças deste tema no debate sobre as adaptações necessárias do material canadense para sua transformação no Guia GAM brasileiro.

A GAM chegou ao Brasil pelas regiões Sudeste e Sul. A começar pela composição da população, considerando o indicador raça/cor, o percentual de brancos/as na Região Sul era de 76,8% em 2016, enquanto na região Norte o percentual de negros/as (preto/as e pardos/as) era de 79,3% (IBGE, 2017). Em termos climáticos, temos no Norte e Nordeste muito do famoso "Brasil tropical", com temperaturas mais estáveis, quente e úmido durante todo o ano; já no sul, as variações são maiores, chega-se a falar na "estética do frio"(Ramil, 2004), as formas de vestir ganham outras nuanças. A culinária é muito diferenciada entre as regiões, os ritmos, a poesia, a dança... A multiplicidade é grande no vasto território brasileiro. A GAM estava atenta a isto quando deu início aos trabalhos, deixando evidente que a impossibilidade de incluir as regiões Norte e Nordeste constituía-se como um limitador do estudo (Onocko Campos et al., 2012). Ainda assim, até o momento, não houve quem se dedicasse a aprofundar estas questões.

Alguns artigos publicados vão fazer menção a particularidades do território, da história e da população brasileira e suas diferenças em relação ao Quebec/CA, de onde a GAM é originária. Um deles, que conta o processo de produção do Guia GAM-BR, vai apontar, por exemplo, que a retirada da medicação fazia menos questão aos usuários brasileiros do que o próprio acesso aos medicamentos (Onocko Campos et al., 2013). Portanto, em relação ao que se experienciava no Canadá, as demandas dos usuários e usuárias do Brasil remontavam a algo anterior, a um processo que antecede uma discussão crítica sobre o uso (ou o não-uso) de medicamentos. O acesso a eles - algo da ordem da garantia básica do direito à saúde e à dignidade humana - no Brasil coloca-se como incerto, o que por si só pode funcionar como motor de angústia para pessoas em grave situação de sofrimento psíquico.

Há ainda outras pistas que apontam para a distância abissal existente entre os contextos brasileiro e canadense e a necessidade, portanto, de transformação das ferramentas para o uso da estratégia GAM no Brasil. Uma delas toca na questão do diferente perfil educacional dos dois países, mostrando que, no Brasil, foi necessário simplificar e encurtar frases, para facilitar sua compreensão (Onocko Campos et al., 2013).

São indícios de nossa herança colonial, mostrando a realidade de um país onde grande parte da população carece de educação e cujos usuários e usuárias da saúde mental se encontram em condição de maior precariedade se comparados a nações do hemisfério norte. O reconhecimento por parte dos usuários e usuárias brasileiros de seu lugar de cidadão e sujeito de direitos se mostrou uma questão um tanto mais nevrálgica do que se fazia para os usuários do Quebec. Relações amorosas, vida sexual, trabalho e geração de renda aparecem como temas destacados pelo/a usuário/a brasileiro/a, o que não se evidencia na formulação do Guia quebequense (Onocko Campos et al., 2013).

Outra situação que nos leva a abordar estas marcas da desigualdade experimentadas via GAM está na dificuldade que se encontrou para a publicação de um artigo escrito a vinte e sete mãos, que incluiu usuários/as, acadêmicos/as e trabalhadores/as num processo complexo de autoria e cogestão (Flores et al., 2015, p. 259). Quando nos reportamos à publicação desse artigo, podemos traçar um paralelo com o que fala Conceição Evaristo ao tratar do reconhecimento do lugar de autoria para aqueles que, a priori ou oficialmente, estão destituídos de um lugar de saber.

Em depoimento gravado durante o evento Escritora-Leitora, em São Paulo/SP, Evaristo (Evaristo, 2015) fala sobre o reconhecimento (ou não) dos escritores negros brasileiros, homens e mulheres, lembrando heranças da colonização, onde a colônia precisa da validação estrangeira:

[...] A coisa funciona mais ou menos como um círculo vicioso e cruel até, porque é quase que é preciso. por exemplo, os escritores negros brasileiros ficaram conhecidos primeiramente muito mais fora do que aqui. Por exemplo: a minha ida em Paris me deu uma visibilidade não só em Paris, mas dentro do próprio território brasileiro. Então parece que é preciso que o de fora valorize, pra os de casa reconhecerem (Evaristo, 2015, min 12 - 13).

Na GAM, após um complexo trabalho de escrita conjunta, a submissão do artigo acontece, mas a efetivação de sua publicação torna-se algo complicado, dadas as várias características singulares do texto, a começar pelo grande número de autores e autoras. É uma escrita sensível, que vai elucidar todo um processo de construção de uma pesquisa que se fez em parceria e que vai contar como tudo aconteceu, numa versão que é também dos usuários e usuárias - aí está o ineditismo. Uma escrita em primeira pessoa, encarnada, inédita, fundadora de uma experiência rara: "a de definir as perguntas de investigação juntos, usuários e pesquisadores" (Flores et al., 2015, p. 259).

A posição de subalternidade, a qual Evaristo denuncia e faz frente, é ocupada, com frequência, pelo público que faz uso dos serviços da saúde mental no Brasil. Esta condição pode se intensificar se tomarmos em consideração um usuário negro. Mais ainda, se ele for uma mulher e/ou pertencer à comunidade LGBTTQI e/ou pertencer a uma classe popular. A cada um desses "qualitativos", há uma agudização dos efeitos de subalternidade; eles constituem desafios adicionais de acesso aos direitos, como nos propõe a interseccionalidade (Akotirene, 2018).

Quem contribui com as discussões a respeito da condição de subalternidade e integra o grupo de autoras feministas decoloniais é GayatriSpivak, pensadora indiana que escreveu "Pode o subalterno falar?" (2010). Nesta obra, ela questiona o uso pouco crítico da noção de subalterno, a qual costuma ser aplicada a todo e qualquer público marginalizado. Segundo Spivak, subalterno seria aquele sujeito que não tem direito à voz, ou melhor, cuja voz não pode ser ouvida, fazendo valer a referência à relação que aí está colocada entre um ou mais sujeitos, não sendo suficiente apenas o "poder falar", mas o encontro com um interlocutor interessado. O subalterno, portanto, diz de uma posição na sociedade. Para defender sua ideia, Spivak se baseia no pensamento de Marx, fazendo referência ao proletariado. A autora se contrapõe à ideia de unicidade de versão da história, defendendo que esta é geralmente a versão dos vencedores e que estes acabam produzindo uma violência epistêmica. Spivak nega, assim, todo essencialismo em relação à história e ao sujeito, afirmando que somos múltiplos e diferentes, sem uma referência única. Ela critica as proposições de Michel Foucault e Gilles Deleuze, que aparecem no diálogo travado entre eles e publicado sob o título "Os intelectuais e o poder" (Foucault, 2014), pois ali haveria uma condição eurocentrada da discussão que termina por desconsiderar todos os demais contextos, mesmo que indiretamente.

Neste sentido, do sujeito que não tem direito a voz, podemos dizer que os usuários da saúde mental são tomados com frequência nesta posição de subalternidade. Temos o processo de publicação do artigo a que nos referíamos logo acima como ilustração. Tal processo não está registrado em nenhuma das publicações GAM, mas na memória das pessoas que estavam, à época envolvidas. O fato de ter sido escrito a tantas mãos já era, por si só, um empecilho à publicação, e a justificativa era de que a quantidade de autores para um único artigo em uma revista acadêmica prejudicaria o conceito científico da revista. A sugestão da editora da primeira revista a que se buscou submissão foi a de que se mantivesse como autores apenas os pesquisadores responsáveis, e que se colocasse em nota de rodapé, no texto do artigo, um agradecimento a todos os demais autores. Porém esta não era uma solução condizente com os propósitos da GAM e do trabalho que vinha sendo desenvolvido. Finalmente, conseguiu-se a aprovação para um caderno temático do Ministério da Saúde, organizado pelo Núcleo Técnico de Humanização, que tinha nesta edição o propósito de sistematizar experiências e debates sobre Reforma Psiquiátrica. Ainda assim, enfrentou-se dificuldades com as demandas burocráticas da publicação: todos os autores precisavam assinar a autorização para publicação, com reconhecimento de firma em cartório. Era uma condição impraticável, dado o grande número de usuários que compunham o grupo de autores e as particularidades que enfrentavam naquele momento, como internações, tutelas e mesmo delírios persecutórios disparados por tal demanda. O tempo que se tinha não era suficiente para resolver a burocracia. Por conta das justificativas, os editores da revista modificaram a demanda, solicitando a autorização reconhecida em cartório apenas dos pesquisadores responsáveis. Nesta situação, restringir era ampliar.

 

Novas perspectivas, outras experiências

No final de 2018, durante o I Encontro Internacional da Gestão Autônoma da Medicação algumas falas voltaram-se à discussão sobre a grande diversidade que encontramos no território brasileiro. Duas pesquisadoras/professoras - Marília Silveira e Ana KareninaArraes Amorim - com atividades na região Nordeste enfatizaram o quanto as particularidades do território onde se encontram trazem diferenças que questionam as primeiras pistas encontradas com a estratégia GAM nas pesquisas iniciais (GAM, 2018).

Na fala da primeira, temos o relato do encontro com um panorama onde a intervenção não poderia ter lugar, dadas as tantas discussões que antecediam a possibilidade de um trabalho em cogestão ainda não existentes. A própria Reforma Psiquiátrica estava mais claudicante neste território em determinados aspectos. Portanto, uma entrada da GAM precisou se fazer de forma mais lenta e gradual que o previsto inicialmente. Além disso, assim como um primeiro processo de tradução/adaptação da versão canadense se fez necessário para a chegada do material nos serviços brasileiros durante a etapa inicial da pesquisa, Marília Silveira percebeu a necessidade de "re-traduzir" as falas da GAM para o acesso de um público de outra região do país, a fim de que pudessem ser compreendidas e reverberar. Ela fala em desconstrução e abertura para o novo encontro; fala, portanto, de possibilidades de experiência, de travessias, do desconhecido.

Na fala de Ana Karenina Amorim, que diz estar ainda iniciando o trabalho com a GAM em terras potiguares, um dos apontamentos iniciais foi o de que, após os primeiros encontros da pesquisa-intervenção no Rio Grande do Norte, o que emergiu foi a pergunta: "Qual seria o nosso GAM"?, referindo-se ao Guia GAM BR, de forma que se buscou construir uma nova ferramenta em formato fanzine. Entendeu-se importante o uso de ferramentas a partir da Educação Popular (rodas, tendas do conto, etc.), bem como o trabalho com a literatura de cordel, tão tradicional no Nordeste brasileiro. Na mesma direção do que trouxe Silveira, Amorim aponta que, a partir do que se pôde experienciar com a GAM até o momento, para os usuários potiguares, o guia é "muito letrado", chegando ao ponto de precisar ser abandonado pelo grupo em diversos momentos. Por vezes, ele se torna um instrumento apenas para os trabalhadores da equipe e para os acadêmicos. Sua linguagem não se faz acessível e mesmo a escolha dos verbos utilizados não ecoa da mesma maneira nos usuários em questão. Ela questiona: Como fazer um Guia culturalmente sensível, que agregue elementos nordestinos?

À época desse encontro, AnalicePalombini escrevia com Lourdes DelBarrio um primeiro artigo (2019, no prelo) a aprofundar a discussão sobre as particularidades GAM do Brasil tomando em conta a herança escravagista que se atualiza na naturalização da desigualdade e no racismo estrutural. As autoras afirmam que, dada a radicalidade do processo, não caberia mais referir-se a ele como uma adaptação, mas como uma transformação do Guia originário do Quebec em um instrumento brasileiro.

Em maio de 2019, uma colega sugeriu a busca pela recente dissertação de Emiliano de Camargo David, lembrando sua fala num evento em Porto Alegre. Nela, o pesquisador sugeria ser a GAM uma estratégia antirracista na medida em que tensiona os lugares de saber/poder cristalizados na relação usuário X psiquiatra, ao incentivar a participação daquele nas decisões sobre o tratamento medicamentoso. Considerando ser este usuário frequentemente negro e o psiquiatra, branco, haveria uma relação de subalternidade racista em jogo. Fomos à referida dissertação (2018) e nos encontramos com uma pesquisa realizada em um CAPS infanto-juvenil, partindo do pressuposto que o racismo - enquanto relação de poder e sustentação de privilégios - produz subjetividades, podendo gerar sofrimento psíquico para crianças e adolescentes negros e seus territórios. Acompanhando o cotidiano desse serviço, conclui que as intervenções e os projetos terapêuticos ali em andamento sinalizam que a dimensão ético-política da luta antimanicomial já acolhe os efeitos do racismo considerando seus compromissos com as práticas de liberdade e com a recusa dos processos de exclusão e de violência. David, porém, propõe ir além, sugerindo que a aquilombação dos CAPS - maneira como chamou a tomada dos efeitos do racismo como uma questão antimanicomial - poderia ampliar a potência de um agir em saúde que promova a equidade racial.

David resume em um parágrafo as mazelas que acometem a população negra no campo da saúde mental, deixando claro que "o manicômio historicamente foi uma das estratégias políticas de poder e de controle que afastou o negro não só da sociedade, mas também da possibilidade de se identificar racialmente de maneira positiva." (David, 2018, p. 136). Ele continua, afirmando que, na atualidade, ainda que este dispositivo venha perdendo forças, outras tecnologias manicomiais têm sido reinventadas, como o sistema judiciário que interna negros compulsoriamente; as instituições de segurança pública que promovem o genocídio de jovens negros de baixa renda; a psiquiatria com seus diagnósticos que rotulam crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade social, negros e negras na sua maioria, entre outras.

Mesmo que a Reforma Psiquiátrica possa ser entendida como um processo civilizatório à medida que provoca a sociedade a transformar sua relação com a diferença (Yasui, 2012), reconhecer a branquitude que nos constitui e que atravessa os processos sociais em nosso país é fundamental se quisermos transformar também seus efeitos nefastos. O racismo que, como já vimos, perpassa o conjuntos das instituições afetando do macro ao micro as relações, carece de uma revolução. Achille Mbembe nos fala, no ensaio sobre a Necropolítica (Mbembe, 2016) - onde vai abordar as formas contemporâneas de subjugação da vida ao poder da morte -, que há políticas de morte para o controle das populações, as quais são submetidas a condições que lhes conferem o status de "mortas-vivas". Nelas, o racismo de Estado determinaria as condições de aceitabilidade para quem vive e para quem morre. Mbembe sugere que, sob o necropoder, as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrifício e redenção, martírio e liberdade desaparecem.

É por isso que nossa pesquisa nos levou à problematização do processo de "abrasileiramento" da estratégia GAM, uma vez que a temática do racismo e de seus efeitos não foram diretamente abordados no dispositivo do Guia GAM-BR, no Guia de Apoio ao Moderador e tampouco nas publicações finalizadas entre os anos de 2011 e 2018. Abordar a temática da experiência nos serviços públicos de saúde mental no Brasil sem tratar de racismo é silenciar algo primordial e nós demoramos a compreendê-lo.

Ao mesmo tempo, pode ser algo compreensível se considerarmos que as discussões a respeito deste tema foram se fazendo mais presentes no campo da saúde no período que coincide com o da chegada e disseminação da GAM no país. Cabe lembrar que a Carta de Bauru, de 1987, marco fundamental na luta pelos direitos dos cidadão acometidos pelo sofrimento psíquico, já trazia uma menção interseccional à luta antimanicomial, mesmo que esta não tenha se traduzido em ações de forma imediata.

Nessa problematização, temos como objetivo ultrapassar a crítica, apontando saídas possíveis, as quais parecem estar na própria GAM, conforme o que fomos descobrindo em nossa investigação. Primeiramente, se considerarmos a forma como se desenvolveu a parceria entre os dois países, não diríamos que ela seguiu uma lógica colonial, ao contrário. O processo cogestivo conduzido no Brasil teve como consequência uma transformação, como já apontaram Palombini e Del Barrio (2019, no prelo) Na interlocução estabelecida entre o grupo de pesquisa do Brasil e do Quebec, após a apreciação do Guia GAM brasileiro por este último, houve surpresa, estranhamento e muitas perguntas. Os comentários tecidos pelos parceiros quebequenses apontaram as diferenças, mas também o reconhecimento do trabalho realizado, juntamente com muitas questões que buscavam entender como se deu o processo brasileiro e qual era o seu contexto, já que distinto. Ao que parece, conseguimos desenvolver um trabalho autoral, mesmo que tenhamos incorrido no lapso de esquecimento a respeito das relações raciais. Este esquecimento/silenciamento também marca um determinado período na história de nosso país que parece estar sendo deixado para trás. Assim, o que se passou com a GAM se deu desta forma provavelmente porque se tratava de uma trabalho iniciado ainda na primeira década dos anos 2000. Agora, finalizando a segunda década deste período, o processo já seria (e está sendo) outro, se considerarmos que as pesquisas com a GAM seguem, assim como as intervenções, ganhando novos contornos onde a perspectiva decolonial vem a se agregar como ferramenta.

Além disso, localizamos nas publicações sobre a GAM alguns fragmentos que dizem da força e da potência de resistência dos usuários e usuárias, os quais muitas vezes, mesmo submetidos a inúmeras formas de opressão, das mais leves às mais intensas, das mais invisíveis às mais evidentes, das mais inconscientes às mais sabidas, reagem. São saídas que denunciam o colonialismo e a branquitude que nos habita. Com elas, acreditamos estar mostrando uma produção subjetiva que extrapola a queixa, a repetição ou a paralisia. Destes fragmentos, um deles encontra-se num artigo e os demais, em teses e dissertações.

 

Insurgências gentis - experiências decoloniais

Usuários, familiares, trabalhadores e acadêmicos - homens e mulheres -envolveram-se na GAM de uma maneira um tanto inovadora para os padrões vigentes no campo da saúde mental. Na busca por estarem lado-a-lado (ou lateralizados, como costumamos dizer) num projeto de pesquisa-intervenção, muito se experimentou, muito se tropeçou, muito se aprendeu, muito se colheu, muito se experienciou. Por vezes, situações de grande tensionamento se colocaram para o grupo, e algumas delas aparecem no conjunto do material publicado - para além dos artigos - entre os anos de 2011 e 2018.

A primeira situação data do ano de 2012 e a encontramos em meio às narrativas trazidas por Marília Silveira (2013, p. 118) em sua dissertação de mestrado:

from: Elizabeth Sabino to: gambr@yahoogrupos.com.br date: Mon, Nov 12, 2012 at 8:26 AM subject: Re: [gambr] Programação geral 21 e 22/11

Queridas

Ok! Com certeza teremos uma ótima reunião. Aproveitaremos bastante esses dois dias. Vale a pena o empenho de vocês ou nosso empenho conforme vocês gostam que nós usuários falemos.

Um beijo no coração.

Beth Sabino.

Trata-se de um e-mail escrito por Elisabeth Sabino, usuária negra participante do projeto que, no intuito de reconhecer o trabalho e o esforço dos pesquisadores e trabalhadores envolvidos, delata - não saberiamos afirmar se com ou sem a intenção consciente de fazê-lo - as distâncias e diferenças de lugar em que estão posicionados os diferentes segmentos, quando escreve "o nosso empenho conforme vocês gostam que nós usuários falemos". Beth, provavelmente sem jamais ter lido Spivak, denuncia com esta pequena frase a posição de subalternidade que ocupa, na qual, mesmo quando chamada a participar, segue sem voz. O "nosso" que aí aparece, - elemento aparentemente emancipatório se considerássemos o contexto mais geral de participação e composição entre usuários e acadêmicos - é justamente o que os acadêmicos, em posição de autoridade, fazem-na dizer.

Este e-mail diz também da apropriação de um lugar de escrita, quando uma usuária "se autoriza" a responder emails que circulam na lista de todos aqueles que participam do projeto, mas onde a maioria dos que escrevem pertencem ao segmento dos acadêmicos. A internet como ferramenta, o próprio computador como tal, não eram ainda tão familiares para os usuários, salvo exceções. Na referida dissertação, a autora afirma que as respostas aos e-mails escritas também pelos usuários se intensificaram após o trabalho de escrita conjunta do artigo sobre o qual já contamos nas páginas anteriores. Tal escrita, como mostramos, foi disparada - ou provocada - quando Nilson, também usuário negro participante, desacomoda os acadêmicos com sua pergunta: "e pra vocês, como é pesquisar desse jeito com a gente?".

A voz de Beth ganha escuta e interlocutores quando esta se coloca a falar "pelo computador". Ganha, inclusive, as páginas de uma dissertação e, na sequência, as páginas da tese e as deste artigo que a mesma embasa. Ousaríamos dizer, uma vez mais, que a escrita na GAM pôde, em diferentes momentos, produzir efeitos semelhantes aos das escrevivências de Conceição Evaristo.

Há um segundo e-mail que localizamos também em uma dissertação de mestrado, agora de Marciana Zambillo (2015). Nesta escrita, Zambillo discute o conceito de autonomia tomando como campo uma viagem ao Canadá realizada em 2013 por um grupo de participantes da GAM, o qual era composto, na sua maioria, por usuários e usuárias, mas também por acadêmicas da pós-graduação. Tal viagem é chamada por ela de laboratório invita. Como material produzido para a pesquisa, o grupo construiu narrativas coletivas a respeito da viagem e, em dado momento, já de volta ao Brasil e em vias de finalizar sua dissertação, Zambillo enviou um e-mail ao grupo com uma versão atualizada de determinada narrativa e recebeu a seguinte resposta de uma usuária:

Querida Marciana

Olá! Como vai? Foi maravilhoso para mim reler sua narrativa [grifo nosso] é voltar ao passado com muitas saudades de tudo que vivi no Canadá. Realmente foi uma viagem inesquecível, diante de tudo que vivemos durante os quinze dias. Pode colocar o meu nome na narrativa. A sua ideia [grifo nosso] de colocar o vídeo no blog também é muito legal. Acho também que poderia colocar mais algumas fotos do comitê cidadão junto com vocês e o pessoal do Canadá, não muitas é claro. Eu gostaria de incluir no relato da narrativa o seguinte (...). Sua narrativa [grifo nosso] está ótima. Eu te desejo sucessos no seu mestrado (Zambillo, 2015, p. 135).

Zambillo afirma, na sequência:

Não tenho resposta em relação ao que se passou para que a narrativa, mesmo em janeiro, após meses de trabalho, fosse considerada minha. Mas certamente essa acusação não pode passar despercebida, sob o risco de que a presença requisitada dos pesquisadores-usuários seja vista como meramente formal, e não como um direito de falar por si naquilo que os implica (Zambillo, 2015, p.135 - 136, grifo nosso).

O que vemos acontecer aqui assemelha-se ao que Beth nos delatava com sua mensagem. Ousaríamos dizer para Zambillo que nós temos uma resposta para o que se passou e que esta resposta diz respeito à posição de subalternidade que, no mais das vezes, ocupam os usuários e usuárias do campo da saúde mental.

Vale notar que a usuária que escreve o e-mail tem algo a acrescentar e se autoriza a fazê-lo: "Eu gostaria de incluir no relato da narrativa o seguinte (...)". Concordamos com Zambillo quando afirma que, neste processo de trabalho, estamos situados permanentemente sobre um fio de navalha entre o empoderamento e a captura.

A terceira situação está num artigo de 2013, uma narrativa que denuncia o hiato relativo às condições socioeconômicas entre usuários e pesquisadores e vai além. Ele trata de algo que se passou em uma reunião multicêntrica em que se apresentavam as contas do Projeto e que serviu de estopim para um movimento reivindicatório do Comitê Cidadão:

Acusavam o fato de que, enquanto os pesquisadores docentes recebiam seus salários e mestrandos e doutorandos suas bolsas de pós-graduação, eles, usuários, dedicavam seu tempo à pesquisa sem receber remuneração por isso (apenas passagens e alimentação). Reivindicavam sua condição de colaborador técnico, requisitando contrapartida financeira para a participação de seus membros, igualando suas expertises àquelas dos acadêmicos remunerados (Passos, Palombini & Onocko Campos, 2013, p. 12 - 13).

Tal demanda foi levada ao espaço da reunião multicêntrica, sendo acordado o pagamento de diárias a cada usuário por participação nos encontros multicêntricos da pesquisa. Era o Comitê Cidadão assumindo seu protagonismo no interior da própria pesquisa. O movimento realizado pelo Comitê Cidadão aponta para a potência da GAM como disparadora de movimentos reivindicatórios micro-políticos, mas também e, principalmente, aponta para a força dos usuários em fazê-los, colocando em cheque uma organização dada a priori, que não ocasionava qualquer questão para pesquisadores e trabalhadores. Ela não traz soluções permanentes - também não o são as medidas afirmativas, já o dissemos - mas se constitui como uma tentativa de reduzir condições de subalternidade dadas de antemão. A moeda de troca pelo trabalho é |46 a agora a mesma entre os diferentes grupos, ainda que em diferentes proporções. Os usuários e usuárias - eles mesmos - obrigam o projeto a se reinventar e a lhes fazerem escutados.

Chegamos a uma tese de doutorado publicada em 2015. Nela, o pesquisador Jorge Melo traz a narrativa de uma cena vivenciada durante o primeiro encontro de um grupo GAM que fazia parte já da segunda etapa da pesquisa. Esse grupo acontecia em um Caps. Ainda hoje a diferença nas cores da pele entre trabalhadores e usuários é muito facilmente evidenciada nos serviços de saúde, não seria diferente com os Caps: entre os trabalhadores e trabalhadoras temos uma predominância de brancos e brancas, enquanto entre usuários e usuárias podemos encontrar muitos negros e negras.

PRIMEIRO ENCONTRO. Aquela gente de fora continua a falar arrastado, com jeito de sabichão, pergunta se a gente sabe o que tá fazendo ali. A gente sabe que tá ali para falar de remédio, que é um estudo, uma pesquisa, mas continua a sentir certa indefinição do que fazer ali e de que forma. Dizem os doutores que tem um guia para ajudar não só os usuários, como a equipe do CAPS também. Ali ao lado, uma companheira começa a esboçar um rosto de espanto. Ela se levanta de repente, tomada de certo nervosismo, querendo saber que negócio era esse de guia. Num é coisa de macumba? Ih, não vai dar pra ficar ali não, ela não serve pra isso, pra negócio de macumba. Quase sem pausa, a companheira corre para o centro do círculo e começa a dançar como se estivesse em um terreiro, os braços cadenciando semicírculos alternados para frente e para trás, as pernas cruzando-se nos passos igualmente alternados, sob o corpo curvado. Arrastada por tambores inaudíveis, a gente explode em risadas por toda a roda. Em uma breve situação, o grupo demonstra sua proximidade com aquilo que o círculo subjaz, isto é, com a roda, que ali se transmuta imediatamente em terreiro. Sem qualquer constrangimento, a companheira põe-se à frente e desposa temporariamente o centro de uma zona de influência com a qual ela parece não ter problemas em manejar. Diverte-se com isso, enquanto diverte aos demais. Limpando as lágrimas de riso, alguns procuram se recompor. Começam então a pedir respeito às crenças, pois com isso não se brinca, é coisa pra se tomar cuidado! Um tanto perdidos no campo de um jogo que se faz por outras vias, os pesquisadores limitam-se a sorrir e a tranquilizar o grupo de que não se tratava de macumba, mas apenas de um caderno com informações e perguntas para ajudar a pensar o tema da medicação (Melo, 2015, p. 68-69, grifos nossos).

Macumba, terreiro, roda, crenças.... Palavras que vêm numa cadeia e que sucedem uma primeira: guia. Elas, em seu conjunto, remetem à ancestralidade negra. Não por acaso, surgem no grupo impulsionadas pelo corpo de uma usuária, e são os pesquisadores aqueles que, ainda que se utilizem da narrativa para dar-lhes lugar, terminam por retornar ao "caderno", dando assim destino à situação sem abrir maiores espaços para algo tão distante daquilo que esperavam viver no primeiro grupo GAM. A proposta que chega "da universidade, junto daqueles que tem jeito de sabichão e querem falar de saúde mental," deriva. De um significante em outros, o desencontro cultural (ou seria um encontro?) acontece, misturando formas distintas de se ocupar um mesmo espaço e compartilhar experiências. Ganha visibilidade um outro saber, que emerge de forma espontânea, uma experiência aparentemente individual que permite a troca de afetos coletivos, por uma via muito mais performatizada que recitada.

Ainda que de formas gentis, utilizando-se da palavra para tecer perguntas ou de gestos para tecer danças, os usuários trouxeram a público momentos insurgentes durante o trabalho com a GAM, mas também graças a esse trabalho. Na medida em que a GAM abre espaço de fala para que seus participantes abordem livremente suas vivências com o uso de medicamentos psiquiátricos, manifestando o que aí está implicado, entendemos poder afirmá-la como uma ferramenta antirracista. A liberdade de expressão e a possibilidade de elaboração de experiências no coletivo são primordiais ao bom funcionamento da estratégia GAM, mas também condição para suportar nossa afirmação. O potencial existe, e, possivelmente, ao se agregar questões ao Guia GAM que toquem diretamente na temática étnico-racial e nos efeitos do racismo, a discussão poderia se fortalecer e se ampliar, assim como a brasilidade da GAM. Além disso, a ferramenta do Guia de Apoio ao Moderador poderia contar também com informações e orientações nesta mesma direção, no intuito de sensibilizar os moderadores para que possam vir a se apropriar de tal temática e levá-la adiante, sustentando-a durante os grupos de intervenção.

 

Considerações Finais

Ao buscarmos na literatura decolonial uma noção de experiência que pudesse nos orientar na discussão nos encontramos com algumas ideias de Achille Mbembe que nos pareceram valiosas. Na introdução de sua obra "Crítica da razão negra" (Mbembe, 2014), a qual traz o título "O devir-negro no mundo", ele escreve:

Quisemos escrever este livro à semelhança de um rio com múltiplos afluentes, neste preciso momento em que a história e as coisas se voltam para nós, e em que a Europa deixou de ser o centro de gravidade do mundo. Efectivamente, este é o grande acontecimento ou, melhor diríamos, a experiência fundamental da nossa época. Reconheçamos porém que a vontade de medir as implicações e as consequências desta reviravolta dá ainda os primeiros passos. De resto, tal revelação pode ser-nos dada alegremente, pode suscitar perplexidade ou fazer-nos mergulhar num tormento ainda maior. De uma coisa temos a certeza: esta desclassificação, também ela carregada de perigos, abre possibilidades para o pensamento crítico (Mbembe, 2014, p. 9, grifo nosso).

Mbembe está a nos dizer que é a decolonialidade em si mesma a experiência de nossa época. Temos de gerenciar nossas travessias em um mundo onde a Europa deixou de ser o centro, aí está o perigo, pois trata-se de um desconhecido, mesmo que por tantos desejado. Um mundo onde as opressões não aconteçam mais da mesma maneira, onde o racismo não seja mais o fantasma silencioso a atravessar nossas relações, onde a branquitude deixe de ser condutora de nossos cotidianos.

Viver em um mundo antirracista... será que sabemos como fazer? Na saúde mental, será que somos capazes de aprender com a experiência do racismo, combatendo-a mas sem incorrermos em uma apropriação de toda a sua potência? Será que, conscientes da branquitude que nos habita, conseguimos ocupar um lugar que faça frente ao racismo indo além da pura denúncia? Será que estamos prontos e daremos conta de contar a história sem nos colocarmos no lugar de vencedores que superaram o racismo? Será que estamos dando lugar para que algo diferente possa se construir na academia e nos serviços de saúde? Quem precisa dar o tom não somos nós... será que vamos permitir? Será que conseguiremos fazer a noção de raça desaparecer? Ou será que precisamos dela para seguir?

Ainda que estejamos vivendo um período na história do Brasil em que as conquistas democráticas correm riscos, há que se considerar que o pensamento decolonial já entrou em nossas universidades, juntamente com muitos negros e negras, e os efeitos disso estão a se disseminar. A proposição de Angela Davis, de que "em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista", já foi escutada e incorporada por muitos e muitas; arrancá-la destes está longe de ser tarefa simples.

 

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Enviado em: 20/01/20
Aceito em: 03/06/20

 

 

Livia Zanchet é doutora em Psicologia Social e Institucional (UFRGS) em cotutela com a Université Côte d'Azur/Nice-França. É também psicóloga clínica no EHPAD FAM SainteCroix/ Lantosque -França.
E-mail: liviazanchet@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-46032609
Analice de Lima Palombini é doutora em saúde coletiva e docente do Instituto de Psicologia da UFRGS.
E-mail: analice.palombini@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8332-8292

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