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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.10 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.103408 

ARTIGOS

 

GAM, Apoio e Cuidado em CAPS AD

 

GAM, Care Support in Álcohol and Other Drugs

 

GAM, Cuidado y Apoyo em Álcohol y Otras Drogas

 

 

Eduardo CaronI; Laura Camargo Macruz FeuerwerkerI; Eduardo Henrique PassosII

IUniversidade de São Paulo (USP), São Paulo, SP, Brasil
IIUniversidade Federal Fluminense (UFF), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

Discute-se um processo de capilarização da estratégia GAM - Gestão Autônoma da Medicação - em São Paulo entre 2017 e 2018, em que trabalhadores e usuários foram convidados à investigação e experimentação do dispositivo GAM na atenção especializada no campo de álcool e outras drogas. Este processo resultou na construção de práticas de apoio distribuído entre trabalhadores e usuários e de um coletivo com potencial de ampliação de possibilidades de redução de danos. Ao longo do processo, os trabalhadores realizaram oficinas de apoio e moderaram os grupos GAM com usuários. Dois analisadores do trabalho e da clínica emergiram nesse processo compartilhado: as experiências de violência nos modos de existência dos usuários e o dia-a-dia dos trabalhadores em serviço; e a expectativa de abstinência e a frustração das "recaídas" que incidem nas relações de cuidado.

Palavras-chave: Autonomia; Álcool e Drogas; Saúde Mental; Violência; Redução de Danos.


ABSTRACT

A process of capillarization of the GAM strategy - Autonomous Management of Medication - is discussed. In São Paulo, between 2017 and 2018, workers and users were invited to the investigation and experimentation of the GAM proposal in the specialized attention to the suffering in the field of alcohol and other drugs. This process resulted in the construction of a device that generates support practices distributed among workers and users and of a collective with potential to increase possibilities of harm reduction. Throughout the process, workers held "support workshops" and moderated "GAM groups" with users. Two analyzer's themes emerged in this collective process: the experiences of violence that happens in the existence of the users and the day-to-day of the workers in the institution; and the expectation of abstinence and the frustration of "relapses" that affect care relationships in the service and clinic.

Keywords: Autonomy; Alcohol and Drugs; Mental Health; Violence; Harm Reduction.


RESUMEN

Se discute un proceso de capilarización de la estrategia GAM (Gestión autónoma de medicamentos) en São Paulo entre 2017 y 2018, en el que se invitó a trabajadores y usuarios a investigar y experimentar el dispositivo GAM en atención especializada en el campo del alcohol y otras drogas. Este proceso resultó en la construcción de prácticas de apoyo distribuidas entre los trabajadores y usuarios y de un colectivo con el potencial de ampliar las posibilidades de reducción de daños. A lo largo del proceso, los trabajadores realizaron talleres de apoyo y moderaron los grupos GAM con los usuarios. Dos analizadores de trabajo y clínica surgieron en este proceso compartido: las experiencias de violencia en los modos de existencia de los usuarios y la vida cotidiana de los trabajadores en servicio; y la expectativa de abstinencia y la frustración de las "recaídas" que afectan las relaciones de atención.

Palabras clave: Autonomía; Alcohol y Drogas; Salud Mental; Violencia; Reducción De Daños.


 

 

Introdução

Trataremos aqui da experiência de construção do dispositivo GAM em um CAPS III Álcool e outras Drogas no município de São Paulo. A aproximação preliminar dos problemas envolvidos neste serviço apontava uma complexidade da qual nos ocuparemos, neste momento, apenas de questões de arranjos que indicam caminhos potentes para produção de novos modos de produzir encontros neste campo. Nesta experiência ganharam evidência modos relacionais que compuseram o dispositivo naquele contexto: por um lado, um campo de compartilhamento e problematização do trabalho de cuidar que chamaremos de Apoio; por outro, a construção de um território existencial que consideramos redutor de danos.

A oferta de apoio à equipe de trabalhadores para a construção de um grupo GAM naquela unidade funcionou como dispositivo (Deleuze, 2016), produziu deslocamentos e instaurou novas relações profissional-usuário, profissional-profissional e usuário-usuário, que passaram a constituir o modo de operar do próprio grupo.

A contração de uma grupalidade (Passos et al., 2013) entre os usuários produziu efeitos de redução de danos pela participação nos encontros da GAM. A experimentação intensiva no coletivo conferiu à prática de apoio sentido distributivo, que amplia horizontes e possibilidades existenciais em relação ao uso de substâncias. A noção de apoio presente no campo da saúde pública brasileira como importante ferramenta de gestão (Campos, 2000) ganhou inflexão própria a partir da relação com a estratégia GAM no CAPS-AD, dialogando com modos outros de produzir apoio (Bertussi, Sundfeld & Feuerwerker, 2016).

 

Formação e apoio como meios de capilarização da proposta GAM

Essa experiência de intervenção em um CAPS III Álcool e outras Drogas foi parte de um processo de capilarização da estratégia GAM na cidade de São Paulo realizada em 2017 e 2018 no bairro da Vila Brasilândia, que incluiu atividades de formação profissional em serviço e de apoio a equipes de duas Unidades Básicas de Saúde e um CAPS III Álcool e outras Drogas. Entendemos a capilarização como um processo de ampliação do acesso à proposta da GAM pela oferta de formação e apoio aos trabalhadores e gestores para construir dispositivos da GAM nos serviços. Esse processo foi realizado no âmbito da interação serviço-ensino por meio dos programas PROPET-Saúde-Programa Nacional de Reorientação Profissional em Saúde e Programa de Educação pelo Trabalho para a Saúde -realizado em parceria entre a PUC-SP e a Coordenadoria de Saúde Norte da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo, que inclui a Supervisão Técnica de Saúde - STS da Freguesia do Ó e Vila Brasilândia.

Os bairros da Freguesia do Ó e Vila Brasilândia se situam na região norte do município, entre a várzea da Marginal Tietê e o alto da Serra da Cantareira, constituída por três áreas distintas: várzea, pé-de-serra e alto da serra. A região de alto da serra, onde se situa a Vila Brasilândia, era uma área florestal de reserva de mananciais que, entre as décadas de 70 a 90, foi urbanizada em regime de ocupação e autoconstrução. Altamente povoada, com uma densidade populacional (13.500 hab/km2) maior que a dos municípios mais densos da América Latina, como São João do Meriti/RJ (13.000hab/km2), a Vila Brasilândia é um território de vulnerabilidades sociais e políticas, impostas, entre outros, pela desigualdade, a violência de Estado e do crime organizado.

Inicialmente foram realizados três encontros de formação na Supervisão Técnica de Saúde - STS - Freguesia do Ó e Vila Brasilândia - reunindo trabalhadores - agentes comunitárias, farmacêuticos, enfermeiras, assistentes sociais, psicólogos, médicos, técnicos - gestoras das três unidades de saúde e da organização social administradora dos serviços de saúde daquela região, estagiários e duas professoras da PUC - a coordenadora do convênio PROPET-Saúde e a coordenadora do curso de psicologia. Nesses três encontros de formação, realizados em rodas dialógicas de construção coletiva, foram discutidos elementos introdutórios da proposta e produzida uma base conceitual da estratégia e do dispositivo (Onocko Campos et al, 2012, Rodriguez del Barrio & Poirel 2007, Rodriguez del Barrio, Cyr, Benisty & Richard, 2013).

Esses encontros de formação foram coordenados e facilitados por um pesquisador da Faculdade de Saúde Pública da USP que, após esse processo inicial de formação, passou a desempenhar a função de apoiador das equipes locais nas três unidades supracitadas durante o período de quinze meses de 2017 a 2018. Em cada unidade eram realizadas semanalmente oficinas de apoio com trabalhadores e gestores para pensar, formular e implementar um projeto local baseado na perspectiva GAM e nas condições locais do serviço e do território. A partir dessa formulação usuários foram convidados a participar de encontros semanais e as oficinas de apoio, então, se tornaram um espaço para o processamento das experiências produzidas naqueles encontros com usuários, que levaram à instauração de dispositivos da GAM em cada serviço. Eventualmente, nas três unidades também se realizavam reuniões gerais que envolviam toda equipe da unidade na discussão sobre o processo de construção do dispositivo. Além destes processos locais, nestes quinze meses, bimensalmente eram realizados encontros conjuntos com os integrantes das equipes locais das três unidades para compartilhamento e avaliação dos processos de construção do dispositivo GAM em cada território e problematização das experiências de moderação dos grupos GAM com usuários.

Essas experiências de capilarização e construção de dispositivos GAM na Vila Brasilândia constituíram um campo de investigação que queremos designar de pesquisa-apoio, em que o lugar do pesquisador acadêmico é também de apoiador dos trabalhadores que realizam a experiência de moderação dos grupos GAM. O pesquisador acadêmico participava dos encontros com usuários também como apoiador daquele grupo de usuários e trabalhadores. Pesquisa-apoio que dialoga com outras experiências de produção compartilhada de conhecimento com trabalhadores e usuários (Abrahão et al., 2103, Feuerwerker et al, 2016). Dado que não havia até então publicações de pesquisas sobre a GAM na Atenção Básica e no campo de álcool e outras drogas e que o processo estava sendo construído de modo compartilhado, os trabalhadores e usuários foram convidados a participar de um processo investigativo da experimentação da GAM nestes espaços. Essa pesquisa foi autorizada e registrada nas instâncias de gestão local e regional aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa - CEP da Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo - certificado 62652516.6.3001.0086 - e CEP da USP-Faculdade de Saúde Pública - certificado 62652516.6.0000.5421.

 

A constituição de oficinas de apoio

No CAPS III Álcool e Drogas Vila Brasilândia, a partir de setembro/2017 foram realizadas as oficinas de apoio com uma farmacêutica, uma técnica de farmácia, um psicólogo, uma enfermeira, uma terapeuta ocupacional, uma redutora de danos e uma gestora. Como veremos, estas oficinas de apoio foram chave para que a GAM operasse como dispositivo no serviço. Elas, por um lado, permitiram conduzir o processo preliminar de elaboração dos problemas postos para a implementação da estratégia. Por outro lado, as oficinas se constituíram, durante a realização dos encontros GAM com usuários, em espaço de problematização da clínica e dos processos de trabalho, assim como coletivo de apoio aos trabalhadores em situações provocadas pelos deslocamentos produzidos nas rotinas da instituição.

Nessas oficinas de apoio, num primeiro momento foi feita análise do território com sua população e dos problemas com que as equipes lidam no seu trabalho, notadamente as relações entre o serviço, profissionais, usuários, drogas e medicação, o que propiciou àquele grupo de trabalhadores desenhar um lugar para a GAM em seu trabalho. Interessava entender como o dispositivo GAM, inicialmente criado com um público com sofrimentos mentais graves e persistentes e pensado no sentido da ampliação da autonomia na gestão da medicação psiquiátrica, teria lugar num serviço com um público usuário de álcool e outras drogas. As oficinas de apoio se ocuparam do problema posto pelo uso de substâncias prescritas e proscritas, lícitas e ilícitas, inclusive a medicação, e o desejo de autonomia. Neste processo de invenção de novos problemas (Kastrup, 2007), referente ao uso de psicotrópicos (Lima & Merhy, 2016), o grupo de profissionais e, posteriormente, o grupo com os usuários foram dando forma às múltiplas necessidades que se endereçavam à GAM como estratégia, dispositivo e modo de construir relações.

Até aquele momento, dois outros trabalhos acadêmicos tinham sido realizados discutindo o uso de substâncias psicoativas tendo como campo empírico uma pesquisa contextualizada na experiência GAM (Rodrigues, 2014, Medeiros, 2013). Estas pesquisas não trataram da implementação do dispositivo GAM em serviço voltado para usuários de álcool e outras drogas, embora já apontassem a pertinência dessa discussão no campo AD. "Embora aparentemente focada no termo medicação, a metodologia e as apostas desta pesquisa exaltam o debate sobre drogas como um todo, e não somente sobre aquelas prescritas (os fármacos) " (Medeiros, 2013, p. 5).

Na ocasião da pesquisa que realizamos, foi a problematização realizada pelos trabalhadores do CAPS AD que orientou o grupo na construção da GAM como dispositivo. Essa foi a primeira experiência de que tivemos conhecimento em que a efetivação da GAM foi pensada, gestada e experimentada em um CAPS III Álcool e Drogas.

 

Oficinas de apoio como espaço de análise e invenção do dispositivo

No contexto das práticas no CAPS AD Vila Brasilândia, a administração e o uso da medicação se dá na relação com o uso de álcool e outras substâncias. A situação mais extrema de administração do medicamento é durante a "hospitalidade", quando o usuário fica internado no CAPS por um curto período, em torno de 14 dias, em abstinência, denominado "desintoxicação". A conduta clínica no serviço costuma incluir a administração de medicação específica para reduzir a "fissura", em que o sono é um efeito comum. O usuário fica resguardado das múltiplas forças presentes no território que fazem parte das redes de uso e distribuição de substâncias psicoativas.

Os trabalhadores participantes das oficinas de apoio questionavam essa prática da hospitalidade como uma intervenção psiquiátrica em que havia redução da autonomia do usuário, o que se estendia para além daquele momento agudo. Percebia-se que a prática da hospitalidade tendia a entrar em um ciclo em que o usuário deixava o período de abstinência durante essa hospitalidade, retornava ao uso danoso ou abusivo da substância, até que se configurasse uma nova crise e a busca de nova intervenção psiquiátrica e hospitalidade: um ciclo repetitivo que tendia à acomodação nessa alternância entre abstinência e uso abusivo.

Quando deixava a condição de hospitalidade, o usuário podia permanecer em abstinência e substituir a droga por medicamentos; o que acontecia durar mais ou menos tempo. Podia também interromper o uso de medicamento, ou experimentar várias formas de uso da medicação em combinação com outras drogas. Podia usar o medicamento psiquiátrico como droga, ou, em alguns casos, fazer uso simultâneo de medicação, álcool e outras substâncias para potencializar efeitos. Essas práticas envolviam também uma circulação de medicamentos nos circuitos do uso e distribuição de substâncias psicoativas, o que é mais um liame entre o uso de medicação e drogas no território. Na percepção dos trabalhadores participantes das oficinas de apoio, na maioria dos casos o usuário interrompia a medicação devido ao medo do uso simultâneo de psicofármacos e outras substâncias.

Os trabalhadores frisavam que os serviços de saúde não eram informados pelas autoridades médico-legais das causas dos óbitos de usuários, de forma a subsidiar a avaliação de possíveis relações destes óbitos com o uso de medicamentos combinado com a intoxicação por outras substâncias.

Esse foco de experiência, que envolve o uso não prescrito e drogas prescritas, é um fator a ser considerado entre os efeitos iatrogênicos das condutas medicamentosas que compõem as práticas dos serviços. Esse foco problemático também tem relação com outras condições de saúde do público atendido pelo serviço, bastante frequentes como, por exemplo, intercorrências hepáticas ou relacionadas à glicemia. A prescrição de outros medicamentos além dos psiquiátricos -como insulina e quimioterápicos para hepatites - pode ter efeitos iatrogênicos, até mesmo fatais, conforme o regime alimentar ou as condições hepáticas do usuário. Esse cenário complexo diz respeito ao campo de problematização que a Gestão Autônoma da Medicação se propõe a operar.

Outra preocupação atravessava as oficinas de apoio: o maior público usuário da hospitalidade e "desintoxicação" são usuários acima de 25 anos, público para quem o serviço concentra sua grade de ofertas. Com isso, os jovens entre 18 e 25 anos não encontram espaço no CAPS, que não consegue ainda oferecer um dispositivo para estes jovens. São o público menos vinculado ao serviço, chegam no CAPS e não retornam mais. Embora se movam em territórios existenciais de grande vulnerabilidade, alguns com passagens pelo sistema prisional, são jovens mais preservados, que ainda se encontram numa fase de uso mais leve, não apresentam comportamento de dependência à substância e têm muitas possibilidades de reverter prejuízos do uso danoso.

Nas oficinas de apoio se perguntou como pensar, com base na experiência da GAM, uma oferta de espaço de convivência para esses jovens que não fazem uso de medicação. A pergunta buscava extrair da GAM a possibilidade de experimentar autonomia na relação com o uso de substâncias psicoativas, sem necessariamente focalizar o uso do medicamento. Este outro foco de experiência propõe um sentido derivado da proposta GAM em questão neste campo do uso de substâncias: o da gestão autônoma da droga.

Nas oficinas de apoio, ao se discutir a abordagem proposta pela GAM, percebia-se que o grupo com usuários construía um desvio, em que as formas usuais de relação trabalhador-usuário eram postas em questão. Percebia-se que na GAM essa relação era mais livre do que nos grupos terapêuticos por não se orientar pela relação terapêutica profissional-paciente.

Esse foi um ponto de partida do grupo em relação à proposta: deslocar-se do lugar instituído de saber e poder - de quem diagnostica, analisa, orienta e conduz - para experimentar outros lugares, lado a lado na roda com os usuários, sem minimizar as diferenças que estão permanentemente se produzindo nas relações.

Essa abertura ao desvio era potencializada pela estratégia afirmativa de direitos e cidadania; pela posição de lateralidade entre os participantes no grupo, de modo a favorecer uma distribuição coletiva de enunciação e protagonismo - que terá implicações sobre a gestão do cuidado e do apoio; pela atenção e respeito às diferenças de modo a favorecer alteridade e mudanças de perspectiva (Melo, Schaeppi, Soares & Passos, 2015).

Outro aspecto que o grupo explorou nas oficinas de apoio foram os instrumentos na GAM: os Guias GAM do moderador e do usuário (Onocko et al., 2012, 2014). Colocávamo-nos na perspectiva de, com os usuários, avaliar o Guia do Usuário enquanto, durante o caminho, avaliaríamos também o Guia do Moderador nas oficinas de apoio. Considerávamos que os guias ofereciam uma forma estruturada de seguimento do processo. O Guia GAM do Usuário é resultado da adaptação da ferramenta inicialmente construída no Canadá (Gestion Autonome de la médication de l'âme - Mon Guide Personnel) e consiste num conjunto de passos que propõem ao usuário questões e informações para problematizar sua relação com o uso de medicamentos psiquiátricos, visando aumentar sua autonomia (Kinoshita, 2001) com respeito ao seu tratamento, apostando na ampliação de sua rede de conexões existenciais (Merhy, Feuerwerker & Silva, 2012) e na diretriz cogestiva junto à equipe que o acompanha. A estratégia GAM foi formulada em 1993, no Quebec, a partir da mobilização de usuários e trabalhadores da saúde mental preocupados com a participação ativa dos usuários nas decisões sobre o uso de medicação psiquiátrica (Rodriguez, Perron & Ouellette, 2008).

O Guia GAM do Usuário é composto de seis passos. A ideia que dispara a discussão está sintetizada no enunciado do primeiro passo: "Eu sou uma pessoa, não uma doença". No passo seguinte, "Observando a si mesmo", o usuário reflete sobre as condições em que vive, com ênfase na sua saúde e nos medicamentos que toma, por que toma, efeitos positivos e negativos. No terceiro passo, "Ampliando a sua autonomia", a ênfase é nas suas necessidades e nas redes de apoio com que pode contar para atendê-las, destacando-se seus direitos, tal como expressos na Carta dos direitos dos usuários da saúde no SUS. O quarto passo, "Conversando sobre os medicamentos psiquiátricos", traz informações e questionamentos sobre o uso dos medicamentos, subsidiando a postura crítica e participativa em relação ao cuidado. Na segunda parte do Guia - "Um caminho para a mudança" -, o quinto passo retoma as discussões anteriores, visando o exercício da autonomia e o aumento da participação do usuário no cuidado. Por fim, o sexto passo, "Planejando nossas ações", conclui o Guia com a identificação e discussão dos problemas que o grupo de usuários percebe no processo de cuidado que lhes é ofertado e possibilidades de ação para enfrentar esses problemas.

Os passos temáticos propostos pelo guia pareciam adequados ao contexto do uso de álcool e outras substâncias, seja quanto às experiências no campo da vida pessoal, seja mais especificamente quanto à experiência e aos efeitos do uso das substâncias, seja em relação às trajetórias, às redes de uso no território ou em relação à reflexão sobre projetos de ação e de vida. Além disso, o Guia - o objeto, o livro, os textos e perguntas - interessava ao grupo e parecia favorecer ou invocar uma atitude problematizadora entre os participantes. Como veremos adiante, essa atitude se distingue do antagonismo, em que a relação no espaço da instituição, e algumas vezes no grupo da GAM, redundava em beligerância com mais ou menos violência.

Enfim, neste processo de discussões para a construção do dispositivo, aquele grupo estava inventando um novo lugar na instituição: um lugar para investigar, pensar e experimentar a gestão autônoma na relação com uso de medicação, álcool e outras drogas.

 

Grupalidade e cogestão na produção de um comum redutor de danos

Trataremos aqui de dois processos -contração de grupalidade e manejo cogestivo (Passos et al., 2013, Melo, Schaeppi, Soares & Passos 2015) - que interferem no plano comum (Barros, 2007) em que estão implicados trabalhadores e usuários, pesquisadores acadêmicos e rede territorial. Tal plano opera de forma transversal (Guattari, 1985), ampliando possibilidades de autonomia em relação.

A partir do final de novembro foram realizadas reuniões abertas da GAM com usuários, que geraram envolvimento crescente, constituindo um espaço de encontro muito importante no CAPS. Por adesão voluntária, o grupo constituiu um núcleo de vinte e dois participantes. Como os encontros eram abertos, outros usuários de participação menos regular eram atraídos para as discussões. Outros profissionais da instituição perceberam uma influência positiva da participação dos usuários nas reuniões da GAM e passaram a indicar a GAM nos projetos terapêuticos daqueles de quem eram referência, de forma que a GAM foi oficialmente inserida na grade institucional do serviço.

No início, o grupo GAM com usuários discutiu a forma de seu funcionamento, debruçando-se sobre si mesmo, refletindo sobre sua própria composição. Identificamos nessa fase de contratação do grupo, o processo de contração de grupalidade que garante a consistência de um coletivo que é mais do que a soma de suas partes (Barros, 2007). Os participantes decidiram aumentar a duração dos encontros da GAM, de uma hora para uma hora e meia, o que implicou a negociação com outras pessoas da instituição para mudar o horário de atividades contíguas na grade institucional.

Alguns participantes preferiam limitar a quantidade de pessoas, pois as rodas estavam ficando muito grandes; outros argumentavam que o grupo deveria permanecer aberto à participação. O grupo deliberou ficar aberto a novos integrantes, mas sem fazer convite a todos que estivessem na casa naquela hora. Decidiram usar o Guia do Usuário nas reuniões da GAM e pediram exemplares do guia para consulta. Uma usuária propôs que cada participante tivesse um diário, o seu próprio caderno para fazer as anotações.

A abertura de um espaço de fala sobre a autonomia no uso de substâncias foi muito mobilizadora da participação nos encontros GAM. Acolhia-se a experiência comum de sofrimento daqueles usuários, constituindo um espaço de cuidado de si, de conversão do olhar sobre si e sobre o que se partilhava. No plano individual esse sofrimento era narrado pelos usuários como perda de controle da mente, do desejo e do corpo. Essa sensação de perda de controle era acoplada ao desejo de autonomia, um forte motivador da participação no grupo da GAM.

O sentido de autonomia como controle de si, do desejo e da fissura do corpo, num plano individualizado e autossuficiente, era um sentido automático, que vigora na linguagem comum tanto entre os usuários quanto trabalhadores. Veremos adiante que a noção de autonomia que se amplia nas relações, no plano coletivo, em rede, deriva da experiência de apoio e da percepção da grupalidade como redutora de danos.

De início, tanto os usuários quanto os profissionais tinham uma tendência a depositar sobre o indivíduo a responsabilidade pela escolha e o controle do seu comportamento. No entanto, nas experiências narradas, o plano coletivo foi sempre evocado, seja como propiciador do uso, seja como protetor para o não uso de substância, de modo que o governo de si variava em função das relações e conexões de grupo. O coletivo, como plano relacional que engendra individuação e meio (Escóssia & Kastrup, 2005), é uma referência para pensarmos essas noções de autonomia, cogestão, grupalidade e apoio.

A grupalidade emerge com força nos encontros. Os relatos de experiência evidenciam que o uso de drogas está sempre situado nas relações com o outro e em grupo. Quando olham para si, para o seu processo e sua participação nos encontros GAM, modificam suas formas de expressão, atenção, introspecção e valorizam o grupo como espaço de proteção. Encontram na GAM um espaço de valorização de suas próprias experiências e da sua condição de sujeitos de direitos. Desponta uma congruência entre a prática de parceria, uma prática de estar lado a lado - a que chamamos lateralidade - e a redução de danos como efeito.

Excerto do diário de campo1:

Seu Humberto, sempre muito calado, ou muito agressivo em suas falas, com xingamentos, no grupo da GAM toma a palavra para contar como se sente, como é sua vida solitária onde mora. Roberson conta como o uso da droga está relacionado à sua autoimagem no seu relacionamento social, principalmente diante de mulheres que deseja, como forma de se apresentar para conquistar, se afirmar e se mostrar atraente. Conta que o fato de falar disso no grupo GAM o ajuda ver o problema de se apresentar como usuário de droga. Rita diz que deixa a garrafa embaixo da cama, pois, geralmente quando acorda ela está tão mal que não tem forças para se levantar, então ela bebe, e o álcool lhe dá ânimo para sair da cama e ir à biqueira pegar droga. Ela conta que agora está experimentando não levar a garrafa para o quarto.

Certa vez a palavra circulava entre os participantes, que narravam múltiplas cenas de uso. O que se ressaltava a cada relato era como diferentes caminhos iam levando a situações que reforçavam ainda mais o uso. O grupo foi, então, chamado a olhar para o próprio momento de relatar as cenas, indagado sobre que momento é esse, compartilhar, contar e escutar. Os participantes apontaram, então, que a grupalidade era o continente que acolhe e recebe sem crítica aquilo que necessita expressão.

É pra desabafar!

Quando eu falo me desintoxico!

Aqui eu posso falar, eu preciso desse grupo!

Aqui no grupo a gente pode falar que não vai ter preconceito.

Esse grupo me ajuda eu ter mais força pra cuidar da minha vida.

Os relatos daquelas cenas de uso se endereçavam ao coletivo e encarnavam uma força de contração, a força do desabafo, em que a grupalidade é adensada. Praticava-se uma ética de respeito, reciprocidade e valorização da experiência, que favorece um maior envolvimento coletivo.

A participação na GAM era um convite à cogestão. A estratégia GAM-BR foi criada com usuários e trabalhadores em CAPS Adulto sem relação ao uso abusivo de álcool e outras drogas, o que colocava, então, com usuários de álcool e outras drogas, a necessidade de testar e avaliar os temas, a sequência de passos e os problemas que constituem o Guia do Usuário e do Moderador, assim como criar um outro nome para o dispositivo.

O convite, portanto, incluiu um trabalho de construção da abordagem GAM com os usuários. Essa perspectiva construtivista orientou o grupo, que estava sempre diante de uma indagação, numa ação de conhecer, pensar e produzir coletivamente, seja qual for o tema em questão. Não visávamos à aplicação de um método para atingir um objetivo - a redução do uso de droga, abstinência, autonomia - mas um processo em que o objetivo era a própria realização, construção e prática de um arranjo para abordar os problemas em pauta (Passos & Barros, 2009).

A cogestão estava presente nos encontros indicando sua importância no dispositivo GAM. Os participantes eram incentivados a tomar conta, gerir e gestar o espaço do encontro, sua duração, a quantidade de participantes, a pauta, a circulação da palavra, o uso do Guia, o objetivo e os sentidos do encontro. O dispositivo GAM incluía outras articulações com a equipe da instituição, que abriam possibilidades de prática de cogestão: a reserva de espaço e horário para a reunião, a impressão dos Guias, a participação da gestão do serviço nas agendas dos profissionais envolvidos, quem e quantos são, o que deixam de fazer para participarem das oficinas de apoio e encontros com usuários, como se revezam e como o dispositivo GAM se insere no projeto institucional do serviço.

A prática de cogestão opera num plano de heterogeneidade e comunicação da diferença de pontos de vista, um plano de transversalidade (Guattari, 1985). É nesse plano que o novo emerge. Pela comunicação de diferenças, ativam-se processos de subjetivação. Há que cuidar dessa dimensão comunicacional, pois o dispositivo é fortemente atravessado, seja pela verticalidade da hierarquia institucional, que tende a uniformizar condutas a partir de modelos estabelecidos como, por exemplo, o Guia GAM ser tomado como instrumento padronizado de facilitação dos grupos; seja pela horizontalidade, que tende a homogeneizar os pontos de vista pelos traços de identidade, por exemplo, a homogeneidade de um grupo de usuários de álcool e outras drogas.

O plano de transversalidade está sempre sob tensão: não há respostas finais, nem como se acomodar em estereótipos, os quais estão sempre presentes na medida em que são estabilizadores de sentido, representam um senso comum e geram expectativas conhecidas como "bom senso". Entre os estereótipos mais frequentes está o lugar de dependente, seja da droga, seja do medicamento ou do tratamento; a "recaída" como fraqueza pessoal e falha moral; o uso de substância como fuga da realidade; a condição de adição como doença; lugares em que o usuário fica caracterizado e que justificam a repetição e culpabilizam o indivíduo.

Na medida em que a fala circula nos encontros, no plano de transversalidade abre-se espaço para que surjam vozes que produzem outras |111 narrativas, em que estereótipos e expectativas entrem em crise, abrindo outras possibilidades de experiência e a construção de novos valores. Nessa perspectiva não se trata do gerenciamento individual do uso de medicamento e, neste caso, álcool e outras drogas, mas da prática de cogestão em que profissionais de saúde, usuários e pesquisadores realizam um processo coletivo de investigação, de circulação de saberes situados ou localizados (Haraway, 1995).

 

Interferências da experiência apoiadora na construção do dispositivo

Aqui é preciso discutir outro processo que permeia a contração da grupalidade nos encontros: os processos de apoio. Com efeito, a prática ou atividade de apoio necessitava permanentemente dar visibilidade ao processo de cuidado de si e ao manejo com as relações que se estabelecem entre poder, saber e afeto, presentes ao longo de toda a experiência. O apoio emergia como acompanhamento do processo de trabalho de reinvenção do dispositivo GAM no serviço, incluindo a dimensão subjetiva do cuidado. Tal prática de apoio se distancia tanto da ideia de capacitação ou transmissão de conhecimento, quanto da racionalidade gerencial, protocolar, vertical e diretiva que ordena o sistema de saúde (Pasche & Passos, 2010).

As práticas de apoio, neste caso, põem em ação um posicionamento ético-político que propicia conexões entre gestão e atenção, clínica e política, sem o qual processos de ampliação de autonomia não são possíveis.

O apoio gerava uma dinâmica multiplicadora e circular que facilitava a capilarização da estratégia GAM. Por um lado, a experiência de apoio era uma experiência de formação de multiplicadores da GAM no território. Por outro lado, nos encontros de trabalhadores se produzia uma formação apoiadora: reunidos nos tornávamos apoiadores e essa experiência modulava as atitudes dos moderadores no encontro com os usuários na GAM. O apoio gerava um campo afetivo em que atitudes de apoio se gestavam. A formação de moderadores da GAM se situava nesse campo: os trabalhadores que participavam do apoio eram apoiados e se tornavam apoiadores. Esse era um modo de conexão importante entre as oficinas de apoio com trabalhadores e os grupos GAM com usuários.

A experiência de apoio tinha dinâmica circular. Por um lado, era um processo de produção de um conhecimento do grupo em que formávamos a nós mesmos. Por outro lado, nesta dinâmica, o coletivo apoiava o próprio apoiador que moderava as oficinas com os trabalhadores, isto é, a prática do apoiador se modificava pela produção comum. Veremos a seguir que a prática de cuidado dos trabalhadores também se modificava pela produção comum no grupo com os usuários.

Certa vez, quando os trabalhadores ainda estavam convidando os usuários para constituir o grupo GAM, durante uma reunião da oficina de apoio, os presentes compartilhavam um desânimo, uma preguiça mesclada com um sentimento depressivo. Conforme esses afetos puderam ser acolhidos, foi expresso um descontentamento em relação ao trabalho na instituição e como essa insatisfação gerava falta de envolvimento com novos projetos. O desânimo que contagiava os trabalhadores estava se fazendo sentir também na reunião da oficina de apoio. Após esse momento de compartilhamento e de visibilidade do incômodo, foi proposto que chamassem os usuários para dar início ao grupo GAM, onde outra experiência foi ganhando corpo. Expressões de alegria tomaram conta da dinâmica do grupo quando os usuários puderam valorizar a criação deste novo espaço no CAPS. Houve uma experiência de mudança de percepção e de atitude dos moderadores com um novo ânimo nascendo no encontro. Apoiava-se os trabalhadores a fazerem a GAM e o encontro GAM apoiava a sua continuidade.

A participação dos trabalhadores nos grupos GAM com usuários produzia mudanças nas relações. Os profissionais relatavam que sentiam maior abertura, empatia, proximidade e leveza na relação com os usuários no dia a dia do cuidado.

Os encontros da GAM também propiciavam um envolvimento de usuários na dinâmica do cuidado. Por exemplo: os participantes convidavam outros usuários à participação; Roberson relata como antes ele ficava isolado ou dormindo, e que agora ele repara quando ocorrem situações de dificuldade com outras pessoas no CAPS e deseja ajudar; numa ocasião em que estava em crise, Wagner fez uma ligação para Rita, que conhecera na reunião da GAM, que ficou com ele ao telefone por mais de uma hora, ajudando-o atravessar a crise. Esse envolvimento de usuários com o cuidado afetava os trabalhadores.

Por fim, acontecia também que usuários traziam para o compartilhamento na roda observações que questionavam as relações trabalhador-usuário no CAPS. Rodrigo, que valorizava as relações de cogestão, diálogo, compartilhamento e lateralidade na prática da GAM, usava essas noções para propor maior parceria entre trabalhadores e usuários no dia a dia do CAPS.

Esses exemplos indicam uma multiplicidade de efeitos da participação coletiva no dispositivo da GAM que afetavam usuários e trabalhadores moderadores e produzem alterações nas relações de cuidado e trabalho. Tendo em vista que essas alterações se propagavam num plano de experiência em comum, podemos qualificar aqui o apoio como prática relacional coletiva que interfere nos modos de cuidar. Enfatizamos que essas interferências são intensivas, mobilizadas num regime de afetabilidade, e não extensivas, produzidas num regime organizacional.

A partir da experiência de apoio aos trabalhadores, o dispositivo GAM foi sendo reinventado na experiência concreta do serviço numa dinâmica distributiva de protagonismo que aumentava a potência do grupo e ampliava fronteiras da prática de apoio entre os participantes, usuários e trabalhadores. Essa reciprocidade circular favorecia a lateralidade, o colocar-se lado a lado com o outro, a contração da grupalidade, a circulação da palavra, a intensificação da comunicação entre diferenças e, com isso, favorecia que experiências vividas como contraditórias e polarizadas emergissem no grupo de maneira agonística e menos antagonista.

A estratégia de apoio ultrapassou a função de meio de capilarização da GAM, ideia que tínhamos no início do processo. Apoio tornava-se uma dinâmica de manejo que, de partida, nos ofereceu uma perspectiva do coletivo como convivência de termos divergentes, experiências opostas, afirmações contraditórias, e essa convivência, em vez de gerar antagonismo, produzia pensamento, problema e deslocamentos de ponto de vista.

No ambiente de CAPS Álcool e outras Drogas, essa perspectiva ganhou proeminência dado que entre o seu público usuário se produzia com facilidade dinâmicas relacionais de antagonismo. Essa facilidade se relacionava às condições de violência extrema que compõem à experiência de vida de muitos usuários e à do trabalho no cotidiano do serviço.

 

Espaço de problematização do trabalho e da clínica

As oficinas de apoio com os moderadores fizeram parte do dispositivo GAM como exercício da prática cogestiva, em que a discussão - sobre as experiências no trabalho e ocorrências no dia a dia da instituição - colocava em análise práticas instituídas. Nas oficinas de apoio com os |114 trabalhadores era possível ver a si e se ver implicado, compondo uma teia em que a autonomia nas relações de trabalho estava em questão; um lugar de cuidado de si, de ocupar-se de si e olhar para as próprias condutas e padrões de relação abrindo novas formas de ver e dizer das rotinas no serviço.

Duas questões se destacavam: o tema da "violência" emergia em ato nas relações - entre usuários ou entre usuários e trabalhadores do CAPS - apesar dos esforços em contê-la ou mantê-la fora da instituição de saúde; outra questão era a da "recaída" como uma ocorrência cotidiana.

 

Abstinência, "recaída" e fracasso

Nos encontros da GAM, o grupo era o foco de atenção dos trabalhadores-moderadores, enquanto que, em contraste, na rotina da instituição, a atenção da equipe se concentrava sobre o uso de drogas, o monitoramento do uso, a frequência, as "recaídas", a duração dos períodos de abstinência, a redução ou o aumento do uso. Essa vigilância sobre o uso se configurava como um modo de controle e avaliação.

Na rotina do serviço, os usuários estavam sob vigilância da equipe profissional, o que se contrastava com o grupo da GAM, em que os profissionais eram deslocados daquele posto instituído de controle e avaliação dos usuários em relação ao uso de drogas. Um deslocamento necessário para que os usuários pudessem se deslocar desse lugar de objeto, discutir essa condição de objeto de controle e avaliação, e se ampliassem as possibilidades de autonomia do grupo.

Os trabalhadores colocavam em discussão nas oficinas de apoio a relação profissional-usuário. O exercício da prática de cogestão produzia mudanças nas relações com os usuários. Os trabalhadores colocaram em questão a atitude de confronto com os usuários. Nas oficinas de apoio os trabalhadores percebiam suas expectativas e frustrações sobre as condutas dos usuários em quem depositavam a responsabilidade pela adição, "recaídas" e consequências do uso de drogas.

Essa responsabilização individual expressava um sentido de autonomia, entendida como independência pessoal, livre arbítrio do usuário que "escolhe" usar droga. Profissional e usuário participavam de uma relação em que alimentam expectativas sobre o comportamento individual de redução de uso, que, enquanto ficava controlado e monitorado, produzia uma harmonia na relação de cuidado. Por outro lado, no momento em que o usuário voltava a aumentar o uso e tinha uma "recaída", essa relação gerava profunda frustração em ambos, com o usuário se ausentando do serviço e, algumas vezes, desaparecendo do território.

O tema da recaída envolvia frustração, culpa e vergonha e emergia a cada encontro da GAM sob diferentes formas. Sempre que um usuário tinha uma "recaída", ele também desaparecia do grupo. Exatamente quando estava em grande dificuldade, ele se apartava do espaço de cuidado. Nas oficinas de apoio, problematizamos o discurso que valorizava a abstinência e condenava a "recaída" como fracasso. Embora a diretriz do cuidado no CAPS AD fosse a redução de danos, uma política da abstinência podia ser identificada.

 

Violências na vida dos usuários e no mundo do trabalho

Outro analisador que atravessava várias instâncias da instituição, inclusive a GAM e o território da área de abrangência do CAPS AD era a violência. Entendemos que a violência não possui realidade intrínseca, uma definição geral, universal e una, isto é, não existe em si e por si mesma. Ela é uma experiência produzida, composta e condicionada (Lapoujade, 2015). Nas oficinas GAM, qualificações de experiências de violência puderam ser feitas.

O CAPS AD é, muitas vezes, um lugar onde episódios de violência podem ocorrer com frequência. Há uma tensão basal, latente, prestes a emergir em episódios de antagonismo. Essas cenas diminuem conforme o usuário vai criando vínculos na instituição. Outras vezes, manifestações de agressividade e ataques verbais são propiciadas, ou mesmo facilitadas pela "intoxicação". No grupo da GAM também ocorreram momentos de antagonismo entre usuários, e, algumas vezes, manifestações exaltadas e ofensivas.

Com o objetivo de conter esses episódios de agressão entre usuários e contra trabalhadores, a gestão do serviço decide realizar assembleias diárias com os trabalhadores e usuários sobre violência no CAPS AD. Durante duas semanas, no horário em que a assembleia era realizada, as atividades regulares ficaram canceladas. Como as brigas e ataques não tivessem cessado, o portão de entrada do CAPS algumas vezes ficava trancado, com o acesso restrito àqueles que tivessem alguma atividade previamente marcada. Nas reuniões da GAM o tema da "violência" dentro do CAPS foi abordado pelos usuários. Alguns usuários fizeram críticas à equipe do CAPS na relação com usuários. Os moderadores da GAM consideraram essa crítica injusta e manifestaram estarem desapontados.

Em dado momento ocorreu o óbito de dois usuários ligados ao CAPS; o primeiro, por overdose; o outro era morador de rua e veio a falecer numa noite fria de inverno. Embora o serviço de emergência tivesse sido chamado várias vezes, o pedido de socorro não foi atendido. Um medo contagiava as pessoas, e no grupo GAM apareciam falas que afirmavam: "o próximo pode ser eu! ". Essa fala de medo se dava num contexto em que os usuários insistiam, nos encontros do grupo da GAM, em discutir a experiência do preconceito social e de como se sentiam desqualificados e fracassados.

Despontava uma outra qualificação da violência: aquela produzida no plano coletivo, social, cuja visibilidade era uma necessidade vital daqueles usuários. Por isso, traziam para o grupo da GAM a discussão sobre o preconceito, ou, como denomina Foucault, o racismo de Estado (Foucault, 1999) a que o usuário de álcool e outras drogas está sujeitado. Uma violência que deixava morrer vidas depreciadas e que os usuários clamavam por fazer aparecer.

Outra linha de discussão disparada nas oficinas de apoio pelo tema da violência foi o desejo dos trabalhadores moderadores da GAM de pensar com toda a equipe sobre aquela decisão de fechamento do CAPS cancelando as atividades para realizar as assembleias diárias. Havia um descontentamento dos trabalhadores moderadores da GAM em relação à decisão da gestão.

Foi-se construindo um plano comum em que o tema da "violência" pudesse ser contemplado no coletivo. Compartilhavam-se cenas e narrativas que condensavam situações como, por exemplo, a de uma trabalhadora que tinha sido agredida, ou outras cenas em que o trabalhador sentia medo, raiva ou humilhação.

Com o intuito de aproximar os trabalhadores da proposta da GAM, realizou-se numa reunião geral da equipe um encontro sem pauta nem objetivo pré-determinados, de forma cogestiva e aberta às necessidades de expressão e manifestação dos participantes. Naquele momento os trabalhadores estavam muito sensibilizados por uma cena de agressão a uma mulher na via pública em frente ao CAPS AD e puderam compartilhar como tinham sido afetados: o medo, a impotência para intervir na cena, raiva e angústia. Os participantes puderam discutir longamente sobre a complexidade do problema colocado pelos episódios de violência no trabalho e à mulher: como se sentiam como trabalhadoras do CAPS AD, interiorizadas no dia a dia pelo tratamento falocêntrico de usuários, autoridades e por outros colegas homens que se encarregavam de tirá-las de cena e assumir o posto quando algum usuário homem as desautorizava.

Essa complexa rede de implicações, em que se complicam experiências de sofrimento no mundo do trabalho e de aniquilamento na vida de usuários, nos ajuda a ver o plano comum, como superfície de engendramento dos acontecimentos, em que múltiplas qualificações da violência se conectam, interferem e se modificam.

 

Considerações finais

As experimentações de apoio que realizamos no CAPS AD, pelo modo cogestivo de grupalizar, transbordavam os limites das oficinas de trabalhadores em que o apoio se gestava, e, envolviam usuários e trabalhadores numa experiência comum.

A experiência de apoio acontecia movida não pela centralidade de núcleos de saber. O apoio se dava num plano aberto e heterogêneo de perspectivas e experiências. Saberes derivados dos núcleos específicos transitam no campo da saúde, porém num plano cuja heterogeneidade, como rede acêntrica, justifica processos cogestivos de trabalho em saúde e dinâmicas distributivas de protagonismo envolvendo diferentes categorias de trabalhadores e usuários.

Na aposta de apoio que experimentamos, a autonomia na vida e no mundo do cuidado são inseparáveis. A possibilidade de autonomia coletiva acontece no trânsito pela superfície de um plano comum e transversal. Nestes trânsitos se produzia a possibilidade de outras formas de estar junto, fora dos limites estabelecidos pelos eixos de organização da comunicação institucional: o vertical (hierarquia) e o horizontal (corporativismo). A política que o exercício da GAM nos indicava era transversal e molecular, uma micropolítica que tem a autonomia coletiva como critério, e permite se engajar em processos de abertura para experiências e forças instituintes.

 

Notas

1 O Diário de Campo foi a ferramenta de registro da pesquisa que, por consentimento livre e esclarecido, garante o anonimato dos participantes. Os nomes presentes no texto são fictícios, para garantia deste sigilo.

 

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Enviado em: 22/04/19
Aceito em: 23/02/20

 

 

Eduardo Caron é docente do Departamento de Planejamento em Saúde do Instituto de Saúde Coletiva da UFF. É graduado pelo IPUSP, mestrado e doutorado pela Faculdade de Saúde Pública USP.
E-mail:eduardo.caron@usp.br.
ORCID:http://orcid.org/0000-0002-3339-4478
Laura Camargo Macruz Feuerwerker é professora associada do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP. Possui graduação em Medicina e mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo.
E-mail: laura.macruz@gmail.com.
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6237-6167
Eduardo Henrique Passos é professor no Instituto de psicologia da UFF e foi consultor do Ministério da Saúde entre os anos de 2003 a 2008. Desde 2009 compõe a equipe de pesquisadores brasileiros que traduziram, adaptaram e validaram o Guia de Gestão Autônoma de Medicação (GAM).
E-mail: e.passos1956@gmail.com.
ORCID: http://orcid.org/0000-0003-2942-9452

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