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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.10 no.3 Porto Alegre ser./dez. 2020

 

EDITORIAL

 

Biopolítica e produção de subjetividade nas tramas das políticas públicas

 

Biopolitics and the production of subjectivity in public policy web

 

La biopolítica y la producción de subjetividad en las tramas de las políticas públicas

 

 

Henrique Caetano NardiI; Neuza Maria de Fátima GuareschiII; Giovana Barbieri GaleanoIII

IEditor Chefe
IIEditora Gerente
IIIEditora Assistente

 

 

Os artigos publicados neste número da Revista Polis e Psique dão visibilidade tanto ao modo como as psicologias têm produzido estratégias metodológicas diferentes em relação a temáticas já bastante presentes em nossa ciência e profissão quanto visibilizam a abertura das psicologias para as demandas que tensionam os espaços de produção de conhecimento/práticas. Ao contrário da constituição de universais ou sujeitos ideais, essas psicologias que aqui se mostram apontam para a análise dos movimentos cotidianos, micropolíticos e de processo.

Esse movimento se faz em relação à educação e às tecnologias digitais, visto que estas passaram a ocupar um lugar privilegiado na vida cotidiana (Scorsolini-Comin, 2014). Não apenas a forma de uso, mas na tecnologia dos processos de subjetivação, isto é, o computador e o celular, por exemplo, como meios para um fim, como instrumentos para a realização de uma determinada tarefa ou enquanto uma indistinção entre o físico e o digital (Greiner, 2020), implicando nos modos de estabelecimento de relação e, portanto, aprendizagem.

Nessa esteira de pensamento, no texto Alfabetização Escolar e Acoplamento Tecnológico: Práticas de Autoria e Subjetivação, Maria de Fátima de Lima das Chagas e Nize Maria Campos Pellanda analisam práticas de alfabetização com alunos não-alfabetizados do 5º ano de uma escola pública localizada no interior do Rio Grande do Norte em uma área de periferia. Essas práticas consideraram os percursos de vida e interações com tecnologias digitais, indicando que as/os estudantes conseguiram produzir com autonomia seu percurso de alfabetização, fazendo uso de algumas tecnologias para a reinvenção de seus modos de aprender.

Deslocando as discussões para a produção de subjetividade e as formas de incidência do poder nas vidas, os quatro textos a seguir deslizam entre as urbanidades, os códigos morais nas políticas públicas, as práticas de normalização em saúde e pela crítica com relação às biopolíticas. Todas essas discussões têm em comum a crítica da subjetividade que foi, progressivamente, psicologizada (Ferreira Neto, 2004).

Essas produções dirigem nossa atenção para os jogos que constituem a possibilidade de produção de subjetividades, sejam estas atravessadas pelo medo e segurança que criam isolamento e exclusão (Caldeira, 2011), ou a guerra às drogas que instituem polícias em saúde (Scisleski et al., 2013). Os artigos apresentam, em maior ou menor medida, propostas de resistência a essas lógicas de condução da conduta, sempre pautadas pela análise das formas de gestão contemporâneas, não raro sustentadas pelo capitalismo-neoliberal.

Luísa Horn de Castro Silveira, Cristianne Maria Famer Rocha e Julio Celso Borello Vargas são as autoras e autor do artigo Barreiras invisíveis e rotas alternativas: uma análise sobre (i)mobilidade urbana e produção de subjetividades. Nesse texto, problematizam-se os modos pelos quais a mobilidade urbana é afetada por barreiras invisíveis em uma região da cidade de Porto Alegre. Tais barreiras invisíveis de mobilidade estão relacionadas aos modos de subjetivação existentes em contextos urbanos específicos, ligados às relações de poder engendradas na cidade contemporânea, às sensações de isolamento e exclusão, à atmosfera de medo e insegurança e aos processos de segregação (re)produzidos localmente.

Em Reabilitação psicossocial: entre a segurança e ética da existência, Jessica Batista Araújo realiza o mapeamento de práticas e pensa nas possíveis resistências à captura da vida pelas políticas públicas de reabilitação psicossocial com usuárias/os de álcool e outras drogas. A autora se depara com toda a diversidade teórica e prática da reabilitação psicossocial, atravessadas pelos diagramas do proibicionismo e antiproibicionismo. Diante disso, analisa que embora as práticas de reabilitação psicossocial estão atreladas aos movimentos da população modulando condutas e o consumo de drogas, a política de redução de danos permite linhas de subjetivação que possibilitam a construção de modos singulares de existência, perpassadas pelo cuidado de si, e não inserido simplesmente em um código moral.

Flavia Cristina Silveira Lemos, Geise do Socorro Lima Gomes, Paulo de Tarso Ribeiro de Oliveira e Dolores Cristina Gomes Galindo assinam o artigo Medicalização e normalização da sociedade. O artigo é um ensaio temático e teórico sobre as práticas de medicalização, a partir das análises de Michel Foucault. O texto analisa os aspectos que sustentam processos de medicalização. Concluem que governar a vida em nome da expansão da mesma e do aumento da saúde implica um ato permanente de controlar os corpos e a saúde deles, de acordo com os critérios do Estado sobre saúde.

Rodrigo Diaz de Vivar y Soler em seu artigo Dos direitos dos governados em Michel Foucault pensa os direitos dos governados como uma crítica à governamentalidade e à biopolítica. Realiza correlações entre uma história política da governamentalidade e os processos de condução das condutas produzidas por práticas refletidas de governo, destacando a emergência da biopolítica e dos modos de condutas do liberalismo e do neoliberalismo, na formação dos modos de subjetivação tipicamente econômicos. Posteriormente, pensa as insurreições dos direitos dos governados como estratégias de resistências aos processos de governamentalização da vida e, por fim, aponta para os tensionamentos das insurreições dos governados como uma forma de vida contrária às diretrizes econômicas da governamentalidade e da biopolítica.

Outra sequência de textos recolocam a centralidade do cuidado feminino e da mulher nos jogos de poder, seja problematizando as questões referentes às crianças em instituições, a proposição de uma outra perspectiva epistemológica ou as demandas de invenção metodológica situada. Vemos essas discussões no artigo Sistemas familiares conflituosos e cuidado feminino com crianças acolhidas, Lucas Fadul de Aguiar, Edson Júnior Silva da Cruz e Janari da Silva Pedroso apresentam resultados de uma pesquisa que investigou a relação entre crianças institucionalizadas e a dinâmica de suas famílias num serviço de acolhimento para crianças de zero a seis anos. Trata-se de um estudo de caso com duas famílias cujos resultados apontam que a herança de abandono foi atualizada em até três gerações, a partir de uma história que se construiu à base de perdas emocionais e financeiras. Tais perdas foram somadas às dificuldades do núcleo, ao exteriorizarem conflitos que resultaram na posterior desagregação familiar e acolhimento infantil.

A proposta de descentramento epistemológico está presente na tarefa ético-estética de Érika Cecília Soares Oliveira, Maria Laura Medeiros Bleinroth, Yasmin Maciane da Silva, Rayanne Caroline da Silva Amorim, José Cícero dos Santos Júnior e Willamys da Costa Melo autoras e autores do artigo Rastros e restos de Carolina Maria de Jesus. Nesse texto são explanadas as contribuições de Carolina Maria de Jesus para os diferentes campos epistemológicos e práticas cotidianas. Considerando a magnitude de suas palavras, o artigo busca reconstruir sua trajetória através da leitura de suas obras mais populares e, a partir disso, mergulha em algumas pistas que a escritora oferece. Como efeito da pluralidade temática localizada em seus escritos, compreende-se que seu potencial teórico nos fornece sustentação sobre diferentes eixos de subordinação mediante seu entrelaçamento transdisciplinar, evidente tanto em seus diários quanto em sua escrita ficcional.

Em Encontro de Mulheres no CRAS: Uma Experiência na Construção Grupal, Deise Lucia Antunes Lopes, Kátia Maheirie e Ana Maria Justo discutem os resultados de uma pesquisa-intervenção realizada com um grupo de mulheres que participa de uma atividade regular em um CRAS da região metropolitana de Florianópolis - SC. O objetivo do artigo é apresentar e discutir o diário de campo produzido entre junho de 2017 a dezembro de 2018. Os resultados apontam que a experiência grupal permitiu o estabelecimento do "nós" e da importância do outro e do grupo como mediador no fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. O grupo de mulheres foi, também, um espaço importante de acesso ao serviço, pois por meio dele puderam acessar seus direitos sociais.

Caroline Cabral Nunes e João Paulo Macedo assinam o artigo intitulado Desafios metodológicos e formativos em pesquisa com mulheres na prisão que propõe a discussão dos desafios presentes ao investigar as relações de poder que incidem sobre os corpos femininos na prisão. A investigação foi tecida e atravessada pelos encontros-acontecimentos com 12 mulheres numa prisão mista, por meio de observações, registro em diários de campo e realização de entrevistas coletivas. Três blocos de discussão abordam os atravessamentos e aprendizagens para realizar pesquisas com mulheres na prisão: modulações no corpo-experiência para cultivar outras percepções e aprendizagens no fazer-pesquisa; deslocamentos subjetivos e experimentações no caminhar da pesquisa; e discutindo os deslocamentos de si no processo de escrita acadêmica de uma pesquisa coproduzida com mulheres na prisão.

Por sua vez, Vera Lúcia Pasini, Ana Maria Ponzoni Pretto, Ana Marcela Sarria e Marcelo Francisco da Silva Cardoso são as autoras e autor do artigo Perfil de Egressos de Residências Multiprofissionais em Saúde no Rio Grande do Sul. Nesse texto se realiza uma análise do perfil de 72 profissionais egressos(as), no período de 2005 a 2014, de cinco programas de RMS desenvolvidos no RS. Os(as) participantes da pesquisa responderam a um formulário elaborado no FORMSUS do DATASUS composto de questões fechadas e abertas, analisadas com o uso do Software SPSS v. 18. A análise apresenta o perfil dos(as) egressos(as) participantes considerando as variáveis gênero, raça e cor, idade; cursos de graduação; instituições de graduação; inserção no mundo do trabalho em saúde e avaliação quanto à formação em RMS, apontando a relevância das RMS para a qualificação no trabalho no Sistema Único de Saúde (SUS).

Em Escritura e narração: uma epistolografia da loucura e a emergência de um carteiro, Tiago Marcelo Trevizani e Rosane Azevedo Neves da Silva apresentam o produto de uma pesquisa realizada a partir do encontro com algumas cartas escritas por pacientes do antigo Hospício São Pedro, localizado em Porto Alegre/RS - Brasil. São dezessete epístolas, datadas do início do século XX, que não foram enviadas aos destinatários, pois ficaram anexadas aos prontuários. O estudo reflete sobre a noção de escritura a partir da "epistolografia do hospício" a partir do dispositivo metodológico do personagem "carteiro". Ao longo do texto, realiza-se a contextualização sobre a escrita epistolar, relacionando com a "escrita da loucura". Discute-se sobre a escritura como um modo de narração, partindo dos postulados de Roland Barthes e Walter Benjamin. Finalmente, entende-se que as palavras podem ser uma forma de lidar com a dor e de testemunhar os horrores vividos na clausura.

Brida Emanoele Spohn Cezar e Nelson Eduardo Estamado Rivero assinam o relato de experiência intitulado Como fazer da pesquisa um acontecimento? A autora e o autor propõem, com o trabalho, discutir uma perspectiva ética no fazer da pesquisa que, de maneira processual, delimita problemas e métodos, desviando-se, portanto, dos contornos estabelecidos aprioristicamente. Trata-se de uma certa implicação para com as possibilidades de invenção que o próprio pesquisar suscita, quando aberto às múltiplas vozes que o atravessam. São destacados os movimentos coletivos que emergiram durante a intervenção, na medida em que os tensionamentos em relação ao conhecimento não foram ignorados e sim visibilizados, potencializando a descoberta de novos rumos e abordagens até então impensados.

Este número da revista é encerrado com a resenha Brasilidades e Devir de autoria de Guilherme Augusto Souza Prado e Márcio José de Araújo Costa sobre o livro Brazuca negão e sebento. Trata-se de uma resenha da experiência de pensamento tão brasileira, mas, ainda, muito gringa, muito estrangeira - embora nos seja estranho-familiar, por usar referências francesas, essa França colonialista tão sonhada e desejada por muitos de nós, acadêmicos brazucas.

 

Referências

Caldeira, T. P. R. (2011). Cidade de muros: crime, segregação e cidadania em São Paulo. São Paulo: Editora 34.         [ Links ]

Greiner, C. (2020). Devir otaku do mundo. Pandemia crítica. N-1 editora. Recuperado de https://www.n-1edicoes.org/textos/52        [ Links ]

Ferreira Neto, J. (2004). Processos de subjetivação e novos arranjos urbanos. Rev. Dep. Psicol., UFF, 16(1),111-120. Recuperado de https://pesquisa.bvsalud.org/portal/resource/pt/lil-505031        [ Links ]

Scisleski, A. C. C., Silva, J. L. C., Galeano, G. B., Caetano, C. L. & Bruno, B. S. (2013). Polícias em saúde: quem tem medo de usuários de drogas? Rev. Polis e Psique, 3(3),106-124. Recuperado de https://seer.ufrgs.br/PolisePsique/article/view/42333/28621        [ Links ]

Scorsolini-Comin, F. (2014). Psicologia da educação e as tecnologias digitais de informação e comunicação. Revista Quadrimestral da Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional, 18(3),447-455. Recuperado de https://www.scielo.br/pdf/pee/v18n3/1413-8557-pee-18-03-0447.pdf        [ Links ]

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