SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.11 número2Saúde mental, narrativas e encarceramento: a alteridade como condicionante da pesquisaProblematizando experiencias colectivas de los jóvenes del COLAÍ, movimiento de cultura índice de autoresíndice de materiabúsqueda de artículos
Home Pagelista alfabética de revistas  

Revista Polis e Psique

versión On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.11 no.2 Porto Alegre may/ago. 2021

 

ARTIGOS

 

A gestão autônoma da medicação e o exercício do cuidado

 

Autonomous medication management and care exercise

 

Manejo autónomo de medicamentos y el ejercicio de la atención

 

 

Joyce Paula de Souza Pereira Ferreira; Luciana Vieira Caliman; Janaína Mariano César

Universidade Federal do Espirito Santo (UFES), Vitória, ES, Brasil

 

 


RESUMO

Este artigo foi construído em interface com o projeto brasileiro da Estratégia da Gestão Autônoma da Medicação (GAM), especificamente em Vitória (Espírito Santo) em um Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi). Ele enuncia o desdobramento da GAM em sua experiência inédita com Grupo de Intervenção com Familiares (GIFs) de crianças e adolescentes e tem por objetivo narrar a experimentação da GAM no Estado do Espírito Santo, no campo da saúde mental infanto-juvenil. Nesta pesquisa afirmamos uma postura ético-metodológica pautada no método cartográfico e na pesquisa-intervenção, pressupondo a produção de conhecimento indissociável da produção de cuidado. A GAM tem contribuído para a efetivação das políticas públicas de saúde, como um exercício de ampliação de possibilidades de cuidado, disparando processos de autonomia e protagonismo, democratização nos serviços de saúde, criando e sustentando formas de tratamento coletivamente, reconfigurando,assim, as relações entre usuários, familiares, profissionais e pesquisadores.

Palavras-chave: Gestão Autônoma da Medicação; Saúde Mental; Pesquisa-Intervenção; Sobrecarga Familiar; Cuidado.


ABSTRACT

This article was built in interface with the Brazilian Autonomous Medication Management Strategy (GAM) project, specifically in Vitória (Espírito Santo) at a Child and Youth Psychosocial Care Center (CAPSi). It enunciates the unfolding of GAM in its unprecedented experience with Group of Intervention with Family (GIFs) of children and adolescents and aims to narrate the experimentation of GAM in the State of Espírito Santo, in the field of intangible and youth mental health. In this research, we affirm an ethical-methodological stance based on the cartographic method and in research-intervention, assuming the production of knowledge inseparable from the production of care. GAM has contributed to the effectiveness of public health policies, as an exercise in expanding care possibilities, triggering processes of autonomy and protagonism, democratization in health services, creating and sustaining forms of treatment collectively, thus reconfiguring relationships among users, family members, professionals and also researchers.

Keywords: Autonomous Medication Management Strategy; Mental Health; Research-Intervention; Family Overload; Care.


RESUMEN

Este artículo fue construido en interfaz con el proyecto de Estrategia Autónoma de Gestión de Medicamentos (GAM) de Brasil, específicamente en Vitória (Espírito Santo) en un Centro de Atención Psicosocial Infantil y Juvenil. Enuncia el desenvolvimiento del GAM en su experiencia inédita con el Grupo de Intervención con Familia de niños y adolescentes y tiene como objetivo narrar la experimentación del GAM en el Estado, en el campo de la salud mental juvenil. En esta investigación afirmamos una postura ético-metodológica basada en el método cartográfico y en la investigación-intervención, asumiendo la producción de conocimiento inseparable de la producción de cuidados. El GAM ha contribuido a la efectividad de las políticas públicas de salud, como ejercicio de ampliación de las posibilidades de atención, desencadenando procesos de autonomía, democratización en los servicios de salud, creando y sustentando formas de tratamiento de manera colectiva, reconfigurando así las relaciones entre investigadoresy otros.

Palabras clave: Estrategia Autónoma de Gestión de Medicamentos; Salud Mental; Investigación-Intervención; Sobrecarga Familiar; Cuidado.


 

 

Introdução

Como seria se a experiência dos usuários de psicofármacos fosse considerada em seu tratamento? O que mudaria se a experiência assumisse primeiro plano em relação às normas e prescrições sociais? Como seria pôr em diálogo os usuários, os profissionais de saúde e os familiares? Conhecemos o quão ricas, diversas e potentes podem ser as práticas de cuidado em saúde mental no cotidiano de seu fazer. A bem da verdade, elas escapam aos protocolos padronizados, resistem. Acreditando nessa potência, trazemos a estratégia Gestão Autônoma da Medicação - GAM "como nova abordagem do sofrimento psíquico" (Melo, 2015, p. 19).

A GAM começou a ser desenvolvida no Canadá, na cidade de Quebec, em 1993, numa conjuntura de pouca ou nenhuma crítica ao uso dos medicamentos em saúde mental (Campos, Passos & Palombini, 2014). A iniciativa partiu de grupos de usuários com intuito de afirmar a importância e a singularidade da experiência de uso de medicamentos. Cabe ressaltar este caráter coletivo pelo qual a GAM foi construída com a marca forte dos usuários e dos serviços alternativos e comunitários em saúde mental, no Quebec.

A "importação" ou adaptação da GAM no Brasil foi desenvolvida através de uma pesquisa multicêntrica1, entre 2009 e 2014, que se encarregou da tradução, adaptação, validação e semeadura da estratégia GAM pelo país. A aposta é que a disseminação dessa estratégia ocorra através da propagação de seus efeitos que extravasam lugares e temporalidades da pesquisa e se desdobram para os serviços, a rede de saúde e o território (Melo, 2015). Após mais de uma década de experimentação da GAM no Brasil, vemos que os efeitos foram irrompendo vias de contágio entre aqueles que se sentiam, de algum modo, convocados e interessados em disseminar a estratégia GAM: "É do encontro, do contágio recíproco ali operado entre as diferenças puras, constituintes do plano coletivo de forças [...], que as novas formas ganham realidade" (Escóssia & Tedesco, 2009, p. 100).

Este artigo objetiva trazer a experiência de experimentação da GAM no estado do Espírito Santo, no campo da saúde mental infanto-juvenil. O grupo de pesquisa Fractal2, contagiado pela GAM e no intuito de operar com essa estratégia, buscou criar espaços de conversa que colocassem lado a lado familiares, usuários e profissionais de saúde, numa conversação em torno da experiência da medicação. Com este objetivo, iniciou-se o grupo GAM no/junto com o CAPSi - Centro de Atenção Psicossocial da Infantil e Juventude de Vitória, com suas questões, desafios e especificidades locais da pesquisa-intervenção em saúde mental infantil.

Os CAPSi foram implantados pelo Sistema Único de Saúde(SUS) na montagem da rede de saúde mental infanto-juvenil a partir de 2002. Foram destinados a operar o cuidado de acordo com os princípios da Reforma Psiquiátrica brasileira e do SUS, tais como universalidade, integralidade, intersetorialidade, multidisciplinaridade e a noção de rede e território. Inaugurado em setembro de 2007, o CAPSi de Vitória foi a primeira instituição pública do município e do estado destinada exclusivamente a crianças e adolescentes no tratamento e assistência integral em saúde mental.

O movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira,tendo iniciado na década de 70, trazia como marca constitutiva a luta pela superação do manicômio ou do modelo asilar, a defesa pela ampliação dos direitos de cidadania aos pacientes mentais e a convocação da sociedade para a construção de um novo lugar social para a loucura (Delgado, 2001 citado por Ventura, 2012). Cabe lembrar que o movimento da Reforma Psiquiátrica brasileira e seus pressupostos não são "garantidos" em si mesmo; as leis e datas são acontecimentos, marcos históricos e legais fundamentais para o surgimento de uma política pública em saúde mental, contudo não suficientes para sua efetivação, principalmente nos municípios de médio e pequeno porte.

Ainda sobre a Reforma Psiquiátrica, com Cristina Couto (2012) percebemos que ocorreu inclusão muito tardia da saúde mental infantil e juvenil, tanto na agenda da saúde pública quanto na Reforma Psiquiátrica brasileira. Somente a partir de 2001 surgiram condições concretas para tornar visível a possibilidade de construção de uma política eficaz em saúde mental para a infância e adolescência.

Entendemos com Deleuze (2013) que trabalhar em saúde mental é construir um discurso que seja ao mesmo tempo político e psiquiátrico, sem que isso reduza um ao outro. A GAM, no Brasil, reforça esse exercício e se contextualiza com a realidade social e política, buscando andar ladeando os princípios da reforma.

 

Princípios da GAM: Autonomia e Cogestão

Por se tratar de uma novidade na saúde mental brasileira, a GAM suscitava(como ainda o faz) muitas questões, por exemplo: Gestão autônoma seria uma autogestão? Gestão autônoma dos medicamentos significa automedicação?

Afirmamos, a partir de Onocko-Campos e colaboradores (2014), que a GAM "é uma estratégia pela qual aprendemos a cuidar do uso dos medicamentos, considerando seus efeitos em todos os aspectos da vida das pessoas que os usam" (Onocko-Camposet al., 2014, p.7).Ou seja, a GAM considera a valorização da experiência singular de uso de psicofármacos dos usuários, o aumento do poder de negociação do usuário com os profissionais de saúde - incluindo o prescritor - e o suporte familiar, constituindo uma rede de apoio.

É de fundamental importância que usuários e profissionais possam ponderar juntos de que forma os medicamentos servem para melhora da qualidade de vida, atenuando o sofrimento que os sintomas da doença causam. Assim como analisar a contrapartida, ou seja, quando de maneira oposta, os medicamentos intensificam esse sofrimento e produzem efeitos não desejados ou efeitos colaterais. "É fundamental que profissionais de saúde se aproximem das vivências dos usuários; e que estes se sintam com liberdade e no direito de intervir nas condições do tratamento que seguem" (Onocko-Camposet al., 2014, p. 7).

Diferentemente do cenário quebequense, a condição real de muitos usuários e familiares no Brasil é a do não acesso aos medicamentos, das longas filas de espera para atendimentos especializados. Questiona-se: "Como ter acesso aos medicamentos?". Ou seja, no que diz respeito à redução ou interrupção dos medicamentos, desde o processo de adaptação do Guia GAM no Brasil, percebeu-se que essa temática não era a principal questão para os usuários brasileiros:

Usuários participantes dessa etapa da pesquisa salientavam que o acesso aos medicamentos era o que se lhes apresentava como crucial, e manifestavam o anseio de mais diálogo com seus médicos e maior esclarecimento sobre o porquê da medicação (Onocko-Campos et al., 2012, p. 972).

Entendemos que a experimentação da GAM no Brasil implica a análise sócio-histórica de um contexto que apresenta algumas questões estruturais no que diz respeito à saúde pública. Seja por ausência de recursos humanos, condições precárias de trabalho, o descaso com as redes de cuidado, a dificuldade da população em acessar os serviços, "assim como as dificuldades para marcar consultas com algumas especialidades, o grande espaçamento de tempo entre as consultas com o psiquiatra, etc., constituem fatores formadores da própria cultura política local" (Onocko-Camposet al., 2014, p. 35).

Sendo assim, a versão brasileira amplia esse debate - o ponto da retirada do medicamento. Todavia, reforça a importância do poder contratual nas decisões partilhadas entre usuário e profissional de saúde (Onocko-Camposet al., 2013). A Gestão Autônoma da Medicação se interessa, sobretudo, pela qualidade da experiência concreta e pelo acompanhamento de seus efeitos, pois ao passo que não incita a retirada nem a diminuição dos medicamentos, são cultivados instrumentos que auxiliam na autoavaliação do usuário sobre sua qualidade de vida, o que, algumas vezes, motiva demanda de algum ajuste ou até mesmo a retirada da medicação.

O caminho que a GAM, como estratégia de cuidado, busca traçar é o reconhecimento ético e singular do usuário sobre si mesmo, reconhecimento que, via de regra, reduziu-se ao reconhecimento de si pelo outro, pela avaliação de outrem, pela descrição de sinais e sintomas. Ela problematiza a redução do cuidado ao tratamento medicamentoso e propõe o aumento do poder contratual como proposta de ampliação da vida. A estratégia GAM propõe o exercício de um cuidado mais autônomo ao passo que compartilhado. É pensar a autonomia na GAM como produção de sujeitos autônomos, protagonistas e com força de transformação de si e do mundo (Melo, 2015). Autonomia que se faz no acoplamento das forças entre trabalhadores e usuários como condição para a produção de saúde. Embebecida das fontes da Reforma Psiquiátrica brasileira, a GAM não pensa a autonomia pela lógica do individualismo ou independência, pois autonomia, para esse movimento, constitui modos de estar com o outro. Para praticar o exercício da autonomia, as pessoas precisam compartilhar, umas com as outras, aquilo que pensam e aquilo que sentem, ao invés de se fecharem em seus próprios conceitos e atitudes. Esse exercício se aplica também aos usuários em seus tratamentos: "para experimentarmos a autonomia nos tratamentos, a gestão destes precisa ser compartilhada entre todos a aqueles que estão envolvidos" (Onocko-Campos et al., 2014, p. 10).

Essa aposta na gestão compartilhada do tratamento esbarra numa espécie de "ponto cego" da Reforma Psiquiátrica (Rodrigues, 2014), que é a prescrição medicamentosa não partilhada. A prescrição dos medicamentos ainda se constitui como uma prática privativa da clínica médica, um poder exclusivo de profissionais médicos - operador psiquiátrico contemporâneo. Melo (2015) vai afirmar que as prescrições acabam recebendo um peso maior sobre os usuários provenientes das classes mais humildes, com pouca escolaridade e baixo domínio contratual: "O saber médico é sobrevalorizado e sua palavra é assumida com força de lei" (Melo, 2015, p. 37).

Foucault (2010) aponta que todas as relações estão parasitadas pelo pensamento médico e pela preocupação médica, numa constante relação entre medicalização e normalização. A normalização da vida expressa no campo médico pela possibilidade de classificação dos indivíduos em termos diagnósticos, baseados também em estudos populacionais epidemiológicos, que definem atualmente algumas das políticas em saúde mental (tanto nas propostas de tratamento como em seu aspecto preventivo), pode ser inserida naquilo que Foucault nomeia como microfísica do poder sobre os corpos (Guarido, 2007, p. 159).Significa dizer que os deslocamentos e as imbricações da sociedade de soberania até o que chamamos de sociedade de controle passam, inclusive, pelo controle por meio do medicamento.

A autonomia como princípio da GAM, como já dissemos, não é independência, autossuficiência, isolamento, livre-arbítrio, mas também não é apenas seu oposto. Não se troca a independência pela total dependência, pois existe um grau de autonomia individual que a GAM busca potencializar, assim como o conhecimento sobre si mesmo, a participação nas decisões sobre o tratamento e a importância da experiência singular do "fazer uso" de medicamentos.

A dobra que se faz do conceito de autonomia está em ser mais autônomo quanto mais existir conexão em rede, engajamento, apoio, implicação na produção do cuidado e na gestão do cuidado - quanto maior for o suporte na relação com os serviços. Logo, implica tessituras cotidianas, inclusão e dissolução de pontos de vista, tensionamentos, descentralização de hierarquias e tomada de decisões coletivas. Em resumo, a GAM é uma estratégia de pesquisar e cuidar com o outro, compartilhando, tendo a autonomia e a cogestão como princípios e como um desafio do fazer. Dito de outra forma:O desafio é fazer com que a autonomia possa ser exercitada coletivamente, na diferença entre profissionais e usuários, como forma de promover alterações na experiência coletiva de gestão dos modos de existência, por meio da corresponsabilização entre os agentes, pela construção de acordos e pactuações antes impensáveis (Melo, 2015, p. 38).

Intensamente imbricada à autonomia, opera a cogestão ou, como comumente dizemos: "é a gestão que se faz junto". Percebemos os efeitos da autonomia quando produzem interferência nos processos de gestão, reconfigurando as relações entre usuários, familiares, profissionais e, também, pesquisadores. São efeitos mapeáveis pela reciprocidade, interdependência, confiança e reposicionamento no governo de si e do outro. Dessa forma, a GAM tem contribuído para a efetivação das políticas públicas de saúde, como um exercício de ampliação de possibilidades de cuidado, disparando processos de autonomia e protagonismo, democratização nos serviços de saúde, criando e sustentando formas de tratamento coletivamente.

 

Uma Caixa de Ferramentas

Em consonância com o trabalho realizado no Canadá, o Guia GAM (Gestion Autonome de La Médication de l'Alme - MonGuidePersonel - Gestão Autônoma da Medicação da Alma - Meu Guia Pessoal, elaborado em 2001) foi atualizado no contexto brasileiro durante o período de adaptação e validação da pesquisa multicêntrica acima referida. Essa adaptação comporta a existência do Sistema Único de Saúde brasileiro (SUS) e a Reforma Psiquiátrica (Onocko-Campos et al., 2014).

O Guia GAM se compõe por textos, figuras, informações, gráficos e questões para incitar a reflexão sobre as experiências com uso de medicamentos. Compreendendo que a experiência de uso é única e singular, o Guia GAM não propõe respostas prontas, certas ou erradas, mas sim o compartilhamento da experiência: "um objeto totalmente acessível, uma caixa de ferramentas formidavelmente aberta, contanto que se queira ou se precise fazer uso dela no momento" (Deleuze, 2013, p. 38).Coloca-se como "uma ferramenta concreta organizada para auxiliar as pessoas que querem empreender uma reflexão a respeito de sua medicação para chegar a uma qualidade de vida mais satisfatória" (Rrasmq-Érasme citado porMelo, 2015, p. 18).

A proposta é que a estratégia GAM seja posta em ato através da ferramenta concreta, que é o Guia GAM, num dispositivo grupal em que ele possa ser lido de forma coletiva, com interrupções, suspensões e pausas quando necessário para que todos possam compreender, partilhar e refletir. Essa seria uma das dimensões de uso do guia, pois, como uma ferramenta com caráter provisório e aberto, ou seja, um dispositivo (guia) dentro de outro dispositivo (grupo), ele possibilita movimentos diversos. O Guia GAM é uma ferramenta renovadamente reinventada por seus usos e atores, analisada pelo que põe a funcionar.

O Guia GAM é composto por seis passos, com suas perguntas em direção a "respostas" narradas em primeira pessoa, o usuário. Se o Guia, em sua proposição, foi escrito endereçado aos usuários, como operar com ele num território como o CAPSi? Como pensar a estratégia GAM com o público infantil ou infanto-juvenil? Entendendo a demanda de acolhimento do familiar no processo do cuidado, apostou-se inicialmente no grupo de intervenção com os cuidadores (pais, mães, avós, tias), profissionais e pesquisadores. Temos aqui um dos grandes desvios feito pela experimentação da GAM em Vitória, no CAPSi.

O grupo GAM no CAPSi era composto, em sua maioria, por familiares de pacientes que possuíam, inicialmente, alguma relação com o metilfenidato (medicamento psicoestimulante, geralmente comercializado como Ritalina ou Concerta), profissionais do CAPSi e pesquisadores. Nos serviços de saúde mental com atendimentos voltados para a criança e adolescente, além do trabalho com estes, os profissionais precisam realizar trabalhos que incluam pais, familiares e/ou responsáveis.

Este trabalho de acolhimento e aproximação da família muitas vezes acaba constituindo-se, inclusive, como um grande desafio. Muitas vezes, o profissional se coloca como em um "cabo de guerra", exigindo da família algo que ainda precisa ser cultivado. De modo diferente, acreditamos na importância de acolher a família com suas diferenças, fragilidades, sem julgamentos morais ou discriminação, entendendo que "cabe ao profissional acolhê-los em suas dificuldades e a partir delas trabalhar para que possam assumir sua responsabilidade sem se sentirem julgados, culpados nem recriminados" (Oliveira, 2007, p. 47).

A aposta do grupo GAM no CAPSi era de que este se constituísse como espaço de cuidado que compreendesse a participação dos familiares, no formato de rodas de conversa, tendo como eixo disparador a experiência infantil com uso de psicofármacos, a partir de uma experimentação do Guia GAM. Oportunizou-se também que as experiências da criança com o uso de psicofármacos pudessem ser trazidas à roda e nela consideradas e que, neste processo, produzissem deslocamentos nos pontos de vista dos familiares, profissionais e pesquisadores, bem como modulações das práticas de cuidado.

O Guia GAM brasileiro salienta que a decisão sobre o melhor tratamento se consegue a partir de uma composição entre o que os usuários sabem (baseados nas suas experiências pessoais ou de grupo), o que dizem os seus familiares sobre a experiência com o cuidado diário, e o que sabem os médicos ou as equipes de referência sobre o uso dos remédios. Os três tipos de saberes são importantes (Onocko-Campos et al., 2014, p. 13).

Vejamos, contudo, que além do desafio de fazer do guia uma ferramenta de produção de compartilhamento de experiências e decisões, de análise coletiva, de escuta, de acompanhamento, de produção de autonomia e cogestão, também empreendemos o desafio de fazer uso desta ferramenta para deslocar pontos de vista. O(s) ponto(s) de vista de um indivíduo são apoiados em suas experiências, que,de partida, são experiências individuais. A transversalidade é um princípio metodológico que permite variações nos pontos de vista de uma mesma experiência, sem anulá-los.

No dispositivo grupal as intervenções buscam desarranjar os pontos de vista individuais ou proprietários, aquecendo-os para que não se fixem em um só ponto da experiência, negligenciando os outros pontos de vista. Dissolver os pontos de vista não se trata, contudo, de um mero procedimento, mas é uma condição para análise e indicativo do potencial expansivo da bifurcação dos infinitos pontos de vista coemergentes no dispositivo grupal. Como afirmam Passos e Eirado (2009), trata-se da possibilidade de habitar os pontos de vista em sua emergência, sem identificação e sem apego a qualquer um deles. Ser atravessado pelas múltiplas vozes que perpassam um processo, sem adotar nenhuma como sendo a própria ou definitiva.

Os familiares, ao lerem o guia, trafegam por pelo menos três lugares distintos: 1) o lugar daquele que volve a pergunta para si mesmo, 2) o lugar daquele que responde "como se fosse a criança" e 3) o lugar daquele que interroga a criança. Nada comum interrogar crianças acerca de suas experiências de uso de medicamentos, dos efeitos sentidos em seu corpo, de sua vivência no CAPSi, de sua rede de apoio. Nada comum também eram as respostas: "K., como você cuida de você mesma?" e ela diz "Cuidando!" (Trecho da memória do dia 18/09/2014).

O guia brasileiro passou por muitas alterações, sobretudo no que diz respeito a orientações sobre a diminuição ou suspensão do uso de medicamentos. Como já dissemos, esta não era a máxima dos brasileiros. Os usuários brasileiros questionavam o acesso aos medicamentos, seus direitos e uma rede articulada de atenção à saúde, refletindo o desejo de dialogar com seus médicos e especialidades. Em face disso, o guia não aponta somente para a retirada dos medicamentos, mas para a problematização da relação com estes. Constitui-se como uma ferramenta de diálogo e escuta - aquele que ouve considera legítimo o que o outro tem a dizer.

 

O Dispositivo Grupal

Segundo Giorgio Agamben (2005), os dispositivos são conceitos operativos que possuem uma função ou um desempenho esperado em cada enunciado científico. Por dispositivo compreendemos a rede que é estabelecida entre conjuntos heterogêneos e virtuais, sejam eles linguísticos ou não. A nosso ver, o grupo GAM funciona como um dispositivo - o dispositivo grupal. Nele, não possuímos o gosto pelas abstrações ou pelo uno. Nossa tarefa se torna analisar estados mistos, agenciamentos.Deleuze (1990) faz uso do conceito de linhas para definir os dispositivos. Composto por linhas heterogêneas, o dispositivo seria uma espécie de novelo de lã ou "cadeias de variáveis relacionadas entre si" (p. 155).

Uma vez que os dispositivos se inscrevem sempre em meio às relações de poder, interessa-nos investigar como os dispositivos atuam nas relações e nos jogos de verdade ou jogos de poder. O que pode um dispositivo? Qual a potência de um dispositivo enquanto ação?Acerca da noção de poder ou relações de poder cabe colocar que se trata de uma noção muito ampla, fortemente presente nas obras de Foucault. Em sua obra, Foucault nunca aborda o poder como entidade coerente, unitária e estável, mas afirma existência das relações de poder que refletem condições históricas de emergência complexas e que produzem efeitos diversos, compreendidos fora do que a análise filosófica conceitua tradicionalmente como o campo do poder (Revel, 2005).

Para Agamben (2005), o dispositivo - de concepção foucaultiana - refere-se à "disposição de uma série de práticas e de mecanismos (ao mesmo tempo linguísticos e não linguísticos, jurídicos, técnicos e militares) com o objetivo de fazer frente a uma urgência e de obter um efeito" (p. 11). Este autor generaliza os dispositivos foucaultianos (já ampliados pelas/nas instituições prisionais, manicômios, escolas, medidas jurídicas e disciplinares) a toda e qualquer coisa que possa conectar, determinar, interceptar, modelar ou controlar comportamentos, atitudes e discursos.

Sendo, primordialmente, máquina produtora de subjetivações, os dispositivos podem operar através de práticas, saberes e poderes produzindo corpos dóceis e assujeitados ou podem ser oportunos para o exercício de práticas de liberdade. Assim,como Agamben (2005), também interrogamos sobre os modos e estratégias que podemos seguir no nosso corpo-a-corpo cotidiano com os dispositivos, visando ampliar sua potência libertadora.

Então, percebemos que operar com um dispositivo ou, dito de outra forma, fazer o dispositivo operar implica no desenovelamento das linhas que o constituem. Que modos de subjetivação têm sido produzidos no encontro com o dispositivo? Esta operação se dá, segundo Deleuze (1990), na composição do dispositivo; arrastando-o, atravessando-o, desemaranhando-o:"E por todos os lados, há emaranhados que é preciso desmesclar: produções de subjetividade escapam dos poderes e dos saberes de um dispositivo para colocar-se sob os poderes e os saberes de outro, em outras formas ainda por nascer" (Deleuze, 1990, p.158).

O dispositivo grupal tornou-se aliado na potencialização das intervenções, pois o Guia GAM é uma importante ferramenta a ser praticada de forma coletiva, dialogada e compartilhada em grupo. É no terreno coletivo que se faz fértil um dispositivo grupal em sua possibilidade de experimentar e afirmar a grupalidade que o constitui (César & Zamboni, 2008).No Brasil, os Grupos GAM utilizam o Guia GAM para possibilitar processos de cogestão coletiva dos medicamentos e autonomização entre os participantes - ponto de consonância entre a versão canadense e a versão brasileira. Por aqui, entendemos o Guia GAM como uma ferramenta (guia-dispositivo) que, engendrada no dispositivo grupal, aposta na construção de autonomia dos usuários inseparavelmente da autonomia dos familiares e dos trabalhadores.

O Grupo GAM no CAPSi colocava lado a lado os pesquisadores, os trabalhadores e os familiares e por muitas vezes as crianças e adolescentes também compareciam. Os encontros do grupo aconteciam semanalmente, com duração de cerca de duas horas e neles o Guia era utilizado como um disparador de trocas de conversa. Paralelamente aos encontros, eram construídas memórias intensivas, amparados na maioria das vezes pela gravação em áudio. As memórias são um instrumento distinto e privilegiado de produção de dados. Entendemos a escuta e os registros das memórias como uma ferramenta de intervenção que, por ser centrada na experiência, pode servir como um recurso de aproximação entre os implicados com a pesquisa e com o trabalho em processo.

As memórias auxiliam a retomar a experiência, por isso funcionam também como um "diário de campo"escrito por muitas mãos. Polifônica, ela não possui uma única forma, apresenta-se diversa na variação de seus aromas e sabores peculiares de um estilo de escrita implicado com a pluralidade de vozes. Algumas extensas, como uma transcrição quase que total do material gravado em áudio, outras mais lacônicas, ou esquemáticas. Outras,mesclando esses dois modos.

O que faz uma memória ser intensiva - e não descritiva - é o seu grau de abertura à experiência e a atenção aos analisadores. Analisadores são elementos que emergem numa situação ou contexto, permitindo a análise de instituições e produzindo movimentos instituintes (Escóssia & Tedesco, 2009, Lourau, 1993). Sendo assim, podemos dizer que uma memória é intensiva quando ela supera a pura transcrição e consegue acessar a experiência. Uma memória intensiva ganha uma escrita implicada, afetada e que privilegia os analisadores.

O Guia GAM é um instrumento que ajuda a disparar processos de compartilhamento de vivências, de identificação da rede de apoio e de reflexão sobre o uso de medicamentos. O diálogo nascente disparado por esse instrumento fica a serviço de um dispositivo no qual o que se busca é experimentar outros modos de estar com o outro, seja ele o familiar, o trabalhador, o usuário ou a criança. Produz-se um reposicionamento das perspectivas individuais e ampliam-se as possibilidades de construir outros modos de gerir cogestivamente a medicação (Ramos, 2012).

Lembramos que o guia GAM não possui uma potência interventiva por si só, ele opera como um interessante dispositivo a partir da presença e do cuidado que sustentamos no processo grupal.O dispositivo em sua montagem relaciona-se intrinsecamente com um processo chamado de contratação. A contratação prevê a partilha da responsabilidade de todas as partes envolvidas no processo do cuidado, ou seja, a corresponsabilidade. Entrar em contato e afecção com diversas partes é sustentar um lugar de abertura aos diferentes pontos de vista acerca da experiência com os medicamentos - práticas farmacológicas.

Domitrovic (2014) conceitua essas múltiplas experiências com os medicamentos como um conjunto de "práticas farmacológicas", referindo-se a uma rede de elementos que não se limitam ao consumo, mas que entram em relação, produzindo nele interferências. De maneira mais concreta, o grupo era composto de pais, familiares, usuários, pesquisadores e trabalhadores, o que não impedia as interferências de outras práticas farmacológicas que compunham o grupo. A todo momento, a "escola que demanda laudo" se fazia presente, assim como a "farmácia", "Jeová", o "governo federal, estadual e municipal". Nosso grande desafio como um dispositivo grupal foi de "dar passagem" a toda essa polifonia que nos povoava. Misto de experiências, pontos de vista, modos de cuidar.

Contratar, para a GAM, se aproxima de um acordo coletivo que se atualiza no cotidiano, por isso se diz contratação (Onocko-Campos et al., 2014). A construção de contratos sem uma cláusula previamente determinada ou regras fixas pretende a participação de todos no funcionamento do grupo e aumenta o sentimento de pertencimento, sintonia. É um indicativo de que estamos "fazendo junto", que estamos acolhendo opiniões diferentes e renovando a cogestão ao longo dos encontros, pois existem diversos momentos em que as propostas precisam ser recontratadas.

Uma experiência de contratação se deu quando precisávamos escolher um dia e horário para o grupo acontecer. Foi preciso sensibilidade para perceber que o dia escolhido, a princípio como bom para todos, tornou-se impedimento para o prosseguimento do grupo GAM. Algumas idas e vindas ao CAPSi, rodas de conversa, incessantes contatos, mas não conseguíamos garantir a presença dos familiares e a efetivação do dispositivo. Foi preciso fazer fugir o lugar "grupo GAM" para cartografarmos o CAPSi em uma outra perspectiva. Saímos pelo CAPSi no convite ao grupo, buscando fazer do momento 'sala de espera' um lugar de acolhimento, cuidado e conversação sobre questões relacionadas ao uso de psicofármacos, sobretudo criando juntos condições para que o grupo pudesse acontecer.

A partir daí foi possível nos encontrarmos nas expectativas prévias de um caminho ainda por fazer: mudar o dia e o horário parece mudar pouca coisa, mas altera tudo. A pista da contratação fala do caminho da pesquisa sendo construído no caminhar, apropriamo-nos desta pista para validar a participação e considerar a importância de pesquisar-com e não pesquisar-sobre. Vejamos que:

Na contratação, trabalhamos com a conquista do consentimento. Como sugere a palavra (consentir = "sentir com"), para que haja consentimento é preciso que a experiência seja compartilhada; algo que nos retira do isolamento e nos leva a considerar a importância de reconhecer o outro (Onocko-Campos et al., 2014, p. 19).

Outra experiência da contratação como efeito da grupalidade, da cogestão e de vínculo se deu quando nos preparávamos para o 'encerramento' de nossas atividades no ano de dois mil e quatorze. Havia sido um ano de muitos encontros potentes e nos perguntávamos acerca da pausa nos encontros no período de férias e de como encerrar este ciclo de uma forma diferente. Em grupo, conversamos sobre a proposta de assistir ao documentário, lançado naquela ocasião, Tarja Branca. Assistir a um documentário no cinema da Universidade implicava em muitos detalhes e acordos: dia, horário, transportes e caronas, e criação de condições para que as crianças e familiares pudessem estar presentes.

A participação e o empenho de todos foram fundamentais para que estivéssemos todos juntos (profissionais do CAPSi, pesquisadores com seus familiares, familiares com suas crianças) naquele dia festivo, realizando um cinema-GAM.Um ambiente de vínculo e confiança foi criado no próprio grupo e isso nos permitiu abrir um campo de possibilidades que vai além da negociação do tratamento e dos medicamentos, pois se abre para a vida dentro e fora do CAPSi.

Como já citado (Ramos, 2012), a leitura do Guia e a condução do grupo são acompanhadas pelas intervenções do moderador do grupo, que tem como objetivo do manejo a sua descentralização: "O círculo roda, vira roda e faz rodar" (Melo, 2015, p. 86).Moderar é um método para dar giro à roda ou fazer a roda rodar. Moderar o dispositivo carrega a potência do giro saindo do centro para a periferia, rumo ao ilocalizável, ou a um lugar qualquer, pois o giro é descentralizante e pode desembocar em destinos heterogêneos. É o afeto que bordeja de um canto a outro, perceptível pelos murmúrios, pela cabeça que balança confirmando, pelo olhar perplexo, pelo corpo que se curva sobre a mesa.É também garantir abertura para que as pessoas se escutem, garantir a qualidade da comunicação como uma forma de contágio, visto que as falas não seguem uma racionalidade unívoca.

Mas se a função do dispositivo é o acesso e a expressão da experiência, se o dispositivo visa dar voz a experiências silenciadas, ignoradas, inibidas, excluídas ou barradas, o que o manejo procura fazer é acolher estas experiências, reconhecê-las em sua legitimidade, criar-lhes um canal para o compartilhamento com o grupo (Melo, 2015, p. 71).

Muitas vezes, as falas no grupo fluíram embaralhadas de vozes e de sentimentos, assim como também ocorreram momentos de fala 'individual' ininterrupta. Em outros momentos experimentamos o silêncio, rapidamente capturado.Moderando, pretende-se transversalizar as linhas e os sentidos, ou seja, atravessar rachando ao meio as posições rígidas, os pontos de vista proprietários e os modos homogêneos do cuidado, pois o manejo cogestivo lateraliza e coopera para o compartilhamento coletivo das experiências singulares, sem obrigatoriamente fazer delas uma verdade única para todos. Manejar grupos GAM significa propiciar o acolhimento da diferença e o questionamento e a crítica do óbvio, das "verdades que se consideram "naturais" e que são construídas historicamente, servindo a interesses específicos (Onocko-Camposet al., 2014, p. 23).

Moderar é também extrapolar o guia, fazer dele uma outra coisa. O moderador, como um motorista atento, dirige sua atenção não apenas à experiência com os medicamentos, mas incita que outros temas apareçam, e que outras histórias sejam narradas. Atitude de abertura ao interesse do coletivo que maneja, estimulando a participação de todos, entendendo que esta se dará de diferentes modos em cada participante e entre todos:

A conversa circulando entre elas vazava o guia, ultrapassava uma fala focal sobre a experiência com medicamentos. Falavam do lidar cotidiano, do que é ser mãe, do cuidado que isso implica. Falavam da escola, da pirraça na padaria, da emblemática questão de andar de ônibus, de algumas chineladas e castigos. Não se ouve a voz de um manejador. Ouço muitas vozes, gargalhadas. A não centralidade num tema, a pluralidade de temas imiscuídos na roda, a fuga despretensiosa do guia: Será isso um problema?(Trecho da memória do dia 18/09/2014).

Como sujeitos singulares que somos, nem sempre o grupo caminha para a concordância. Para Melo (2015), sustentar a diferença no grupo implica acolher esses momentos de conflito, sendo estes de igual importância para que o grupo se faça forte. É do funcionamento do dispositivo o desarranjo, pois as forças estão operando para se expressar. Cogestão não é conformação, por isso nosso foco é flexível, flutuante.

 

Considerações Finais

A pesquisa cartográfica coloca em primeiro plano a experiência, por isso tanto a construção do problema e o trabalho de campo quanto a produção escrita exigem do cartógrafo o rigor na composição do cuidado e a implicação com o campo pesquisado.

Como foi possível nessa pesquisa cuidar do que advém? Como se acompanha processos de coemergência? Quais pistas dispomos dos efeitos de um plano de cuidado no grupo e da dissolução de pontos de vista?

Os sujeitos da pesquisa (pesquisadores, profissionais, familiares, crianças e adolescentes), a partir da possibilidade de falar de sua experiência de cuidado de si e do outro, foram construindo para si novos territórios existenciais que, embora comportem uma provisoriedade, puderam ser sustentados pelas intervenções suscitadas nos GIFs.

Os Grupos GAM têm se constituído amplamente como dispositivos cogestivos de cuidado, de negociação do tratamento e de diálogo, logo, é um dispositivo que requalifica as práticas de pesquisa em saúde mental. Ter o cuidado como fio condutor e método fortalece e amplia uma outra perspectiva de fazer pesquisa; a GAM como dispositivo de pesquisa se implica em criar e exercitar um plano coletivo de cuidado, e assim se efetivou na experiência com a GAM no CAPSi. No contexto do grupo, criamos fugas possíveis pelas arestas, produzimos cuidado nos momentos de conflito, de pendências, de cansaço. Uma inquietação que nos movia a cuidar, cuidando.

 

Notas

1 Refiro-me ao coletivo de pesquisa envolvendo UFF (Universidade Federal Fluminense), UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro), Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) e UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Para aprofundamento desta fase de adaptação ver: Onocko-Campos e cols. (2012) eOnocko-Campos e cols.(2013).

2 Para aprofundamento desses momentos de nossa pesquisa ver dissertação: As Práticas Farmacológicas com o Metilfenidato: habitando fronteiras entre o acesso e o excesso (Domitrovic, 2014). Ver também Caliman, L. V. E Domitrovic, N. (2013)e, ainda,Caliman, L. V. E Pirovani, P. H. (2014).

 

Referências

Agamben, G. (2005, jan.).O que é um dispositivo? Outra travessia, Florianópolis, n. 5, pp. 9-16.         [ Links ]

Caliman, L. V., &Domitrovic, N. (2013). Uma análise da dispensa pública do metilfenidato no Brasil: o caso do Espírito Santo. Physis: Revista de Saúde Coletiva, 23(3),879-902. Doi: https://doi.org/10.1590/S0103-73312013000300012.         [ Links ]

Caliman, L. V., & Rodrigues, P. H. P. (2014). A experiência do uso de metilfenidato em adultos diagnosticados com TDAH. Psicologia em Estudo, 19(1),125-134. Doi: https://doi.org/10.1590/1413-7372189590012.         [ Links ]

César, J. M. & Zamboni, J. (2008, setembro). Grupo: Técnica de si ou Artifício da grupalidade. In III Congresso Capixaba de Formação e Atuação do Psicólogo: Éticas e Cidadanias. Anais do III Congresso Capixaba de Formação e Atuação do Psicólogo: Éticas e Cidadanias. PET Psicologia UFES, Vitória, Espírito Santo, Brasil.

Couto, M. C. V. (2012). Política de Saúde Mental para crianças e adolescentes: especificidades e desafios da experiência brasileira (2001-2010). Rio de Janeiro: Instituto de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB-UFRJ).         [ Links ]

Deleuze, G. (2013). Conversações. Tradução de Peter PálPelbart. - São Paulo: Editora 34, 3ª Ed. 240p. (Coleção TRANS).         [ Links ]

Deleuze, G. (1990). Michel Foucault, filósofo. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Barcelona: Gedisa.         [ Links ]

Delgado, P. G. G. (2011). Saúde Mental e Direitos Humanos: 10 anos da Lei 10.216/2001. Arquivos Brasileiros de Psicologia. Rio de Janeiro, 63(2),114-121. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-52672011000200012        [ Links ]

Domitrovic, N. (2014). As Práticas Farmacológicas com o Metilfenidato: habitando fronteiras entre o acesso e o excesso. Dissertação (Mestrado em Psicologia Institucional). Universidade Federal do Espírito Santo,         [ Links ] Centro de Ciências Humanas e Naturais.

Escóssia, L. &Tedesco, S. (2009). O coletivo de forças como plano de experiência cartográfica. In: Passos, E., Kastrup, V. &Escóssia, L. (Org.), Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 92-108). Porto Alegre: Sulina.         [ Links ]

Foucault, M. (2010). Repensar a política: Ditos & escritos VI. Rio de Janeiro: Forense Universitária.         [ Links ]

Guarido, R. (2007). A medicalização do sofrimento psíquico: considerações sobre o discurso psiquiátrico e seus efeitos na Educação. Educação e Pesquisa, 33(1),151-161. São Paulo, v.33, n.1, pp. 151-161. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S1517-97022007000100010.         [ Links ]

Lourau, R. (1993). Análise Institucional e práticas de pesquisa. Rio de Janeiro: UERJ.         [ Links ]

Melo, J. M. (2015). A política de narratividade entre a pesquisa e a clínica: relato de uma experiência com a Gestão Autônoma da Medicação. Tese (doutorado) - Universidade Federal Fluminense,         [ Links ] Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia.

Oliveira, R. C. (2007). A chegada de crianças e adolescentes para tratamento na rede pública de saúde mental. In: Couto, M. C. V. & Martinez, R. G. (Org.). Saúde Mental e Saúde Pública: questões para a agenda da Reforma Psiquiátrica (pp. 29-52). Rio de janeiro, Brasil: UFRJ.         [ Links ]

Onocko-Campos, R. T. O, et al. (2012). Adaptação Multicêntrica do Guia para a Gestão Autônoma da Medicação. Revista Interface - Comunicação, Saúde, Educação, 16(43), pp.967-980. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/S1414-32832012005000040.

Onocko-Campos, R. T. et al. (2013). A Gestão Autônoma da Medicação: uma intervenção analisadora de serviços em saúde mental.Ciência & Saúde Coletiva. 18(10), pp. 2889-2898. Recuperado de https://doi.org/10.1590/S1413-81232013001000013.

Onocko-Campos, R. T. O., Passos, E. &Palombini, A. (2014).GESTÃO AUTÔNOMA DA MEDICAÇÃO - Guia de Apoio a Moderadores. DSC/FCM/UNICAMP; AFLORE; DP/UFF; DP/URGS. Recuperado de: http://www.fcm.unicamp.br/fcm/laboratorio-saude-coletiva-e-saude-mental-interfaces.         [ Links ]

Passos, E. & Eirado, A. (2009). Cartografia como dissolução do ponto de vista do observador. In Passos, E., Kastrup, V. &Escóssia, L. (Org.),Pistas do método da cartografia: Pesquisa-intervenção e produção de subjetividade (pp. 109-130). Porto Alegre, Brasil: Sulina.         [ Links ]

Ramos, J. F. C. (2012). A autonomia como um problema: uma pesquisa a partir da realização do dispositivo GAM em um CAPS fluminense. Dissertação (Mestrado) - Universidade Federal Fluminense,         [ Links ] Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia.

Revel, J. (2005). Michel Foucault: conceitos essenciais.Tradução Maria do Rosário Gregolin, Nilton Milanez, Carlo Piovesani. - São Carlos: Claraluz.         [ Links ]

Rodrigues, S. E. (2014). Modulações de sentidos na experiência psicotrópica - Tese (Doutorado) - Universidade Federal Fluminense,         [ Links ] Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Departamento de Psicologia

 

 

Submissão: 30/10/2019
1° avaliação: 21/10/2020
2° avaliação: 25/11/2020
Aceite: 14/12/20

 

 

Joyce Paula de Souza Pereira Ferreira é mestre em Psicologia Institucional pela Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). É também psicóloga clínica.
E-mail: joycepaulasp@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-1005-9674
Luciana Vieira Caliman é professora de Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional do Departamento de Psicologia da UFES.
E-mail: calimanluciana@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8558-6562
Janaína Mariano César é professora de Psicologia da Universidade Federal do Espirito Santo (UFES) e do Programa de Pós-graduação em Psicologia Institucional do Departamento de Psicologia da UFES.
E-mail: jhanainacesar@gmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-6532-1380

Creative Commons License