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Analytica: Revista de Psicanálise

versão On-line ISSN 2316-5197

Analytica vol.2 no.2 São João del Rei jun. 2013

 

ARTIGOS

 

Tratamentos para usuários de drogas: possibilidades, desafios e limites da articulação entre as propostas da redução de danos e da psicanálise

 

Treatments for drug users: possibilities, challenges and limits of relationship between the damage reduction proposal and the psychoanalytic proposal

 

Les traitements pour les usagers de drogues: les possibilités, les défis et les limites du lien proposé entre la réduction des risques et de la psychanalyse

 

Tratamientos para los usuarios de drogas: posibilidades, límites y desafíos de la relación entre la propuesta de reducción de daños y la propuesta psicoanalítica

 

 

Cynara Teixeira RibeiroI*; Andréa Hortélio FernandesII**

I Universidade Federal do Semi-Árido - UFERSA - Brasil
II Universidade Federal da Bahia - UFBA - Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo discute as particularidades de três propostas de tratamento para usuários de drogas: a abstinência, a redução de danos e a psicanálise, dedicando atenção especial ao debate entre as últimas. Busca-se avaliar as possibilidades de articulação entre elas através da análise de suas premissas, bem como das práticas realizadas em instituições que oferecem tratamento para o uso de drogas sob diferentes perspectivas. Conclui-se que a psicanálise contribui com as propostas de tratamento existentes por introduzir uma dimensão clínica pautada no sujeito do inconsciente e, portanto, na singularidade de cada usuário.

Palavras-chave: Saúde mental; uso de drogas; propostas terapêuticas; redução de danos; psicanálise.


ABSTRACT

The article discusses the particulars of three treatment proposals for drug users: abstinence, harm reduction and psychoanalysis, devoting special attention to the debate between the last two. They were evaluated the possibilities of articulation between them by examining their assumptions and practices conducted in institutions that offer treatment for drug use from different perspectives. We conclude that psychoanalysis contributes to the treatment proposals to introduce a clinical dimension ruled in the subject's unconscious and in the uniqueness of each user.

Keywords: mental health; drug use; treatment proposals; harm reduction; psychoanalysis.


RÉSUMÉ

L'article discute les particularités des trois propositions de traitement pour les usagers de drogues: l'abstinence, la réduction des risques et la psychanalyse, en accordant une attention particulière au débat entre entre les deux derniers. Nous cherchons à évaluer les possibilités d'articulation entre eux en examinant leurs hypothèses et des pratiques menées dans les établissements qui offrent traitement pour usage de drogues à partir de perspectives différentes. Nous concluons que la psychanalyse contribue aux propositions de traitement existantes pour introduire une dimension clinique qui met l'accent sur le sujet du inconscient et donc en le caractère unique de chaque utilisateur.

Mots-clé: santé mentale; les usagers de drogues; propositions de traitement; réduction des risques; psychanalyse.


RESUMEN

El artículo analiza las particularidades de tres tratamientos propuestos para los consumidores de drogas: la abstinencia, la reducción de daños y el psicoanálisis, dedicando especial atención al debate entre los últimos. Se evaluó las posibilidades de articulación entre ellos mediante el examen de sus supuestos y prácticas en las instituciones que ofrecen tratamiento por consumo de drogas desde diferentes perspectivas. Se concluyó que el psicoanálisis contribuye a las propuestas de tratamiento para introducir una dimensión clínica falló en el inconsciente del sujeto y la singularidad.

Palabras claves: salud mental; el consumo de drogas; tratamientos; reducción de daños; psicoanálisis.


 

 

A fim de iniciar uma discussão sobre os tratamentos oferecidos para usuários de álcool e outras drogas, é necessário primeiramente ressaltar o caráter histórico do fenômeno do uso de substâncias psicoativas. Como muitos autores já apontaram, a prática humana de consumir drogas é universal e milenar (MacRae, 2001; Carneiro, 2006; MacRae & Gorgulho, 2003). Porém, apesar desse consumo tão disseminado historicamente, foi apenas no século XVIII que a utilização de certas substâncias passou a ser considerada como um problema, simultaneamente, social e de saúde. A partir daí, o campo médico passou a considerar as toxicomanias como um distúrbio do ato impulsivo e começaram a surgir vários tratamentos para o uso de drogas, os quais, em um primeiro momento, dedicavam-se basicamente à desintoxicação ou ao isolamento desses usuários.

Atualmente, o campo das toxicomanias apresenta uma variedade de ofertas. Como exemplos, é possível citar: tratamentos medicamentosos, com ou sem internação; tratamentos não medicamentosos com internação; tratamentos não medicamentosos através do ingresso em grupos de ajuda mútua; terapias cognitivo-comportamentais; a psicanálise; e, mais recentemente, a redução de danos. De acordo com Queiroz (2001), com exceção da psicanálise e da redução de danos, as outras ofertas de tratamento estão pautadas, majoritariamente, no princípio da abstinência. Sendo assim, no âmbito do tratamento das toxicomanias, é possível deduzir a existência de pelo menos três propostas diferentes entre si, que são a abstinência, a redução de danos e a psicanálise.

Levando em consideração a existência dessas três propostas, este artigo discute as particularidades de cada uma delas, dedicando atenção especial ao debate entre psicanálise e redução de danos. Para o alcance desse objetivo, busca-se avaliar as convergências e divergências entre esses campos, utilizando, para tanto, análises extraídas da prática cotidiana de instituições que oferecem tratamentos para usuários de drogas sob diferentes perspectivas.

 

A proposta dos tratamentos que visam à abstinência

Considerando-se que os tratamentos para o uso de drogas surgiram, principalmente, em função do reconhecimento, por parte do campo psiquiátrico, das toxicomanias como uma forma de psicopatologia, torna-se compreensível o porquê de tais tratamentos terem se constituído tomando como base os pressupostos oriundos da psiquiatria. Esta, por sua vez, enquanto ramo da medicina, inicialmente incorporou o modelo biomédico hegemônico e a sua forte ênfase nos aspectos orgânicos e biológicos das doenças tanto físicas quanto mentais (Pratta & Santos, 2009). Assim, devido às fortes influências exercidas pelo modelo biomédico no campo psiquiátrico, especialmente durante os séculos XIX e XX, tais tratamentos apresentaram como características ser hospitalocêntrico, com terapêutica, predominantemente, farmacológica e tendo como principal meta a cura, que geralmente, na atenção aos usuários de psicoativos, era considerada equivalente à abstenção do uso (Faria & Schneider, 2009).

Porém, a prevalência desse modelo psiquiátrico de tratamento promoveu uma desqualificação social dos usuários de drogas à medida que serviu de sustentáculo à ideia de que a dependência química seria uma doença crônica e incurável. Essa noção de doença adotada pela psiquiatria é também oriunda do modelo biomédico, que a define como uma perturbação da saúde que deve ser isolada e tratada a fim de não prejudicar a população considerada saudável (Pratta & Santos, 2009).

Sob esse ponto de vista, os indivíduos que apresentam problemas com drogas são tratados, exclusivamente, através do encaminhamento para instituições fechadas, as quais classicamente têm como objetivo principal promover o abandono do uso de psicoativos e o isolamento dos usuários (Bastos, 2009). Desse modo, é possível constatar que a atenção ao uso de drogas, por estar historicamente vinculada à assistência psiquiátrica, também se encontra marcada pela segregação e pela inadequação dos serviços prestados (Alves, 2009).

Em meados do século XIX, somou-se a essa concepção psiquiátrica clássica de psicopatologia e de tratamento, o modelo moral, de origem religiosa ou espiritualista, o qual propõe o uso de drogas como um desvio de caráter; e a reabilitação, considerada correlata à abstinência, como sendo de cunho divino (Faria & Schneider, 2009). Esse modelo moral é ainda hoje adotado por algumas comunidades terapêuticas e por boa parte dos grupos de ajuda mútua, os quais visam moldar nos usuários o comportamento abstinente.

Dessa maneira, pode-se perceber que tanto o tratamento oriundo do modelo da psiquiatria clássica como o originário do modelo moral têm em comum o objetivo de fazer com que os usuários abandonem o uso de drogas. Nesse sentido, pode-se dizer que a abstinência consiste em uma proposta de tratamento que faz uma síntese desses dois modelos, à medida que condensa concepções oriundas de ambos. Prova disso é que a proposta da abstinência ainda é hegemônica tanto nas instituições psiquiátricas como nas filantrópicas, as quais, em sua maioria, privilegiam a internação em detrimento do atendimento ambulatorial.

No entanto, uma das principais críticas feitas aos tratamentos que ocorrem em instituições fechadas dirige-se justamente ao fato de que o isolamento do paciente da sociedade cria um ambiente artificial, cujas características não podem ser reproduzidas fora dos seus muros. Desse modo, quando terminado o tratamento, o reingresso do paciente em seu ambiente de convívio familiar e social tende a ser perturbador, o que pode favorecer a ocorrência de inúmeras recaídas (Alves, 2009).

A ideia de dificultar o acesso dos usuários às substâncias psicoativas justifica-se, porque o pressuposto básico que fundamenta a proposta de tratamento pela abstinência é o de que a droga faz o toxicômano. Nesse sentido, as drogas são vistas como possuidoras de um poder supostamente intrínseco de viciar os sujeitos. Assim, veicula-se a concepção de que qualquer pessoa que usar drogas irá tornar-se, mais cedo ou mais tarde, necessariamente, viciada. Dessa maneira, a mensagem implícita que prevalece nas modalidades de tratamento pautadas na abstinência é a de que a substância tóxica é mais importante do que o sujeito que dela faz uso. De forma que as consequências desse uso são consideradas iguais para todos os usuários, apenas variando em função da quantidade e do tipo de substâncias utilizadas.

Entretanto, esse ponto de vista acaba por privilegiar o aspecto farmacológico das drogas e desconsiderar os aspectos individuais, subjetivos, sociais e culturais implicados no fenômeno da drogadição. Segundo o próprio Ministério da Saúde brasileiro, tal perspectiva, que se manteve hegemônica durante muito tempo, ajudou a promover a disseminação de uma cultura que associa o uso de drogas à criminalidade e que combate substâncias que são inertes por natureza, fazendo com que o indivíduo e o seu meio de convívio sejam relegados a um plano menos importante (Brasil, 2005). Dessa maneira, a proposta da abstinência acaba subsidiando uma perspectiva proibicionista e de repressão ao uso de drogas, o que favorece a ideia de que o consumo de drogas seria um problema de polícia e não de saúde pública.

Assim, na proposta de tratamento pela abstinência, supõe-se que o único meio capaz de prevenir e/ou tratar as toxicomanias seria o não uso de drogas. Essa é uma das razões pela qual muitos toxicômanos que se tratam através da proposta da abstinência se dizem, permanentemente, em recuperação, independentemente do tempo decorrido desde a última utilização do tóxico, e afirmam que estão "limpos" só por hoje. A explicação para esse tipo de discurso se assenta no fato de que as recaídas são vistas como uma grande ameaça que se encontra no horizonte de quem se submete a esse tipo de tratamento. E como as recaídas são consideradas como o total fracasso do tratamento, a abstinência é colocada como um objetivo a ser perseguido por toda a vida. De certa forma, foi como contraponto a essa concepção cronificante de dependência química que outras propostas de tratamento para o uso de drogas, como a da redução de danos e a da psicanálise, surgiram.

 

A proposta da redução de danos

A redução de danos é definida como uma estratégia de saúde pública que visa reduzir os agravos provocados à saúde dos indivíduos e as possíveis consequências adversas decorrentes da adoção de condutas consideradas de risco, como, por exemplo, o compartilhamento de seringas e agulhas; a prática de relações sexuais sem o uso de preservativo; a direção de veículos por condutores sob efeito de psicoativos etc. (Brasil, 2001).

No âmbito específico do uso de álcool e outras drogas, a redução de danos implica um conjunto de intervenções que visa prevenir as consequências negativas do consumo de substâncias psicoativas, sem haver a exigência imediata e automática da abstinência. Dentre essas intervenções, destacam-se a distribuição de seringas, agulhas e cachimbos, a realização de palestras educativas e encaminhamentos de usuários que estão à margem dos serviços de saúde para instituições especializadas.

Enquanto diretriz geral de ação, a abordagem de redução de danos teve origem no ano de 1926, na Inglaterra, através da elaboração do Relatório Rolleston (Brasil, 2005). Nesse relatório, o Ministério da Saúde da Inglaterra estabeleceu que a manutenção de usuários por meio do emprego de determinadas substâncias seria o tratamento mais adequado para alguns pacientes, regulamentando, assim, o direito dos médicos ingleses de prescreverem opiáceos aos dependentes desse tipo de drogas. O critério adotado para essa prescrição deveria ser a necessidade de, após muitas tentativas fracassadas de tratamento pela abstinência, manejar a síndrome provocada pela abstenção de determinadas substâncias, além da constatação de que o usuário tratado não conseguiria manter uma vida produtiva sem uma dose mínima da droga administrada regularmente.

Porém, a partir dos anos 80 do século XX, com o advento e a disseminação do vírus HIV/AIDS e da grande contaminação decorrente do compartilhamento de agulhas e seringas entre usuários de drogas injetáveis, as estratégias de redução de danos passaram a objetivar também a prevenção do contágio. Assim, surgiram em vários países, como Bélgica, Austrália, Alemanha etc., programas de redução de danos propostos como estratégias de saúde pública.

No caso específico do Brasil, a abordagem da redução de danos foi assumida como política do Ministério da Saúde desde o ano de 1994, em função do reconhecimento do uso prejudicial de álcool e outras drogas como grave problema de saúde pública no país. Além disso, houve a constatação de que grande parte desses usuários não consegue ou não quer parar de consumir tais substâncias. A partir daí, a redução de danos passou a ser uma proposta de tratamento para o uso de drogas, situada no âmbito das políticas públicas de saúde mental, que tem como foco de atenção a dimensão mais política implicada no consumo de álcool e outras drogas.

Entretanto, foi apenas no ano de 2002 que o Ministério da Saúde passou a implementar o Programa Nacional de Atenção Comunitária Integrada aos Usuários de álcool e Outras Drogas, o qual instituiu um conjunto de políticas públicas específicas no campo da saúde mental para organizar as ações de promoção, prevenção, proteção à saúde e educação das pessoas que fazem um uso considerado prejudicial de psicoativos. Além disso, o Ministério da Saúde brasileiro criou uma rede estratégica de serviços, articulada à rede de atenção psicossocial e fundada na abordagem de redução de danos, para atender a essa população.

Os Centros de Atenção Psicossocial para atendimento de pacientes com dependência e/ou uso prejudicial de álcool e outras drogas (CAPSad) são os dispositivos estratégicos dessa rede e devem fazer uso sistemático e eficaz da lógica ampliada da redução de danos e realizar um atendimento ativo das necessidades da população-alvo de forma integrada ao seu meio cultural e comunitário. Para tanto, os CAPSad devem seguir os princípios e diretrizes da reforma psiquiátrica, os quais, no âmbito do cuidado aos usuários de álcool e outras drogas, podem ser considerados equivalentes à política de redução de danos.

Para o Ministério da Saúde, a adoção da redução de danos como estratégia de tratamento para os usuários de substâncias psicoativas visa ao resgate do papel autorregulador e da cidadania dos usuários, o que incentivaria a sua inclusão e mobilização sociais - através da ampliação das suas relações sociais e do incremento das suas possibilidades dentro da sociedade em que vivem. Assim, o Ministério da Saúde considera a política de redução de danos como um "marco ético" no campo da prevenção e tratamento dos transtornos associados ao uso de álcool e outras drogas e como uma proposta que "[...] reconhece cada usuário em suas singularidades" (Brasil, 2005, p. 42).

No entanto, cabe perguntar se a proposta da redução de danos realmente leva em conta a singularidade de cada usuário de drogas e o fato de que o uso de drogas pode configurar-se como uma forma paradoxal de satisfação. Esse questionamento parte do pressuposto, defendido por outros autores, de que a perspectiva da inclusão social e de resgate da cidadania em saúde mental, apesar de extremamente importante, tende a deixar de lado o caráter subjetivo implicado no sofrimento psíquico e a escuta clínica do sujeito (Kyrillos, 2007).

A esse respeito, é importante salientar que a demanda pela inclusão das singularidades e da escuta do sujeito nas práticas de saúde mental é fortemente assumida por alguns psicanalistas que, apesar de reconhecerem os avanços obtidos pela reforma psiquiátrica em relação ao modelo manicomial, ressaltam que a ênfase no cidadão de direitos pode conduzir as atuais práticas em saúde mental a uma nova forma de demissão subjetiva. Isso porque, a referência aos cuidados e ao aspecto terapêutico feita pela reabilitação psicossocial e pela reforma psiquiátrica não é por si só suficiente à medida que é necessário levar em consideração também a dimensão subjetiva (Viganó, 1999).

Essa é uma questão que merece ser discutida em profundidade a fim de evitar uma falsa promessa de mudança, que troque uma prática que não considera o sujeito em sua singularidade e que o exclui do contato social (modelo manicomial) por outra prática que toma o sujeito em sua dimensão exclusivamente social (modelo da reabilitação psicossocial). Nesse sentido, é necessário ressaltar que trocar uma prática pelo seu avesso é apenas uma forma de dar continuidade a uma mesma concepção de saúde e de tratamento.

 

A proposta da psicanálise

A proposta psicanalítica para a compreensão e tratamento das drogadições foi se delineando ao longo da história da psicanálise. Nesse campo, Freud foi o primeiro a se interessar pelo fenômeno, lançando as bases conceituais que possibilitaram o desenvolvimento de posteriores proposições de base psicanalítica sobre o uso de drogas, tais como as de Abraham, Rado, Krystal, Lacan, McDougall, Khantzian entre outros.

Apesar das teorias desenvolvidas por esses autores referirem-se ao campo conceitual da psicanálise, elas são muito diferentes entre si. E como explicar cada uma delas fugiria ao escopo deste artigo, as considerações que se seguem inserem-se no referencial da psicanálise lacaniana, a qual se destaca por ter se mantido fiel à doutrina freudiana e por ser a única que consegue explicar porque, no uso de drogas, prazer e dano estão, inexoravelmente, imbricados (Loose, 2000).

A fim de iniciar uma discussão da proposta de tratamento orientada pela psicanálise, é importante ressaltar que o tratamento psicanalítico opera sob um viés radicalmente diferente das demais propostas terapêuticas existentes. Isso porque a psicanálise trabalha com a noção de sujeito do inconsciente, concebendo-o como estando para-além do indivíduo e para-além da doença.

O sujeito do inconsciente subverte o sujeito metafísico da filosofia cartesiana, pois este, por ser sujeito do pensamento racional, significa autoconsciência e mestria, enquanto o sujeito do pensamento inconsciente significa o sujeito como escravo e não como mestre. Escravo à medida que, para o referencial psicanalítico, o sujeito constitui-se como estando, de saída, inexoravelmente alienado ao campo do Outro.

Ou seja, para a psicanálise, o que demarca a estruturação do psiquismo humano é a relação ao Outro, sendo ele entendido não como outra pessoa, mas como todo o universo simbólico ao qual o indivíduo encontra-se referido (discursos, rituais, códigos, crenças etc.). Na teoria lacaniana, esse universo simbólico é transmitido primeiramente por outro primordial (como a mãe ou outro que se encarrega da inserção da criança no mundo da linguagem), que, através de seu investimento libidinal, possibilita que o indivíduo deixe de ser um mero representante biológico da espécie humana e transforme-se em um ser dotado de desejo e inserido no laço social (Lacan, 1939/1985).

Nesse sentido, todo sujeito humano é dependente do Outro, já que nenhum sujeito pode engendrar-se a si mesmo (Laxenaire, 2010). As adições seriam, assim, uma dependência posterior, mas que, para a psicanálise, ancora-se justamente no modo de relação que o sujeito estabeleceu com o mundo ao seu redor. É por essa razão que, no referencial psicanalítico, o recurso à intoxicação é entendido como uma escolha1 do sujeito. Mas uma escolha que não é movida exatamente por elementos racionais e lógicos, mas sim por desejos que muitas vezes escapam à racionalidade, por remeterem ao inconsciente e articularem-se à pulsão de morte.

A pulsão de morte foi definida por Freud (1920/1996) como sendo certa tendência, inerente a todos os seres vivos, de buscar a pacificação de todas as tensões - o que, em última instância, só pode ser obtido com a morte. De acordo com o referencial psicanalítico, a pulsão de morte configura-se como um mais-além do princípio do prazer, haja vista que, sendo o prazer a baixa das excitações, o nível mínimo de tensão necessário para manter a vida, o mais além do princípio do prazer é o que, ao extrapolar o princípio do prazer, impele o sujeito a buscar um estado de completa plenitude, só alcançável através do retorno ao inanimado.

Lacan (1959/1995) associou a pulsão de morte ao conceito de gozo, definido como uma satisfação paradoxal que se articula em torno do objeto perdido. Isso porque, para a psicanálise, a satisfação humana constitui-se a partir de uma experiência fictícia, cujo protótipo é a situação mítica do bebê que chora devido a algum desconforto interno, que representa um aumento de tensão sentido por ele como desprazer e que, após ter iniciado o choro, é acalentado pelo seio materno. Nessa perspectiva, o seio da mãe restitui ao filho o estado de plenitude anterior à primeira sensação de desprazer e tal experiência impulsionará o bebê a buscar novamente esse apaziguamento das tensões através das suas demandas posteriores.

Entretanto, como nenhuma sensação de conforto será igual à primeira, o sujeito seguirá na vida a buscar a repetição dessa satisfação fictícia, sem, no entanto, conseguir encontrá-la. Essa repetição em busca do objeto perdido, que supostamente restituiria a satisfação primeira, marcará toda a vida do sujeito, denotando que há aí a recuperação de um gozo que se presentifica justamente na perda do objeto.

E é muito evidente a dialética existente entre pulsão de vida e de morte, bem como a busca pelo objeto perdido, nos fenômenos chamados de toxicomanias: se, provisoriamente, a droga assegura ao considerado toxicômano um estado de prazer, por outro lado, a sua utilização revela uma tentativa por parte do sujeito de um desaparecimento momentâneo, uma pequena morte. Além disso, a dose consumida é quase sempre insuficiente para assegurar ao sujeito a satisfação almejada. É por essa razão que ele busca sempre mais. Dessa forma, no fenômeno do uso de drogas e, em especial, nos casos em que esse uso chega a configurar uma toxicomania, a dimensão do gozo se torna extremamente relevante.

De acordo alguns autores, o gozo atrelado às práticas de intoxicação porta ainda uma especificidade: é um gozo que pode permitir ao sujeito reduzir os efeitos do Outro significante, chegando até mesmo a prescindir dos laços sociais e a dedicar-se a uma relação de exclusividade com as drogas. Nesse sentido, o gozo toxicomaníaco, por poder se desprender do universo simbólico, é um gozo que se estende em direção à morte. Porém, para a psicanálise, essa busca por um gozo mortífero não se dá a despeito do sujeito, como outras abordagens psicoterápicas propõem. Ela é uma escolha do próprio sujeito, que, movido por suas questões psíquicas, lança mão de uma saída que, em um primeiro momento, pode parecer-lhe mais apaziguadora.

Dessa forma, do ponto de vista da psicanálise, as drogas não são um problema em si, pois o que pode tornar-se problemático são determinados usos que alguns sujeitos fazem das drogas, os quais podem se converter em uma forma de autodestruição. Sendo assim, se para as modalidades de tratamento pautadas na abstinência a droga faz o toxicômano, à medida que as drogas são vistas como tendo um poder supostamente intrínseco de viciar os sujeitos, para a psicanálise, o toxicômano faz a droga. Haja vista, a psicanálise entende que é a particular relação entre sujeito e objeto que confere a este último o poder de converter-se em uma fonte de satisfação, da qual o próprio sujeito não consegue prescindir.

Nesse sentido, a psicanálise considera que as drogas podem ser usadas com diferentes funções e que o uso de drogas, enquanto fenômeno, apenas vela a estrutura subjetiva que o comporta. Assim, no tratamento psicanalítico, torna-se necessário considerar a função e o sentido desse fenômeno para cada sujeito a fim de tornar possível a identificação da relação estabelecida entre o sujeito e o tóxico.

E, para a psicanálise, essa identificação só é possível a partir do saber que é produzido pelo próprio sujeito ao longo do tratamento. Nessa perspectiva, o tratamento psicanalítico das toxicomanias pauta-se em uma escuta qualificada do sujeito, possibilitando a emergência do não-dito, do não-óbvio, do que está mais-além do princípio do prazer e que, sendo assim, aponta para o sujeito do inconsciente. Ou seja, se as adições são resultado de uma escolha por um gozo no corpo, um gozo que não expressa a si mesmo através da linguagem, o objetivo do tratamento analítico é possibilitar que o sujeito faça um movimento que vá da adição à palavra (Loose, 2000).

Sendo assim, a grande contribuição que a psicanálise tem a oferecer aos tratamentos para as toxicomanias é chamar atenção para o fato de que se o sujeito escolheu sua adição como uma solução que lhe traz gozo, só o próprio o sujeito pode, através do tratamento, escolher o que fazer com isso, que afeta o seu corpo e a sua vida de modo tão radical.

Dessa forma, no tratamento psicanalítico das toxicomanias, concebe-se que a escolha do sujeito pelas drogas, as recaídas e os excessos de substância só poderão deixar de ser uma saída para o sujeito quando o tratamento propiciar o encontro com outras formas de simbolização que o permitam prescindir do tóxico, nos casos em que esse desfecho for possível. Portanto, a direção do tratamento na clínica psicanalítica das toxicomanias visa conceder a palavra ao sujeito para que ele possa, a partir da fala e da ressignificação de suas questões psíquicas, construir outras saídas para os impasses subjetivos e para a invasão de gozo que vivencia.

 

Psicanálise e redução de danos: controvérsias e convergências

A partir de uma revisão de literatura, verifica-se o quanto a psicanálise, enquanto campo de saber específico, há muito se posiciona de forma crítica quanto às propostas de tratamento existentes para o uso de drogas baseadas no imperativo da abstinência. Dessa forma, seria possível afirmar, em um primeiro momento, a existência de certa aproximação entre as propostas de tratamento da psicanálise e a da redução de danos à medida que ambas problematizam o modelo terapêutico que visa à total abstenção do uso de drogas.

Outro possível ponto de convergência entre psicanálise e redução de danos é o fato de ambas considerarem que nem todo uso de drogas é necessariamente patológico, o que novamente as diferencia da proposta da abstinência. A redução de danos aborda o uso de drogas a partir de uma retomada antropológica que considera os usos culturalmente definidos e o valor que as drogas têm em cada tempo e lugar. De forma semelhante, para a psicanálise, o recurso às drogas pode ser um modo encontrado pelo sujeito para lidar com alguma questão psíquica e que não necessariamente chegará a configurar a modalidade chamada de toxicomanias (Sá, 2009).

Também para Queiroz (2001), é possível pensar uma aproximação dos pressupostos psicanalíticos com a abordagem de redução de danos à medida que os programas que trabalham com esta última introduzem "a dimensão da particularidade do sujeito" (p. 3) e, portanto, reconhecem "os usuários de drogas como sujeitos particulares e como cidadãos, que têm direito à saúde e a um tratamento que seja realmente efetivo e produtor de sentido" (p. 3). De modo semelhante, Silva (2011) também considera que a redução de danos pode se beneficiar da concepção de clínica oriunda da psicanálise. A fim de sustentar essa ideia, a autora relata uma experiência realizada no âmbito de uma estratégia de redução de danos.

A experiência consistiu no fato de que membros da equipe de um CAPSad, ao circularem entre usuários de álcool e outras drogas em um bairro do município de Belo Horizonte, Minas Gerais, oferecendo além da própria presença um espaço para a emergência da palavra, lograram que, em alguns momentos, certos usuários fizessem, espontaneamente, um intervalo no seu uso de drogas a fim de poderem conversar com esses profissionais. Assim, foram criadas as condições necessárias para que, entre um consumo e outro, os usuários pudessem "[...] distraída, disfarçada ou decididamente, fazer perguntas, pedir ajuda, aceitar o laço com o Outro e se deixar acompanhar" (Silva, 2011, p. 8).

Porém, segundo a autora, para que isso se tornasse possível, foi fundamental que os profissionais não precipitassem esse momento, respeitando a regra formulada pelos próprios usuários de que eles não se aproximassem quando estivessem no ato de consumir drogas. Ou seja, para que a experiência pudesse ser produtiva, os profissionais precisaram considerar o tempo e a escolha do sujeito, a cada momento, em lançar mão das drogas ou das palavras. E, de acordo com a autora, para que essa postura fosse possível, o fato de tal equipe possuir referência à psicanálise mostrou-se fundamental.

Em perspectiva semelhante, Conte (2004) afirma que não apenas a abordagem de redução de danos, mas também os avanços promovidos pela reforma psiquiátrica aproximam-se da psicanálise. Segundo a autora, isso ocorre porque, entre elas, "há em comum a recusa do achatamento do sujeito a uma passividade que pede assistencialismo ou a um sujeito-corpo (orgânico e biológico) que pede solução medicamentosa" (Conte, 2004, p. 26). Por outro lado, Conte (2004) alerta que os princípios que regem as propostas da redução de danos não são os mesmos que orientam a psicanálise e, a esse respeito, adverte que "as diferenças ficam por conta da ética, dos objetivos das intervenções e a quem se voltam" (Conte, 2004, p. 26).

De fato, acerca da redução de danos, é importante salientar que, conforme dito anteriormente, ela, por ser uma estratégia de saúde pública, objetiva reduzir os danos provocados pelo uso de psicoativos e promover o bem-estar biopsicossocial dos usuários dos serviços de saúde, tendo como foco de atenção o cidadão dos direitos universais. Por sua vez, a psicanálise possui uma ética que coloca em primeiro plano a posição subjetiva e a modalidade de gozo obtida através das práticas de intoxicação, apontando para a singularidade do tratamento de cada sujeito.

Sendo assim, apesar de psicanálise e redução de danos se aproximarem, em um primeiro momento, por posicionarem-se contrariamente ao modelo da abstinência, a proposta de conciliação entre esses dois campos não é consensual. Torna-se necessário analisar, a cada vez, as possibilidades de interlocução entre a abordagem de redução de danos e os pressupostos psicanalíticos que historicamente têm contribuído para pensar e tratar o fenômeno das toxicomanias, como é o caso dos conceitos de sujeito, gozo e ética.

 

Sujeito, gozo e ética da psicanálise: contrapontos às propostas da abstinência e da redução de danos

A despeito da descoberta freudiana de que o sujeito do inconsciente manifesta-se apesar das censuras que lhe são impostas, o que se observa cotidianamente nas atuais práticas de saúde mental é que tal sujeito é, frequentemente, eclipsado pelo cidadão dos direitos universais preconizado pela abordagem político-social do sofrimento psíquico, tão em voga nos novos serviços de saúde mental. No entanto, o que se tem percebido é que a noção de cidadão preconizada pelas atuais políticas de saúde mental não é capaz de tamponar o sujeito que se manifesta através dos equívocos da linguagem, do qual a psicanálise trata (Kyrillos, 2007).

Assim, vislumbra-se que, para que haja um tratamento do sujeito que recorre às práticas de intoxicação, não são suficientes as práticas de reabilitação psicossocial que visam ao aumento da contratualidade dos usuários de tais serviços, pois é necessário que, paralelamente, a essas ações, exista uma escuta clínica que produza efeitos subjetivos e que seja capaz de favorecer um reposicionamento do paciente ante as desordens de que se queixa (Viganó, 1999). Esse reposicionamento é importante, pois é a partir daí que o sujeito poderá se implicar em seu tratamento ao invés de permanecer na posição de apenas demandar que a instituição ou os profissionais que nela atuam forneçam, aprioristicamente, a cura dos seus sintomas.

No entanto, é possível notar que, nas novas instituições de saúde mental, há certa dificuldade por parte de alguns profissionais em operar com a demanda de cura sem cair no engodo de querer respondê-la (Kyrillos, 2007). No que tange especificamente aos tratamentos ofertados para os usuários de álcool e outras drogas, tal fato é bastante perceptível quando se deparar com profissionais que, ao receberem pacientes que solicitam um tratamento de desintoxicação, encaminham-no diretamente para o psiquiatra a fim de que ele lhe prescreva os procedimentos e fármacos que serão utilizados para aliviar a síndrome de abstinência. Por sua vez, isso é igualmente perceptível quando encontra-se profissionais que, por trabalharem com a abordagem de redução de danos, ao receberem um paciente que quer se tratar a partir desse referencial, encaminham-no diretamente para os tratamentos de substituição sem sequer avaliar se ele apresenta condições subjetivas para fazer um consumo regulado. É importante salientar que ambas as práticas resultam em certa demissão do sujeito do qual a psicanálise trata.

Essa demissão subjetiva ocorre também quando as estratégias de tratamento, quer orientadas pela abstinência, quer pela redução de danos, são propostas como um ideal universalizante que desconsidera a dimensão do caso a caso. Exemplos que ilustram bem esse ofuscamento são algumas palestras e orientações oferecidas em diversas comunidades, que visam fazer com que os usuários parem de consumir substâncias psicoativas ou, por outro lado, recomendar aos usuários que basta que eles reduzam a quantidade de substâncias psicoativas consumidas ou passem a usar outra substância considerada menos danosa. Porém, é possível observar que muitos dos usuários que recebem tais recomendações ficam indignados e dizem que da mesma forma que para certas pessoas não é possível simplesmente parar de usar drogas, para outras também não é possível reduzir a quantidade ou substituir a substância utilizada, pois há aqueles que realmente não conseguem fazer um consumo reduzido e para os quais a abstinência torna-se necessária. Portanto, nenhum dos dois modelos é para todos e a escolha pela proposta de tratamento adequada a cada caso deve ser pensada singularmente.

Acerca desse aspecto, é crucial a advertência feita pela psicanálise, segundo a qual há um gozo em jogo nas práticas de intoxicação que pode chegar a subsumir o sujeito. E no que tange às implicações dessa advertência para os tratamentos oferecidos aos usuários de álcool e outras drogas, o que é possível perceber é que tanto no âmbito da proposta da abstinência quanto na da redução de danos, essa dimensão do mais além do princípio do prazer não é devidamente contemplada, pois ambas desconsideram a compulsão à repetição implicada no ato toxicomaníaco. Isso porque, no modelo da abstinência, acredita-se que uma interdição de cunho moral ou farmacológico sobre a substância será suficiente para fazer cessar a fissura do sujeito por um objeto que ele, inconscientemente, julga ser capaz de restituir-lhe o objeto perdido. Por sua vez, a proposta de redução de danos, por trabalhar em prol de uma concepção de saúde que objetiva um ideal de menos danos ou de menor tensão, em certo sentido, ignora ou rejeita o fato de que há, no fenômeno toxicomaníaco, um empuxo ao gozo mortífero e que, assim, nas ditas toxicomanias, os danos, os riscos e até mesmo a morte são, em certo sentido, requisitados pelo próprio sujeito.

Portanto, considerando que a redução de danos defende o entendimento de que, para garantir a vida, é preciso diminuir os riscos causados pelo consumo abusivo das substâncias psicoativas, aponta-se uma possível aproximação entre a noção de dano e o conceito lacaniano de gozo mortífero como algo a ser reduzido ou evitado. Essa sugestão de aproximação se justifica porque a proposta da redução de danos é que o usuário de drogas, para reduzir os danos causados pelas substâncias psicoativas, use uma dose menor de entorpecentes ou até mesmo troque a substância utilizada, o que certamente tem efeitos sobre o gozo aí implicado. Sendo assim, essa alusão a uma aproximação entre danos e gozo pode sugerir que a abordagem de redução de danos visa diminuir ou regular o gozo mortífero, oriundo das práticas de intoxicação através de uma recomendação que, de forma semelhante à da proposta da abstinência, é exterior ao sujeito.

Só que o gozo, tal como é concebido pela psicanálise, é pouco afeito à regulamentação, à dosagem ou à otimização. Nesse sentido, deve-se questionar se estabelecer regras para o consumo de drogas não implicaria transformá-lo em uma prática que tentaria excluir o gozo. Indo ao extremo, isso significaria que os ditos toxicômanos, para continuar a obter certo gozo através do uso de substâncias psicoativas, precisariam burlar essas regras que, terapeuticamente, impõem barreiras ao gozo. Tal fato pode ser um limite intrínseco à própria estratégia de redução de danos, mas um limite que talvez possa vir a ser contornado, dependendo da perspectiva que se adote diante do gozo, pois qualquer proposta de tratamento para o uso de drogas precisa levar em conta que o gozo não é algo que possa ser desconsiderado nos dispositivos de atendimento ao sujeito e, em especial, aos ditos toxicômanos.

Entretanto, em muitas instituições de tratamento para o uso de drogas, o que se vê são profissionais que assumem sem crítica "[...] a demanda de colocar barreiras ao gozo, ignorando-o como dimensão corporal da subjetividade" (Braunstein, 2007, p. 19). Isso ocorre porque tais instituições e profissionais, no mais das vezes, têm como meta proporcionar aos seus pacientes um estado de bem-estar, de adaptação e de equilíbrio, que é absolutamente contrário ao gozo.

Porém, trabalhar com a clínica do sujeito implica estar advertido da impossibilidade de abrir mão do gozo e, nesse sentido, reconhecer a importância de manejá-lo. A despeito disso, o que se observa nas instituições de tratamento para usuários de drogas é que esse manejo do gozo e, principalmente, do gozo mortífero em jogo nas toxicomanias, ainda parece problemático para alguns redutores de danos.

Para Braunstein (2007), a questão do gozo como algo que é subjetivo, singular a cada sujeito, impossível de compartilhar e inacessível ao entendimento do outro social remete, de saída, à noção de ética sustentada pela psicanálise. No que tange ao tratamento psicanalítico das toxicomanias, essa articulação entre a ética da psicanálise e o conceito de gozo torna-se ainda mais essencial. Pois, levando-se em conta a perspectiva segundo a qual os toxicômanos apresentam-se como figuras de gozo, colocando em cena a repetição de um ato que demonstra o insuportável de sua separação do objeto que aparece transmutado em objeto de gozo, depreende-se que tais pacientes comparecem muito mais no registro da necessidade do que da demanda propriamente dita (Conte, 2004). A dificuldade que tal configuração impõe é que, enquanto a demanda não tem objeto fixo, a necessidade tem. Isso traz como decorrência o fato de que geralmente os ditos toxicômanos apresentam-se aos profissionais de saúde, dizendo o que necessitam: a droga ou a abstinência dela.

De fato, via de regra, esses são os dois bens que os usuários de drogas em geral vêm buscar quando procuram uma instituição de tratamento para o uso de substâncias psicoativas. No entanto, não cabe àquele que age em consonância com a ética da psicanálise trabalhar em prol do que acredita ser a promoção do bem do outro, seja prescrevendo-lhe a abstinência ou doses homeopáticas de substâncias. Isso porque a clínica psicanalítica adverte que qualquer concepção de bem que seja definida a priori e endereçada a um destinatário universal se situa no registro dos ideais. E a esse respeito a perspectiva psicanalítica adverte que o praticante da psicanálise, para operar em conformidade com a ética da psicanálise, deve manejar com esses ideais sem, no entanto, aderir a eles.

No âmbito específico das instituições que oferecem tratamento para os usuários de álcool e outras drogas, é possível afirmar ainda a existência de outros ideais, os quais são oriundos de diferentes propostas de tratamento. No que tange à proposta da abstinência, por exemplo, percebe-se claramente a existência de práticas remanescentes de um ideário moral que preceitua o uso de drogas como um comportamento desviante, que deve ser alvo de correção com vistas à adaptação social. Por sua vez, no que diz respeito à proposta da redução de danos, apesar de romper com a concepção idealizada de que o paciente precisa estar em abstinência para poder ser tratado, é possível perceber, em alguns casos, a persistência de um ideal, que também se pode chamar de moral, segundo o qual há um objetivo comum a ser alcançado por todos os usuários de substâncias psicoativas, qual seja, o de fazer um uso regulado e não danoso das drogas. Nessa perspectiva, impera um ideal de saúde que faz com que o tratamento ofertado ainda permaneça no âmbito do imaginário institucional, nos quais o importante não é o que o paciente demanda, mas o que se demanda dele.

Dessa forma, haveria, em ambas as propostas, uma tentativa de atuar sobre o gozo implicado nas práticas de intoxicação, seja através da sua completa proibição ou da sua regulação. Diferentemente, a proposta psicanalítica de tratamento para o uso de drogas visa fazer um manejo do gozo que não seja nem da ordem da interdição nem da regulação heterônomas, mas que vise, antes de tudo, a responsabilização do sujeito sobre isso que lhe é o mais íntimo.

Nessa perspectiva, adotar uma postura ética no tratamento oferecido a usuários de substâncias psicoativas implica não só em reconhecer a dimensão gozosa em jogo nas práticas de intoxicação, mas também estar advertido que a possibilidade de o sujeito se implicar no seu sintoma está associada à possibilidade de ele vir a se responsabilizar pelo seu gozo (Fernandes, 2009). Isso significa que a direção do tratamento na clínica psicanalítica das toxicomanias tem como norte a implicação do usuário no seu uso de drogas, a partir da qual ele poderá ser capaz de tomar esse uso como uma escolha própria e questionar-se sobre o que está por trás dela, reconhecendo ainda que, por mais que isso lhe traga problemas, resulta também em um modo de satisfação do qual apenas ele poderá escolher prescindir ou não.

 

Considerações finais

Este artigo teve como objetivo discutir os modelos de tratamento existentes para usuários de drogas, centrando-se na análise das possibilidades e limites da articulação entre as propostas da redução de danos e da psicanálise. Apesar das controvérsias existentes no que tange à aproximação dessas duas propostas, a tentativa de estabelecer uma interlocução entre elas justifica-se em função da visibilidade adquirida pelo uso de drogas na contemporaneidade, o que dificulta uma abordagem reducionista do fenômeno.

De fato, o próprio reconhecimento atual do consumo de psicoativos como uma questão, simultaneamente, social e de saúde pública ratifica a importância de os tratamentos das drogadições abrangerem intervenções que visem tanto à universalidade dos modos de inscrição desse fenômeno na cultura quanto à singularidade de cada sujeito que lança mão dos psicoativos. Dessa maneira, é necessário situar os tratamentos oferecidos para usuários de drogas numa interseção entre duas dimensões distintas: a política e a clínica.

No que tange aos tratamentos para uso de drogas no Brasil, a dimensão política é atualmente representada pela redução de danos, a qual é considerada parte integrante da nova política de saúde mental. Por sua vez, a dimensão clínica está representada basicamente pelo que tem sido chamado de clínica ampliada, que inclui os procedimentos de atenção psicossocial e visa à restituição da contratualidade social dos portadores de sofrimento psíquico. No entanto, ao longo deste trabalho, mostrou-se que essa modalidade de clínica ainda não atribui a devida importância à singularidade do sujeito e de suas formas de gozo.

Assim, considerando-se que a redução de danos é um conceito em aberto, ao qual podem ser atribuídos diversos significados (Macrae & Gorgulho, 2003), é necessário pensar as possibilidades de articulação dessa política com uma perspectiva clínica de tratamento capaz de contemplar a singularidade da função que as drogas vêm ocupar na economia psíquica de cada sujeito. É justamente nesta perspectiva que se assenta a proposição de que as práticas orientadas pela redução de danos podem beneficiar-se de uma interlocução com a dimensão clínica proposta pela psicanálise, à medida que esta chama atenção para a singularidade do modo como cada usuário insere-se em um fenômeno que é, antes de tudo, social.

Portanto, é válido concluir que a partir do referencial psicanalítico, mesmo levando em conta certa universalidade existente nas atuais políticas de saúde mental no Brasil, é indispensável a inserção de uma dimensão clínica que permita a invenção de modos de inscrição singulares no universal da cidadania. Tal articulação entre redução de danos e psicanálise se faz viável à medida que, entre esses dois campos, existe certo princípio em comum, qual seja, o da não segregação do usuário de drogas através da sua respectiva não negação como cidadão e como sujeito do inconsciente.

 

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Endereço para correspondência
Cynara Teixeira Ribeiro
E-mail: cynara_ribeiro@yahoo.com.br

Andréa Hortélio Fernandes
E-mail: ahfernandes@zaz.com.br

Recebido/Received: 16.3.2013/3.16.2013
Aceito/Accepted: 3.4.2013/4.3.2013

 

 

* Doutora em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia. Professora adjunta da Universidade Federal do Semi-árido (UFERSA). (Angicos, Rio Grande do Norte, Br.)
** Doutora em Psicopatologia Fundamental e Psicanálise pela Université de Paris VI. Professora adjunta da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. (Salvado, Bahia, Br.)

1 O termo escolha é utilizado pela psicanálise não no sentido de uma decisão ponderada, mas sim como algo que é escolhido por dizer respeito ao que há de mais íntimo no sujeito, o seu inconsciente. Assim, para a psicanálise, as escolhas são sobredeterminadas pela realidade psíquica e nem sempre são racionais, como é o caso da escolha pela intoxicação abusiva que muitas vezes ameaça destruir o próprio sujeito.