SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.10 issue2The Notion of Experience in GAM: Racial Relations and SubalternitiesThe autonomous management of medication: territorial strategy of co-management in the care author indexsubject indexarticles search
Home Pagealphabetic serial listing  

Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.10 no.2 Porto Alegre May/Aug. 2020

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.104142 

ARTIGOS

 

Produção de Grupalidade e Exercícios de Autonomia na GAM: a Experiência do Rio Grande do Sul

 

Groupality production and autonomy exercise in GAM: Rio Grande do Sul experience

 

Producción de grupalidad y ejercicio de autonomía en la GAM: la experiencia de Rio Grande do Sul

 

 

Analice de Lima PalombiniI; Douglas Casarotto de OliveiraI; Júlia Arnhold RombaldiI; Vera Lúcia PasiniI; Ana Luiza FerrerII; Marcos Adegas de AzambujaII; Olinda Maria de Fátima Lechmann SaldanhaIII

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre, RS, Brasil
IIUniversidade Federal de Santa Maria (UFSM), Santa Maria, RS, Brasil
IIIUniversidade de Santa Cruz do Sul (Unisc), Santa Cruz do Sul, RS, Brasil

 

 


RESUMO

Este estudo parte da adoção do Guia GAM-BR como ferramenta da política de saúde mental no Rio Grande do Sul. Objetivando avaliar repercussões de sua implementação no estado, desenvolveu-se pesquisa avaliativa com trabalhadores, usuários, gestores e familiares envolvidos com a estratégia GAM em serviços de três regiões do RS. Realizaram-se rodas de conversas cuja transcrição foi transformada em narrativas submetidas à discussão com todos segmentos. Neste artigo, destacam-se dois dos oito eixos temáticos que orientaram a análise do conjunto das narrativas: função estratégica da GAM entre a tutela e o cuidado; estratégias e metodologias para produção de grupalidade. Nota-se, em grupos GAM, coexistirem exercícios de autonomia e tutela, ao mesmo tempo que se produzem espaços de fala, trocas entre participantes e interlocução com profissionais. O manejo cogestivo dos grupos sinaliza estratégias e metodologias para produção de grupalidade, incidindo na participação ativa e crítica dos usuários.

Palavras-chave: gestão autônoma da medicação; saúde mental; reforma psiquiátrica; autonomia; avaliação de serviços de saúde; participação.


ABSTRACT

This study starts with the introduction of the GAM-BR Guide as a tool for mental health policy in Rio Grande do Sul. In order to evaluate the repercussions of its implementation, an evaluation study was conducted with workers, users, managers and family members involved with the GAM strategy in services in three regions of Rio Grande do Sul. Conversation rounds were held and its transcription was transformed into narratives submitted for discussion with all segments. In this article, two of the eight thematic axes that guided the analysis of the set of narratives are pointed out: GAM's strategic function between guardianship and care and strategies and methodologies for groupality production. In GAM groups, exercises of autonomy and tutelage coexist, and it produces speaking spaces, exchanges between participants and dialogues with professionals. The cogestive management of groups indicates strategies and methodologies for groupality production, which results in the active and critical participation of users.

Keywords: autonomous medication management; mental health; psychiatric reform; autonomy; health service evaluation; participation.


RESUMEN

Este estudio empieza por la adopción de la Guía GAM-BR como herramienta en la política de salud mental en Rio Grande do Sul. Para evaluar las repercusiones de su aplicación en el estado, se llevó a cabo un estudio de evaluación con trabajadores, usuarios, gestores y familiares involucrados con la estrategia GAM en los servicios de tres regiones de Rio Grande do Sul. Fueran organizadas ruedas de conversación cuya transcripción se transformó en narrativas presentadas para discusión con todos los segmentos. En este artículo se destacaron dos de los ocho ejes temáticos que guiaron el análisis del conjunto de narrativas: la función estratégica de la GAM entre la tutela y el cuidado y estrategias y metodologías para producción grupal. En los grupos GAM coexisten ejercicios de autonomía y tutela, a la vez que se producen espacios de diálogo, intercambios entre los participantes y diálogo con los profesionales. La conducción cogestiva de los grupos señala estrategias y metodologías para la producción de grupalidad, resultando en la participación activa y crítica de los usuarios.

Palabras-clave: gestión autónoma de la medicación; salud mental; reforma psiquiátrica; autonomía; evaluación de servicios de salud; participación.


 

 

Introdução

A pesquisa de que trata este artigo acompanhou o desdobramento, no Rio Grande do Sul (RS), de pesquisas realizadas anteriormente, interligadas e sucessivas, relacionadas à elaboração da versão brasileira do Guia da Gestão Autônoma da Medicação (Guia GAM-BR), à sua revisão final (Onocko-Campos et al., 2012, 2018) eà formulação do Guia de Apoio a Moderadores de grupos GAM, com orientações e diretrizes gerais para utilização do Guia GAM em processos grupais (Onocko-Campos et al., 2014). A versão brasileira da GAM concretizou-se na relação entre universidade, associação de usuários e familiares e os serviços da rede pública de saúde mental, em especial os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), efetuando modificações importantes em relação ao texto do Guia original - modificações que buscaram levar em conta diferenças socioeconômicas e culturais entre os usuários do Quebec, no Canadá, onde tem origem a estratégia, e os brasileiros. Nesse sentido, tratou-se de transformar mais do que adaptar o instrumento, em consonância com a forma participativa e cogestiva que lhe deu origem. Com efeito, a GAM configura não um modelo a ser aplicado, mas uma estratégia que, ao oportunizar espaços de fala, atualiza seus princípios: o reconhecimento da dignidade da pessoa requerendo respeito aos seus direitos; a afirmação do direito de recusar o tratamento proposto sem recusar o cuidado; a reivindicação de acesso a práticas alternativas em saúde mental (Palombini & Rodriguez del Barrio, s/d., Rodriguez del Barrio & Poirel, 2007).

Conforme o Guia de Apoio a Moderadores de Grupos GAM, a proposta de condução dos grupos GAM partilha do conceito de manejo cogestivo, que provoca o acesso a experiências singulares do uso de psicofármacos a partir do acolhimento das vivências dos usuários, reconhecendo e valorizando os diferentes saberes acerca dessa experiência, ou seja, permitindo o questionamento e a crítica a "verdades" instituídas e construídas historicamente, as quais servem a interesses específicos (Onocko-Campos et al., 2014).

Nesse sentido, o compartilhamento de experiências no grupo coloca os participantes lado a lado e não uns acima dos outros - pois, neste último caso, faria valer uma "verdade" instituída acerca da experiência partilhada. A perspectiva da lateralidade, o estar lado a lado, por sua vez, propicia o surgimento de diversos significados que o acesso à experiência provoca em seus participantes - individual e coletivamente -, sendo o modo de acolhimento destas histórias importante para "romper com posturas tradicionais que pensam que a experiência é uma doença que deve ser corrigida, curada, ou, no máximo, 'tolerada'" (Onocko-Campos et al., 2014, p. 24).

O manejo cogestivo também possibilita o exercício da grupalidade, que, segundo os autores, seria o fio que tece as relações de vínculo e gera diversas formas de pertencimento ao grupo. Assim, a maneira cogestiva de trabalhar propicia estar atento às formas de pertencimento, "estimulando a participação de todos, com a delicadeza de entender que as pessoas participam de jeitos diferentes" (Onocko-Campos et al., 2014, p. 25). Esse exercício de grupalidade se faz possível quando a palavra circula e o manejo do grupo se desloca da figura do moderador. O manejo, assim descentrado, favorece o protagonismo dos participantes. Ao moderador, cabe um papel orientador, no sentido de garantir o acolhimento e a participação de todos.

A estratégia GAM, assim desenhada, alinha-se aos preceitos da Reforma Psiquiátrica, sob a base do Sistema Único de Saúde (SUS), que possibilitou uma transição do modelo de atenção, dando ênfase à saúde mental comunitária, voltada à atenção psicossocial numa perspectiva ampliada da clínica. Entretanto, o tratamento medicamentoso não perdeu sua prevalência dentre as ações de cuidado ofertadas, sendo pouco problematizado. Frequentemente, o cuidado em saúde mental reduz-se à prescrição de medicamentos, enquanto os usuários desconhecem o motivo ou o tempo de duração das terapias medicamentosas e têm pouco poder de decisão sobre seu próprio tratamento (Figueiredo & Onocko-Campos, 2009, Santos, 2009). As pesquisas realizadas no Brasil em torno da GAM constataram a potência dessa estratégia para o enfrentamento desse e de outros importantes desafios da política de saúde mental, em consonância com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, tais como a valorização da experiência dos usuários como sujeitos de direitos; a inclusão de residentes, trabalhadores e gestores na discussão com os usuários sobre sua experiência com a medicação psiquiátrica; o exercício de autonomia dos usuários, bem como o cuidado de si e do outro, a partir da participação ativa nos grupos GAM. (Palombini et al., 2013).

Em 2013, quando do lançamento da versão final do Guia GAM-BR, este foi adotado pela Secretaria Estadual da Saúde do Governo do Estado do Rio Grande do Sul (SES/RS), com perspectivas de que os serviços de saúde mental incorporassem a estratégia GAM como ferramenta de trabalho. Para tanto, o estado disponibilizou a impressão de dez mil guias a serem distribuídos para os serviços de saúde e uma consultoria técnica ligada à Coordenação Estadual de Saúde Mental, Álcool e Outras Drogas para sensibilização dos serviços e apoio institucional às equipes que decidissem adotar a estratégia. Este estudo surgiu nesta conjuntura, no interesse de acompanhar a experiência do uso do Guia GAM num contexto que não é mais o da pesquisa, mas o da política de saúde mental operante nas esferas estadual e municipais de saúde.

O início da investigação, em janeiro de 2015, coincidiu com a mudança de gestão no governo estadual, implicando no desinvestimento na política de saúde mental instituída. A GAM deixou de compor as ações da gestão, e o acompanhamento da pesquisa deixou de contar com a participação dos gestores estaduais. Contudo, a estratégia GAM seguiu sendo utilizada ou despertando interesse em serviços de saúde de diferentes municípios do estado. Nesse sentido, a pergunta que se colocou foi: quais as reverberações dessa proposta na atualidade, num contexto político que, no âmbito da saúde mental, não estimula nem endossa o protagonismo dos usuários?

Aprovada pelo Comitê de Ética (Parecer CEP 837.294, de 20 de outubro de 2014) e ancorada pelas resoluções 466/12 e 510/16, a pesquisa fez uso do TCLE para todos seus participantes e cuidou de preservar o anonimato e a confidencialidade de todo o processo. Tendo durado o tempo de uma gestão, com término em dezembro de 2018, sua experiência envolveu uma organização complexa de encontros entre os diferentes segmentos participantes e entre distintas regiões do estado (cf. Figura 1), e resultou num material bastante extenso de análise, que tem suscitado uma série de reflexões. Neste artigo, escolhemos apresentar a discussão referente a dois dos eixos temáticos propostos para análise do material produzido, os quais se apresentam de forma articulada: a função estratégica da GAM entre a tutela e o cuidado; e as estratégias e métodos para produção de grupalidade, como apresentamos na Figura 1 em anexo.

 

Princípios metodológicos e operacionais

Nosso estudo inclui-se na perspectiva das abordagens avaliativas de quarta geração, que, reconhecendo o caráter inevitavelmente político de toda pesquisa, busca contemplar tanto as questões do avaliador-pesquisador quanto as dos grupos diretamente implicados no tema, propiciando a inclusão de diferentes pontos de vistas e valores dos envolvidos e a sua apropriação dos conhecimentos gerados na realização do processo avaliativo (Furtado, 2001). Em nosso caso, constituíram grupos de interesse distintos em especial os trabalhadores de saúde mental, por um lado, e seus usuários, por outro. Outros grupos, como gestores de saúde e familiares de usuários, também se fizeram presentes, embora com participação minoritária. Além desses, configuraram grupo de interesse na pesquisa também os pesquisadores acadêmicos, não apenas por sua implicação com o tema, mas pelas particularidades do método utilizado para a produção de dados.

Com objetivo de colher o compartilhamento de experiências em cada uma das regiões abrangidas pela pesquisa, utilizamos rodas de conversa abertas, inspiradas no método Paidéia (Campos, 2001). Este método tem origem no âmbito da gestão do trabalho em saúde, visando o aperfeiçoamento de pessoas ou instituições através de ofertas apresentadas aos sujeitos, as quais favorecem a ampliação das suas capacidades de compreensão e intervenção sobre o mundo, sobre as instituições e as organizações (Campos, 2006). A oferta difere do que seria uma prescrição, pois ela pressupõe a reflexão crítica e dialógica para que uma decisão compartilhada seja tomada e assumida como tarefa pelo sujeito e pelo agente da oferta (Campos, 2012, Furtado, 2001). Com base nesse método de gestão do trabalho em saúde, Furlan e Campos (2014) introduzem o conceito de pesquisa-apoio Paidéia, em que tanto o projeto quanto as ações dos pesquisadores no campo são considerados como oferta, numa postura interativa entre pesquisadores e sujeitos do campo. A pesquisa participante do tipo apoio vale-se de núcleos temáticos - referentes ao mundo ou ao sujeito - para orientar a construção de narrativas interpretativas sobre diferentes perspectivas. Tradicionalmente, pode-se ter temas eleitos para direcionamento do olhar na pesquisa, anteriores à colheita de dados, ou mesmo, ao contrário, temas que emergem do próprio processo de investigar, não previstos inicialmente. Furlan e Campos (2014) ressaltam a relevância de novas discussões com os participantes, para validação da interpretação, posteriormente à estruturação dos núcleos temáticos e à análise. Esse processo, porém, ganhou nuanças próprias, conforme as especificidades desta pesquisa.

Com efeito, o texto transcrito das falas em cada roda de conversa foi trabalhado de acordo com o que propõem Onocko-Campos e Furtado (2008), num processo em que primeiramente tratamos de identificar os temas abordados e seus respectivos núcleos argumentais e, a seguir, proceder à contração desses núcleos em uma narrativa, buscando, sempre que possível, a construção de um "nós" (nós achamos, nós pensamos...) mas mantendo, quando era o caso, a pluralidade de vozes (nós, usuários; nós, pesquisadores; nós, trabalhadores; um de nós; alguns de nós.) (Onocko-Campos & Furtado, 2008, Ferrer et al., 2016).

Diferente, porém, do que propõem os autores citados, nesse processo de construção de narrativas optamos por preservar diálogos literais quando estes configuravam uma disputa de posição, um enfrentamento de forças. Além disso, uma vez que as rodas de conversa eram abertas, variando os seus participantes a cada encontro, o retorno, a essas rodas, das narrativas construídas não teve como objetivo central a sua validação. Trechos selecionados das narrativas foram apresentados em rodas subsequentes operando como disparadores de novas conversas, as quais, por sua vez, eram submetidas ao mesmo processo. O conjunto dessas narrativas constituiu o material submetido à análise coletiva, com a participação ativa de acadêmicos, usuários e trabalhadores em cada macrorregião participante1.

 

Desenvolvimento

As rodas de conversa tiveram lugar nas macrorregiões Metropolitana, Vales e Centro-Oeste do estado, com periodicidade variável conforme o contexto local, desde o primeiro semestre de 2015 até janeiro de 2017, somando de seis a nove rodas de conversa por centro, com a participação de 8 a 38 pessoas em cada roda, incluindo trabalhadores, residentes multiprofissionais e usuários que efetivamente se ocupavam da moderação de grupos GAM nos serviços da sua região (público alvo inicial da pesquisa), mas também gestores, trabalhadores e residentes interessados em dar início a um grupo GAM e que vinham se informar a respeito, ou usuários que eram participantes, mas não moderadores, de um grupo GAM no serviço a que eram vinculados e eventualmente algum familiar.

De modo geral, os participantes vinculavam-se aos CAPS da região, mas também eram oriundos de Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF) e da Atenção Básica, de algum serviço ligado ao Sistema Único de Assistência Social (SUAS), ou, ainda, no caso da região Metropolitana, do sistema socioeducativo e do sistema prisional. Essa diversidade foi o que imperou nas rodas de conversa, não tendo sido utilizado nenhum critério de exclusão. Todos aqueles que se sentiram concernidos, à sua maneira, pelo convite que a pesquisa - por meio de emails dirigidos às coordenadorias de saúde e gestores dos serviços - fazia foram acolhidos.

Pensamos que essa abertura, esse alargamento do acolhimento aos participantes interessados, condiz com a estratégia GAM, a qual foi expressa com muita contundência por uma usuária em uma das rodas de conversa, quando se discutiam os critérios de participação nos grupos GAM. Os trabalhadores manifestavam suas dúvidas a respeito, quando foram interrompidos pela usuária que disse, conforme a narrativa que construímos dessa roda:

... lá no meu grupo tem gente que nem sabe por que tava ali e agora tá bem melhor. A gente convida igual, todo mundo, assim, pra participar. Não cabe discriminação. Se o objetivo do GAM é gerar autonomia, as pessoas terem autonomia, aí vamos nós escolher quem participa? Por exemplo, vamos fazer uma comparação: vocês tudo são pacientes e tão meio malzinho, assim, e vocês querem entrar no grupo, aí vamos nós dizer "não, vocês não podem", como é que a pessoa vai sair dali? Arrasada! Por quê? Porque essa pessoa já tá ali mal, querendo se achar junto com os outros, se entender, se completar, aí vão e barram na porta, "não, esse grupo aqui é só pros que tão melhorzinho"? Como? Daí sim, né, aí acabou com tudo. (...) Isso já aconteceu comigo, já sofri na carne, "tu não vai entrar, porque tu é muito chata". Sou chata mesmo.

Após a finalização das rodas de conversa e a construção das narrativas correspondentes (cf. descrito na seção sobre a metodologia), o trabalho de análise ocorreu em duas etapas. Na primeira etapa, em 2017, em encontros multicêntricos reunindo os três centros de pesquisa, realizados um em cada região, foram lidas e debatidas seis narrativas das rodas de conversa realizadas nas três regiões, a partir de perguntas orientadoras da discussão (cf. Figura 2). Com base nos registros sistematizados das discussões ocorridas nesses encontros, na segunda etapa, já em 2018, cada centro de pesquisa buscou identificar eixos para análise do conjunto das narrativas, os quais, em reunião multicêntrica, foram discutidos e aglutinados em oito eixos orientadores (cf. Figura 2). A seguir, os pesquisadores acadêmicos identificaram, em cada narrativa, as discussões referentes a cada um dos eixos estabelecidos. Depois, cada grupo de pesquisa organizou seu próprio método para fazer a discussão dos conteúdos referentes a cada eixo, com a participação dos três segmentos: acadêmicos, trabalhadores, usuários. Não iremos nos deter aqui sobre esse aspecto, que foge aos objetivos deste artigo, mas cabe ressaltar que as diferenças no modo de operar a análise dos eixos em cada macrorregião decorreram do processo mesmo, participativo e cogestivo, de construção da pesquisa, aberto e sensível à pluralidade de perspectivas e às conjunturas locais (Figura 2, em anexo).

 

Função estratégica da GAM entre a tutela e o cuidado

As narrativas da pesquisa mostram que, nas experiências com grupos GAM, coexistem exercícios de autonomia e de tutela. Com efeito, frequentemente, entre os trabalhadores, a motivação para propor um grupo GAM ou indicá-lo a um usuário parte de um equívoco que os faz tomar o Guia GAM como um instrumento para produzir adesão ao tratamento medicamentoso - gestão autônoma da medicação significaria, para esses trabalhadores, o usuário "autônomo" para obedecer à prescrição médica sem precisar da ajuda de outros para tanto. No entanto, ainda que seja essa a expectativa, obediência não é o que em geral se produz como efeito junto aos usuários na sua experiência de participação em um grupo GAM, o qual tende a oportunizar espaços de fala, trocas entre os participantes e interlocução com os profissionais. O próprio acontecimento da pesquisa, ao repercutir o caráter participativo e cogestivo da GAM por meio das rodas de conversa e das reuniões ampliadas, produziu movimentos em direção a uma maior apropriação da noção de autonomia que embasa a construção do Guia GAM-BR e remete aos princípios da reforma psiquiátrica brasileira: somos tanto mais autônomos quanto maior a nossa rede de relações.

A tutela a que nos referimos é expressa em atitudes como: equipes vetarem a participação de determinados usuários no grupo GAM, no entendimento de que não preencheriam pretensos critérios para tal; equipes considerarem que o usuário se encontra bem, ou mal, pelo simples fato de estar ou não fazendo uso dos medicamentos prescritos; profissionais moderadores de grupos GAM não entregarem o Guia aos usuários participantes do grupo, por não confiarem na capacidade desses usuários de preservá-lo; profissionais médicos fazerem-se presentes ao grupo GAM não visando a troca dialógica com os usuários, mas apenas no intuito de ajustar as medicações prescritas. Ou, ainda, embora negada no discurso, a tutela se apresentava em ato no transcorrer da pesquisa, no dispositivo da roda de conversa, conforme expresso no seguinte fragmento de narrativa, malgrado a tentativa de intervenção da pesquisadora acadêmica (P), insuficiente para deter o afã de uma trabalhadora (T) em falar por um fulano usuário, que se mantinha, porém, perfeitamente calado:

T1 - Fulano também mudou um monte, ele era bem introvertido, né?

P - Fulano, quer falar? (Fulano faz gesto de que não)

T1 - Acho que o Fulano pode falar

também... mas eu posso até dizer algumas coisas dele, era um paciente que...

P - Mas o Fulano pode querer que a gente fale ou não...

T1 - Tu quer que eu fale alguma coisa, Fulano? Posso dizer alguma coisa de ti? Posso! Fulano era paciente muito introvertido assim de nem vir em grupos, de não se expor, não sair de casa, né, Fulano? Hoje sai, viaja... quando a gente ia ver o Fulano [..] num passeio longe da família, né, Fulano? [...] ou vir aqui fazer parte da pesquisa, né? E o fulano vem e às vezes fala, participa de grupos. E isso é graças ao grupo GAM também, que fez essa mudança, né...

T1 - Quer falar um pouquinho, Fulano? Quer falar, pode falar, tá? É isso que eu falei ou tem alguma coisa pra acrescentar? O que eu disse tá certo? (Fulano faz gesto de que sim).

Já a autonomia se manifesta em situações que vão desde a possibilidade de um usuário tomar posse de seu próprio Guia GAM até a ampliação da capacidade de diálogo dos usuários com as equipes dos serviços e com seus familiares, alicerçada no aumento do conhecimento de si, dos seus direitos, das alternativas de tratamento. Nas palavras dos usuários, na análise dos recortes de narrativas referentes a este eixo de discussão:

O GAM dá liberdade de se conhecer e ter coragem de falar, usar a autonomia. E essa autonomia pode crescer num nível enorme, sem limite.

A ignorância escraviza... quero aprender mais sobre autonomia e direito.

Efeito da GAM é se abrir para participar de outras atividades que lhe façam bem. A pessoa se sente mais segura para participar de outras atividades.

Na ideia de multiplicação das possibilidades de conexão com o mundo e produção de redes de relações, a própria estratégia GAM é, na sequência, relativizada: A GAM não é a única fonte de conhecimento de que se pode lançar mão. Tem um mundo de conhecimento à nossa volta pra gente explorar e que pode nos ajudar também. No entanto, dois fenômenos, em geral apontados pelos trabalhadores, parecem contradizer essa perspectiva de ampliação das redes e diversificação das atividades em que os usuários se engajam. O primeiro diz respeito ao fato de que, em serviços onde grupos GAM são sucessivamente lançados, é comum que usuários participem repetidas vezes da experiência. O segundo fenômeno aponta para a longa permanência dos usuários nos serviços de tipo CAPS, como se, para além da dificuldade de prescindir dos medicamentos ou reduzir seu uso, também fosse difícil desligar-se do serviço, mesmo quando em condições de alta do tratamento ou possibilidade de cuidado junto à Atenção Básica. Na percepção dos trabalhadores, são indicadores do caráter tutelar da relação instituída entre usuários e serviços, mesmo à revelia das equipes. Os usuários, porém, rechaçam de pronto essa percepção. Em relação às repetidas participações em grupos GAM, retrucam que os grupos nunca são iguais, são pessoas diferentes e acontecem coisas diferentes. Quanto à permanência no CAPS, um dos usuários sentencia: Não vou pra outro lugar porque não encontro lugar melhor. O que parece ser valorado, nesse caso, é a qualidade afetiva do vínculo estabelecido com os trabalhadores do serviço, conforme uma das narrativas:

Somos bastante apegados às equipes dos serviços em que somos atendidos. Uma de nós, quando ganha alta do CAPS, sente-se como um peixe fora d'água, pois se apega muito às pessoas. Será que vou conseguir ficar longe deles? Quando alguém vai embora, um profissional por exemplo, sente uma falta medonha.

Pensamos que essa qualidade afetiva do vínculo entre usuário e trabalhadores decorre também de um exercício de autonomia impulsionado pela experiência GAM, o qual ganha expressão na alteração das relações verticalizadas que se encontram instituídas nos equipamentos tradicionais de saúde e são atenuadas, mas não chegam a desaparecer, nos serviços sob a lógica da atenção psicossocial. Tal alteração tem como consequência não somente um aumento da participação dos usuários nas decisões concernentes ao seu tratamento, mas também um autorizar-se dos profissionais com relação a uma perspectiva ampliada de suas próprias práticas. Constatamos que a participação de profissionais nos grupos GAM permite-lhes ver aos usuários de outra forma: como pessoas, mais do que como doença2. Permite-lhes também reconhecer e valorizar o saber da experiência que os usuários portam, algo que a formação acadêmica não lhes ensina. A experiência GAM adquire, assim, um caráter formador, indicadora de formas alternativas de cuidado que podem fazer diferença no agir tanto de médicos prescritores quanto dos demais profissionais da equipe.

Nesse sentido, tanto usuários quanto trabalhadores sentem-se aprendizes nesse processo. É fato que o Guia GAM parece exigir um letramento nem sempre alcançado pelos usuários, de tal forma que termos como autonomia, gestão, automedicação, que constam do texto do Guia, não são facilmente compreendidos, exigindo, do grupo, outros esforços de tradução. Ao mesmo tempo, porém, os usuários são os primeiros a contestar a ideia de que pessoas não alfabetizadas não possam participar dos grupos GAM, reportando-se às experiências vividas no grupo, em que um usuário ensina o outro, ajuda a escrever e a entender o escrito. No dizer de uma usuária: É interessante um ajudar o outro, um ajudar o próximo. Então, eu gosto de fazer muito isso, sabe? Na percepção dos trabalhadores, há um entusiasmo entre os usuários pelas aprendizagens que o grupo GAM possibilita, como se fosse uma volta à escola - uma escola que, no geral, pouco puderam frequentar. Do que pudemos escutar dos trabalhadores que participaram diretamente da experiência de um grupo GAM, a recíproca é verdadeira: há um entusiasmo por aquilo que se apresenta como novidade, como algo antes não sabido acerca dos usuários em seu estatuto de pessoa e que é expresso na fala e nos modos de participação desses usuários no grupo.

Um outro elemento indicativo de um exercício de autonomia que a experiência GAM mobiliza nos usuários é o modo como estes se apropriam do grupo GAM, havendo relato de experiências em que usuários tomam a frente da moderação do grupo, levando a cabo tal proposta mesmo sem a participação dos profissionais. Contudo, esse é um tema controverso, e não somente entre os trabalhadores que, muitas vezes, embora possam vislumbrar um futuro em que os usuários assumam a moderação dos grupos, têm dificuldades em perceber possibilidades concretas e imediatas para que assim aconteça. Também os usuários divergem entre si a respeito desse ponto, conforme a discussão referida ao eixo das estratégias e métodos para produção de grupalidade, relatada na próxima seção.

 

Estratégias e métodos para produção de grupalidade

Ao longo das rodas de conversa, o tema da produção de grupalidade foi muito frequente. Com efeito, tal produção encontra-se condicionada por diversos processos, entre os quais incluem-se também os critérios e os modos de inclusão no grupo GAM e o entendimento sobre o sentido da estratégia GAM e a função atribuída ao Guia. Nas seções anteriores, já abordamos os dois primeiros aspectos. Quanto à função atribuída ao Guia, em uma das rodas é narrada a experiência de um grupo que começou com um teor mais escolar, sustentado pelo fato do Guia ser como um caderno. Os participantes foram preenchendo as perguntas de forma escrita. Aos poucos, a gente começou a ir mais devagar em cada pergunta, não jicamos tão preocupados em responder as perguntas, mas sim conversar sobre elas. O grupo foi tomando para si a responsabilidade de dar vazão, através da fala, àquilo que os seus participantes pensavam, elaborando suas respostas de forma mais espontânea, pois o grupo é o lugar para os usuários falarem sobre o que está acontecendo no dia a dia deles. As situações de vida são compartilhadas ali, o grupo acolhe, escuta, pondera. Assim, a confiança construída na relação entre pares e com os trabalhadores participantes, a experiência da amizade e da solidariedade ganham a cena e desbancam a medicação do centro do cuidado:

A gente faz amizade, o próximo grupo vai ser na minha casa, vou fazer um almoço, esse grupo foi a melhor coisa que aconteceu comigo.

Cada um leva um prato... Fazemos o grupo na casa de uma colega... Uma está com problemas, vai na casa da outra e fica, conversa...

Não apenas o eu tem problema, mas nós temos problema. Isso é empatia. E tem a importância da amizade. É uma amizade que se traduz numa solidariedade.

Pensamos que a força da GAM se encontra num dos seus princípios, que é o da cogestão, conforme refere a seguinte narrativa:

Percebemos como o Guia GAM oferece autonomia até mesmo para com o modo de fazer o grupo. E que lá dentro surgem muitas ideias e as decisões são tomadas por todos. Outro de nós, estudante, observou o efeito em cadeia que tem o grupo. Que a estratégia de cogestãoé para que o grupo exista e coexista. Lembramos também que funcionários, familiares, profissionais e todo mundo faz parte dessa cogestão.

No dizer de um usuário, no momento da análise dos eixos:

Onde está a força da GAM? No espírito de união, tu te sentes participante de um grupo que tem um objetivo comum. É como os povos primitivos que, pra organizar uma caçada, se reúnem, fazem danças, cantos, para se sentirem fortes.

Usuários e trabalhadores reconhecem na figura do moderador - mais do que na ferramenta Guia - o papel de garantir a circulação da palavra e o modo participativo e cogestivo do grupo:

O que conta não é o Guia, mas a disponibilidade para a conversa, tendo um moderador bacana, a conversa rola.

Não existe uma forma certa de conduzir os grupos, quem conduz o grupo é o próprio grupo! O guia é só um dispositivo.

Os usuários têm perfeita noção do valor que uma experiência não hierárquica adquire em suas vidas, em contraste com o lugar de subalternidade em que com frequência são colocados. Não se trata, porém, de homogeneizar usuários e profissionais e, sim, de colocá-los lado a lado, lateralizando a relação:

E não existe uma hierarquia no grupo, onde o profissional se coloca em um lugar de superioridade em relação à nós. A gente interage juntos. A partir do momento que se criar uma hierarquia com nós e acharmos que não está nos fazendo bem, caímos fora do grupo! Pois preconceito e discriminação já vivenciamos por todos os lugares onde passamos, não podemos admitir isso, nem sermos tratados como coitadinhos ou vítimas. Nós somos alguém, não queremos ser melhores do que ninguém, mas também ninguém pode pisar em cima da gente porque somos pacientes do CAPS, entendeu?

O moderador de grupo GAM tem a responsabilidade de romper com a verticalidade das relações que marca ainda as instituições de saúde, dando lugar à sua lateralização. A iniciativa pela realização de um grupo GAM, porém, em geral não parte do conjunto da equipe ou da coordenação do serviço, mas de um ou outro trabalhador interessado, quando não de residentes multiprofissionais ou ainda de estudantes em estágio no serviço. Além disso, em ao menos um dos serviços participantes das rodas de conversa, usuários foram e seguem sendo responsáveis pela proposição dos grupos GAM, após terem participado da experiência inaugural da pesquisa GAM no serviço. Porém, mesmo os trabalhadores -também colocados muitas vezes em posição de subalternidade em relação à hierarquia das profissões ou dos cargos -hesitam em assumir, perante seus colegas de equipe, a proposta de moderação do grupo GAM, antes de se darem conta de que não é preciso uma expertise ou a autorização de um superior, mas a disposição a aprender com os usuários, conforme a narrativa a seguir:

Ainda temos um pouco de receio em começar a moderar os grupos porque não somos da área "psi", talvez precisássemos de um apoio maior de pessoas desta área que pudessem conversar com a equipe, mostrar a importância da GAM, pois uma coisa somos nós, trabalhadores da equipe falando, outra coisa é alguém de fora, que tenha mais propriedade. Mas, pensamos que talvez não seja tão importante saber tudo sobre os remédios para moderar um grupo GAM, porque vamos partir do conhecimento que os usuários têm e construímos junto com eles, sobretudo, aprendemos muito com eles com relação aos remédios. Pensamos que essa é uma diferença importante, permitir-se aprender junto com os usuários. Isso é muito legal. Eles sabem muito sobre remédio, são eles que tomam!

Apesar do reconhecimento de que esse saber experiencial de quem usa medicamentos é um pressuposto da estratégia GAM e ainda que existam experiências em curso sob moderação de usuários, a possibilidade de que usuários sejam moderadores de grupos GAM gera controvérsias mesmo entre os usuários, como dissemos mais acima, conforme sucessivos debates que atravessaram os encontros das rodas de conversa, as multicêntricas ampliadas para leitura e discussão das narrativas e as reuniões ampliadas por macrorregião para análise dos eixos temáticos.

Por um lado, há o entendimento de que a presença de um profissional na moderação do grupo fortalece o próprio grupo, seja porque é capaz de prover as necessidades para a sua realização (infraestrutura, recursos materiais...), seja porque, como profissional sensível, age como um plantador que larga a semente na terra e depois volta para regar, podar... permitindo o crescimento do grupo e sua autonomia. Tal autonomia, segundo alguns dos usuários, apenas se faz com suporte - do psiquiatra, da psicóloga, da enfermeira -, para só depois sermos capazes de aumentar a nossa rede. De forma mais específica, a medicação, justamente, diz de uma relação do paciente com o médico, e, por isso, a presença do profissional seria importante. Outro argumento refere o fato de o grupo GAM reunir pessoas com ideias diferentes, idades diferentes, e cada um traz uma história de vida pesada, o que torna necessária uma coragem para moderar o grupo, coragem da qual somente um profissional disporia. Esse conjunto de argumentos suscita uma polarização da discussão. É uma usuária quem questiona, numa das reuniões multicêntricas ampliadas:

U1 - E qual é a diferença entre um usuário capacitado e um profissional capacitado?

U2 - A qualificação acadêmica é a encilha.

U1 - Mas o profissional não pode ficar doente? Pegar aqueles problemas dos usuários e ficar doente?

U2 - O médico estudou e é qualificado para isso.

U1 - Ah tá, quando o médico prescreve e tu toma o remédio, quem sente o efeito colateral?

Outra usuária, moderadora de grupo GAM, entra na conversa, sinalizando para a prática cogestiva, o compartilhamento de responsabilidades, como estratégia para sustentação do grupo como espaço de fala e enfrentamento de crises:

U3 - Já enfrentei crises dentro do grupo. O que eu fiz? Consultei o grupo: o que acontece quando uma pessoa está em crise e não quer sair do grupo e quer falar? O grupo deu espaço pra fala nesse momento de crise.

Todos concordamos, então, que, não importa se profissional ou usuário, é preciso aprender a hora de ouvir e não só falar, falar... às vezes, só ouvir a pessoa já faz ela melhorar. Porém, para ser capaz de ouvir, insiste um dos usuários, a gente primeiro tem que ter conhecimento do que se passa conosco.

Ora, a leitura cuidadosa do conjunto dos registros da pesquisa, desde as narrativas das rodas às análises dos eixos, no que concerne às discussões em torno à necessidade ou não da participação de um profissional na moderação do grupo GAM, permite-nos talvez escutar melhor o que nos dizem os usuários, desvelando uma preocupação subjacente às suas colocações, que desloca o foco da polarização profissional versus usuário como equivalente à polarização tutela versus cuidado. Um primeiro ponto de partida para esse deslocamento diz respeito ao entendimento da saúde como dever do Estado e direito do cidadão, que se apresenta na fala dos usuários desde os encontros das rodas de conversa, conforme a narrativa a seguir, em torno

da dificuldade de integrar os grupos GAM nos processos de trabalho da equipe, visto que os outros grupos GAM são bancados por residentes, que têm um caráter transitório no serviço. Depois dessa fala, alguns de nós, usuários participantes do grupo, mencionamos que faríamos resistência para que os grupos GAM continuassem. Nesse contexto, um de nós, usuário do CAPS, relatou que, como usuários, não tínhamos força para conseguir manter um grupo sem profissional, sendo que outra de nós, também usuária, acrescentou que poderíamos nos articular com a associação de usuários, recentemente criada no serviço, de modo que a mesma não permitisse a extinção dos grupos. Menciona ainda que os Grupos GAM são um direito dos usuários, sendo essa a justificativa de se recorrer à associação.

Assim, os usuários comungam da ideia de que, mesmo quando assumem a função de moderação de um grupo GAM, é importante ter a quem se referenciar, alguém a quem se reportar nas situações que necessitem apoio e que possa responder pelo trabalho de cuidado à saúde, conforme o debate no momento de análise dos eixos temáticos:

U2 - Para mim, é importante um profissional do Caps estar presente, trabalhando em conjunto. Por que o trabalhador recebe por esse trabalho e o usuário não?

U1 - É uma questão de preconceito. Às vezes o próprio médico não tem condições de lidar com as situações, e um usuário pode ter bem mais. O fato de eu estar no GAM todo esse tempo, eu já pude ser útil pra muita gente.

U3 - Nosso trabalho GAM nãoé levado em consideração. É um trabalho de serviço ao próximo. Nós estamos em uma associação. Essa associação precisa do olhar do governo.

U2 - ... Quem é que precisa ter responsabilidade? O município e o Estado!

Pensamos que a preocupação para a qual confluem os diferentes pontos de vista dos usuários acerca da moderação dos grupos diz mais respeito àquilo que Annemarie Mol (2008) expressou como lógica do cuidado (que envolve participação e responsabilização coletiva) em oposição a uma lógica da escolha (que recai sobre o indivíduo isentando os profissionais de responsabilidade). Ou seja, a importância da participação dos trabalhadores nos grupos GAM diz menos de uma incapacidade dos usuários em tomar para si a função de moderadores do grupo e mais da responsabilização da equipe com uma proposta de trabalho que investe na autonomia e protagonismo do usuário.

 

Considerações finais

A pesquisa da qual parte este artigo teve como objetivo acompanhar o processo de implementação da GAM como estratégia da política de saúde mental da SES/RS. Num primeiro momento, foi possível identificar que os grupos GAM se disseminaram, em sua maioria, em determinados serviços na região metropolitana do estado, ainda sob influência da pesquisa-intervenção original que construiu a versão brasileira do Guia GAM-BR. Foi no processo mesmo de implementação dessa mais recente pesquisa nas diferentes regiões do estado que a estratégia GAM pode disseminar-se em outras regiões e municípios, favorecendo, ainda, o seu desenvolvimento independentemente da presença da Universidade. A proposta metodológica, pautada na participação de diferentes atores e na construção cogestiva da pesquisa, promoveu, desde o início, exercícios de protagonismo dos seus participantes, constituindo-se como um dispositivo permanente para a produção, difusão e transferência de conhecimento. A partir dos encontros grupais inspirados no método paidéia, alguns usuários ampliaram suas participações, passando a se inserir nas reuniões de planejamento e análises do material construído em campo, ampliando o protagonismo e assumindo outras funções nos serviços onde são atendidos, como a de moderadores de grupos GAM ou apoiadores de moderadores em outros serviços na implantação de novos grupos GAM. O modo de operar da pesquisa veio ao encontro do modo cogestivo a que se propõe a estratégia GAM, que propicia a reflexão sobre as formas de condução dos grupos e, consequentemente, do cuidado ofertado, produzindo estratégias de grupalidade que contribuem para o exercício da lateralidade de saberes e consequente protagonismo dos sujeitos com intenso sofrimento psíquico.

Observou-se, porém, a despeito do exercício de produção de autonomia que a experiência dos grupos GAM e da própria pesquisa suscitava nos usuários, o quão difícil é, para os trabalhadores, sair da posição de um suposto saber sobre o outro e adotar uma postura de abertura para escutá-lo, reconhecendo nele o saber advindo da experiência e construindo modos de cuidar a partir das trocas estabelecidas na relação. No entanto, quando o trabalhador se coloca ao lado do usuário, quando ocorre essa lateralização, abrem-se possibilidades inventivas de cuidado, pautadas na qualidade afetiva de vínculo que se estabelece entre ambos, referida como bastante positiva na perspectiva dos usuários. Além disso, para os usuários, experimentar formas de autoconhecimento e conhecimento do contexto do seu adoecimento e de seus direitos a partir de trocas entre pares é um exercício novo e que tem se mostrado potente para a compreensão do sentido e do valor a atribuir em suas vidas ao cuidado cuja responsabilidade é efetivamente compartilhada entre usuários e profissionais.

Salientamos, como pontos fortes deste estudo: a participação ativa dos usuários do início ao fim do seu desenvolvimento, da qual dão testemunho as falas vívidas, reflexivas e críticas destacadas das narrativas e demais espaços de fala constituídos como dispositivos da pesquisa; e a criação de arranjos locais da pesquisa, conforme os contextos e as particularidades locorrregionais, com intuito de viabilizar os modos de participação de usuários e trabalhadores nas rodas de conversa e nos encontros de análise e discussão dos materiais. Em contrapartida, um aspecto limitador importante deveu-se a mudanças na gestão dos processos de trabalho nos serviços de saúde, que atingiram diversos municípios atinentes ao estudo, dificultando a participação de usuários e trabalhadores desses municípios nas reuniões propostas -o que restringiu a extensão dessa participação, embora não, como referido acima, a sua intensão. Fica o ensejo para a realização de estudos futuros que possam alcançar outras localidades - outras vozes - em nosso estado.

 

Notas

1 Na macrorregião Vales, o término do vínculo de trabalho da pesquisadora regional responsável com a universidade local impediu a finalização do processo de construção das narrativas, tendo sido priorizadas, para análise, as narrativas referentes às duas rodas de conversa que contaram com a participação dos usuários; também não possibilitou a participação de trabalhadores e usuários da região no processo de análise do material, razão pela qual a pesquisadora se somou ao grupo ampliado de pesquisa da macrorregião metropolitana para realização dessa tarefa.

2 Conforme a frase de abertura do Guia GAM: Sou uma pessoa, não uma doença!

 

REFERÊNCIAS

Campos, G. W. S. (2001). Apoio Paidéia. Recuperado de http://www.redehumanizasus.net/sites/default/files/apoio_paideia_-_gastao_1.pdf        [ Links ]

Campos, G. W. S. (2006). Efeito Paidéia e o campo da saúde: reflexões sobre a relação entre o sujeito e o mundo da vida. Trabalho, Educação e Saúde, 4(1),19-31. Recuperado de https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1981-77462006000100003&lng=en&nrm=iso&tlng=pt        [ Links ]

Campos, G. W. S. (2012). Clínica e saúde coletiva compartilhadas: teoria paidéia e reformulação ampliada do trabalho em saúde. In M. C. S. Minayo, G. W. S. Campos, M. Akerman, M. Drumond Júnior, & Y. Carvalho (Orgs.). Tratado de saúde Coletiva (pp. 41-80). São Paulo: Hucitec.         [ Links ]

Ferrer, A. L., Emerich, B. F., Figueiredo, M. D., Trape, T. L., Paraguay, N. L. B. B., Pinto, C. A. G., Gigante, R. L., Oliveira, M. M., Zepeda, J. E. S. & Moraes, M. H. (2016). Tecendo a história da construção da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Criança (PNAISC) na visão dos sujeitos envolvidos: o desenho qualitativo da pesquisa com utilização da técnica de grupo focal. Divulgação em Saúde para Debate, 55,84-117. Recuperado de http://cebes.org.br/site/wp-content/uploads/2016/04/DIVULGA CAO_55-WEB-FINAL.pdf        [ Links ]

Figueiredo, M. D.& Onocko-Campos, R. (2009). Saúde Mental na atenção básica à saúde de Campinas, SP: uma rede ou um emaranhado?. Ciência e Saúde Coletiva, 14(1),129-138. Recuperado de https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232009000100018&lng=en        [ Links ]

Furlan, P. G. &Campos, G. W. S. (2014). Pesquisa-apoio: pesquisa participante e o método Paidéia de apoio institucional. Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 18(1),885-894. Recuperado de https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-32832014000500885&lng=en&nrm=iso&tlng=pt        [ Links ]

Furtado, J. P. (2001). Um método construtivista para a avaliação em saúde. Ciênciae Saúde Coletiva, 6(1),165-182. Recuperado de https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232001000100014&lng=en&nrm=iso&tlng=pt        [ Links ]

Mol, A. (2018). The logicofcare. London and New York: Routledge.         [ Links ]

Onocko-Campos, R. T. & Furtado, J. P. (2008). Narrativas: utilização na pesquisa qualitativa em saúde. Revista de Saúde Pública, 42(6),1090-1096. Recuperado de https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0034-89102008000600016&lng=en&nrm=iso&tlng=pt        [ Links ]

Onocko-Campos, R., Palombini, A. L., Passos, E., Gonçalves, L. L. M., Santos, D. V. D., Stefanello, S., Melo, J., Silveira, M., Guerra, S., Vasconcelos, C. S.&Guerini, L. (2014). GESTÃO AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO - Guia de Apoio a Moderadores. Recuperado de https://www.fcm.unicamp.br/fcm/sites/default/files/paganex/guiagammoderador-_versao_para_download_julho_2014.pdf        [ Links ]

Onocko-Campos, R., Palombini, A. L., Silva, A.E., Passos, E., Leal, E., Serpa Jr, O. D, Marques, C. C,, Gonçalves, L. L. M., Santos, D. V. D., Surjus, L. T. L. S., Arantes, R. L., Emerich, B. F., Otanari, T. M. C. & Stefanello, S. (2012). Adaptação multicêntrica do Guia para a gestão autônoma da medicação. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, 16(43),967-980. Recuperado de https://www.scielo.br/pdf/icse/2012nahead/aop4412.pdf        [ Links ]

Onocko-Campos, R., Passos, E., Leal, E., Palombini, A. L. &Serpa, O. (2018). GUIA DA GESTÃO AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO - GAM. DSC/FCM/UNICAMP; AFLORE; IPUB/UFRJ; DP/UFF; PPGPSI/UFRGS. Edição revisada. 1ª. edição em 2012.Recuperado de http://materiais.cenatcursos.com.br/guia-gestao-autonoma-medicacao        [ Links ]

Palombini, A. L., Onocko-Campos, R. T., Silveira, M., Gonçalves, L. L. M., Zanchet, L., Xavier, M. A. Z.& Marques, C. C. (2013). Relações entre pesquisa e clínica em estudos em cogestão com usuários de saúde mental. Ciência e Saúde Coletiva (Impresso), 18,2899-2908. Recuperado de https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1413-81232013001000014        [ Links ]

Palombini, A.L. & Rodriguez del Barrio, L. (s/d). Gestão Autônoma da Medicação: do Quebec ao Brasil. (manuscrito).         [ Links ]

Rodriguez del Barrio, L. & Poirel, M. (2007). Émergence d'espaces de parole et d'action autour de l'utilisation de psychotropes: La Gestion autonome des médicaments de l'âme. Nouvelles pratiques sociales, 19(2),111-127. Recuperado de https://www.erudit.org/en/journals/nps/1900-v1-n1-nps1724/016054ar/        [ Links ]

Santos, D. V. D. (2009). Campinas e sua relação com os arranjos da clínica ampliada (Tese de doutorado). Universidade Estadual de Campinas, Campinas.         [ Links ]

 

 

Enviado em: 10/09/19
Aceito em: 10/06/20

 

 

Analice de Lima Palombini é docente do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia e Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional UFRGS. É também psicóloga e doutora em Saúde Coletiva (UERJ).
E-mail: analice.palombini@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-8332-8292
Ana Luiza Ferrer é docente do Departamento de Terapia Ocupacional (UFSM). Além disso, é também terapeuta Ocupacional e doutora em Saúde Coletiva pela Unicamp.
E-mail: aluizaferrer@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-0862-1015
Douglas Casarotto de Oliveira é doutorando em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS e mestre em Educação pela UFSM. É também psicólogo CAPS ad Cia do Recomeço, Santa Maria, RS, e docente do Curso de Psicologia da FISMA.
E-mail: douglascasarotto@hotmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-7204-135X
Júlia Arnhold Rombaldi é mestranda em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS. Também pela UFRGS, se graduou em Psicologia.
E-mail: juliarombaldi@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-8234-9713
Marcos Adegas de Azambuja é docente do Programa de Pós Graduação e Departamento de Psicologia UFSM. É também doutor em Psicologia pela PUCRS.
E-mail: marcos.azambuja@ufsm.br
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-2451-1644
Vera Lúcia Pasini é docente do Programa de Pós Graduação em Psicanálise: Clínica e Cultura e do Departamento de Psicanálise e Psicopatologia (UFRGS). Psicóloga. É doutora em Psicologia Social pela PUCRS.
E-mail: verapasini@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-4579-8525
Olinda Maria de Fátima Lechmann Saldanha é docente do curso de Psicologia (Unisc). É mestre em Psicologia Social e Institucional UFRGS e doutora em Educação pela UFRGS.
E-mail: olindalsaldanha@gmail.com
ORCID:
http://orcid.org/0000-0003-4189-4779

 

 

Anexos

 


Clique para ampliar

 

 


Clique para ampliar

Creative Commons License