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Revista Polis e Psique

On-line version ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.11 no.spe Porto Alegre  2021

 

ENTREVISTA

 

A vulnerabilidade como condição da vida comum

 

The vulnerability as acommon life condition

 

La vulnerabilidadcomo condiciónde la vida común

 

 

Gillianno José Mazzetto de CastroI; Márcio Luís CostaII

ICentro Universitário Católica do Tocantins (UniCatólica), Palmas, TO, Brasil
IIUniversidade Católica Dom Bosco (UCDB), Campo Grande, MS, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo objetiva pensar os contextos da pandemia da COVID-19 a partir da categoria de vulnerabilidade entendida como abertura original para e na vida. Para tanto se fará um estudo fenomenológico Henriano que se pergunta pela possibilidade e dinâmicas de modalização da vida dentro dos contextos oportunizados pela pandemia. Com este intuito se distinguirá entre fragilidade e vulnerabilidade, na sequência explorar-se-á a ideia do duplo aparecer e da afetação a partir do provar-se a si mesmo com os outros sobre a forma de cuidado e por fim, se pensará alguns contextos e possíveis interlocuções para as pesquisas e práticas psicológicas dentro deste cenário. Como possíveis conclusões se pode observar que a pandemia tem produzido uma dimensão importante ainda a ser explorada, a saber, o desenvolvimento da ideia de hábito de vida não apenas como práticas, mas como fluxo e como vínculo afetivo anteriores a ideia de sujeito e de identidade.

Palavras Chaves: Psicologia; Fenomenologia; COVID-19.


ABSTRACT

This article aims to think about the contexts of the COVID-19 pandemic from the category of vulnerability understood as the original opening for and in life. For this purpose, a phenomenological study based on Henrian phenomenological approach will be carried out, which asks about the possibility and dynamics of modifying life within the contexts provided by the pandemic. To do so, a distinction will be made between fragility and vulnerability, then the idea of the double appearing, and affectation will be explored as proving oneself with others in one's own life, and finally, some contexts and possible interlocutions will be considered for psychological research and practices within this scenario. As conclusions, it can be observed that the pandemic has produced an dimension, namely, the exploration of the idea of life habit not only as practices, but as a flow and as an affective bond previous to the idea of subject.

Keywords: Psychology; Phenomenology; COVID-19.


RESUMEN

Este artículo objetiva pensar enlos contextos de la pandemia de COVID-19 desde lacategoría de vulnerabilidad entendida como la apertura original para y enla vida. Con este fin, se llevará a cabo unestudio fenomenológico Henriano que indaga sobre laposibilidad y ladinámica de modificar la vida dentro de los contextos provistos por la pandemia. Se hará una distinción entre fragilidad y vulnerabilidade. Se explorará laidea de la doble aparición y de laafectación de probarse a símismoconlosdemásenlapropia vida, y se consideraránalgunos contextos y posiblesinterlocuciones para investigaciones y prácticaspsicológicas dentro de este escenario. Como conclusiones, se puede observar que la pandemia ha producido una dimensión importante, a saber, laexploración de laideadel hábito de la vida no solo como prácticas, sino como unflujo y vínculo afectivoprevio a laidea de sujeto.

Palabras clave: Psicología; Fenomenología; COVID-19.


 

 

Introdução

O tema da vulnerabilidade vem se fazendo presente de forma recorrente na literatura científica (Mastroianni, 2009; Bennett &Carney, 2014). Na atual conjuntura, no entanto, vivemos um inesperado cenário que talvez demande pensar a vulnerabilidade desde a perspectiva das experiências e demandas geradas pela eclosão da pandemia da COVID-19, como por exemplo: vulnerabilidade e desigualdade (Smith & Judd, 2020, Cénat, 2020), vulnerabilidade financeira (Mogaji, 2020, Kartseva& Kuznetsova, 2020), vulnerabilidade e violência (Bradbury-Jones &Isham, 2020; NZFVC, 2020, UK Home Office, 2020) vulnerabilidade e saúde mental (Santos, 2020).

De maneira geral, é possível notar que as discussões em torno da vulnerabilidade ocorrem a partir de uma acepção majoritariamente atrelada a vida em sociedade e as suas dinâmicas inerentes, bem como a um juízo de valor negativo, que, majoritariamente, apontam para um estado de privação do bem-estar subjetivo, individual e coletivo, ou ainda de atentado contra a vida, nas suas diversas formas e modalidades de expressão, bem como de privação do acesso às suas condições materiais mais básicas.

O presente estudo pretende abordar a vulnerabilidade a partir de um outro olhar e dentro de uma diferente complexidade, que advém do pensamento Fenomenológico de Michel Henry (1996a). Ele, ao propor como condição fundamental da constituição da experiência da vida humana e da vida em sociedade, o fato de estarmos provando a nós mesmos junto com os outros, um "provar-se com" que ele chamará de épreuve de soi e de pathosavec (Henry, 1990a, 1990b, 2004a), oportuniza a reflexão sobre as condições fundamentais da vida humana à luz de como essa vida se dá a si mesma como um "provar-se-de-si-com-outros".

Considerando isso, já de início é importante fazer uma diferenciação entre vulnerabilidade e fragilidade. Em Henry (1990a) a vulnerabilidade é a condição primeira da existência, pois aponta para o fato de estarmos expostos na e à vida. É nessa constituição de poder ser afetado constitutivamente por um outro que a relação intencional entre eu, outro, outrem pode nascer, seja do ponto de vista do movimento pessoa-pessoa, pessoa-objetos, pessoa mundo.

Por isso, dentro desta perspectiva, a vulnerabilidade não significa uma falta, uma impossibilidade, ou ainda, uma fragilidade, mas sim, a condição inerente para a vida comum. Nós só somos porque fomos e continuamos sendo afetados, em nossa passibilidade original, por uma comunidade que se modaliza em hábitos de vida (Henry, 2011).

Por sua vez, a fragilidade é a forma como se experimenta, em si ou em outros, uma condição desfavorável à vida em suas expressões mais básicas, onde nem mesmo aquilo que se demanda como necessário, em sentido estrito, tanto de fato como de direito, está sendo atendido. Esse tipo de condicionamento que deixa e, em alguns casos, faz morrer (Agamben, 2020), está associado a algum tipo de totalitarismo (Arendt, 1989) e também a alguma modalidade ditatorial de alguns sobre muitos outros, no sentido levinasiano (Lévinas, 2010).

Para produzir esta reflexão que toma por base a proposta Henriana, faremos um estudo teórico de base fenomenológica que procurará pensar a vida e a vulnerabilidade como espaços de ressignificação de si e da vida comum. Por estudo de base fenomenológica se compreende o caminho de produção do conhecimento que, voltando às coisas mesmas (Husserl, 2001, 2008) e inquirindo-se pelos seus fundamentos (Heidegger, 2005), é capaz de clarificar o sentido dos fenômenos (Heidegger, 2008), por meio de um caminho rigoroso, o que permitirá voltar e experiência de si na vida comum, como um "provar-se-com-outros", como um fenômeno cujo fundamento permitirá a ressignificação fenomenológica da vulnerabilidade. Para chegar a esse fenômeno e a seu fundamento, será necessário tomar como base a reflexão Henriana sobre o duplo aparecer e pensar, qual seria o 'fundo comum', no qual toda a subjetividade e intersubjetividade se assenta.

 

O duplo aparecer e o fundo comum da intersubjetividade

A temática do duplo aparecer constitui um avanço da reflexão Henriana em relação à Fenomenologia clássica de Husserl e de Heidegger e representa o mecanismo de base no qual toda a sua reflexão se concatena. Desconsiderar essa dimensão pode produzir o risco de se cometer sobreposições e de transformar o pensamento Henriano naquilo que ele criticou em Husserl e em Heidegger, a saber, reduzir a Fenomenologia àquilo que se manifesta na evidência do ser. A fenomenologia Henriana é um pensamento de perspectivas de realidade. Por meio dessa estratégia de construção do pensamento, Henry (1990a) desenvolve a ideia de que há duas formas fenomenológicas do aparecer que se completam, isto é, a da essência da manifestação e a da aparição mesma do fenômeno.

A primeira se caracteriza pelo aparecer na vida ou o nascimento da vida que constitui a forma mais original e estruturante, forma essa que aparece sob a dinâmica da fruição e do provar-se a si sendo si mesmo. A segunda forma é por via da representação ou, como afirma Henry (2001), da Ek-stasis, que consiste no processo de construção da experiência objetiva do fenômeno.

Pensando o duplo aparecer na experiência de construção da subjetividade, percebe-se que a dinâmica da encarnação e da prova da vida em si mesma pode revelar não apenas essa dimensão em sua originalidade constitutiva, mas dá indícios da existência de umaintencionalidade subjetiva de ordem pathética, isto é, afetiva que apontaria para uma dimensão da vulnerabilidade original.

Tal movimento permite anunciar um horizonte de discussão que pode ser bastante promissor em cenários como os de uma pandemia, pois, por meio do duplo aparecer a objetividade do mundo dos seres ou do mundo da estrutura da manifestação é enriquecida pelo fluir de uma vida que só pode ser compreendida em profundidade quando sentida, pensada e encarnada como pathos, isto é, como afetação de si com e pelos outros. Um exemplo que pode auxiliar na compreensão é quando observamos o corpo humano enquanto objeto e enquanto estrutura encarnada, valendo-se de uma expressão Henriana (Henry, 1998).

O corpo objetivo é aquele composto por órgãos, sistemas, às vezes tomado sob a forma de peças anatômicas, e por fim, monetizado. Por sua vez, o corpo encarnado caracteriza-se por ser fugidio a manifestação objetal. Ele escapa aos artifícios da razão instrumental e reclama a atenção do rosto por meio da denúncia e, em outras circunstâncias, pelo questionamento da vontade, da razão ou dos modelos objetais.

A ideia de encarnação nos ajuda a entender por que transformações involuntárias - expressões - têm uma função tão importante na mediação de nossas atitudes interpessoais. Sorrir, corar, rir e chorar; é precisamente a minha perda de controle sobre o meu corpo, e seu controle sobre mim, que criam a experiência imediata de uma pessoa encarnada. O corpo cessa, nesse momento de ser um instrumento, e reafirma seus direitos como pessoa (Scruton, 2016, p. 107).

Em contextos de pandemia no quais a angústia, a incerteza, o pânico e a ansiedade podem aparecer com mais frequência (Roy et. al. 2020; Shanafelt et. al. 2020) a dimensão da vulnerabilidade da vida encarnada pode ser um caminho importante para se pensar como a vida está se modalizando para além dos pressupostos racionais ou objetais. Tomando como exemplo desta realidade os profissionais da saúde que estão no enfrentamento direto da pandemia, em contato com paciências positivados, se pode notar que, neles, os processos de modalizações da vida exposta podem assinalar para uma outra realidade da experiência humana. Por um lado, a vulnerabilidade como compromisso com o outro, por outro, a vulnerabilidade como risco de ser contaminado.

Frente a isso, a realidade da adequação e ressignificação da vida em contextos de pandemia ou para além dela podem ser pensados desde o ponto de vista da vulnerabilidade e da exposição à e na vida, afetação de si com e pelos outros, como no caso, por exemplo, da experiência do nascimento que atravessa desde os horizontes mais elementares e biológicos da experiência de se estar vivo até as representações mais elaboradas sob a forma de arte, linguagem, cultura (Henry, 2004a). Como afirma Martins (2015): "o advir a si da vida é o seu advir em cada vivo que, nesse processo, a revelação dela se fazer prova: a vida prova-se no vivo que sou" (p. 364).

O duplo aparecer aponta para uma realidade importante da experiência humana. Somos seres vivos porque estamos expostos e afetados por esta experiência constitutiva. Disso se pode inferir o núcleo da vulnerabilidade a partir deste horizonte fenomenológico, isto é, somos vulneráveis pelo fato da própria imanência do estar vivo e afetado, na e pela vida, em e por nós mesmos e com e pelos outros.

Frente a isso, a dupla aparição e a vulnerabilidade imanente criam a possibilidade de se pensar um espaço para a intersubjetividade, não apenas entendida como processo de interação com o outro, mas, sim, como processo de afetação-participação na vida que se descobre excedente e atravessada em si mesma (Thélot, 2013), pois ela se constitui sob a forma de provar-se a si mesmo com os outros, sendo afetada e percebendo-se afetada.

É nesse intercâmbio e interatravessamento de afetos que se pode pensar a subjetividade, não como o polo de uma relação, como no caso da estabelecida entre um sujeito e um objeto (Husserl, 2012) ou entre um eu e um outro (Buber, 2001), mas, sim, como uma mestiçagem (Serres 1991, 1993)interafetiva de impressões que, uma vez decantadas e reforçadas sob a forma de hábito, permitem o nascimento do ego como posição e como exercício livre de poder.

Ela, a dupla aparição, não se dá apenas no fenômeno da manifestação, mas estabelece a mesma dinâmica no processo de constituição do si, tanto em âmbito pessoal: o corpo-carne e o corpo-objeto, quanto no horizonte da vida comum: a comunidade transcendental e a comunidade egótica.

Tal dualidade encontra o seu elo na prova de si e no processo de ser afetado pelos outros, provando a si mesmo e customizando a vida sob a forma de hábito; essa prova de si como estar abertamente vulnerável a si mesmo e a um outro, de maneira imanente e viva aponta para uma pertença e para os modos de pertencimentos que se expressam na vida dos grupos humanos sob a forma de sexualidade, cultura e ocupação (Henry, 2009).

Esses modos de pertencimento a si mesmo e a um grupo humano assinalam para a forma original, ou um modo original, de pertencer a uma mesma vida, fazendo assim, com que uma forma diferente de conhecimento possa ser explorada no processo de construção de práticas psicológicas com grupos principalmente em períodos de pandemia, no qual, o fato do distanciamento social pode produzir a ingênua impressão de dissolução da experiência gregária.

Neste contexto de recomendação de isolamento, apesar do distanciamento, nos percebemos gregários e vulneráveis constitutivamente no horizonte da afetação. O vínculo de agregação não obedece às leis vetoriais da física e do contágio viral, embora distanciados socialmente, o vínculo de agregação permanece, pois o experimentar-se na vida como mútua afetação supera as barreiras físicas que obstaculizam o movimento.

Henry (1996b), na sua obra O Cadáver Indiscreto, lança uma afirmação interessante sobre a relação do outro na vida do Si, pois afirma que a excedência, a estranheza do outro (Henry, 1965), não é apenas fruto da sua exterioridade em relação ao si mesmo, mas, sim, é resultado de um atravessamento que vem do interior e chega à flor da pele. Comenta Henry (1996b): "Corei de prazer, é estranho que se possa sentir por dentro o que se passa no rosto" (p. 186). Esse sentir por dentro o que se passa no rosto aponta para a relação íntima que existe entre a manifestação, o corar do rosto, e a sua essência, o sentir por dentro nos seus movimentos de fruição. Estes movimentos elucidam a realidade da experiência de se estar vivo com os outros no mundo pois, o sentir objetivo do 'corar de prazer', vem acompanhado por um pathos afetivo pleno de significações que, quando somados produzem a experiência de mundo, com a advertência de que, mesmo na distância física sem vetores de aproximação, é possível corar de prazer ou de vergonha.

Ao considerar essa afirmação, é possível perceber que se abre uma nota interessante para uma reflexão sobre uma Fenomenologia do comunitário em Henry em tempos de pandemia pois, como aponta Martins (2015):

se nada me é mais estranho do que aquilo que, ao afetar-me, me transcende, ainda que, pelo interior me constitua ou funde, também nada me é mais familiar e próximo do que o afeto que, nessa estranheza me funda e me constitui (p. 365).

É nesse "sentir por dentro o que se passa no rosto" e nesse ser fundado pela experiência da estranheza e da transcendência do outro que podemos pensar uma Fenomenologia do vulnerável e da vulnerabilidade, pois tais elementos apontam para o fundo comum e para o processo de significação da intersubjetividade não mais a partir do "rosto" como em Lévinas (2010), ou a partir do "entre" como em Ricoeur (2010), mas, sim, é possível pensar o pertencimento a uma mesma vida sob a forma de vulnerabilidade imanente, que é customizada e mestiçada sob a forma de hábito. Vida esta que se modaliza no afeto e possui uma ressonância nas práticas ou nos modos de vida que o grupo vai assumindo conforme o seu processo de desenvolvimento.

À vista disto, os afetos e as emoções não são efeitos ou dimensões secundárias da experiência humana, mas sim, fruições de uma abertura à vida, possibilitando ver e pensar as práticas psicológicas a partir de processos que estão no horizonte do si mesmo e da sua própria abertura, isto é, o fundo comum (Wondracek, 2010), que em si não é polarizado, mas correlativo no movimento mesmo da fruição da vida, na prova de si com os outros.

Pensando tal consideração do ponto de vista da experiência da pandemia da COVID-19 é possível enriquecer e repensar o papel da construção de narrativas como relatos de vividos. Como afirma Maldiney (2007): "O chamado do outro não tem nunca lugar na face, mas numa zona marginal a que Husserl nomeia de apresentação" (p. 11). Nessa essência da manifestação da vida que, sim, se representa e expressa, em primeiro lugar, na pele e no rosto do outro, mas, também em clamores nas linguagens, é que se devem procurar os sinais e as texturas que apontam para a constituição do fruir da vida que se encarna, corpopropria.

Essa zona marginal, não direta, não clarividente, pode ser percebida nas marcas e nos atos de reviver e revisitar contextos, situações e a própria existência que o processo de ressignificação das narrativas vai produzindo, por meio da manutenção e confirmação das dinâmicas dos hábitos sob os quais a vida vai se modelando para continuar vivendo.

Um dos locus nos quais essa dinâmica pode ser percebida mais acuradamente são os grupos de outros significativos, tais como as famílias ou grupos de vivência com grandes trocas afetivas (Chen, et. al. 2011). Estes hábitos podem ser notados na forma como a família faz a vivência e o manejo do possível sofrimento causado pela sensação de insegurança, instabilidade e vulnerabilidade inerente a experiência pandêmica.

Nesta situação diferentemente da dor, que é tomada sob a forma objetal e que supõe uma cura, o sofrimento se configura como um fenômeno que aponta para uma posição na existência em sentido binswangerniano, contudo que, à luz de Henry (1990), assinala para a dinâmica que, naquele momento, as pessoas, os vivos, encontraram para continuar vivendo inclusive ao transformarem a instabilidade em novo horizonte de customização da vida.

O pathosavec, o afetar-se com, das famílias ou dos grupos de outros significativos em dificuldade, instabilidade e vulnerabilidade parece apontar para o fato de que a vida, mesmo que situada no modo de ser da angústia, cria estratégias para continuar fluindo, ainda que uma delas seja a do obscurecimento da transparência da imanência sob a forma de estratégias de alívio, tais como, a medicalização. Esse fundo abre à reflexão duas realidades no processo de entendimento da experiência fenomenológica de si e do mundo.

A primeira orbita o horizonte clássico da doação expressa sob a forma de relato, biografia, descrição da experiência, reminiscência e que aparecem nos grupos sob a forma de uma hermenêutica coletiva do vivido, no qual os membros reconstroem as suas memórias por meio da participação e da influência de outros significativos que contribuem para o processo de customização da vida, por meio do hábito de sujeitos que, ao produzirem uma narrativa, não apenas contam uma história de si, mas se fazem história consigo mesmo sendo outros de si (Ricoeur, 2010).

Essas narrativas de si-sendo podem ser expressas sob a forma de figuras parentais, construção interdependente do sujeito, sujeito social (Chen, et al., 2006), constituindo-se como o campo da representação.Por sua vez, em outra dimensão, a da essência da manifestação, o horizonte habitual pandêmico pode apontar para o silencioso fundo comum, a dimensão da essência da manifestação que, atravessando as narrativas, assinala para as dinâmicas da vida em se manter insistindo em viver, inclusive sob a forma de vida sofrida, vida desestabilizada.

Esse horizonte é silencioso não por ser inexpressivo, mas, sim, por estar para além da objetivação ek-staticaassinala para "camada afetiva subterrânea, na qual, todos bebem da mesma água e, ao mesmo tempo, fazem parte dela, ainda que sem saber, sem se distinguir dela mesma, do outro e do seu fundamento" (Henry, 1990, p. 178).

Nessa dimensão, como afirma Maldiney (2007), "As expressões verbais do doente não estão à altura do seu sofrimento. E o seu sofrimento não está à medida da sua história, isto é, das transformações da sua presença que, por meio do seu sofrimento, ele tenta expressar ou superar" (p. 9). Ela aponta para um espaço de constituição de alguém, ou de algum grupo que, ainda que em sofrimento, continua criando hábitos de vida e vivendo.

Frente a isso, para se notar tais dinâmicas da essência da manifestação e da dupla aparição, faz-se necessário, observar "apenas a realidade do fenômeno nu, na sua completa integralidade, isto é, as expressões, consideradas a partir delas mesmas e não a partir dos sintomas e dos indícios" (Maldiney, 2007, p. 8). Isso constitui uma atitude fenomenológica de base no processo de observação-afetação.

É considerando essa dupla dimensão da manifestação da vida habitual, e a partir dela, da experiência ambiental significativa, isto é, de como se dá o processo de pertença e atravessamento da vida e de constituição da modalização e do hábito nos processos de corpopropriação que se pode pensar e entender as dinâmicas de modalização da vida sob a forma de uma Fenomenologia do vulnerável e da vulnerabilidade.

Isto é feito de tal forma que as experiências de sofrimento, angústia, bem como de desfrute e gozo, muito mais do que representações do estado físico-psíquicos, possam ser pensadas como modalizações do processo de encarnação-corpopropriação da vida que insiste em viver hábitos de vida (Henry, 1985).

A experiência da vida em pandemia pensada a partir da dupla dimensão abre a possibilidade de utilização fenomenologia dos afetos que percebe que a vida, enquanto pathos e prova de si, é também amparo de si e de outros (Antunez & Martins, 2015), pathos-com. Esta dupla dimensão possibilita pensar como se dá o processo de fruição à vida, isto é, como se desenvolvem nos indivíduos e nas famílias ou grupos humanos os processos de afirmação da vida, ainda que sob a forma do padecimento, pois, como afirma Henry: "Esta potência impotente da vida é o que constitui a sua especificidade ao mesmo tempo que sua realidade, aquilo que lhe confere o seu estilo próprio" (Henry, 2015, p. 38) e complementando, afirmam Antunez & Martins (2015) sobre o sentir da vida "todo o sentir é o sentir de uma afeção da vida em si" (p. 178).

Por isso, a dimensão do fundo comum ou da afetividade na vida como vida, pode oferecer às práticas psicológicas de base fenomenológica, aquilo que Henry (2001), pensando a relação entre vida e ciência da saúde, concebe como o "devolver uma vida doente ao seu poder e felicidade de viver" (Henry, 2001, p. 142).

Dessa forma, a proposta de uma Fenomenologia da vulnerabilidade em tempos de COVID-19 enseja, não só representar e categorizar as experiências vividas num processo de relação, representação e descrição dos fenômenos, mas também revela o horizonte da fruição, da e na vida, por meio da experiência de permitir-se afetar com e pelos outros a partir do âmago da própria vida, abrindo a possibilidade de experimentar a pandemia também como uma lição de afirmação da vida nos limites de uma catástrofe diariamente reanunciada.

O processo da fruição da/na vida, também chamado por Henry (1993) de pulsão da vida, contribuem para pensar a vulnerabilidade, encarnada em contextos de pandemia, de maneira diferente daquela ancorada na dinâmica do prazer e da dor ou do normal e do patológico, movimentos esses presentes de maneira significativa nos processos de reflexão sobre a saúde.

A fruição da/na vida como o caminho de manifestação da prova de si e do pathos-avec oferece a oportunidade de se perguntar pela intensidade da manifestação da vida, isto é, contribui no processo de identificação das situações nas quais o grupo se encontra, em que se pode perceber uma maior interação com o fundo comum e com a prova de si, seja no processo de encarnação ou de corpopropriação.

A intensidade da fruição da vida pode revelar horizontes interessantes para se pensar uma fenomenologia do sofrimento e o gozo do sujeito em tempos de instabilidade, pois o descolamento da vida e, portanto, a descorpopropriação, não é apenas um fenômeno do sujeito que sofre ou que vive essa experiência, mas, sim, é um processo de fruir provando a si mesmo dentro de um contexto de outros significativos.

Tal realidade fica mais palpável ao se observar a realidade das famílias que estão tendo perdas significativas por conta da pandemia. Sejam perdas de pessoas membros da família, sejam percam econômicas, sejam perdas da sua própria dignidade. Como afirma Martins (2015): "a concretude transcendental do nosso ser é pathos; paixão! Afeto! Apenas a vida genérica pode estar só, mas esta é uma abstração" (p. 368).

A partir da Fenomenologia da vida, o sofrimento como manifestação de um fenômeno que também aponta para a essência da fruição da vida, passa a ser também um ponto de acesso a ela, como uma prova que a vida faz de si mesma por meio do pathos.Esse é o poder de modalização dos hábitos. Ele pode oferecer a oportunidade de ressignificar os sofrimentos em tempos de incertezas e instabilidades, tais como os presentes. O sofrimento, muito mais do que sinal de algo que não está bem, sinaliza para algo que ainda está vivo.

Tal realidade, ao ser aprofundada, permite pensar o processo da constituição das relações em duas dimensões. 1º toca às relações em geral, da vida em sociedade e do pertencimento a uma determinada cultura ou ocupação, e 2º tange aquilo que Chen, et. al., (2006) nomearão sob a categoria de outros significativos, isto é, pessoas que produzem um impacto direto na forma como o sujeito percebe e interage com o mundo, tais como família, parentes e amigos próximos ou ainda grupos com grandes trocas afetivas.

 

A vulnerabilidade e o cuidado

Uma Fenomenologia da vulnerabilidade como abertura ao provar-se a si mesmo com os outros oportuniza à reflexão a possibilidade de se pensar sobre a relação intrínseca entre a prova de si e a abertura ao outro e cuidado de si e do outro neste processo ou caminho de abertura. Frente a isso, é preciso caracterizar uma realidade. A de que, do ponto de vista da modalização, isto é, de como se apresenta a vulnerabilidade em sua relação com o cuidado e de como este se desenvolve em hábitos de afirmação de vida, este, o cuidado se desenvolve não como um estado, mas sim, como uma práxis e como um saber prático que, posteriormente se torna, usando a linguagem de Scheler (1973) uma coisa de valor.

A modalidade ocupacional do cuidado e a sua operação no mundo do saber prático e do saber de valor, possui uma peculiaridade que é a de existir enquanto entretenimento. A modalização que o cuidado desenvolve para se manter em seu fundamento não é apenas da ordem da interação ou ambiência, nem da implicação intencional, mas sim, da ordem do entretenimento.

Não obstante é mister aprofundar o que se compreende quando se vale desta categoria que hoje é comumente associada ao mundo da comunicação de massa.Entreter-se é fundamentalmente exercitar-se. É uma ocupação que, ainda que inserida em um mundo circundante, tem como foco o sujeito que ali está. Algumas línguas latinas, como o francês, por exemplo, assinalam de maneira bastante interessante para esta realidade. O verbo Entretier, nesta língua, tem como um dos seus sentidos clássicos: exercitar-se.

Apesar disso, é preciso considerar o seguinte, com o avanço dos meios de comunicação em massa, entreter-se deixou de significar exercitar-se e passou a assumir o sentido de quase um 'ocupar-se com algo ou com alguém de maneira divertida ou visando distração'. Este conceito passou a assumir as vestes de um 'passa tempo'. Entretemo-nos com a televisão, com as séries, com as notícias, com as pessoas, com os ambientes e, com isso, vamos passando o tempo das nossas vidas e buscando amortizar ou, deixar de lado aquilo que nos causa dessabor, tédio ou incômodo. De certa forma, e de maneira bastante eficiente, as formas e a indústria do entretenimento funcionam como meios para anestesiar ou criar espaços de fantasias dentro das nossas existências.

Porém, o que é que os espaços pandêmicos têm nos oferecido enquanto ambiente para a reflexão e para o exercício do cuidado? Em geral, a primeira realidade que se pode observar é que os espaço de entretenimento, no sentido de distração e diversão, foram reduzidos drasticamente e, por consequência, isso tem forçado as pessoas em regime de distanciamento social a, existencialmente, se exporem a um outro tipo de realidade. A saber: a realidade da imanência de si e da prova de si.

Disso decorre que a lógica do cuidado de si, tema este tão caro aos estóicos, não no sentido de cuidado hedônico, mas no sentido de cultivo, ganha um novo ar e uma nova tônica. O provar a si mesmo se torna mais latente dentro de uma realidade de restrição de distrações. Frente a isso, pensar a vulnerabilidade como abertura aproximando-a do conceito de cuidado sob a forma de entretenimento ou ocupação acaba sendo uma oportunidade para ressignificar os hábitos e entender as modalizações e fruições da vida.

Ao observamos as fases da pandemia da COVID-19 no Brasil se podem notar alguns traços curiosos. O primeiro foi marcado pela novidade do home-office, do distanciamento, da vida do lar. Isto, sobremaneira, para aquela parcela da população que pôde fazê-lo, pois, em muitos casos e para muitas pessoas, a recomendação do distanciamento significou na verdade um amontoamento.

Essa foram as características da primeira faze: intensidade, euforia. Um estado de excitação coletiva exemplificada pelos panelaços, aplausos, lives, postagem e, um refinado e bem brasileiro humor. Esta fase passou em muitos sentidos e o que temos notado é que agora um outro traço ou momento começa a se consolidar. Este marcado não mais pela excitação, mas sim, pela preocupação, nostalgia, ausência, angústia e tédio. A vida restrita ao ambiente da casa começa a ficar claustrofóbica, as relações ficam menos tolerantes e o 'a flor da pele' começa a ser mais frequente.

As imagens de momentos vividos começam a ser mais recorrentes e a pergunta pelo: "quando vamos retomar as nossas vidas?", "quando isso tudo vai passar?" são investidas de um peso cada vez maior (Faro et. al. 2020). Tomando isto em consideração se pode indagar: o que nos resta pensar e viver? Ou então que tipo de modalização da ocupação precisamos investir para continuar cuidando? Talvez uma oportuna resposta seja. É preciso entreter-se com a própria vida sem as comuns alienações ou distrações. Cuidar neste caso apresenta a sua face sob a forma de entreter-se e sobre a forma de cultivar-se permitindo-se provar-se a si mesmo e portanto, permitindo-se abrir-se a realidade em uma condição fenomenológica de vulnerabilidade (Henry, 2015).

Ao se considerar essa perspectiva se podem notar alguns pontos importantes. 1) Que o entreter-se e o cultivar-se podem ser traduzidos sob a forma de hábito e modalizações de vida. Hábito aqui entendido não apenas como rotina, mas sim, no sentido Henriano da forma como a vida encontrou para estabelecer rotinas e continuar vivendo.

Ao se tratar do tema do hábito é visando contribuir com o processo de promoção da saúde mental das pessoas que atravessam os dilemas pandêmicos se pode valer das pesquisas de Duhigg (2012) sobre as dinâmicas dos hábitos. Fundamentalmente ele nos propõe que 60% das nossas decisões diárias, são, de fato, deliberações racionais conscientes o restante, 40%, seriam hábitos. Por isso, entender e entreter-se com os nossos hábitos pode ser um fator bastante importante para se pensar sobre como as pessoas estão vivendo e provando-se a si mesmas neste período de pandemia.

Ao analisar a estrutura do hábito e as suas características Duhigg (2012) afirma que, esteé composto de três elementos estruturante: Uma deixa; uma rotina e uma recompensa. Tal tríade constituiria o Loop do Hábito (Duhigg, 2012. p. 20). A deixa se caracteriza por um gatinho, que pode ser também referente a um local, a um sentimento, a uma pessoa, a um fato. Ela ativa e impulsiona o hábito. A rotina, por sua vez, se estrutura pela resposta tradicional que damos quando estamos diante de determinada deixa, é o modo como comumente agimos ou pensamos. A recompensa é o resultado que quanto mais prazeroso, mas reforçado será, e, por consequência, mais força exercerá sobre a pessoa e mais se estruturará como uma prática habitual.

Iniciamos a quarentena com hábitos que eram alheios a ela, como por exemplo, encontrar as pessoas, sair, abraçar, não precisar usar EPI's. Tudo isso mudou por um contexto que independe da nossa vontade. Ao considerar isso é possível inquirir: O que está nas mãos das pessoas e o que elas podem fazer?Uma possível resposta seria a de redescobrir e ressignificar a vida que lhes é possível. Mudar e testar novas rotinas para suprir antigas recompensas como por exemplo: se sentir bem, útil, ativo, feliz.

Iniciamos esta reflexão com a seguinte premissa: a vulnerabilidade é diferente da fragilidade e uma fenomenologia da vulnerabilidade é aquela que se pergunta pelos modos de abertura e de prova de si que os seres humanos fazem ao viverem. Após isso descobrimos que este modo de abertura também produz um modo de cuidado como ocupação e entretenimento, que por sua vez, produz um valor e hábitos de vida que possuem uma intencionalidade.

Por apresentar uma intencionalidade intrínseca o cuidado possui uma modalização que toca o horizonte da experiência do mundo da vida como mundo circundante e como presente vivo e por isso, imanente e, usando uma expressão de Henry (1998), encarnado.

A pandemia, como uma nova modalização do mundo da vida que, por força, fez com que também a experiência habitual das pessoas fosse modalizada tem oferecido oportunidades importantes para se repensar o cuidado e a experiência de si sob a forma de entretenimento e de cultivo.

 

Implicações para uma Psicologia Fenomenológica

A vulnerabilidade como condição de abertura para e na vida em sociedade, principalmente quando pensada dentro do contexto de outros significativos que estão vivendo este período de pandemia, pode oferecer à reflexão psicológica alguns elementos importantes, maioritariamente se pensado em processos de afirmação da vida pela promoção da Saúde.

Tomar a vida ou as vidas em sua passibilidade vulnerável, estando elas fragilizadas ou não, pode oportunizar espaços de diálogo, nos quais, o mais importante não é a intervenção como resposta ao sofrimento, mas sim, a modalização, isto é, a forma como as pessoas estão modalizando as suas vidas em situações, a vezes, inéditas e de instabilidade como as que se tem visto no cenário brasileiro da COVID-19.

Entender o fluxo da vida dos outros significativos, de certa maneira, potencializado pelo fato da recomendação do distanciamento social e do 'ficar em casa' pode ser um caminho para clarificar cenários e contextos para além da lógica binária de saúde e doença. Pois ainda que saudáveis ou mesmo doentes, há um fluxo de modalizações de hábitos que tem afetado a rotina de famílias e de grupos humanos neste período.

Os hábitos entendidos como modalizações da vida nos seus mais variados contextos podem ajudas aos profissionais e pesquisadores em Psicologia a entenderem os processos de enfrentamento das situações adversas causadas pela pandemia não apenas a partir de uma lógica de nexo causal, mas sim, a partir da estruturação do fluxo das modalizações que produzem práticas como hábitos sexuais, cultura e ocupação (Henry, 1976).

De maneira particular, pensando as várias mudanças causadas pelo período de distanciamento social, uma em particular pode ser melhor observada a partir da consideração do pensamento fenomenológica Henriano, a saber: o mundo do trabalho. A mudança para muitas pessoas para a modalidade de trabalho remoto, trabalho virtual ou teletrabalho tem produzido uma nova forma de enfrentar modalizações da vida e dos espaços vitais, tais como: ambiente de trabalho, ambiente doméstico (Losekann& Mourão. 2020; Oliveira & Gamboa, 2020; Von Gaudecker et. al. 2020).

Esse espaço de abertura e de vulnerabilidade constitutiva tem produzido várias modalizações do fluxo na vida seja do ponto de vista da experiência de mundo, seja do ponto de vista econômico (Künn et. al. 2020). Diante disso uma reflexão fenomenológica em Psicologia sobre os vários aspectos da experiência da exposição e, por isso, davulnerabilidade constitutiva em tempos de COVID-19 pode oportunizar a consolidação de tessituras ainda embrionárias de novos hábitos de vida (Silva, 2020).

Esse fluxo modalizador de novos hábitos aponta para a afirmação da vida como o fundo no qual tocam as estratégias de promoção, prevenção, intervenção no campo da saúde. Na articulação com este campo, a afirmação da vida é a base da prática Psicológica, alicerce este que, por sua vez, se apoia no fundo fenomenológico assinalado por Henry, a saber: Da vida que se manifesta a partir da sua essência, que é a imanência do se provar a si mesmo, com os outros, como vivo na vida.

Ao fim e ao cabo, a vida corpopropriada como experiência de afetação de si com e pelos outros, adquire para a Psicologia uma intenção ética de fundo: fazer com que toda prática psicológica seja, em última análise, uma prática de afirmação da vida em suas várias modalizações e contextos.

A vulnerabilidade é a condição da afetação, cujos vestígios, apropriados e afirmados como marcadores modais de uma época ou como modalizadores da existência, se transformam em cultura, ocupação e sexualidade (Henry, 1996a). Talvez agora estejamos em um momento no qual novas afeições, novas feições e novos hábitos estejam se fazendo presentes, ainda que de forma embrionária no processo histórico-vivencial de gestação de novos modos de vida.

Uma Fenomenologia da vulnerabilidade, seja ela considerada do ponto de vista da abertura e da exposição original ou do ponto de vista da fragilidade, aponta para uma realidade existencial que, por mais que seja negada, minimizada, refutada ou ainda, reconfigurada, não é capaz de suspender a modalização da vida, que em cenários pandêmicos, tanto produz como induz novos hábitos que, por sua força habitual, não cessarão após a relaxamento das recomendações de distanciamento social ou das imposições de isolamento, mas sim, continuarão seu trabalho performático de recustomizar os modos de vida de pessoas e grupos humanos.

 

Considerações Finais

O presente estudo buscou pensar uma Fenomenologia da vulnerabilidade a partir da contribuição henriana. Foi possível notar que, à luz deste pensamento e considerando o contexto da pandemia da COVID-19, a vulnerabilidade apresenta-se sob uma dupla dimensão. A primeira, a da fragilidade e da violação, bastante presente em estudos sobre a violência doméstica e sobre diferentes impactos da pandemia sobre a vida de pessoas e populações, por exemplo. A segunda, a da abertura e da afetação como experiência da vida que se modaliza em hábitos e costumes, transformando a cultura.

Ao considerar a vida como abertura a todas as afetações que lhe vem ao encontro e como modalização histórica de hábitos, a Fenomenologia da vulnerabilidade oferece à Psicologia, em contexto pandêmico, uma promissora possibilidade de construir um viés diferenciado para abordar a experiência da vida como vínculo, bem como compreender e discutir as dinâmicas dos espaços comunitários ou de trocas interativas, que não obstante o distanciamento social, não cessam de acontecer.

Uma Fenomenologia da vulnerabilidade de base henriana, permite aos pesquisadores e profissionais do campo da Psicologia pensar as dinâmicas da afetação e do 'provar-se a si mesmo com os outros', a partir do seu nível constitutivo e inter-implicado, criando, com isso, as condições para uma análise do inter-afetivo como um fundamento posicionado com uma certa anterioridade em relação a discussões em torno às questões da subjetividade e da intersubjetividade. Uma Fenomenologia da vulnerabilidade, em contextos pandêmicos, pode ajudar a Psicologia a acessar e a discutir as dinâmicas mais elementares da vida humana, em sociedade, antes mesmo da eclosão e constituição da figura dos sujeitos e das identidades.

 

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Submissão: 13/10/2020
1° avaliação: 04/01/2021
Aceite: 06/01/2021

 

 

Gillianno José Mazzetto de Castro é doutor em Psicologia pela Universidade Católica Dom Bosco. Formado em filosofia em 2008 pela Universidade Católica Dom Bosco UCDB, é também mestre em Psicologia desde 2016.
E-mail: gillianno@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-3354-4330
Márcio Luís Costa é graduado, mestre e doutor em Filosofia. É também docente de ética, fenomenlogia e hermenêutica na graduação em Filosofia.
E-mail: marcius1962@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0412-4812

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