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Revista Polis e Psique

versão On-line ISSN 2238-152X

Rev. Polis Psique vol.11 no.2 Porto Alegre maio/ago. 2021

 

ARTIGOS

 

Um estudo sobre o paradigma proibicionista e a (des)criminalização da maconha no Brasil

 

A study of the prohibitionist paradigm and the (de)criminalization of marihuana in Brasil

 

Un estudio sobre el paradigma prohibicionista y la (des)criminalización de la marihuana em Brasil

 

 

Mateus Alexandre Pratas RezendeI; Daniele Andrade FerrazzaI; Guilherme Augusto Souza PradoII

IUniversidade Estadual de Maringá (UEM), Maringá, PR, Brasil
IIUniversidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar), Parnaíba, PI, Brasil

 

 


RESUMO

A maconha atualmente figura entre as substâncias consideradas ilícitas no Brasil. No entanto, nem sempre foi assim. O processo histórico que culminou com a proibição da maconha no Brasil é datado do início do século XX, perpassado por concepções eugenistas e higienistas que consolidaria o paradigma proibicionista.Todavia, ainda que paulatinamente, o proibicionismo vem sendo questionado em âmbito internacional e já há registros de outros modelos de relação de Estados com as drogas e dos indivíduos com as substâncias psicoativas. Sendo assim, o presente artigo, através da realização de entrevistas semiestruturadas, buscou identificar as diferentes maneiras pelas quais a proibição da maconha exerce seus efeitos nas subjetividades de indivíduos militantes, usuários ou não da planta. Dessa maneira, pretende-se demostrar a possibilidade de se pensar novas formas de se relacionar com a maconha, tanto em âmbito individual quanto em âmbito social, e ampliar o conhecimento da população acerca dos efeitos da proibição.

Palavras-chave: Maconha; Proibicionismo; Subjetividade.


ABSTRACT

Marijuana currently ranks among the substances considered illegal in Brazil. However, it was not always like this. The historical process that culminated inthe prohibition of marijuana in Brazil is dated to the beginning of the 20th century, when eugenicist and hygienist ideas helped to consolidated the prohibitionist paradigm. However, even if gradually, prohibitionism has been questioned at the international level and there are already records of other models of relationship between States and drugs and between individuals and psychoactive substances. Therefore, this article, through semi-structured interviews, sought to identify the different ways in which the prohibition of marijuana exerts its effects on the subjectivities of individuals, users or not users of the plant. In this way, it is intended to demonstrate the possibility of thinking about new ways of relating to marijuana, both individually and socially and to broaden the population's knowledge about the effects of the ban.

Keywords: Marijuana; Prohibition; Subjectivity.


RESUMEN

La marihuana, en la actualidad, se encuentra como las substancias ilegales en Brasil. Pero no siempre fue así. El proceso histórico que culminó con la prohibición de marihuana en Brasil data del principio del siglo XX, influenciado por concepciones eugénicas e higienistas que consolidarían el paradigma prohibicionista. Aunque gradualmente, el prohibicionismo ha sido cuestionado y ya existen otros modos de relación entre los Estados con las drogas y también de las personas con las substancias. Por ello, este artículo, a través de entrevistas, buscó identificar las diferentes formas que la prohibición de la marihuana ejerce sus efectos sobre la subjetividad. Por lo tanto, tiene la intención de demonstrar la posibilidad de pensar en diferentes modos de relacionarse con la marihuana, tanto individual como socialmente, así como aumentar el conocimiento acerca de los efectos de la criminalización.

Palabras clave: Marihuana; Prohibición; Subjetividad.


 

 

Introdução

Alguns chamam de baseado, outros chamam de erva ou de ganja, já foi conhecida por diamba e até fumo d'Angola, são inúmeras denominações durante os milhares de anos de existência de uma planta que, com nome científico cannabis sativa e cannabis indica, no presente trabalho será chamada de maconha. No ano de 2017, a Comissão de Direitos Humanos e Legislação Participativa do Senado Federal debateu o tema da descriminalização do cultivo da maconha para uso pessoal, o que inflamou o debate acerca da legalização ou não da maconha no Brasil. Todavia, é importante destacar que a política hegemônica atual de criminalização e repressão às 'drogas', especificamente da maconha, é recente se comparado com os registros de seu uso, datando de até quatro mil anos a.C (França, 2015).

Partindo das contribuições teóricas de Michel Foucault, entendemos verdade não como uma essência a ser descoberta, muito menos enquanto uma instância a-histórica, a compreendemos a partir de sua emergência histórica e cultural, em suas relações com o poder. Cada sociedade tem seus regimes de verdade, sua política geral de verdade: isto é, os tipos de discursos que ela acolhe e faz funcionar como verdadeiro(Foucault, 2007b).

Considerando, então, o proibicionismo enquanto uma política geral da verdade na sociedade contemporânea, os discursos que corroboram a proibição circulam como verdade incontestável, enquanto os saberes relacionados ao próprio usuário e suas experiências; ou até mesmo àqueles discursos que objetivam uma maior autonomia em relação ao uso de substâncias psicoativas, são silenciados ou negligenciados (Jesus & Teixeira, 2019).Levando em consideração que esses discursos, ao circularem sob o estatuto de verdade, produzem efeitos subjetivos e na produção de subjetividades, tanto de usuários quanto não usuários da substância, temos como objetivo investigar os principais efeitos do paradigma proibicionista nos discursos, práticas e modos de subjetivação do público variado de pessoas que entrevistamos para esta pesquisa.

 

Método

Com tais pressupostos, realizamos entrevistas semiestruturadas com: 1) a mãe de um usuário medicinal de cannabis; 2) um usuário, médico e ativista da "Marcha da Maconha"; 3) um egresso do sistema prisional e; 4) um Coronel da Polícia Militar de uma grande cidade brasileira. As entrevistas foram gravadas em áudio, com consentimento dos entrevistados, e transcritas em documento Word, o que possibilitou a análise do material coletado. O projeto foi avaliado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), que nos concedeu parecer favorável à realização da pesquisa, tendo como CAAE o número: 86984518.9.0000.0104.

Todas as entrevistas gravadas em áudio, posteriormente, foram transcritas e analisadas segundo a perspectiva da análise do discurso proposta por Michel Foucault. Nessa perspectiva, o discurso é entendido como o objeto de uma luta, e de uma luta política, na medida em que é perpassado pela questão do poder (Foucault, 2007). Nessa perspectiva, o discurso atua não somente oprimindo ou dominando as subjetividades, mas principalmente, participando do seu processo de construção (Alves& Pizzi, 2014). Dessa forma, é importante ressaltar que a constituição e transformação subjetiva compreende dois processos: a objetivação e a subjetivação. De acordo com Ribeiro (2016):

No processo de objetivação o sujeito é tornado um objeto para uma forma de conhecimento possível: ele é descrito com base em saberes que produzem o sujeito em um discurso de verdade que se articula historicamente com práticas sociais e institucionais. Tais práticas ao investirem sobre o indivíduo (descrevê-lo, manipulá-lo, submetê-los a regimes de vida, de cura, de ensino, de correção, de trabalho, de punição) efetivamente tratando-o como um sujeito cuja verdade está objetivada no discurso do especialista, constituem um poder cuja força reside precisamente na sua capacidade de conectar o indivíduo a sua identidade de sujeito, subjetivando-o na medida em que o convence, por métodos mais ou menos coercivos, daquilo que ele é.

Nesse contexto de análise dos discursos dos/as entrevistados/as e de acordo com os princípios éticos envolvendo a pesquisa em Psicologia, os nomes dos/as entrevistados/as serão substituídos por pseudônimos, que no presente estudo serão identificados por nomes que designam espécies ou "apelidos" de cannabis.

 

Manga Rosa, mãe de usuário medicinal de maconha

A primeira pessoa entrevistada, Manga Rosa, é mãe de W., usuário de cannabis medicinal e que atualmente tem 3 anos de idade. Segundo seu relato, a criança nasceu de 29 semanas e passou dois meses na incubadora, posteriormente, foi diagnosticada com Síndrome de West, e devido as diversas ocorrências de convulsões precisou iniciar o tratamento com fenobarbital, um medicamento anticonvulsivante. O uso da cannabis no tratamento de W. só foi adicionado por iniciativa da mãe, quando a criança tinha 1 ano e três meses de idade. Através de pesquisa de casos semelhantes na internet a mãe encontrou no canabidiol (CBD), uma possibilidade menos danosa para a criança: "Cheguei no neuro[pediatra] e falei para ele que eu queria tentar canabidiol de todo jeito. Ele falou que não era hora, mas falei que para mim a hora era aquela e que a vida não esperava. Foi quando eu conheci uma pessoa e peguei o caseiro [canabidiol]." (Entrevista, Manga Rosa).

Ainda que, a partir da resolução 2.113/2014 do Conselho Federal de Medicina, tenha-se autorizado a prescrição do uso de CBD, nem todos os profissionais da medicina fazem uso dessa possibilidade terapêutica, como no caso analisado. O médico, ao ser questionado sobre a possibilidade de uso de CBD para o tratamento da criança teve como primeira reação a negação, e isso nos leva a um primeiro ponto de análise. Por quê, mesmo com a vasta gama de estudos sobre a potencialidade dos canabinóides para tratamento de síndromes diversas e crises de epilepsias, como no caso relatado acima, os médicos continuam não prescrevendo o uso da maconha? E por que a primeira opção de tratamento é a medicamentosa?

Primeiro cabe destacar que devido ao processo histórico de criminalização da maconha, essa planta foi balizada numa categoria de droga e, segundo Vargas (2008), há uma partilha moral entre drogas e remédios. Ambas as categorias derivam da noção de veneno-remédio pharmakon. No entanto, às drogas recaem em um complexo turvo de significações imprecisas como narcóticos ou entorpecentes, que se associam ao crime e condutas antissociais. Já os remédios são ordenados dentro do código de conduta médica, com legitimação social, e um cuidado mais rigoroso quanto à procedência, à posologia e aos efeitos terapêuticos e colaterais. Tal cisão se insere em um processo amplo de medicalização da vida, contemporâneo ao desenvolvimento do capitalismo entre os séculos XVIII e XIX,como um braço das estratégias de controle biopolítico dos corpos coletivos (Foucault, 2005).

A medicalização da vida é um processo que se caracteriza pela função política da medicina em transformar questões sociais, culturais, político-econômicas, emocionais em aspectos da ordem exclusivamente de intervenção médica (Zorzanelli,& Cruz, 2018).Esse processo irá se articular duplamente com o fenômeno das 'drogas': primeiro pela apropriação de determinadas substâncias como médicas e segundo pela criação de novas substâncias, durante todo século XX, e sobretudo a partir da década de 1940, com a produção de novos fármacos de forma incessante (Jesus & Teixeira, 2019; Vargas, 2008).

Contemporâneo à invasão farmacêutica, se institucionalizou a partir da década de 1930 as proibições de algumas substâncias psicoativas e, atualmente, a relação da sociedade com as drogas que, no sentido mais amplo da palavra está longe de ser unívoca, é no mínimo incoerente. As drogas são ao mesmo tempo incentivadas e proibidas, separadas por uma partilha moral entre o lícito/ilícito, ou seja, ao mesmo tempo que se incentiva exacerbadamente o uso de substâncias lícitas (medicamentos e álcool), se condena qualquer contato com o uso de substâncias consideradas ilícitas, numa lógica quase maniqueísta, que cria a assertiva de que determinadas substâncias fazem bem enquanto outras, em qualquer modo ou proporção, fazem mal. Na entrevista realizada é possível ver o efeito mais local do funcionamento dessa distinção quando o médico em questão recusa a terapêutica canábica, enquanto prescreve um anticonvulsivante, considerado tarja preta, com altos riscos para uma criança com menos de 3 anos de idade.

Ao ser questionada sobre os possíveis efeitos da legalização da maconha e, mais especificamente do canabidiol, em âmbito nacional, a entrevistada considerou que "já demorou demais, a vida não espera [...].E ainda pontuou a necessidade de "deixar de lado o medo, a insegurança [e os argumentos de que] 'é porque é droga', não, não é! Tem que saber identificar o que é a droga da maconha ou o remédio. (Entrevista, Manga Rosa).

Na distinção feita pela entrevistada entre maconha como droga ou remédio, é possível entrever duas modalidades distintas de uso, que têm efeitos radicalmente diversos como do dispositivo que atua nos processos de subjetivação. A cisão moral entre remédio e droga, veiculada pelo discurso médico e farmacológico hegemônico, penetra e passa a constituir e definir o próprio sujeito. O que Manga Rosa reclama e denuncia é que a polêmica classificação da substância maconha é transpassada indiscriminadamente como verdade ao sujeito que faz uso dela. Neste ponto é que devemos problematizar a positividade do saber-poder do especialista, que atua na produção de subjetividades, determinando os limiares do que é legítimo, proibido, normal, problemático ou recomendável (Foucault, 2007a, 2007b).

 

Cabrobó, profissional da saúde e usuário de maconha

O segundo entrevistado é um médico, profissional de um dispositivo de saúde da Atenção Básica de uma cidade do Estado do Paraná e que faz o uso de maconha há cerca de dez anos. Contudo, antes mesmo de ter estabelecido qualquer relação com a maconha, basicamente a informação que tinha acesso sobre a substância era referente a notícias e campanhas ministeriais midiáticas sensacionalistas, segundo ele: "A primeira vez que ouvi sobre maconha, eu era criança, não existia uma diferenciação entre crack, cocaína, maconha etc. Era tudo droga e tudo causava maleficio, vício e morte". (Entrevistado, Cabrobó)

Esse tipo de informação, sustentada pela lógica proibicionista, engloba em uma mesma categoria substâncias tão diferentes que causam os efeitos mais diversos ou até mesmo opostos. Dessa forma, a informação que mais circula em âmbito populacional é a que associa o uso de drogas ao vício e à morte, independente de qual substância, das quantidades e modos de uso, todas desembocariam no mesmo destino. Segundo o neurocientista Carl Hart (2014), mesmo as ciências biomédicas reconhecem que nem todo usuário de drogas deve ser considerado 'dependente' e, por outro lado,qualquer substância psicotrópica pode levar a manifestação de 'dependência'. Isso significa que tanto o uso de fármacos considerados remédios quanto de drogas podem causar danos, assim, é indevido tratar das drogas como tóxicos ou venenos em abstrato, pois o que está em questão são as modalidades, os fins e as proporções do uso que se faz (Escohotado, 1998). O que leva ao uso e quais seus efeitos.

Sendo assim, a informação manipulada e distorcida decorrente do proibicionismo, que chega ao foro íntimo das famílias e é perpetuada na educação dos filhos, impactam na produção de subjetividades de usuários ou não usuários de maconha. No caso do nosso entrevistado, foram essas informações que impactaram o modo desse sujeito se engajar com amigos usuários de maconha, e foram responsáveis por balizar a primeira experiência dele com a planta: Inicialmente tinha uma ideia muito negativa com relação à maconha,ao longo do tempo, fui vendo eles usando e vendo que no máximo o que acontecia eram eles "rachar o bico" (sic), o que foi me causando certa curiosidade.(Entrevistado, Cabrobró).

O conteúdo transmitido socialmente sobre as drogas, em contraste com a reação dos amigos que usavam maconha, gerou uma contradição ao entrevistado que só pôde ser resolvida através da experimentação, e esse fato isolado, que pode ser o caso de tantos outros usuários de maconha no Brasil, levou a uma relação não exatamente saudável com a substância:"No começo eu achava que se eu fumasse ia causar vários problemas, depois que conheci, vi que aparentemente não causava dano nenhum,então, achei que poderia fumar todo dia, de maneira desregulada, a hora que eu quisesse." (Entrevistado, Cabrobó).

Após a percepção de que esse uso não reflexivo lhe causara problemas de memória, necessitou investir sobre si mesmo para alcançar um padrão de uso que não lhe prejudicasse:se eu soubesse desde o começo os perigos que poderiam acontecer, com certeza eu não teria tido essa experiência negativa" (Entrevistado, Cabrobó).Segundo Cabrobó, atualmente em sua vida, a maconha se situa no âmbito da diversão e do relaxamento, não adentrando no âmbito do trabalho, o que não é uma regra geral, visto que alguns usuários conciliam de maneira satisfatória o trabalho e o uso de maconha (Ribeiro, 2016). Desse modo, através do experimentalismo, cuja regra imanente é a prudência (Vinci, 2018), ponderando malefícios, riscos e benefícios, o entrevistado estabeleceu uma relação reflexiva de autocuidado com a maconha o que, segundo ele, uma vez estabelecida,se percebe melhoras em aspectos relacionados à sociabilidade e até o controle de ansiedade e estresse.

Nas análises de Ribeiro (2016), em seu trabalho a respeito de um fórum virtual de usuários de maconha, uma das discussões que mais ocupavam os usuários de maconha era a respeito desse movimento reflexivo relatado pelo entrevistado e, nesse tocante, a moderação se torna uma pauta central. Além disso, é latente a preocupação em provar para a sociedade que é possível se ter uma vida funcional, bem-sucedida, e usar de maconha, uma preocupação que pode também ser entendida como um aspecto da subjetivação desses usuários, decorrente do processo histórico-cultural que torna o usuário de maconha como um indivíduo de personalidade degenerada, criminosa e doente (Jesus & Teixeira, 2019). Assim, Ribeiro (2016, p. 306) observa a organização de um governo ético dos usuários de maconha na comunidade virtual por ele estudada que pode se desdobrar na constituição de um coletivo de usuários "orientados por princípios de autocontrole, responsabilidade, moderação, redução de danos e autocuidado que tendem a constituir tecnologias de governo" que não são mais regras coercitivas, mas um estilo de vida. Para tanto,é imprescindível uma prática refletida, a problematização do uso, para que esse estilo de vida não desague em significados preconcebidos ou coercitivos, afinal, trata-se da constituição de sujeitos livres, numa perspectiva que a liberdade não é não ser governado, mas ser governado por si, por seus pares, "sem a submissão ao outro, sem a humilhação heteronômica e minorizante (Ribeiro, 2016, p. 302).

Além de usuário, Cabrobó atua no ativismo e militância a favor da legalização e regulamentação da maconha e outras drogas em uma cidade do interior do Estado do Paraná. O ativismo canábico marca a saída do sujeito maconheiro de um espaço de passividade, objeto de saberes-poderes que o definem, o limitam e o excluem do convívio social, para a tomada de consciência desses usuários enquanto sujeitos éticos, reflexivos, que demandam por direitos. Enquanto estabelecem um governo de si e dos outros a partir da problematização de suas práticas, estabelecem um lugar de resistência no âmbito da democracia representativa, levando suas demandas, se constituindo como protagonistas em uma luta política para a construção de novas compreensões e políticas públicas a respeito da maconha no Brasil.

Foucault(2008)se vale da noção de contra conduta para conceituações de resistência de sujeitos éticos no campo da política e das relações de poder como a criação de outros modos de conduzir a vida e os processos de subjetivação de forma a fazer frente às objetivações dos mecanismos de sujeição operantes em seu meio. Ribeiro (2016) salienta ainda que a contraconduta não diz de uma negação do poder, mas de insurgências contra as formas pelas quais se exerce opoder. Assim, no caso de Cabrobó, a militância anti-proibicionista não diz respeito a negação do governo e dos poderes que se exercem e sobredeterminam os usuários de maconha, antes de uma postura ética de revolta e sublevação contra a maneira pela qual esses poderes são exercidos e o que produzem. Não se trata, portanto, da luta para a liberação irrestrita, libertina e irresponsável da maconha, como se isso fosse possível ou desejável,mas da elaboração de modos éticos e de cuidado de si.

A culminância entre militância e o exercício profissional médico por parte do entrevistado pode ser analisada como uma modalidade de contraconduta, considerando que foi justamente a prática e o discurso médico que historicamente balizaram a proibição da maconha (Souza, 2015). Fazendo uma breve e sucinta comparação com o médico citado por Manga Rosa, é possível vermos como se tecem condutas normalizadas e contracondutas. O primeiro médico, ao se deparar com o pedido para utilização da maconha como saída terapêutica, nega, tenta postergar e só ingressa o tratamento com óleo de CBD quando a paciente lhe conta já estar utilizando por conta própria, o curioso é que para a medicação 'tarja preta' ele não põe empecilhos em testar ou em esperar a adequação dos efeitos enquanto se segue usando. Já o médico entrevistado, Cabrobó, atua na militância, dentre outros fatores, para ter a possibilidade de cuidar de seus pacientes também com a maconha: "Como falei, a maconha tem efeitos terapêuticos milenares que a atual ciência está provando, como médico, que quer proporcionar o melhor tratamento para os meus pacientes, com menor risco, a maconha é superior a várias outras substâncias que eu prescrevo todos os dias para os pacientes[...]. Minha luta é para que ela volte a ter esse status de planta medicinal e que eu possa prescrever para meus pacientes para diversas doenças" (Entrevistado, Cabrobó).

 

White Widow, usuário e egresso do sistema prisional

O terceiro entrevistado faz o uso de maconha há 12 anos e recentemente passou por três meses no sistema prisional enquanto respondia por tráfico de drogas. É importante pontuar que White Widow é um jovem negro, com baixa escolaridade (ensino médio incompleto) e morador de um bairro periférico de uma cidade de médio porte no interior do Paraná, perfil socioeconômico relacionado a todas as características daqueles que têm sido submetidos às consequências de discursos e práticas do sistema proibicionista que tende a aprisionar jovens negros e pobres (Karam, 2007) desde os primórdios da proibição(Lunardon, 2015). O entrevistado conta que sua primeira experiência com a maconha foi aos dezessete anos e, desde então, não interrompeu o uso. Segundo sua experiência pessoal, a maconha tem como principal função ser um tipo de substância de uso "calmante" bem como considera que "fumar maconha faz eu me alimentar bem, eu me sinto bem..." (Entrevistado, White Widow).

Todavia, o entrevistado considera alguns aspectos negativos desse uso e aponta:"no meu caso eu vejo que a maconha faz mal sim, para o cérebro, mas eu nunca vi uma pessoa aparecer na televisão e fala assim "ah o mano (sic) matou alguém por causa da maconha" (Entrevistado, White Widow). Além disso, também destaca sua percepção acerca do preconceito da sociedade a respeito da planta: "Ah, pras pessoas que não conhecem a maconha fala que tudo é droga [...] nos olhos da sociedade o que num presta é droga... se você tá usando maconha você já é um drogado, já não presta". (Entrevistado, White Widow).

Em suas colocações é possível perceber a compreensão de drogas apenas caracterizadas por serem substâncias ilícitas, ou seja, uma definição de drogas balizadas primordialmente pelo dispositivo proibicionista juspositivista, assentado na partilha moral entre drogas ilícitas e lícitas (Vargas, 2008).A estratégia de aglomerar substâncias ilícitas tão diferentes em efeito e composição sob um mesmo conceito, e dissocia-lo das drogas lícitas, é um aspecto marcante em todas as entrevistas realizadas. Essa segmentação naturaliza certas contradições: o uso do álcool, mesmo causando graves problemas a indivíduos e a sociedade, não é considerado no problema das drogas. O uso de remédios tem se tornado uma prática amplamente disseminada na sociedade ocidental contemporânea e seus usuários não carregam o estigma de drogados, que segundo o entrevistado, aos olhos da sociedade não prestam.

Corroborando essa percepção, o relatório da Organização Mundial da Saúde sobre Álcool e outras drogas, publicado no ano de 2018 (OMS, 2018), aponta que 43% da população mundial é consumidora de álcool e no Brasil 40% da população consumiu álcool nos últimos 12 meses. Os dados mostram que 5,3% das mortes no mundo estão relacionadas ao uso nocivo de álcool, o que significa que três milhões de pessoas morreram no ano de 2016 devido ao uso abusivo de álcool. Além das taxas elevadas de mortalidade, o uso abusivo de álcool está associado aos altos índices de cirrose hepática, câncer e acidentes de trânsito, que em 20% dos casos estão associados ao álcool (OMS, 2018).

Ao ser questionado a respeito da legalização da maconha o entrevistado levanta o questionamento sobre o álcool e compreende a proibição como uma meta inatingível:[...] não tinha que proibir [a maconha], ela é uma planta medicinal, tem coisa pior que 'eles' liberam, que é o cigarro e a cachaça, que matam mais que a maconha e 'eles' liberam. 'Eles' sabem que se liberar a maconha os comerciantes vão sair perdendo. Acho que é por isso que 'eles' não liberam". (Entrevistado, White Widow).

Nessa fala, White Widow faz repetidamente a distinção entre eu/nós e eles. Separação muito significativa sob diversas facetas: os moradores de regiões periféricas usuários de maconha, os negros e outros segmentos sociais marginalizados,compreendem a classe política e as pessoas que ocupam posições de poder legitimadas pela sociedade como radicalmente outro. Por eles podemos entender os diversos atores sociais que atuam ativamente para manutenção do proibicionismo. Esse aspecto da subjetivação indica uma profunda ruptura na suposta igualdade que está na base da democracia representativa. Não obstante, observamos ainda uma contradição a respeito da identidade objetivada pelo processo histórico que conduziu o proibicionismo e a percepção de si dos usuários de maconha.

Na ocasião em que foi apreendido conta que não praticava o tráfico de drogas, possuía maconha apenas para consumo: "Fui preso pelo tráfico de drogas. Eu 'tava' em casa e eu tinha brigado com meu sobrinho, ele subiu pra praça e não me falou que embaixo do sofá tinha umas maconhas (Entrevistado, White Widow).Ao relatar a abordagem policial, White Widow destacou a agressividade e o desrespeito com que os policiais lhe trataram: "Chegou falando umas palavras deselegante para minha pessoa, e só por eu ter olhado para trás acharam que eu ia correr, algemaram meus pés e minhas mãos, revirou meu barraco, acabou com tudo, quebrou tudo"(Entrevistado, White Widow).

Essa violência presente na abordagem policial, principalmente nas regiões periféricas das cidades, pode ser vista na entrevista cedida pelo comandante das Rondas Ostensivas da Polícia Militar de São Paulo a um jornal de grande circulação nacional, em que confirma que a abordagem policial nas periferias e favelas é mais truculenta que nas áreas nobres (Carvalho, 2017). Essa violência sistemática é decorrente de um mecanismo próprio ao proibicionismo e sua atual faceta de Guerra às Drogas, o que culminou em um consenso de que as periferias e as favelas seriam locais em que se encontram os traficantes, e que esses traficantes são inimigos da nação e, em decorrência disso sujeitos a intervenções estatais violentas. O proibicionismo se encarrega de produzir um cenário de guerra e extermínio nas localidades periféricas, fenômeno que expressa um mecanismo próprio da biopolítica, estabelecendo o recorte entre quem pode viver e quem deve morrer (Foucault, 2005).

A respeito dos três meses que passou no sistema prisional o entrevistado relatou: "Foi de boa, cai numa cela que eu conhecia todo mundo, os piás da minha quebrada (sic) 'estava' tudo preso lá. Fumava maconha o dia inteiro, falava no celular, trocava ideia. Tinha muitos lá por tráfico." (White Widow, Entrevistado). Quando o entrevistado diz que as pessoas de sua cela eram todas de sua 'quebrada', eram pessoas do mesmo território que White Widow vivia. Isso é um exemplo de como o viés criminalizante da proibição incide principalmente nas periferias. Essa perseguição já ocorre há anos e, como exemplo, na década de 1940, foram publicados dados sobre usuários da planta na Bahia e dos 13 listados, 10 eram classificados pardos ou negros, e todos de classes economicamente subalternas (Souza, 2015). Atualmente, repete-se o padrão nas prisões brasileiras, na qual mais de 60% dos presos são negros, a maioria com baixa escolaridade e, não raro, presos sob acusação de tráfico (Infopen, 2018).

 

OG Kush, Coronel da reserva da Polícia Militar

A quarta pessoa entrevistada é um oficial aposentado que chegou ao mais alto cargo de comando da Polícia Militar na cidade do Rio de Janeiro, uma das maiores capitais do Brasil. Entrou na corporação no ano de 1983 e permaneceu em atividade até o ano de 2016. Segundo o entrevistado, a polícia se coloca frente à questão das drogas da mesma maneira que a sociedade no geral, "o policial reproduz muito isso que está presente na mentalidade [da população]". As concepções populares, sob a luz do referencial foucaultiano utilizados nessa pesquisa, são saberes que dizem respeito ao produto de todo processo histórico de constituição do paradigma proibicionista, pautados em discursos médicos e jurídicos que produzem verdade respondendo a pressões políticas,e situa a questão das drogas como um problema relacionado ao crime ou a doença e, outrora, a marginalidade ou à pobreza.

Desde que o mundo, a partir dos EUA, decidiu tratar da questão das drogas pelo ponto de vista da guerra, que aconteceu no início de 1971, quando Nixon declarou guerra às drogas, identificando nas drogas o inimigo público número um da sociedade, esse enfretamento passou a se dar pelo ponto de vista salvacionista, pelo ponto de vista do enfrentamento entre bem e mal. Então, eu acho que a sociedade de modo geral e o policial também, compreendem esse enfrentamento como se fosse uma questão de salvação, salvação da sociedade, do ser humano, contra um inimigo que de alguma maneira ameaça a vida. (OG Kush, Entrevistado).

A partir do momento em que há a decisão de tratar da questão das drogas sob a perspectiva da guerra, há imediatos efeitos na subjetividade do policial, segundo o entrevistado: "para fazer guerra você precisa de um tipo de subjetividade, uma subjetividade embrutecida, e desumanizada. Então, a guerra às drogas produz violência psíquica, ela produz sofrimento, ela produz desumanidade" (OG Kush, Entrevistado). A questão suscitada por tais colocações situa-se no âmbito da produção da subjetividade no interior da instituição policial e sua complexidade exige que apresentemos alguns aspectos sobre tal instituição.

No Brasil, a polícia se consolida institucionalmente a partir do século XIX e se aproxima de segmentos das elites agrárias nacionais, da elite industrial e do exército, que inclusive serve de base no que diz respeito a questões de práticas e hierarquias. Sua atividade se consolidou principalmente no confronto contra revoltas e rebeliões, como a luta contra o movimento de Canudos (1893-1897), ações no Contestado (1912-1916), Revolta Paulista (1924) e na Revolução de 1930 (Ribeiro, 2011). Aspecto relevante se consideramos que desde o princípio da instituição policial sua atividade é voltada para o confronto interno, permeado por interesses de classe e, como instituição disciplinar, é uma fábrica de subjetividades.

Na perspectiva do entrevistado, os procedimentos disciplinares de criação de subjetividades estão amplamente articulados com o paradigma de Guerra às Drogas na produção de um tipo específico de subjetividade, e segundo ele num cenário de guerra, no qual a morte é iminente:[...] o medo da morte atua na subjetividade humana, ela produz um tipo de subjetividade, você viver na perspectiva da morte que é iminente, que pode acontecer se você dobrar uma esquina, isso produz um embrutecimento no policial (OG Kush, Entrevistado).Soma-se a esse cenário de sofrimento e violência policial, a corrupção da corporação: "A corrupção policial caminha junto com a violência policial. E na forma como eu compreendo a questão, a melhor maneira de enfrentar a corrupção policial é enfrentando a violência policial(OG Kush, Entrevistado).Segundo o entrevistado, a relação entre violência e corrupção tem como pedra de toque, que liga ambas, a Guerra às Drogas: Na medida que a Guerra às Drogas produz embrutecimento, produz insensibilidade, ela também produz e contribui para corrupção, porque uma polícia que mata muito, que despreza a vida humana, que tipo de consideração ela vai ter com a questão ética?

Além disso, as regiões periféricas e as favelas brasileiras acabam sendo o palco da Guerra às Drogas, que nas palavras do entrevistado: "O que a gente enfrenta, e o que acabamos vitimando são pessoas. Não existe Guerra às Drogas propriamente dita, o que existe é guerra contra pessoas" (OG Kush, Entrevistado). É nesse ponto, da perspectiva da guerra, que podemos entender o proibicionismo não apenas como um dispositivo de controle e gestão da vida e da exclusão, mas também como um dispositivo capaz de racionalizar e distribuir a morte (Hart, 2014; Mbembe,2018), através de aparatos e procedimentos que se legitimam socialmente na inflação da figura do traficante marginal que comercializa o produto considerado o inimigo público número um da sociedade que são as drogas.

De acordo com Mbembe(2018, p. 128), "na economia do biopoder, a função do racismo é regular a distribuição da morte e tornar possíveis as funções assassinas do Estado".O racismo divide aqueles que devem viver, em um sistema normativo positivado proibicionista, e os dissidentes, os que não se adequam ou por algum motivo são colocados à margem desse sistema proibicionista, que estão sujeitos à morte. No entanto, ao analisar contextos extremos específicos, como o sistema da plantation, do apartheid, da ocupação colonial tardia e outros, Mbembe conclui quea noção de biopoder não dá conta das formas contemporâneas de submissão e sujeição, e em resposta elabora a noção de necropolítica e necropoder.

Propus a noção de necropolítica e necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar "mundos da morte", formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem estatuto de "mortos-vivos". (Mbembe, 2018, p. 71).

Ao analisar os cenários produzidos pela Guerra às Drogas nas periferias, é possível entendê-lo a partir da noção de necropolítica, tendo em vista que, segundo o entrevistado: "O perfil de quem morre no Brasil tem entre 15 e 29 anos, é negro, do sexo masculino e mora nas periferias das cidades brasileiras". E conclui nos dizendo que "a Guerra às Drogas no Brasil se traduz em guerra aos pobres, e dentro dos pobres, dentro desse segmento de excluídos, os negros (OG Kush, Entrevistado).

A atuação policial é legitimada por grande parte da sociedade brasileira fundamentada no discurso proibicionista. A versão oficial desse discurso defende uma sociedade livre de drogas, e argumenta que a função de todas as instituições e da sociedade no geral seria combater o inimigo abstrato que seriam as drogas. Há, no entanto, uma lacuna entre o que o proibicionismo se propõe a fazer, que é reduzir a demanda e a oferta de drogas no mundo (Fiore, 2012), e o que o proibicionismo realmente faz, na concepção de nosso entrevistado: "Está mais do que demonstrado que o proibicionismo não é capaz de reduzir o consumo de drogas."E ainda coloca em questão o fato histórico de que as drogas perpassam a História da humanidade, ao dizer que "O ser humano conhece maconha há mais de 4mil anos, o álcool que é uma droga lícita, acompanha a história da humanidade, dá pra contar a história da humanidade a partir do álcool". Nessa perspectiva, acredita ser "uma ingenuidade muito grande acreditar que a gente vai superar essa questão com polícia e com o código penal". (OG Kush, Entrevistado).

Considerando que o Estado Democrático de Direito tem seu fundamento na soberania popular, tem necessidade de incluir a vontade do povo nas decisões políticas, possui uma constituição e possui um sistema de garantia de direitos humanos, além de prezar pela realização da democracia social com consequente promoção de justiça social (Silva, 2015), o proibicionismo é uma contradição no exercício democrático e na própria definição de Estado democrático de Direito, ironiza o entrevistado: "é matando um brasileiro a cada nove minutos e trancafiando outros 700 mil que estamos construindo o Estado Democrático de Direito no Brasil?! (OG Kush, Entrevistado).Com isto, vemos que não apenas o dispositivo do proibicionismo forja formas de viver em sujeições e subjetividades marginais como a do delinquente, a do traficante e do usuário-viciado, como também opera e define critérios de assassinato e daqueles que podem vir a morrer, em vidas desprovidas de seu valor intrínseco.

 

À guisa de conclusão: o paradigma proibicionista e seus efeitos sociais e subjetivos

Após a análise de todas as entrevistas em suas particularidades, percebemos que algumas temáticas perpassam transversalmente as quatro entrevistas. O tema mais recorrente é a distinção entre drogas e remédios. Na percepção geral, o termo drogas se refere ao caráter ilícito da substância e até mesmo entre as pessoas que fazem o uso da planta há esse entendimento equivocado. Um exemplo disso é quando a entrevistada Manga Rosa, que utiliza maconha com fins terapêuticos para seu filho, faz questão de distinguiras duas potencialidades da maconha 'droga' e da maconha 'remédio'. Essa concepção de drogas e remédios, em certa medida, influencia as possibilidades de engajamento, ou não, com a maconha antes que o sujeito saiba o que é a maconha. Foi recorrente aos entrevistados que, antes mesmo de saberem que a maconha é uma planta que causa efeitos específicos e têm determinadas propriedades, suas primeiras experiências relacionadas ao uso da substância é a de entendê-la como uma droga no sentido de um veneno-mal, que necessariamente causa malefícios assim como outras substâncias como heroína, crack, cocaína (ilícitas no geral).

Concomitantemente à produção de subjetividades de usuários, também são produzidas as categorias de entendimento pelas quais a sociedade irá se apropriar do tema maconha. As associações entre maconheiro e criminoso, doente, subversivo antissocial, preguiçoso e entre maconha e droga produzem um distanciamento entre a percepção que os usuários têm de si e da maconha e o que é resultado do processo histórico de proibição e criminalização.

Nas análises das entrevistas percebemos que todos os entrevistados, tanto os que fazem uso da maconha quanto aqueles que não fazem, procuram estabelecer novas relações entre si e a planta e entre si e os produtos históricos da proibição: a mãe que com ajuda de uma rede de usuários de maconha medicinal procura uma alternativa não medicamentosa e mais eficaz para o tratamento de seu filho; o médico que se coloca a favor da descriminalização e da legalização para poder prescrever tratamentos à base de maconha para seus pacientes; o jovem que problematiza o uso indiscriminado da planta e a situa no âmbito do prazer; o coronel da PMRJ que defende uma posição de descriminalização como política de segurança pública.

Eles se enquadram no que Foucault (2008) define como estratégias de contraconduta, uma determinada maneira de resistência, que visa criar modos de exercício da própria liberdade, novas maneiras de ser conduzidos e de conduzir-se. Desse modo, se por um lado consideramos que o processo histórico da proibição tenha produzido um governo político discriminatório em relação aos usuários de maconha, por outro lado a relação que os entrevistados, usuários ou não, têm estabelecidos entre si e a maconha, estão pautadas por outros princípios, não mais aqueles estabelecidos de maneira unívoca pelo proibicionismo, o que pode indicar a constituição de um tipo de governo ético dos usuários de maconha.

Portanto, ao estudarmos as relações entre subjetividade e a proibição da maconha, nos situamos num campo que é definido não só pelos efeitos que a proibição tem sobre os indivíduos, seu engajamento e seu conhecimento sobre a planta, mas também diz respeito a novas condutas e novas relações estabelecidas em torno da temática da maconha, que não são restritas apenas a usuários, mas atravessam a sociedade como um todo. Considerando toda a amplitude e todos elementos relacionados a proibição da maconha, é possível aproximá-lo à noção de dispositivo que pode ser compreendido pela constituição de redes de relações estabelecidas entre diferentes elementos, discursos, instituições, leis, arquitetura, entre outros, não raro contraditórios entre si, como pudemos observar com as entrevistas analisadas, e são responsáveis por estabelecer a natureza que as relações entre esses elementos podem ter (Foucault, 2005). Assim, um dispositivo de proibição da maconha seria então responsável pelas relações entre os mais diversos elementos, dos discursos médico e jurídico acerca das drogas, às prisões, comunidades terapêuticas, conteúdos midiáticos, leis e posicionamentos políticos, polícias, traficantes e dentre outros envolvidos ou que se fazem em torno do proibicionismo. Esse dispositivo, por sua vez, responde à demanda específica de perseguição tática à determinados grupos étnico-raciais por parte do Estado (Brito Neto, et al., 2016).

Contudo, é importante destacar que o esboço do proibicionismo enquanto uma estratégia de controle biopolítico que coloca em funcionamento o dispositivo de proibição da maconha, é apenas um elemento de análise possível em um campo tão diverso como o do estudo entre sociedade, drogas e produção de subjetividades.

 

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Submissão: 07/10/2020
Aceite: 23/04/2021

 

 

Mateus Alexandre Pratas Rezende é graduando em Psicologia pela Universidade Estadual de Maringá (UEM).
E-mail: pratasmateus@hotmail.com
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-5164-0225
Daniele Andrade Ferrazza é doutora e mestre pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho - Unesp/Campus de Assis-SP. É também professora adjunta do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual de Maringá (UEM).
E-mail: danieleferrazza@yahoo.com.br
ORCID: https://orcid.org/0000-0003-0912-9559
Guilherme Augusto Souza Prado é professor adjunto no curso de Psicologia da Universidade Federal do Delta do Parnaíba (UFDPar).
E-mail: guispra@gmail.com
ORCID: http://orcid.org/0000-0001-9318-8580

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