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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.11 no.1 Porto Alegre Jan./Apr. 2021

http://dx.doi.org/10.22456/2238-152X.108015 

DOSSIÊ TEMAS EM DEBATE 2019: O QUE PODE A PSICOLOGIA SOCIAL NO PRESENTE?

 

Movimentos feministas e relações raciais intragênero: entre a luta e a opressão

 

Feminist movements and intra-gender race relations: between struggle and oppression

 

Movimientos feministas y relaciones raciales intragénero: entre lucha y opresión

 

 

Georgia Grube Marcinik; Amana Rocha Mattos

Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

 

 


RESUMO

Nas últimas décadas, tem crescido a interpelação das teorizações feministas a respeito das invisibilizações de determinadas opressões em suas produções. Esse tensionamento parte, especialmente, de feministas e mulheres negras, indígenas, periféricas, que têm endereçado questionamentos e levantado problemas epistemológicos à produção hegemônica e branca do campo dos estudos feministas. Neste artigo, recuperamos o percurso de algumas dessas questões para indagar sobre práticas feministas que têm sido conduzidas na academia e nos ativismos, e daremos destaque às discussões que analisam a pouca centralidade da discussão racial feita nos feminismos hegemônicos. Para tanto, percorreremos os trabalhos de autoras dos feminismos negros, interseccionais e decoloniais, acompanhando-as no trabalho de crítica e contraposição às opressões intragênero que se encontram nos feminismos. Traremos, ainda, algumas cenas e reflexões em que as questões aqui articuladas ganham corpo.

Palavras-chave: Feminismo; Relações raciais; Interseccionalidade; Decolonialidade.


ABSTRACT

In the last decades, there has been a growing demand for feminist theorizations regarding the invisibilization of certain oppressions in their productions. This tension comes mainly from feminists and black, indigenous, peripheral women, who have addressed questions and raised epistemological problems to the hegemonic and white production in the field of feminist studies. In this article, we retrieve the path of some of these questions to inquire about feminist practices that have been conducted in academia and activism, and we will highlight the discussions that analyze the little centrality of the racial discussion made in hegemonic feminisms. Therefore, we will go through the works of authors of black, intersectional and decolonial feminisms, accompanying them in the work of criticism and opposition to the intra-gender oppressions found in feminisms. We will also bring some scenes and reflections in which the questions articulated here take shape.

Key words: Feminism; Race relations; Intersectionality; Decoloniality.


RESUMEN

En las últimas décadas ha habido una creciente demanda de teorizaciones feministas sobre la invisibilización de ciertas opresiones en sus producciones. Esta tensión proviene principalmente de feministas y mujeres negras, indígenas, periféricas, que han abordado interrogantes y planteado problemas epistemológicos a la producción hegemónica y blanca en el campo de los estudios feministas. En este artículo, recuperamos el recorrido de algunas de estas preguntas para indagar sobre las prácticas feministas que se han realizado en la academia y el activismo, y destacaremos las discusiones que analizan la poca centralidad de la discusión racial realizada en los feminismos hegemónicos. Por tanto, pasaremos por los trabajos de autores de feminismos negros, interseccionales y decoloniales, acompañándolos en el trabajo de crítica y oposición a las opresiones intragénero que se encuentran en los feminismos. Traeremos también algunas escenas y reflexiones en las que se concretan las preguntas aquí articuladas.

Palabras-clave: Feminismo; Relaciones raciales; Interseccionalidad; Decolonialidad.


 

 

Introdução

O diverso campo dos estudos feministas compreende perspectivas e metodologias heterogêneas, muitas vezes conceitualmente divergentes. Podemos afirmar que o campo se constitui por um questionamento, desnaturalização ou problematização das hierarquias de gênero e sexuais que observamos no social, e essa discussão é empreendida a partir de distintos referenciais e experiências. Nas últimas décadas, tem crescido a interpelação das teorizações feministas a respeito das invisibilizações de determinadas opressões em suas produções. Esse tensionamento parte, especialmente, de feministas e mulheres negras, indígenas, periféricas, que têm endereçado questionamentos e levantado problemas epistemológicos à produção hegemônica e branca do campo dos estudos feministas.

Neste artigo, recuperamos o percurso de algumas dessas questões para indagar sobre práticas feministas que têm sido conduzidas na academia e nos ativismos, e daremos destaque às discussões que analisam a pouca centralidade da discussão racial feita nos feminismos hegemônicos. Para tanto, percorreremos os trabalhos de autoras dos feminismos negros, interseccionais e decoloniais, acompanhando-as no trabalho de crítica e contraposição às opressões intragênero que se encontram nos feminismos. Traremos, ainda algumas cenas e reflexões em que as questões aqui articuladas ganham corpo.

 

Feminismos periféricos: reflexões entre a margem e o centro

Entendendo raça como uma construção social que está diretamente associada a um processo sócio-histórico contextual (Schucman, 2010), é possível afirmar que todas as pessoas são racializadas, mas que existem esferas distintas de racialização. Por um lado, há uma esfera que explicitamente aponta pessoas racializadas (por exemplo, pessoas negras e indígenas no Brasil) e outra esfera que não é marcada cotidianamente por processos que visibilizam sua raça de forma discriminatória, pois sua raça é vista como universal e dominante. Este é o caso das pessoas brancas.

Discussões sobre o feminismo e o racismo muitas vezes se centram na opressão das mulheres negras e não exploram como o gênero tanto das mulheres negras como das brancas é construído através da classe e do racismo. Isso significa que a "posição privilegiada" das mulheres brancas em discursos racializados (mesmo quando elas compartilham uma posição de classe com mulheres negras) deixa de ser adequadamente teorizada, e os processos de dominação permanecem invisíveis (Brah, 2006, p. 351). Bell hooks discorre sobre como esta posicionalidade contribui para que as vivências das opressões sejam distintas entre mulheres brancas e negras, em contextos sexistas e racistas:

(...) mulheres negras observaram o foco feminista branco na tirania masculina e na opressão das mulheres como se fosse uma revelação "nova" e acharam que esse foco tinha pouco impacto na sua vida. Para elas, o fato de as mulheres brancas de classe média e alta precisarem de uma teoria para "informa-las de que eram oprimidas" era apenas mais uma indicação de suas condições de vida privilegiadas. (hooks, 2015, p. 203).

É importante salientar que mulheres brancas podem ser oprimidas pelo sexismo, mas, por não serem alvo de racismo, podem estabelecer relações de opressão com pessoas negras. Como apontam as feministas negras, uma situação análoga pode ser observada entre homens negros, que são vítimas de racismo, mas podem ser opressores sexistas com as mulheres. Tanto mulheres brancas quanto homens negros podem se engajar em movimentos contra opressões de gênero e raça, mas isso não impede que práticas racistas e sexistas, respectivamente, sejam vivenciadas nestes movimentos. Enquanto a busca pela libertação for conquistar a igualdade social em relação aos homens brancos de classe dominante, qualquer grupo (inclusive esses), pode reproduzir lógicas de exploração e opressão continuada de outros sujeitos (hooks, 2015; Davis, 2016).

Como afirma Chimamanda Ngozi Adichie (2012), precisamos ter atenção com a reprodução de histórias únicas, pois, repetidas à exaustão acabam por invisibilizar outras experiências e pontos de vista. Quando temos acesso a uma única narrativa dos fatos, sejam eles históricos, políticos ou científicos, não nos oportunizamos a pensar nas infinitas possibilidades dentro de uma história - o que acaba por reforçar as relações de poder que estereotipam e preterem determinadas pessoas e suas vivências. Precisamos desconstruir a ideia de história única para que diversas histórias possam permear nossos olhares e sociedade, visibilizando o que é frequentemente apagado e negado nos pontos de vista hegemônicos.

Muitas feministas de grupos étnico-raciais subalternizados enunciam que não se pode entender o racismo e o sexismo como paralelos, pois há o risco de desconsiderar seus entrecruzamentos. Kerner (2012, p. 47) afirma que "contrárias a formulações aditivas como o conceito de 'tripla opressão', elas sugeriram entender o racismo sob a perspectiva de gênero - gendered - e o sexismo como "racializado" - racialized - e, a partir daí, diferenciar cada variante distinta de racismo e sexismo". Assim, simetrias e assimetrias, diferenças e semelhanças, junções e intersecções precisam ser olhadas em suas articulações, ao invés de serem lidas como meras escolhas teóricas.

Nas palavras de Crenshaw (2002, p. 177), autora responsável pela formalização do conceito, a interseccionalidade é "uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação". Neste viés, a autora trata de maneira específica as formas como o racismo, o patriarcalismo, o classismo e outros sistemas de discriminação criam "desigualdades básicas que estruturam posições relativas de mulheres, raça, etnias, classe e outras". Ademais, a interseccionalidade "trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, construindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento". Interseccionalidadeseria, então, o reconhecimento das próprias fraturas e das diferenças que produzem desigualdades.

A visibilidade interseccional nos torna atentas à importância da diferença intragrupo. Crenshaw (2002) apresenta dois termos importantes para refletirmos sobre experiências específicas que, ao serem analisadas por concepções tradicionais de discriminação de gênero ou raça, resultam em subordinação interseccional: superinclusão e subinclusão. "Em resumo, nas abordagens subinclusivas da discriminação, a diferença torna invisível um conjunto de problemas; enquanto que, em abordagens superinclusivas, a própria diferença é invisível" (p. 176).

O não reconhecimento das dimensões raciais intragênero dentro da agenda feminista hegemônica reproduz a lógica superinclusiva dentro dos movimentos, pois não reconhece condições específicas vivenciadas por outros grupos de mulheres. A estrutura dominante de gênero, sem sua racialização, não contribui para que pautas como aborto e violência contra a mulher, por exemplo, tenham análises e compreensões efetivas para diferentes intervenções (Crenshaw, 2002). Já uma análise de gênero subinclusiva ocorre quando um grupo de mulheres subordinadas enfrenta um problema, em parte por serem mulheres, mas isso não é percebido como um problema de gênero, porque não faz parte da experiência das mulheres dos grupos dominantes (Crenshaw, 2002).

Crenshaw (1994) chama a atenção para que pensemos sobre a desconstrução de uma perspectiva universalizanteda(s) mulher(es) e de estereótipos que são produzidos por concepções dominantes, propondo uma agenda não essencialista que possa mediar as constantes tensões entre as afirmações sobre as múltiplas identidades e a contínua necessidade em se fazer políticas grupais. Para compreender a discriminação como um problema interseccional, raça e gênero precisam ser articuladas, pois fazem parte de uma mesma estrutura que produz subordinação. Kerner (2012, p. 49) acrescenta que,

(..) tanto nos casos de racismos como de sexismos, as respectivas atribuições categoriais de diferenças são utilizadas para legitimar formas de estratificação e de segregação. O lugar apropriado de uma pessoa dentro - ou também fora - de uma sociedade é deduzido a partir de seu pertencimento a determinado grupo e das características específicas que são atribuídas aos diversos grupos sociais (Kerner, 2012, p. 49).

Outra vertente de questionamento ao feminismo hegemônico é a descolonização do saber-poder. O conceito de descolonização, utilizado por feministas da América Latina e do Caribe, é uma proposta epistemológica e política para explicar e compartilhar posições críticas sobre autonomia, articulando perspectivas de raça, etnia, classe e sexualidade como pilares políticos centrais de um lugar de fala específico. Vê-se que o feminismo hegemônico também é atravessado pela colonialidade, incluindo feministas do Terceiro Mundo - como é o caso do Brasil, quando não se percebe as diversas histórias das mulheres e suas experiências de resistência, de lutas e teorizações (Curiel, 2009).

A descolonização compreende uma posição política que atravessa o pensamento, a ação individual e coletiva, seus imaginários, corpos, sexualidades e formas de atuar e de ser no mundo. No nível do pensamento intelectual, a descolonização do saber visa o combate e questiona a visão de sujeito universal, eurocêntrico e racista, que reduz as histórias e experiências subjetivas de pessoas que não são consideradas modelos ocidentais à mera marginalidade, que acabam por se tornar objetos exóticos de análise (Curiel, 2007, 2009).

Estas propostas do feminismo latino americano e caribenho também se localizam em oposição ao feminismo ilustrado como universal - tanto historicamente, como academicamente - e que é branco, heterossexual, institucional e estatal, acreditando na necessidade de construção de uma prática política que considere as articulações dos sistemas de dominação. Curiel (2007) indica que, desde a década de 1970, muitas feministas a partir das suas condições de mulheres racializadas, têm se aprofundado e vêm refletindo sobre a relação do processo histórico de colonização e escravidão em suas produções e práticas políticas, assumindo que descolonizar supõe registrar produções teóricas e práticas subalternizadas, racializadas e sexualizadas onde, a partir da luta e da resistência, constroem-se teorias:

Desde que aparece el feminismo, las mujeres afrodescendientes e indígenas, entre muchas otras, han aportado significativamente la ampilación de esta perspectiva teórica y política. No obstante, han sido las más subalternizadas no sólo en las sociedades y en las ciencias sociales, sino también en el mismo feminismo, debido al caráter universalista y al sesgo racista que le ha transpassado. Son ellas (nosotras) las que no han respondido al paradigma de la modernidade universal: hombre-blanco-heterosexual; pero son también las que desde su subalternidade, desde su experiência situada, han impulsado un nuevo discurso y una práctica política crítica y transformadora (Curiel, 2007, p. 94).

Feminismos como o feminismo negro, o interseccional, o descolonial, o terceiro-mundista e o pós-colonial, têm trazido à tona propostas que complexificam o movimento. A perspectiva antirracista dos feminismos e a luta contra o sexismo e patriarcalismo do movimento pelos direitos civis têm contribuído para integralizar pautas das agendas feministas, explicando como o racismo, articulado ao sexismo e o classicismo, afetam as mulheres. A partir da crítica dessas mulheres, manifesta-se a urgência em se discutir uma pauta recorrente dentro dos movimentos feministas marginalizados: o debate sobre privilégios, e consequentemente, sobre a branquitude nos feminismos (Carneiro, 2003; Curiel, 2007; Davis, 2016; hooks, 1984; Mohanty, 2008).

Podemos afirmar que esta relação entre "centro" e "margem" é experienciada intrinsicamente aos contextos marginalizados como o nosso - de um país latino-americano, colonizado, mas que está emblematicamente constituído por lógicas racistas, sexistas, patriarcais e conservadoras.

Considerando-se a perspectiva de Lugones (2011), cabe destacar que precisamos enxergar as mulheres brancas e racializadas para além de uma lógica categorial. Somos, a todo o momento, capturadas por categorizações dos corpos, inclusive pelas lógicas de gênero que, através de uma hierarquia dicotômica, converte-se em ferramenta normativa e colonizadora. É através de um poder hegemônico que nos constituímos em uma existência colonizada, racialmente universal e oprimida. Assim, a colonialidade de gênero se constitui e é constituída por uma colonialidade do poder, do saber e da linguagem.

Descolonizar os feminismos e os estudos de gênero é, necessariamente, uma tarefa prática, pois estabelece uma crítica da opressão de gênero racializada, colonial, capitalista e heterossexual, como transformação vivenciada pelo social, visto que ambos estão hierarquicamente e racialmente colonizados, negando ou silenciando subjetivações de outros corpos não normativos.

Na obra organizada por Moraga e Castillo (1988), através de ensaios, narrativas e autobiografias de mulheres afrodescententes, chicanas, indígenas e asiáticas,as autoras denunciam o racismo norte-americano, que também é encontrado nos movimentos feministas, juntamente com o sexismo, presente nos movimentos políticos e étnico-culturais. Desamparadas pelo movimento feminista hegemônico, tais mulheres tentam chegar ao "centro" através da construção de uma ponte entre as suas diferenças historicamente fragmentadas e silenciadas, refletindo sobre como as mulheres de cor (termo utilizado por elas) não são inseridas e representadas nos movimentos políticos, incluindo os feminismos.

Há inúmeras mulheres escrevendo, produzindo, poetificando, resistindo e reexistindo a partir dos tensionamentos presentes nos movimentos feministas quando outros fatores que transcendem a luta contra o sexismo entram em discussão ou em prática. A escrita é uma ferramenta de poder e de revolução, de fronteiras e fissuras; é um aparelho de guerra para o agenciamento, a autonomia e para a disputa de lugares e discursos - um lugar de combate ao universalismo e ao essencialismo (seja ele biológico, cultural, histórico, político). É uma possibilidade de inclusão, mas também de exclusão; de libertação e de aprisionamento. É ação, muito mais que apenas reação, que nos convoca a pensar em uma política das existências, a desconstruir hibridismo e hegemonias. É um mecanismo e uma estratégia de movimentar-se da margem para o centro.

No Brasil, Lélia Gonzalez é uma das mais importantes e significativas pensadoras negras. Seu trabalho militante ao longo de décadas foi imprescindível para a revitalização do processo de conscientização cultural, cívica, política, social da população negra. Através de suas observações críticas, moldou, gradativamente, uma consciência sobre a necessidade de lutar para transformar a realidade oprimida pelo racismo, pelo machismo e pelo sexismo (Gonzalez, 1984; Viana, 2010).

Gonzalez (1984) explica a interação entre o racismo e sexismo e os seus desdobramentos em estereótipos sobre a mulher negra, identificados como a mulata, a doméstica e a mãe preta. Para isso, a autora faz uma análise resgatando o aspecto histórico existente por trás de cada estereótipo, usando o racismo como pano de fundo, sobre o qual ocorre a formação de conceitos até os dias atuais. Além disso, a autora aponta o papel que o mito da democracia racial tem nesse processo.

A invisibilização das interseccionalidades raciais em debates de pautas caras ao feminismo (a exemplo do aborto, violência obstétrica, objetificação da mulher pela mídia e divisão sexual do trabalho) tem sido uma das principais críticas de mulheres marginalizadas (feministas ou não) ao feminismo hegemônico. A compreensão e a reflexão sobre esses tensionamentos representam grande desafio para feministas brancas, pois ele explicita as dificuldades (ou mesmo barreiras) para articulações de pautas entre feministas brancas e feministas racializadas.

 

Perspectivas feministas periféricas sobre as relações raciais intragênero: interpelando a branquitude nos movimentos feministas

hooks (2015) discute a produção dos corpos e subjetividades a partir das relações de opressão. Para a autora, a vivência de mulheres negras está constantemente permeada pela experiência de terem seus corpos institucionalizados e explorados. A autora complementa:

Essa experiência pode moldar nossa consciência de tal maneira que nossa visão de mundo seja diferente da de quem tem um grau de privilégio (mesmo que relativo, dentro do sistema existente). É essencial para a continuação da luta feminista que as mulheres negras reconheçam o ponto de vista especial que a nossa marginalidade nos dá e façam uso dessa perspectiva para criticar a hegemonia racista, classista e sexista dominante e vislumbrar e criar uma contra-hegemonia. Estou sugerindo que temos um papel central a desempenhar na construção da teoria feminista e uma contribuição a oferecer que é única e valiosa. (hooks, 2015, p. 208).

Nesta perspectiva, considerando que a luta feminista se constrói a partir das críticas às diversas hegemonias que ultrapassam as questões de gênero, retomamos nesta sessão as reflexões dos feminismos não hegemônicos em relação a um feminismo hegemonicamente produzido e composto, majoritariamente, por mulheres brancas, a partir de reflexões sobre situações vividas em contextualizações distintas. As reflexões que desenvolveremos são tributárias da aproximação das autoras, pesquisadoras brancas, com o pensamento de feministas e mulheres racializadas, que levantam questões cruciais para a discussão de opressões que se produzem no campo dos estudos e ativismos feministas, permitindo-nos pensar como e por quais sujeitos estes espaços estão sendo ocupados.

Os espaços feministas que oferecem formação, discussão e construção política são constituídos, em sua maioria, por mulheres brancas, que participam e têm alguma aproximação com políticas partidárias ou com a academia, sendo que frequentemente essas construções ocorrem em espaços institucionalizados como universidades e organizações políticas. Quando há a tentativa de interseccionalizar a luta contra o sexismo com outras lutas sociais, como a antirracista, feministas brancas costumam convidar mulheres negras para conduzir as discussões, entendendo que para falar de raça e racismo seria necessária uma legitimidade no tema que elas não possuiriam. Essa estratégia, ainda que responda à demanda de diversificação das narrativas e perspectivas sobre as relações raciais, pode, com efeito, desresponsabilizar mulheres brancas de falarem sobre o racismo presente em contextos feministas.

Em um projeto de formação política feminista do qual a primeira autora participou, oferecido por ativistas com vínculo partidário e ocupado majoritariamente por mulheres brancas, foi organizado um evento sobre branquitude, feminismo e racismo. Uma feminista negra foi convidada para ser curadora da formação, e na organização do evento estava uma das coordenadoras do movimento feminista partidário que promoveu o evento, uma mulher branca.

As únicas vezes em que [feminista branca] se pronunciou foram no momento em que apresentou a curadora; quando abriram para as perguntas, pois ela quem organizou as inscrições; e no momento de ler o texto de outra feminista branca que não pode estar presente no evento por problema de saúde. Quando [feminista branca] leu o texto de uma mulher branca falando sobre branquitude, ela em nenhum momento se colocou também como uma mulher branca disposta a dialogar. Apenas disse para que as pessoas que estavam ali (majoritariamente mulheres brancas) aproveitassem ao máximo a presença da curadora. (Diário de campo, maio de 2017).

A mulher branca mediadora do evento não se colocou como participante direta do que estava sendo tratado, não debatendo, portanto, a partir da sua condição de feminista branca. Permaneceu em silêncio e não se manifestou em nenhum momento sobre a temática, como se estivesse alheia à discussão levantada e como se a pauta só envolvesse a curadora do evento - uma mulher negra. Quando a temática racialé pautada diretamente em espaços feministas, é frequente que as mulheres brancas não se engajem nem se responsabilizem pela discussão.

Outro exemplo pode explicitar melhor essa suposição. Uma das mulheres brancas entrevistadas para a pesquisa de mestrado da primeira autora1 disse que estava tentando organizar uma mesa sobre branquidade em um dos movimentos de que participa. Nesta ocasião, ela diz: "Eu não queria construir essa mesa, não queria! Mas não tô vendo alternativa, porque só tinha mulheres brancas... só tinha duas mulheres negras [que não poderiam contribuir pois estavam atarefadas], então só quem tá organizando sou eu". Quando é perguntada por que motivo ela não gostaria de organizar essa mesa, o diálogo segue da seguinte forma:

Entrevistada: Então, mas como é que eu vou organizar uma mesa sobre branquitude, branquidade, sendo branca? Me explica isso? Eu tenho que chamar alguém pra me ajudar.

Entrevistadora: Mas porquê? Me fale mais sobre isso...você pegou um bom ponto agora.

Entrevistada: [lugar de ] Fala.

Entrevistadora: Mas o que você entende como branquidade?

Entrevistada: É a análise do branco enquanto raça. Porque não há uma análise, sempre analisam o índio enquanto raça, o negro enquanto raça, o asiático enquanto raça, mas nunca o branco enquanto raça.

[...]

Entrevistada: Tem que ser uma mesa só de pessoas negras, criada por pessoas negras....

Percebe-se, nas duas situações, a dificuldade que pessoas brancas enfrentam ao se colocarem em discussões que envolvem a temática racial. Tal situação pode ser decorrente, em parte, da falta de percepção sobre si como parte ativa do sistema racista sob o qual vivemos, colocando apenas as pessoas negras em discussões que abordam os temas de raça e racismo. Pessoas brancas deveriam discutir sobre o racismo?

A diversificação das concepções e práticas políticas que a ótica das mulheres dos grupos subalternizados introduz no feminismo é resultado de um processo dialético que, se, de um lado, promove a afirmação das mulheres em geral como novos sujeitos políticos, de outro exige o reconhecimento da diversidade e desigualdades existentes entre essas mesmas mulheres (Carneiro, 2003, p. 119).

Desde que todas assumissem seu lugar racial na sociedade, pensando inclusive a forma como são atravessadas por privilégios, vantagens, direitos e opressões, todas as pessoas deveriam se comprometer com a temática. Habitualmente, tem-se uma noção monolítica do ser mulher que está situada perifericamente, tanto socialmente, como dentro dos movimentos feministas, o que não possibilita uma visão micropolítica da vida de mulheres e que, consequentemente, acaba por (re)produzir um silenciamento de agências nas diversas formas de subjetivação e racialização de mulheres. Uma observação permite-nos inferir que pouquíssimas mulheres têm a oportunidade de pertencer ativamente aos movimentos feministas. Muitas tentam abraçar uma luta feminista que não as representa em sua totalidade, com um suporte ocasional de mulheres que estão no centro e que até reconhecem as diferentes pautas, mas se limitam a este reconhecimento. Assim, não se compreende que há um contínuo compromisso com as diversas lutas e agendas feministas, ainda que partindo de diferentes perspectivas, e que todas nós, mulheres, somos corresponsáveis pela luta das diversas opressões que sofremos, não só a partir do gênero, mas também de raça e classe. É necessário um tensionamento construtivo e não excludente que reconheça que o valor da escrita feminista não deve ser determinada apenas pela forma como o trabalho é recebido entre as ativistas que têm o privilégio de acesso acadêmico, mas também pelo seu alcance e o seu potencial em auxiliar mulheres que estão fora desse contexto (hooks, 2013).

O feminismo foi criado para e por quem? Sabe-se que mulheres racializadas, por exemplo, estão lutando há muito tempo para serem reconhecidas como mulheres, como seres humanos (Truth 2019/1851). Ribeiro (2017) afirma que a fala de SojournerTruth, ao perguntar se ela - mulher negra, escravizada - não era uma mulher, para uma audiência branca e escolarizada, já anunciava, no século XIX, o grande problema da universalização da categoria mulher que o feminismo hegemônico iria enfrentar, e que é debatido até os dias de hoje: "o que a voz de Sojourner traz, além de inquietações e necessidade de existir, é evidenciar o que as vozes esquecidas pelo feminismo hegemônico já falavam há muito tempo" (p. 24).

A voz da ativista não traz somente uma disfonia em relação à história dominante do feminismo, mas também a urgência de evidenciar que mulheres negras historicamente produziram e produzem insurgências contra o modelo dominante e promovem disputas de narrativas. Dessa forma, não podemos ignorar o propósito inicial de se construir uma teoria e prática feminista, visto que a luta de mulheres sempre existiu, considerando-se as lutas de visibilidades distintas, em contextos distintos de opressões. Há uma produção acadêmica feminista elaborada a partir de um universo particular e hierarquizado que destaca apenas algumas mulheres, particularmente as brancas, que, em consequência de seus privilégios, possuem acessos que permitem que seus trabalhos, práticas e pensamentos tenham uma posição de destaque em relação a mulheres racializadas. Há um enorme distanciamento de produções e publicações entre mulheres brancas e mulheres racializadas no campo das teorias feministas (hooks, 2013; Mattos &Xavier, 2016).

Quando bell hooks (1984) afirma que estar na margem é fazer parte do todo mas estar fora do eixo principal, ela nos convida, através de mulheres estadunidenses negras de Kentucky, a fazer um movimento contrário e perceber que corpos marginalizados têm um senso de totalidade que produz visões de oposição sobre o mundo, uma maneira de ver o que é desconhecido para a maioria, nos fazendo perceber que as formas de estar na margem e no centro se dão de diferentes maneiras. Vale ressaltar que, embora seus corpos transitem de ambos os lados da linha do trem, conforme salienta a autora, nem todas as pessoas terão permissividade para permanecer no centro; e o que irá determinar o distanciamento entre os polos será construído de forma singular e subjetiva, mas está marcado por raça, classe, gênero, sexualidade, geração.

Em suma, não se pode negar que muitas teorias feministas nascem de mulheres privilegiadas que vivem no centro e que as suas perspectivas de realidade raramente incluem o conhecimento e a consciência das vidas das mulheres que vivem na margem. Como consequência, falta multiplicidade nestas teorias, além de uma análise aprofundada que possa explicar melhor a variedade de experiências de mulheres.

Schumaher (2017), em texto publicado na internet intitulado "Branquitude para além do incômodo" fala de como essas relações transitavam e até hoje transitam nos contextos feministas:

Confesso que passei duas semanas pensando sobre meu lugar neste mundo heteronormativo, patriarcal e racista. Pensando quando é que me descobri branca - e, portanto, independente da classe social, portadora de privilégios sedimentados por uma sociedade colonialista e forjada na superioridade racial branca.

Um filme rodou na minha cabeça por vários dias... Me lembrei das companheiras negras que de maneira ousada enfrentavam cotidianamente o "descompromisso" do feminismo com a questão racial. Quantas vezes, insistentemente, elas nos lembravam que as propaladas irmandade, sororidade, busca por igualdade - que colocavam as mulheres no mesmo barco - não era inclusiva, pois mesmo entre nós mulheres, a desigualdade de raça, de classe e de orientação sexual (estruturante das relações sociais) era latente e continua a ser um desafio a ser superado.

Venho desse feminismo... Venho de um feminismo que não se apercebia excludente, que incorporava muito timidamente (quer no discurso, quer na prática) o enfrentamento ao racismo. A tensão e os conflitos não foram poucos (Schumaher, 2017, s/p).

O excerto ilustra a complexidade do reconhecimento da questão racial intragênero, principalmente se pensarmos historicamente os movimentos feministas e suas trajetórias. A racialização de pessoas brancas, como diz Schumaher, torna-se um descobrimento visto que a todo o momento são vistas como sujeitos universais, que não precisam pensar em representatividades, em políticas públicas, em reconhecimento cultural e histórico, por exemplo. Pessoas brancas são representadas pelo ideal de sujeito. Novamente fica explícito que sempre, nos movimentos feministas, houve a demanda da pauta racial, mas esta não tem sido considerada algo que pertencesse à luta dos feminismos hegemônicos. Porém, perceber-se branca e privilegiada não será suficiente, visto que a necessidade de se comprometer, como feminista, com a luta antirracista vai além da racialização e pertencimento racial hegemônico. Como hooks (2015) afirma, a luta contra a opressão de mulheres só fará sentido quando incluirmos e considerarmos todas a mulheres a partir dos vários marcadores raciais. Os feminismos precisam perspectivar a libertação de todas as mulheres, não só de algumas.

Como afirma Rodrigues, ao pensar os privilégios da neutralidade cultivados pelas pessoas brancas:

Refletir sobre a experiência de ter sido marcada com a cor branca me ajudou a fazer a distinção que estou propondo aqui entre suposição de neutralidade do branco - a "branquitude" que não pretende se assumir como tal - e a admissão de que branco também é uma cor, uma marcação ou, para falar em termos interseccionais, um marcador que, se existe negativamente para a pessoa negra no racismo estrutural da sociedade brasileira, existe positivamente para a pessoa branca (2020, s/p).

O não reconhecimento da hegemonia racial branca dentro de movimentos progressistas alia-se à repetição da ideia de que todas as mulheres são acolhidas nos feminismos e que ser de esquerda bastaria para que o racismo não se reproduzisse na construção dos movimentos. Essa ideia é passível de desconstrução, sobretudo se recordarmos que uma das principais pautas levantadas pelos feminismos é a violência contra a mulher e o feminicídio. Ainda que se saiba que a violência de gênero atravessa todas as mulheres ininterruptamente, ela ocorre de formas diferentes (Pereira & Passos, 2017). Por que os índices de feminicídios de mulheres se alteram drasticamente quando levamos em conta a questão da raça? Isto significa falar de uma pauta específica que divide a causa das mulheres? Pereira e Passos (2017) fornecem um panorama mais amplo que demonstra como as desigualdades pemeiam as mulheres de formas diferentes quando consideramos a interseccionalidade de raça:

Identificamos essas intersecções a partir de alguns dados publicados pelo IBGE (2014). O IBGE publicou a síntese de uma pesquisa com recorte de gênero e raça, realizada nos anos de 2012-2013, identificando que a maioria das trabalhadoras com carteira de trabalho assinada são mulheres brancas, correspondendo a 58,4% do total. As negras (pretas ou pardas) compõem a maior proporção (57,0%) de trabalhadoras domésticas e entre as sem carteira assinada representam 62,3%. Em relação à desigualdade entre as mulheres no que se refere à escolarização, 42,5% das mulheres sem instrução e com nível de ensino fundamental incompleto são negras, enquanto 28,2% são brancas. As disparidades também são localizadas no nível superior: 26,0% são mulheres brancas, considerando que as condições destas são mais favoráveis em relação às mulheres negras, que correspondem a 11,2% do total. Já o nível de escolaridade das mulheres com alguma ocupação é superior ao dos homens, uma vez que 45,5% dos ocupados sem instrução e sem ensino superior incompleto são homens, enquanto as mulheres são 34,8%. Portanto nos dados referentes a gênero, fica evidente a desigualdade de classe e raça em relação ao trabalho e à escolarização das mulheres (Pereira &Passos, 2017, p. 32).

De modo geral, a resistência que pessoas brancas possuem em assumir-se racializadas e parte ativa de um sistema racista é patente (Schucman, 2014). Tenta-se, frequentemente, hierarquizar opressões a partir de outros marcadores sociais, como a classe e o gênero. Bento (2014) aponta essa questão a partir do que conceitua como indignação narcísica, em que o sentimento de indignação do sujeito com violações de direitos só ocorre quando o seu grupo de pertença é prejudicado: "a imagem que temos de nós próprios encontra-se vinculada à imagem que temos do nosso grupo, o que nos induz a defendermos os seus valores. Assim, protegemos o "nosso grupo" e excluímos aqueles que não pertencem a ele" (p. 29). Observamos que frequentemente a indignação narcísica de feministas brancas ocorre pelo fato de não articularem lógicas hegemônicas raciais às pautas sexistas, pensando estas apenas quando são atravessadas por opressões de gênero e classe.

Em grande parte, tal problematização é trazida por mulheres racializadas devido às opressões por elas vivenciadas, em que apontam a dificuldade que feministas brancas possuem em refletir sobre estruturas de opressão tão profundas e invisibilizadas como o racismo. Outro motivo pelo qual o racismo aí se faz presente consiste em não identificar o privilégio racial promovido pela branquitude. Assim, debates que foquem nos efeitos da invisibilização das intersecções de gênero e branquitude nos feminismos hegemônicos e que proponham uma reflexão sobre o lugar das mulheres brancas na luta antirracista e antissexista são urgentes.

Reinvindicar e legitimar a desconstrução de papéis femininos universalizados e estereotipados, de modo que seja possível ocupar outros lugares transgressores que buscam a ascensão social/política/econômica presente nos discursos dos feminismos hegemônicos, exige reconhecer que, considerando as estruturas de sexismo, racismo e capitalismo presentes em nossa sociedade, há sempre o risco de que as feministas brancas deem continuidade à (re)produção de formas de opressão. Tomemos, como exemplo, o cenário brasileiro. Ao relacionar o escravismo com o trabalho doméstico, percebemos que, através da renúncia da mulher branca em ocupar estes espaços, eles acabam sendo naturalizados - histórica e socialmente - como função das trabalhadoras domésticas negras e de classes populares (Davis, 2016; Gonzalez, 1984).

Esta hegemonização de saberes sobre o ser mulher através da branquitude presente em teorias e práticas feministas coloca grupos (atravessados por outros marcadores sociais da diferença) em maior situação de vulnerabilidade e exclusão social, o que permite que diversos movimentos da luta política pela equidade de gênero continuem sendo espaços de opressão. Para tanto, vemos a importância da ressignificação das relações raciais intragênero como potencialidades políticas, pois é através da afetação das relações com o outro e do deslocamento naturalizado da branquitude que as infinitas possibilidades de subjetivação e diferença poderão ser visibilizadas.

As mulheres brancas que dominam o discurso feminista - as quais, na maior parte, fazem e formulam a teoria feminista - têm pouca ou nenhuma compreensão da supremacia branca como estratégia, do impacto psicológico da classe, de sua condição política dentro de um Estado racista, sexista e capitalista (hooks, 2015, p. 196).

Há inúmeras possibilidades de engajamento de pessoas brancas na luta antirracista . Cada vez mais os debates sobre branquitude, racialização e hierarquias raciais estão convocando pessoas brancas para dialogar sobre raça e racismo a partir do reconhecimento e entendimento de seus privilégios, entendendo não apenas o micro, mas também as macropolíticas, relações de poder e estruturas sociais. Faz-se necessário um engajamento e envolvimento teórico, prático e político de pessoas brancas, neste caso das mulheres brancas, para reorganizar e reavaliar as práticas feministas quando a pauta racial é interseccionada.

 

Considerações Finais

A percepção das estruturas de opressão e da concretude de suas lógicas cotidianas é mais evidente justamente para aqueles que se encontram em posições marginais. Não ser atravessada por determinada opressão faz com que os efeitos danosos dessa lógica sejam mais visíveis (Haraway, 1995). Assim, é inquietante que feministas brancas, que se dedicam a visibilizar as opressões de gênero mais imperceptíveis nas relações sociais, mostrem-se tão refratárias aos apontamentos que mulheres racializadas têm feito sobre o racismo estrutural presentes, também, nos espaços e teorizações feministas.

Evidentemente, as premissas tendenciosas e limitadas, construídas sob a ideia de ser mulher no contexto de uma condição social feminista branca têm sido problematizadas há tempos. Os tensionamentos que eclodem de feministas negras, interseccionais e descoloniais, por exemplo, a partir do recorte de raça, sempre fizeram - e fazem, até os dias atuais - uma crítica às mulheres brancas, com formação universitária, de classe média e alta. Nesse trabalho, discutimos, a partir do referencial interseccional e decolonial, como o silenciamento de questões raciais, em movimentos que não pensam criticamente a branquitude nos saberes e práticas dos feminismos hegemônicos, contribui para a marginalização de experiências de mulheres racializadas em diferentes âmbitos e excluem reflexões sobre hierarquias raciais presentes no movimento.

 

Notas

1 Referência da dissertação de mestrado.

 

Referências

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Submissão: 30/09/2020
1° avaliação: 20/11/2020
Aceite: 28/12/2020

 

 

Georgia Grube Marcinik é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e Pesquisadora do DEGENERA - Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros/UERJ.
E-mail: georgia_marcinik@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-5249-1548
Amana Rocha Mattos é professora associada do Instituto de Psicologia e pesquisadora permanente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordena o DEGENERA- Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros.
E-mail: amanamattos@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2890-5421

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