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Revista Polis e Psique

versión On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.10 no.2 Porto Alegre mayo/ago. 2020

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.103710 

ARTIGOS

 

Articulações GAM em Santos e a partir de Santos

 

GAM's articulations in and from the city of Santos

 

Articulaciones sobre la GAM en Santos y desde Santos

 

 

Luciana Togni de Lima e Silva SurjusI; Roberta Regina Castellano LinharesI; Erika Marinheiro PereiraI; Beatriz Cesar LauriaII; Ana Maria ThoméIII

IUniversidade Federal de São Paulo (UNIFESP), São Paulo, SP, Brasil
IIPrefeitura Municipal de Santos (SP)
IIIFundação Municipal de Saúde de Niterói, Niterói, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

Neste artigo compartilhamos reverberações de uma experiência formativa na cidade de Santos, em São Paulo, e da articulação de um Observatório Internacional de Práticas de Gestão Autônoma da Medicação (GAM), com vistas à produção de estratégias emancipatórias e libertárias em saúde mental. Nos últimos anos, novas ações de cuidado baseadas no paradigma da Atenção Psicossocial vêm sendo propostas sem, entretanto, serem acompanhadas de forma a evidenciar suas potencialidades e limitações no cotidiano dos serviços. A partir de metodologia participativa e colaborativa, percebemos que a formação para a GAM traz materialidade aos princípios da Reforma Psiquiátrica Brasileira, possibilitando aos trabalhadores um exercício radical de problematização de aspectos sutis e pouco incorporados em suas práticas, convocando a um percurso a ser feito junto dos usuários. Especificamente, junto a pessoas com problemas com drogas, ressaltamos a inseparabilidade do debate sobre as drogas prescritas e não prescritas, presente nas experimentações e buscas pelo prazer, pelo alívio da dor, pela construção de lugar nas relações de consumo, e pela reinvenção de possíveis. Acreditamos que o Observatório GAM viabilizará a difusão da incidência da GAM sobre as diferentes das práticas manicomiais do contemporâneo, necessariamente, medicalizantes.

Palavras-chave: Saúde Mental; Medicalização; Autonomia; Gestão Autônoma da Medicação (GAM).


ABSTRACT

In this article, we share reverberations of a formative experience in the city of Santos, in São Paulo, and in the articulation of an International Observatory of Medication Management Practices (GAM), with a view to the production of emancipatory and libertarian statistics in mental health . In recent years, the new care actions adopted in the Psychosocial Care paradigm have been applied without, however, being monitored in order to highlight their potential and the unused permissions in daily services. Based on a participatory and collaborative methodology, it is perceived that the training for GAM brings materiality to the principles of the Brazilian Psychiatric Reform, allowing workers a radical exercise of problematizing subtle aspects and little incorporated in their practices, summoning a student to be done together of users. Specifically, with people with drug problems, we highlight the inseparability of the debate about prescription and non-prescription drugs, present in experiences and in the search for pleasure, for the wear of pain, for the construction of a place in consumption relationships and for the reinvention of possible ones. We believe that the GAM Observatory enables the dissemination of GAM on the different imposed, medicalizing manicomic practices of the contemporary.

Keywords: Mental Health; Medicalization; autonomy; Autonomous Medication Management (GAM).


RESUMEN

En este artículo, compartimos las reverberaciones de una experiencia formativa en la ciudad de Santos, en São Paulo, y en la articulación de un Observatorio Internacional de Prácticas de Gestión de Medicamentos (GAM), con miras a la producción de estadísticas emancipadoras y libertarias en salud mental. . En los últimos años, las nuevas acciones de atención adoptadas en el paradigma de la Atención Psicosocial se han aplicado sin, sin embargo, ser monitoreadas para resaltar su potencial y los permisos no utilizados en los servicios diarios. Basado en una metodología participativa y colaborativa, se percibe que la capacitación para GAM aporta materialidad a los principios de la Reforma Psiquiátrica brasileña, permitiendo a los trabajadores un ejercicio radical de problematizar aspectos sutiles y poco incorporados en sus prácticas, convocando a un estudiante para que se hagan juntos de usuarios. Específicamente, con personas con problemas de drogas, destacamos la inseparabilidad del debate sobre los medicamentos recetados y no recetados, presente en las experiencias y en la búsqueda del placer, el desgaste del dolor, la construcción de un lugar en las relaciones de consumo y la reinvención de los posibles. Creemos que el Observatorio GAM permite la difusión de GAM en las diferentes prácticas manicómicas medicalizadas impuestas y contemporáneas.

Palabras clave: Salud Mental; Medicalización Autonomía; Gestión Autónoma de Medicamentos (GAM).


 

 

Pra Começo de Conversa: O Uso de Medicamentos Como Questão Para a Reforma Psiquiátrica Brasileira

Não obstante a expansão dos serviços territoriais de saúde mental no Brasil nos últimos 30 anos, a construção e incorporação de novas estratégias de cuidado baseadas no paradigma da Atenção Psicossocial, preconizando o cuidado em liberdade, não ocorreu simultaneamente à implantação da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS). Esse descompasso, de certo modo previsível, deve vir acompanhado de esforços formativos e de pesquisa que forjem novas gerações de profissionais para a atuação de acordo com os pressupostos estabelecidos pela Reforma Psiquiátrica, bem como estratégias de educação permanente junto dos que já atuam nos serviços existentes. Tomar como pressuposto para qualquer ação terapêutica a pessoa livre e cidadã nos desafia a ultrapassar os conhecimentos produzidos pela Psiquiatria enquanto disciplina médica centrada na patologia, visto que o paradigma da Atenção Psicossocial, de inspiração democrática (basagliana), nos convoca a colocar as capturas nosológicas entre parênteses.

A RAPS, instituída formalmente em 2011 no Brasil, sofrendo profunda alteração em 2016, com a reorientação para a manicomialização do cuidado, pautou-se, em sua origem, no conceito de trabalho em rede, integrante histórico das proposições de um Sistema Único de Saúde (SUS). A RAPS foi proposta tendo como princípios o respeito aos direitos humanos; a garantia de autonomia e liberdade; a promoção da equidade, pelo exercício da cidadania e da inclusão social; e o enfrentamento de estigmas e preconceitos. Como diretrizes e objetivos, a garantia ainda do acesso e da qualidade dos serviços e, no que se refere à problemática relacionada às questões relacionadas ao uso de álcool e drogas, a perspectiva de Redução de Danos (RD), com cuidado territorial, humanizado, integral e multiprofissional, sob a lógica interdisciplinar e intersetorial, com participação e controle social de usuários e de familiares (Assis, Barreiros, Jacinto, Kinoshita, Macdowell, Mota, Nicácio, Schorn, Souza & Trino, 2014).

Todavia, o aumento do uso de remédios, que é considerado um grave problema de saúde pública no mundo contemporâneo, ganha contornos especialmente preocupantes no campo da saúde mental, onde essa preocupação está associada tanto aos efeitos de seu uso crônico, quanto à falta de participação da população atendida no planejamento ou na tomada de decisões sobre seu tratamento, reduzindo-lhes exatamente o que se espera enquanto bons resultados no cuidado em saúde mental - a autonomia, protagonismo e a sua participação social.

 

Por Que e Para Que a Gestão Autônoma da Medicação em Santos

A cidade de Santos foi pioneira no processo de Reforma Psiquiátrica Brasileira ao propor a superação do Hospital Psiquiátrico como espaço de tratamento em saúde mental, implementando os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS). Os NAPS desde sua origem foram propostos com funcionamento 24 horas ininterruptas, instituindo na cidade uma nova relação com a loucura, numa renovada concepção de cidadania (Kinoshita, 2009). De modo semelhante, Santos também protagonizou a primeira experiência brasileira de política pública em RD, com a estratégia de trocas de seringas para usuários de drogas injetáveis em 1989, num cenário de epidemia de HIV/Aids, constrangida judicialmente.

Atualmente, com uma população acima de 430.000 habitantes, a RAPS de Santos, conta com cinco Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) III, um CAPS ad II, três CAPS infantojuvenis, tendo um deles funcionamento 24 horas, referência para os demais na retaguarda noturna. O município dispõe, ainda, de um Serviço de Reabilitação com oficinas de geração de trabalho e renda, uma equipe de Consultório na Rua, três Serviços Residenciais Terapêuticos, um pronto-socorro psiquiátrico e retaguarda hospitalar de um serviço estadual.

Em 2017, no contexto do Programa de Mestrado Profissional em Ensino de Ciências da Saúde da Universidade Federal de São Paulo Campus Baixada Santista (Unifesp-BS), emergiu como temática o uso excessivo de benzodiazepínicos na cidade. Foi, então, planejada a primeira proposta de disponibilização da estratégia GAM junto à Coordenação Municipal de saúde mental. Inicialmente ofertou-se o desenvolvimento de um projeto piloto que envolveria um médico, uma enfermeira da UBS, uma farmacêutica e uma psicóloga do CAPS, que já desenvolviam ações de apoio matricial em saúde mental, e para os quais já haviam esgotados os recursos de cuidado frente ao crescente fenômeno.

Ao apresentar tal proposta no Colegiado de Gestão de Saúde Mental de Santos, que agregava, naquela ocasião, a presença de coordenadores regionais da APS, observamos que essa situação era presente em todos os territórios, desafiando a RAPS de modo geral. O grupo compreendeu que a universidade poderia oferecer, ao invés de um projeto piloto mais pontual, uma formação para que trabalhadores de ambos os pontos de atenção se apropriassem da estratégia GAM. Foi, então, pactuada uma formação de 24 horas para 60 trabalhadores, divididos preferencialmente entre os cinco CAPS para adultos e cinco UBS indicadas pelo CAPS de referência de determinado território como serviço já parceiro. Garantimos, ainda, algumas vagas para os CAPSij; CAPSad; e Serviço de Reabilitação Psicossocial.

Indicamos a importância da manutenção de uma composição multiprofissional que, na medida do possível, contasse com médicos, enfermeiros e farmacêuticos, atuantes mais diretamente na questão do uso de medicação nos serviços. Vinculada ao desenvolvimento da formação realizada em Santos, pactuamos com a Prefeitura uma parceria para o estabelecimento de um Observatório voltado para as práticas GAM que, além de outras ações, desenvolveria pesquisas, algumas delas compondo o escopo da discussão no presente artigo.

 

O Nascedouro de um Observatório Internacional de Práticas GAM

Mobilizadas pelos processos disparados em Santos, surgiu o desejo de resgatar as parcerias inicialmente desenvolvidas para a adaptação da GAM ao contexto brasileiro. Com este intuito, articulamos um Observatório que pudesse viabilizar trocas de experiências, além de dar visibilidade à produção científica já disponível neste tempo da estratégia no país.

Foi a partir de 2009 que grupos de pesquisa da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), da Universidade Federal Fluminense (UFF) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) desenvolveram de forma participativa a pesquisa que teve como produtos o Guia Gam-BR (Ggam) e o Guia do Moderador. Foi possível perceber que, posteriormente a esse primeiro esforço, muitos pós-graduandos inserira-se em outras universidades por todo o país, levando consigo a experiência dos dispositivos de pesquisa e extensão universitária envolvendo a estratégia GAM. Outros tantos coletivos, ainda, puderam tomar contato com a GAM por meio das primeiras pesquisas publicadas, ou mesmo, da disponibilização pública dos guias.

Realizado um primeiro mapeamento das experiências em curso com o objetivo de implementar uma rede de cooperação para a formação, implantação e avaliação das práticas de GAM no Brasil, Canadá e Espanha, foi aprovado em comitê de ética em pesquisa, a articulação multicêntrica em torno a um "Observatório Internacional de Práticas de Gestão Autônoma da Medicação: rede-escola colaborativa de produção de conhecimento, apoio e fomento" (CAAE 70494817.0.1001.5505), envolvendo naquele momento 22 instituições entre Universidades Federais, Estaduais e Privadas, do Brasil, Espanha e Canadá, a Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME) e gestões públicas de saúde. Assim, este Observatório Internacional têm, entre seus objetivos, a sistematização dos conhecimentos produzidos a partir das experiências em curso com a GAM nos diferentes serviços; a estruturação e validação processos formativos para a expansão das práticas GAM; e a compreensão das peculiaridades da utilização da GAM junto às diferentes populações que se beneficiam desta metodologia de cuidado.

Atualmente, diante das mudanças ocorridas nas gestões municipais, compõem formalmente esta rede de cooperação multilateral, sob coordenação da Unifesp: Unicamp; Ufrgs; UFF; Universidade Federal do Espírito Santo (UFES); Universidade Federal de Santa Maria (UFSM); Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP); Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC); Universidade Federal de Alagoas (UFAL); Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN); Universidade Federal do Paraná (UFPR); Universidade Federal do Ceará (UFC); Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-GO); Universidade Católica de Salvador -BA; Universidade Rovira I Virgili -Espanha; Prefeitura Municipal de Santos -SP; Secretaria Municipal de Saúde de Aparecida de Goiânia - GO; Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME).

Observatórios têm sido tomados como dispositivos de monitoramento, coleta de informações, gerenciamento e análise de dados, bem como de ferramentas para o desenvolvimento de sistemas de avaliação e elaboração de relatórios. Mais recentemente têm sido propostos Observatórios cidadãos, cujo objetivo é aumentar a participação mais direta do público envolvido, com vistas a estabelecer governanças baseadas na comunidade (Liu, Kobernus, Broday, & Bartonova, 2014). Um Observatório pode, ainda, se constituir como plataforma inovadora para o ensino e pesquisa envolvendo docentes, pesquisadores, alunos e parceiros em projetos de pesquisa e capacitação, com enfoques e locais diversos (Castillo-Salgado, 2015).

Sob tal aposta, institui-se a Política de Observatórios Unifesp (Unifesp, 2019), para a qual, são concebidos enquanto

espaços de articulação democrática, participativa e dialógica, capazes de contribuir para o monitoramento e a transformação da realidade por meio de análises, reflexões, produção de dados e conhecimentos, subsídios e recomendações visando a acompanhar, dar visibilidade, problematizar e evidenciar a temas, situações, problemas, políticas públicas e processos de relevância socioambiental e de garantia de direitos.

O Observatório GAM, inserido na Política de Observatórios Unifesp, conta com um site - "observatoriogam.org", que pretende concentrar as produções de todo o coletivo envolvido, além de possibilitar a divulgação de experimentações em curso e facilitar o acesso aos atores diretamente envolvidos. Programas de extensão universitária e pesquisas locais vêm sendo desenhadas e realizadas, além de encontros presenciais multicêntricos que ocorreram durante o 6° e 7° Congresso Internacional da Associação Brasileira Multidisciplinar de Estudos sobre Drogas (Abramd - 2018 em Belo Horizonte-MG; 2019 em Curitiba-PR); no 6° Congresso Brasileiro de Saúde Mental (ABRASME - 2018 em Brasília-DF); no V Congresso Brasileiro de Psicologia (2018 em São Paulo-SP); no Encontro Internacional de Gestão Autônoma da Medicação (2018 em Santa Maria-RS); e no 4° Fórum Brasileiro de Direitos Humanos e Saúde Mental (Abrasme - 2019 em Salvador-BA). Esses espaços possibilitam trocas de experiências e ampliam a participação de novos parceiros interessados na potência da estratégia para avançar em campos que ainda desafiam a sustentação da Reforma Psiquiátrica Brasileira, considerando as peculiaridades de inserção da GAM na APS, junto aos CAPS infantojuvenis, e em contextos de uso de drogas.

 

Construções Santistas no Âmbito do Observatório GAM

Vinculado ao desenvolvimento da primeira formação realizada em Santos, pudemos também pactuar com a Prefeitura a parceria para o Observatório e desenvolver duas pesquisas de iniciação científica (CAAE: 71368917.9.0000.5505; CAAE: 14081219.8.0000.5505), além de três mestrados profissionais (CAAE: 87392718.0.0000.5404; CAAE: 08061019.6.0000.5505; CAAE: 25058619.1.0000.5505), as duas últimas, em curso. As pesquisas vêm se debruçando sobre efeitos do processo formativo realizado junto a trabalhadores da Atenção Básica e dos CAPS, sobre as peculiaridades da GAM nos contextos de CAPSad - junto à população atendida no serviço, e sobre a organização do cuidado; além do próprio Observatório. Todas as pesquisas têm se pautado pelas metodologias qualitativas, cogestivas e participativas, em consonância com a estratégia GAM. Atualmente, por meio de fomento à implantação da Política de Observatórios, contamos com 6 bolsistas, dentre os quais 2 alunas da pós-graduação; 1 aluno da graduação; e 3 usuários, inseridos enquanto membros da comunidade.

 

Os Efeitos da Formação Junto a Trabalhadores de UBS e CAPS

A primeira formação para a GAM, em Santos, ocorreu entre setembro e novembro de 2017, no âmbito do Programa de Extensão Universitária de Apoio à RAPS de Santos e foi conduzida por participantes do Grupo de Estudos, Pesquisa e Extensão DiV3rso tendo como facilitadores 2 graduandas - de terapia ocupacional e serviço social; um profissional componente; além de seis residentes do Programa Multiprofissional em RAPS da UNIFESP-BS (entre psicólogos, assistentes sociais e terapeutas ocupacionais). Foi realizada uma formação prévia para toda a equipe condutora e iniciamos o processo formativo com uma aula aberta sobre o tema, contando com cerca de cem inscritos, com vistas a expandir o alcance das informações acerca do que seria mobilizado neste conjunto de serviços e suas possíveis repercussões, seguindo com mais cinco encontros de quatro horas cada, num processo de apropriação e problematização da estratégia GAM.

Participaram entre os cursistas, acompanhantes terapêuticos, agentes comunitários de saúde, dentista, enfermeiros, médicos, psicólogos, técnicos de enfermagem, terapeutas ocupacionais e farmacêuticos, estes últimos vinculados tanto aos CAPS quanto ao Núcleo de Apoio à Saúde da Família (NASF). O desenho metodológico seguiu o caminho dos seis passos proposto no Guia GAM, onde cada grupo se responsabilizava pela apropriação do conteúdo de um dos passos. As experimentações envolveram atividades participativas e criativas que favoreciam o debate das experiências cotidianas, incluindo a estruturação de cenas que revelassem problemas e desafios enfrentados, diferentes pontos de vista sobre a temática, bem como formas de conduzir os achados produzidos a partir do debate entre os participantes.

a) O Que Pudemos Compreender e Produzir Juntos?

Apesar da disponibilização pública do Guia GAM e do Guia do Moderador, estudos e a experiência têm nos apontado a importância de treinamento prévio para que haja maior apropriação pelos profissionais acerca do potencial da GAM como metodologia de cuidado (Otanari, Leal, Onocko-Campos, Palombini & Passos, 2011), além do papel fundamental da universidade no acompanhamento das experiências tão inovadoras e desafiadoras. O curso foi desenvolvido a partir de metodologia filiada aos preceitos da Educação Popular e da Educação entre Pares, tendo como mote a defesa intransigente dos Direitos Humanos.

A Educação Popular e a Educação entre Pares têm como premissa básica provocar transformações na realidade, reconhecer e valorizar as experiências e saberes de todos os atores, garantindo a diversidade nos espaços de fala e a participação de quem vive em determinado contexto. O curso proporcionou a valorização do conhecimento dos participantes, propiciando a validação do percurso singular de cada um num exercício de participação, escuta, e afirmação identitária na diversidade grupal. As contribuições da Educação Popular e da Educação entre Pares foram fundamentais por proporcionarem o espaço pedagógico favorável para a construção compartilhada de conhecimentos a partir da realidade social em que está inserida a rede de serviços públicos e onde atuam os profissionais (Freire & Nogueira, 1989, Maciel, 2011, Brasil, 2010). Desta forma, além da apropriação da estratégia GAM, aprimoramos, também, o desenvolvimento de processos pedagógicos mais autônomos da comunidade, proporcionando o empoderamento e a conformação de agentes multiplicadores e facilitadores.

A partir dos passos propostos na GAM, construímos uma agenda de encontros em que os grupos eram divididos inicialmente pela proximidade do local de trabalho (UBS ou CAPS), garantindo alguma homogeneidade das experiências entre os integrantes num espaço acolhedor e de encorajamento para que todos expusessem suas preocupações e receios. Foram, então, organizadas encenações, debates e técnicas grupais, onde a questão do uso de medicação era enfocada nos diferentes serviços. As intervenções valorizaram as dimensões relacionais e psicossociais e perpassaram pelos múltiplos determinantes do processo saúde/doença, impactando no reconhecimento da multidimensionalidade do sofrimento, afirmando o território e os contextos reais de vida como locus do tratamento, validando a pessoa que sofre, a priori, como sujeito de direito.

O grupo reconheceu a ausência de espaços de reflexão sobre o uso de medicamento e a demanda da própria equipe pela introdução de remédios no cuidado a determinado usuário direcionada aos médicos. O estabelecimento de um cuidado robotizado e não-criativo na construção de projetos terapêuticos singulares restritos a mera introdução e manutenção (falha) de psicotrópicos foi nomeado e evidenciado. Ao final da formação, os grupos foram reorganizados a partir de territórios comuns: CAPS junto com UBS para formulação de avaliação e proposições, apresentadas aos gestores presentes num seminário de encerramento, acerca da viabilidade de implementação da estratégia GAM em diferentes contextos. Foi também pactuada uma estrutura de apoio bimensal na universidade aos serviços.

Contamos com a parceria do Conselho Federal de Psicologia na impressão dos Guias GAM, na ocasião do Encontro de 30 anos da Carta de Bauru. Em 2018 foram realizados oito encontros, com 17 participantes entre gestores, trabalhadores e residentes de sete diferentes serviços. Dentre as experiências propostas, foi possível a realização de um grupo na APS, em parceria com um CAPS e uma UBS; e a realização de um grupo no CAPS ad, sobre o qual compartilharemos algumas reflexões mais adiante.

b) Os Efeitos da Formação Junto a Trabalhadores de UBS e CAPS

Durante o desenvolvimento primeiro Curso para a GAM em Santos, foi realizada uma investigação sobre os efeitos da formação, produzindo as informações por meio de grupos focais antes e depois dos encontros, separadamente com trabalhadores da APS e dos CAPS. Debatemos a diversidade de ofertas no cuidado relacionado aos diferentes ciclos de vida, considerando as parcerias intersetoriais e comunitárias como fator importante para o cuidado em liberdade e levantamos o que era percebido como fragilidade na rede. Foi apontado o paradoxo superproteção-abandono, bem como a submissão dos projetos terapêuticos dos usuários às definições do trabalhador. O grupo reconheceu que não é garantido aos usuários o direito de trocar de médico ou não fazer uso do medicamento.

Após o processo formativo, o grupo de trabalhadores da saúde mental pareceu questionar mais fortemente a complexidade frente ao modelo de cuidado proposto pela Atenção Psicossocial. O grupo pareceu ampliar a concepção em relação às parcerias, considerando importante o exercício interdisciplinar na própria equipe, de forma a se produzir maior corresponsabilização, especialmente em contextos de precarização do trabalho. Identificamos o profissional de referência como um fator promotor do exercício de autonomia, ficando evidente a relação psiquiatria-judiciário como uma variável limitante a sua construção no cotidiano dos serviços. O coletivo apontou também para a temática dos direitos, concluindo que as equipes pouco se detêm sobre este aspecto.

Na APS, antes do processo formativo, identificamos que os trabalhadores se sentem inseguros em ampliar a concepção de saúde mental e as ofertas de cuidado, reconhecendo que a falta de perspectivas de encaminhamentos a serviços estratégicos têm culminado na prescrição de psicotrópicos como único modo de cuidado disponível, independentemente do caso ser diagnosticado como transtorno mental. Também percebemos que a APS associa o exercício de autonomia, contratualidade e cogestão à ausência de diagnóstico em saúde mental, o que comprometeria essas dimensões.

Finalizado o processo formativo, os trabalhadores da APS apresentaram visão mais ampliada diante das concepções preliminares relacionadas às determinações do sofrimento psíquico. O processo formativo parece ter proporcionado ao grupo uma postura crítica diante dos critérios de avaliação e conduta medicamentosa, no sentido de ampliação da participação protagonista do usuário em seu tratamento, considerando a cogestão como dispositivo facilitador no processo de cuidado. Ainda assim, o grupo expressou dificuldade em distinguir situações de sofrimento comuns da vida e processos psicopatológicos. Conseguiu reconhecer que os usuários fazem autogestão de medicamentos à revelia das equipes, não dispondo de espaços para a problematização, ora por despreparo da equipe, ora por receio em perder seu direito ao tratamento.

c) O Consumo de Psicotrópicos em Santos

O consumo de psicofármacos tem sido foco de preocupação no que tange à gestão pública, tanto pelo uso crescente indiscriminado, quanto pela dimensão que tem tomado no financiamento dos sistemas de saúde. Estudos desenvolvidos por Hemels, Koren e Einarson (2002) no Canadá, apontam uma análise descritiva da utilização de antidepressivos entre os anos de 1981 e 2000. O estudo evidenciou que o número de prescrições cresceu 238% nesse período e o aumento do custo foi de 2,7 bilhões de dólares.

Segundo Lucchetti, Granero, Pires, Gorzoni e Tamai (2010), estima-se que 13% dos fármacos consumidos no Brasil envolvam benzodiazepínicos, antidepressivos, neurolépticos, anticonvulsivantes ou estimulantes, os quais representam as principais classes de psicofármacos disponíveis. Um estudo sobre a demanda, consumo e os gastos com medicamentos psicotrópicos no Componente Básico da Assistência Farmacêutica no SUS no Estado de Minas Gerais demonstrou-se que os psicotrópicos são responsáveis por um gasto total R$ 12 milhões ao longo do período de três anos, correspondendo a cerca de 3% do total gasto pela Secretaria Estadual de Saúde (Figueiredo, 2015).

Uma das ações de imersão propostas durante o curso GAM foi o levantamento da dispensação de psicofármacos nas farmácias públicas de Santos (Gráficos 1 e 2 em anexo), sendo possível observar que o município disponibiliza medicamentos para além do previsto na Política Nacional de Medicamentos do Brasil (Brasil, 1998). Os CAPS de Santos realizam a dispensação regionalizada de psicofármacos a toda a população atendida pelo SUS, não sendo possível precisar o consumo por origem da prescrição, com exceção do CAPS ad, que fornece somente para pessoas em tratamento naquela unidade. Dessa forma, o levantamento é uma forma de contribuir para a construção de uma série histórica no município, para realização de planejamento e pactuação de indicadores de monitoramento do uso de psicofármacos, já que, apesar de demonstrar um grande aumento da dispensação, por medicamento, por ano, não é possível precisar se aumento de pessoas em uso desses medicamentos.

d) Peculiaridades da GAM num CAPSad

Numa primeira pesquisa que problematizou junto a pessoas atendidas no CAPSad de Santos as questões que norteiam a estratégia GAM, pudemos recolher os sentidos que se abriam nesse serviço para a implementação da estratégia. Por meio da realização de um grupo focal com usuários do serviço, anterior ao início dos grupos GAM, destacamos aspectos que diferenciam e reafirmam a relevância da GAM nos contextos de cuidado de pessoas que usam drogas. A partir dos núcleos argumentais destacamos os seguintes eixos de análise e subcategorias:

i) O Lugar da Medicação no Tratamento

Os relatos revelam as diversas percepções presentes na discussão, indo desde o reconhecimento de que o medicamento pode auxiliar no controle do uso de determinada substância: "Tudo bem que eu tô devagar porque tô tomando remédio, mas antes da coisa todo o dia eu queria cheirar" (usuário 1); até à percepção significativamente presente de que o remédio aumenta o risco, especialmente de quem se encontra em situação de rua "eu bebia junto, passava mal" (usuário 2), "o remédio começou a me deixar meio chapado, fui atravessar a rua, quase fui atropelado" (usuário 3); dissolvendo a dicotomia droga lícita versus ilícita: "encher a cara de remédio" (usuário 4), e "as duas é droga" (usuário 5). Percebe-se a importância destacada que os medicamentos têm no tratamento do CAPSad, o que, segundo os usuários participantes, são prescritos a praticamente todos os participantes.

Neste sentido, nos pareceu relevante a potência de uma metodologia como a GAM, que altera a correlação de forças entre equipe e usuários ao deter-se sobre o papel da medicação na vida, e traz de novo para a cena o protagonismo do usuário e da decisão compartilhada sobre a relevância de se usar (ou não) determinado remédio. Foi identificado pelo grupo a primazia do tratamento medicamentoso no CAPS e certa carência de outros recursos terapêuticos, corroborando a percepção do grupo de trabalhadores da rede no processo formativo da GAM. Se a medicação se mantém como prática não reformada da Reforma Psiquiátrica Brasileira (Onocko-Campos et al., 2013), construir metodologias que examinem o papel da medicação na vida de determinada pessoa é tarefa inadiável. Interessante observar que, ainda que o medicamento protagonize as ações terapêuticas dentro do CAPSad de Santos, os participantes não pareçam à vontade para recorrer aos profissionais para conversar sobre sua experiência e impressões, positivas ou negativas, sobre o que determinado medicamento causou.

Os participantes admitem que não utilizam o remédio conforme prescrito, fazendo múltiplos usos que vão desde a venda "eu não vou mentir, não sou hipócrita, eu vendo minha medicação" (usuário 6), ao uso parcial e selecionado do que foi prescrito. Estratégias emancipatórias como a RD apareceram como potentes em colaborar decisivamente nesta questão, na medida em que estabelecem o próprio processo de receitar um remédio e utilizá-lo centralizando o poder decisório no usuário na relação de cuidado de si mesmo.

ii) Avaliação do Tratamento Proposto

No segundo eixo, os participantes expressaram a importância dos trabalhadores em sua trajetória de cuidado, observando o quanto a maior, ou menor "interação" com o profissional interfere decisivamente sobre suas vidas. Outro ponto destacado pelos participantes é o quanto o CAPS parece identificado com o público que atende na perspectiva de menos-valia social que identificam em si mesmos: "Eu acho que eles (rede intersetorial) veem o CAPS como quem usa droga: vamos acabar com o CAPS e mandar pra Comunidade Terapêutica (CT)" (usuário 7).

Observa-se, aqui, a crença dos participantes do quanto condições mais dignas de vida produzem bases mais favoráveis, inclusive para se deixar de usar droga. Soma-se a esta percepção, a ideia de RD como estratégia que leva a um protagonismo emancipador em relação ao uso, que rompe com uma identidade totalizante. Com isso queremos dizer que há uma mudança na qualidade da autopercepção do participante, abandonando a ideia de ser adicto, indo em direção a uma condição mais singular de ser um adicto que não vacila: "Então eu tô no CAPS porque eu me reduzi os danos dentro do possível. Antes, tudo que eu queria fazer, eu queria fazer... Eu acho que eu sou adicto, mas eu não vacilo." (usuário 3)

iii) Modalidades de Cuidado

O terceiro eixo examinou as diversas formas de cuidado experimentadas pelos participantes, onde grande parte demonstra conhecer a realidade de violência das CT e do hospital psiquiátrico em inúmeras internações. Os participantes expressam a violência das internações, equiparando as experiências de violência na rua. Reconhecem que o CAPS, mesmo com todas as questões que precisam ser revistas e melhoradas, constitui-se como local de cuidado superior a estas outras experiências.

iv) Papel da Intersetorialidade

O quarto eixo expressa a realidade do trânsito restrito e constrangido a poucos pontos da rede de saúde e intersetorial das pessoas que utilizam o CAPSad e os demais serviços da RAPS, em especial as pessoas que estão em situação de rua. Não há menção dos participantes a iniciativas de cultura, esporte, lazer, trabalho e habitação. Existe o apontamento sobre uma "rede acessada, ou que acessa", composta por equipamentos de saúde, assistência social e segurança.

A educação aparece unicamente nos projetos desenvolvidos na Unifesp. Os níveis de ensino básico, ou projetos de educação para adultos nas escolas municipais, ou estaduais não são mencionados. Tampouco são mencionadas iniciativas de formação técnicas voltadas para a inserção no mercado de trabalho.

Chama atenção que na formação junto a trabalhadores da APS, o dispositivo do Consultório na Rua não foi sequer citado, o que nos faz refletir o quanto do cuidado em saúde mental tem sido oferecido à população em situação de rua. Infere-se não haver adequado acompanhamento, corroborado pelos relatos de que a assistência médica não é oferecida às pessoas em situação de rua, tampouco acesso à abrigo quando da necessidade de repouso para o tratamento de algum acometimento mais limitante.

Da rede "que se acessa", são descritas abordagens da guarda municipal, ou da CT respectivamente, nas ocasiões de "mau comportamento" em algum equipamento público, ou nas situações de encaminhamentos pelo CAPSad. Todas estas abordagens são descritas como hostis e erradas pelos participantes. Da rede socioassistencial, os participantes fazem reiteradas denúncias de "descaso", ou mesmo "maus-tratos", descrevendo de modo muito intenso o que vivenciam diariamente nos equipamentos da assistência social quando buscam auxílio para acessar benefícios, retirar documentos e especialmente buscar guarida nas noites e finais de semana, ou feriados, principalmente no inverno.

Acessada mais do que os demais pontos, a rede socioassistencial é descrita como punitiva, ineficaz e perseguidora e que parece ignorar as condições das pessoas que procuram proteção. Note-se que, mesmo com todas as dificuldades relatadas pelos participantes, existe a percepção de que a permanência no abrigo é protetiva, em especial, nas ocasiões em que se está "fortemente medicado", ou nas situações climáticas desfavoráveis. Entretanto, a proteção tem hora marcada pra acabar. Sabe-se que "sair pra rua", sentindo-se em condições, ou não, é inevitável. Esta informação soma-se a outra de que não existe comunicação entre equipes (CAPS X rede intersetorial) e de que "eles veem o CAPS como quem usa droga".

v) Participação dos Usuários nas Decisões Sobre Como o CAPS Deve Funcionar

Os núcleos argumentais reunidos nesse eixo temático indicam a percepção dos participantes sobre o funcionamento de dois dispositivos presentes nos CAPS: a (1) assembleia, espaço que deveria ter caráter deliberativo e de decisão compartilhada com a equipe e o (2) Projeto Terapêutico Singular (PTS), estratégia que também dialoga com as práticas emancipatórias na medida em que traz para a cena da decisão o usuário como sujeito que propõe e escolhe o que e como deverá ser o seu tratamento no CAPS.

Em relação às assembleias, os participantes apontaram que elas não se configuram como reunião entre equipe e usuários com caráter deliberativo. Na questão dos Projetos Terapêuticos Singulares é possível detectar uma percepção de maior autonomia e construção compartilhada, em falas como "Decidijunto. Junto com ele" (usuário 2), que destacam a relação de maior parceria entre usuário e trabalhador. Já a assembleia, uma ação estratégica descrita em normativas desde 2002 e analisada como recurso terapêutico produtor de autonomia, além de possuir caráter de intervenção institucional com importante enfoque de horizontalizar as relações entre trabalhadores e usuários. Deste modo, a descrição que os participantes fazem do dispositivo assembleia no CAPSad parece contrariar a essência da estratégia, fortalecendo as diferenças no poder decisório entre grupos de trabalhadores e grupo de usuários.

vi) Loucura, Doença, Invalidação

O eixo temático aborda o conceito de invalidação, que pode ser caracterizado como a premissa de exclusão e anulação da dimensão social, visto que todos os atos do louco/desviado são justificados, ou interpretados como manifestação de doença/desvio (Nicácio, 2003). Essa questão se expressa na ideia que os participantes fazem de que os socialmente válidos (doutora, Globo Repórter, Secretário de Saúde, cara camarada amigo do secretário) os consideram "drogados-loucos-doentes". A premissa da exclusão se dá na percepção subjacente ao discurso de que vale qualquer coisa para quem não tem valor social.

vii) Quem Ajuda

Este eixo temático indica que os participantes dizem se valer da espiritualidade nos momentos em que se sentem fragilizados. Interessante observar que um dos participantes conversa com Deus sobre "não aguentar mais essa vida" e deseja ser "um homem digno, um homem de verdade". Outros participantes comentaram que direcionam o pedido de ajuda ao assistente social, ou ao médico. Aqui, de modo especial, mais do que as figuras do médico, e do assistente social foram frequentemente citados. Neste sentido, é curioso observar que na história do Serviço Social no Brasil, há uma associação real entre o nascimento desta profissão e a religião.

A tradição do Serviço Social no Brasil tem ainda viés conservador e parte de uma premissa de filantropia e assistencialismo de caráter privatista, cuja função é, ou reformar o sujeito desviado, ou no mínimo assisti-lo panopticamente, coibindo seus desvios morais, acessando a rede, não para garantir o apoio técnico que amplie a proteção social, mas para disparar processos penais "corretivos", que culpabilizam e punem os desviados. Essa questão é confirmada a todo momento nas falas dos participantes da presente pesquisa. Entendemos que o Estado brasileiro, com seu caráter conservador, agora reforçado pela a assunção de um governo federal de ultra-direira, esmoreça a construção de uma Política de Estado preocupada em garantir a todos os brasileiros o enfrentamento da desigualdade e a cidadania plena.

 

Considerações Finais

Compartilhamos, no presente artigo, alguns achados da experiência com a GAM na cidade de Santos, bem como as articulações multicêntricas que puderam se propagar por meio da proposição de um Observatório. Os encontros que se estabeleceram zelam pelo caráter participativo e colaborativo da própria estratégia, e se sustentam no agenciamento das ações de ensino, pesquisa e extensão das universidades envolvidas.

A partir de metodologia participativa e colaborativa, percebemos a inequívoca conexão entre os princípios da GAM e da Reforma Psiquiátrica Brasileira, possibilitando aos trabalhadores o exercício de problematização de aspectos pouco incorporados em suas práticas, e ofertando materialidade de um percurso a ser feito junto dos usuários. Especificamente no campo do uso de substâncias psicoativas, evidenciou-se a necessidade de aproximar o debate e manejo do uso de medicamentos e outras drogas, e de incidir sobre a série de impedimentos ao protagonismo e à garantia dos direitos de cidadania.

Por fim, a partir da análise realizada, consideramod como ponto inadiável da Reforma Psiquiátrica Brasileira o debate cuidadoso e efetivo entre trabalhadores da RAPS e usuários na construção de uma Atenção Psicossocial emancipadora, afirmadora de direitos, democrática e que enfrente a segregação e invisibilidade das violências sofridas pelas pessoas cuidadas na RAPS, sobretudo às que estão em situação de rua. Parece ser grande o desafio para os trabalhadores construir com os usuários uma leitura crítica da realidade com tônus para transformá-la. A GAM, ao propor a reversão da decisão da equipe em direção à decisão compartilhada com o usuário, talvez constitua uma saída terapêutica suficientemente criativa e crítica, produtora de transformação.

 

REFERÊNCIAS

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Enviado em: 31/07/19
Aceito em: 19/03/20

 

 

Luciana Togni de Lima e Silva Surjus é especialista em Saúde Pública e doutora em Saúde Coletiva. É presidente do Conselho Municipal de Políticas sobre Drogas de Santos.Trabalha como Docente Adjunto no Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva, da Unifesp Campus Baixada Santista.
E-mail: luciana.surjus@unifesp.br
ORCID: http://orcid.org/0000-0002-3419-9797
Roberta Regina Castellano Linhares é fisioterapeuta e terapeuta ocupacional. Faz parte do Grupo de Pesquisa e Extensão em Saúde Mental, Redução de Danos e Direitos Humanos, do Departamento de Políticas Públicas e Saúde Coletiva, da Unifesp Campus Baixada Santista.
E-mail: robertacastellano22@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8310-1450
Ana Maria Thomé é psicóloga e especialista em Psicopatologia e Saúde Pública e em Neuropsicologia. É também mestra em Saúde Coletica. Trabalha na Fundação Municipal de Saúde de Niterói (RJ).
E-mail: anamariathome@yahoo.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-6901-7423
Beatriz Cesar Lauria éfarmacêutica e mestranda em Ensino em Ciências da Saúdena Unifesp, Campus Baixada Santista. Trabalha na Prefeitura Municipal de Santos (SP).
E-mail: beatrizlauria@santos.sp.gov.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8089-5286
Erika Marinheiro Pereira é terapeuta ocupacional e mestranda em Ensino em Ciência da Saúde na Unifesp Campus Baixada Santista.
E-mail: erikamarinheiro@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-8057-7664

 

 

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